Sherry Thomas - The Elemental 02 - The Perilous Sea

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Após passar o verão longe um do outro, Titus e Iolanthe (ainda disfarçada de Archer Fairfax) estão ansiosos para retornar ao Colégio Eton e retomar o treinamento para enfrentar Bane. Embora não esteja mais ligada a Titus por um juramento de sangue, Iolanthe está mais comprometida do que nunca com seu destino – especialmente com os agentes de Atlantis rapidamente se aproximando. Logo após chegar à escola, Titus faz uma descoberta chocante, que o faz questionar tudo o que ele acreditava anteriormente sobre sua missão. Diante dessa revelação devastadora, Iolanthe é forçada a aceitar seu novo papel enquanto Titus deve escolher entre seguir as profecias de sua mãe – e forjar um caminho divergente para um futuro desconhecido.

Capítulo 1 A garota acordou de repente. Ela estava estirada na areia. Areia estava em toda parte. Abaixo, seus dedos cavaram-na, quente e arenosa. Acima, a areia girava, bloqueando o céu, tornando o ar tão vermelho quanto a superfície de Marte. Uma tempestade de areia. Ela se sentou. Areia rodou ao redor dela, milhões de partículas de cor marrom escura. Por reflexo, ela as afastou, desejando que ficassem longe de seus olhos. A areia permaneceu afastada. Ela piscou – e fez outro movimento de afastar com a mão. As partículas voadoras recuaram mais. A tempestade de areia não mostrou sinais de diminuição. Na verdade, estava piorando, o céu ficando ameaçadoramente escuro. Ela tinha poder sobre a areia. Em uma tempestade de areia era muito melhor ser um mago elementar do que qualquer outra coisa. No entanto, havia algo desconcertante sobre a descoberta: o fato de que era uma descoberta;

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que ela não tinha ideia dessa habilidade que deveria defini-la desde o momento de seu nascimento. Ela também não sabia onde estava. Ou por quê. Ou onde estava antes de despertar em um deserto. Nada. Sem lembrança do abraço de uma mãe, o sorriso de um pai ou os segredos de um melhor amigo. Sem lembrança da cor da porta da frente, do peso de seu copo de bebida favorito ou dos títulos de livros que cobriam a mesa. Ela era uma estranha para si mesma, uma estranha com um passado tão árido quanto o deserto, cada característica definidora enterrada fundo, inacessível. Uma centena de pensamentos flutuou em sua cabeça, como um bando de pássaros assustados em voo. Há quanto tempo ela estava nesse estado? Ela sempre foi assim? Não deveria haver alguém para cuidar dela se ela não soubesse nada sobre ela? Por que estava sozinha? Por que estava sozinha no meio do nada? O que aconteceu? Ela colocou dois dedos contra o esterno. A pressão interna tornou difícil respirar. Ela abriu a boca, tentando respirar mais rápido, tentando encher seus pulmões para que parecessem tão vazios como o resto dela. Levou um minuto antes de reunir compostura suficiente para examinar sua pessoa, rezando por indícios – ou respostas absurdas – que lhe diriam tudo o que precisava. Suas mãos não estavam lisas: alguns calos na palma da mão direita e pouco mais na outra. Erguendo as mangas, revelou antebraços em branco. Um olhar sobre a pele do abdômen também não rendeu nada. — Revela omnia1, — ela disse surpresa ao ouvir uma voz profunda e quase grave. — Revela omnia, — ela disse novamente, esperando que o som de sua fala pudesse desencadear uma cascata de memórias de repente.

1 Mostrar tudo.

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Não aconteceu. Nem o feitiço trouxe à luz alguma escrita secreta em sua pele. Certamente seu isolamento era apenas uma ilusão. Alguém deveria estar perto para poder ajudá-la – um pai, um irmão, um amigo. Talvez essa pessoa já estivesse caminhando, chamando por ela, ansiosa para localizá-la e ter certeza de que ela estava bem. Mas ela não podia ouvir vozes sobre o vento uivante, apenas a turbulência de partículas de areia atacadas por forças além do controle delas. E quando expandiu a esfera de ar limpo ao seu redor, ela descobriu nada além de areia e mais areia. Ela enterrou o rosto nas mãos por um momento, então respirou fundo e levantou. Ela queria começar com suas roupas, mas quando se levantou, tornou-se óbvio que ela tinha algo na bota direita. O seu coração acelerou ao perceber que era uma varinha. Desde que os magos perceberam que as varinhas eram apenas condutoras do poder de um mago, amplificadores que não eram estritamente necessários para a execução de feitiços, as varinhas transformaram-se de ferramentas reverenciadas a acessórios bem-amados, sempre personalizadas, e às vezes com um nível idiota. Nomes eram entrelaçados no design, feitiços favoritos, insígnias da cidade ou da escola. Algumas varinhas ainda tinham toda a genealogia de seus proprietários gravada em letras microscópicas. Ela adoraria ver sua história familiar apresentada diante dela, mas seria mais do que bom o suficiente se a varinha tivesse um, Em caso de perda, volte para ______ inscrito em algum lugar. A varinha, no entanto, era tão simples quanto uma tábua de chão, sem nenhuma marcação, incrustações ou temas decorativos. E permaneceu tão nua quando examinada sob um feitiço de ampliação. Ela não tinha ideia de que tais varinhas eram feitas. Um peso opressivo se acomodou no seu peito. Pais amorosos não dariam tal varinha a uma criança, da mesma forma que não a mandariam para a escola em roupas feitas de papel. Ela era órfã então? Alguém que foi descartada no nascimento e criada em uma instituição? Magos

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elementares sofriam de uma maior taxa de abandono, já que tinham tantos problemas na infância. No entanto, as roupas que ela usava, uma túnica azul até o joelho e uma roupa de baixo branca, eram excepcionalmente de tecido fino: leve, mais resistente, com um brilho discreto. E embora o rosto e as mãos sentisse o calor do deserto onde estava coberta pelas túnicas, ela estava perfeitamente confortável. As túnicas não tinham bolsos. Contudo, as calças embaixo tinham. E em um desses bolsos havia um cartão pequeno, retangular e um tanto amassado.

A. G. Fairfax Low Creek Ranch Território de Wyoming

Ela teve que piscar duas vezes para se certificar de que estava lendo corretamente. Território de Wyoming? Tipo, no oeste americano? A parte não maga do Oeste americano? Ela tentou vários feitiços de desmascaramento diferentes, mas o cartão não forneceu mensagens ocultas. Expelindo uma respiração lenta, ela colocou o cartão de volta no bolso da calça. Ela pensou que tudo o que precisava era um nome, a mais ínfima das pistas. Mas agora ela tinha um nome e uma pista, e era pior do que se não tivesse nenhuma. Em vez de olhar para uma parede em branco, ela olhava para uma única polegada quadrada de cores e textura tentadora, com o resto do mural – as pessoas, os lugares e as escolhas que a faziam ser quem era – permanecendo firmemente fora de vista. Sem querer, ela cortou a varinha pelo ar, e tudo apenas rugiu. A areia girando recuou ainda mais. Ela respirou fundo: a dois metros de onde estava, uma bolsa de lona estava meio coberta pela areia. Ela se lançou até a bolsa, arrancando-a da areia. A alça estava solta, mas a bolsa em si não estava danificada. Não era terrivelmente

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grande – cerca de cinquenta centímetros de largura, trinta centímetros de altura e vinte centímetros de profundidade – nem era terrivelmente pesada - quinze quilos ou mais. Mas era bastante notável o número de bolsos que tinha: pelo menos doze no lado de fora, e repartições sobre repartições por dentro. Ela desabotoou um grande bolso externo: ele continha uma muda de roupa. Outro de tamanho semelhante armazenava um tecido bem embalado que ela imaginava que se expandiria para uma pequena barraca. Os bolsos no interior estavam cuidadosamente e claramente rotulados: Nutrição, cada pacote vale por um dia. Desmaterialização: cinco grânulos por vez, não mais do que três vezes por dia. Lençol de calor – no caso de você precisar de calor, mas precisar permanecer invisível. No caso de você precisar de calor. Será que ela se dirigia a si mesma na segunda pessoa – ou essa era a evidência de que alguém estivera intimamente envolvido em sua vida, alguém que sabia que tal bolsa de emergência poderia vir a ser útil algum dia? Trinta e seis bolsos de um compartimento interior estavam completamente recheados de remédios. Não remédios para doenças, mas para lesões: tudo, desde membros quebrados até a queimadura de fogo de dragão. Seu pulso acelerou. Este não era uma bolsa de acampamento, mas uma bolsa de emergência preparada na expectativa de um perigo significativo, talvez esmagador. Um mapa. A pessoa que arrumara meticulosamente a bolsa deve ter incluído um mapa. E lá estava, em um dos bolsos exteriores menores, tecido de fios de seda tão finos que dificilmente podiam ser discernidos a olho nu, com reinos magos em verde, e não magos em cinza. Na parte superior estava escrito: Coloque o mapa no chão – ou na massa de água, se necessário. Ela colocou o mapa à sua frente na areia, o qual, com o calor do sol bloqueado pelo céu turbulento, estava rapidamente perdendo o calor. Quase imediatamente, um ponto vermelho apareceu no mapa, no Deserto

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do Saara, a duzentos quilômetros ou mais ao sudoeste da fronteira do Reino Unido de Bedouin. No meio de lugar nenhum. Seus dedos agarravam as bordas do mapa. Onde ela deveria ir? Low Creek Ranch, o único lugar que ela poderia dizer o nome de sua vida anterior, estava a, pelo menos, doze mil quilômetros de distância. Os reinos do deserto tipicamente não possuíam fronteiras bem protegidas como as dos reinos das ilhas. Mas sem documentos oficiais, ela não poderia usar nenhum dos translocadores dentro do Reino dos Bedouins para desmaterializar por oceanos e continentes. Ela poderia até mesmo ser detida por estar em algum lugar que não deveria – Atlantis não gostava de magos viajando para o exterior sem razões devidamente sancionadas. E se tentasse rotas não magas, ela estava a cerca de mil e oitocentos quilômetros de Trípoli e Cairo. Assim que caminhasse para a costa do Mediterrâneo, supondo que pudesse, ela ainda estaria pelo menos três semanas do oeste americano. Mais palavras apareceram no mapa, desta vez acima do deserto em que estava encalhada. Se você estiver lendo isso, amada, então o pior aconteceu e não posso mais protegê-la. Saiba que você foi a melhor parte da minha vida e não tenho arrependimentos. Por muito tempo, que a Sorte esteja com você. Viva para sempre. Ela passou a mão sobre as palavras, quase sem perceber que seus dedos tremiam. Uma dor maçante queimava na parte de trás da garganta pela perda do protetor que ela não conseguia se lembrar. Pela perda de uma vida inteira agora fora do seu alcance. Você foi a melhor parte da minha vida.

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A pessoa que escreveu isso poderia ter sido um irmão ou amigo. Mas ela tinha quase certeza de que ele era seu amado. Ela fechou os olhos e procurou por algo. Tudo. Um nome, um sorriso, uma voz – não se lembrava de nada. O vento gritava. Não, era ela, gritando com toda a frustração que não podia mais conter. A tempestade de areia diminuiu, como se temesse o que ela poderia fazer. Ela ofegou, como um corredor após uma corrida difícil. Sobre ela, o raio do ar limpo e imperturbável aumentou dez vezes, expandindo-se a trinta metros em cada direção. Entorpecida, ela girou ao redor, procurando o que não ousava esperar encontrar. Nada. Nada. Absolutamente nada. Então havia a silhueta de um corpo na areia.

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Capítulo 2 O Domínio ♦ Sete semanas antes

— Sua Alteza Sereníssima Titus, o Sétimo, — anunciaram as fênix de pedra que guardavam os quatro cantos do grande terraço, suas vozes parecidas e ressoantes. Titus parou na beira do terraço, o famoso jardim da Cidadela diante dele. Em algum lugar do jardim, havia áreas informais, íntimas até, mas não aqui. Aqui, os acres de arbustos verdes foram meticulosamente cortados em centenas de canteiros, que quando vistos do alto formavam uma Fênix estilizada, o símbolo da Casa de Elberon. As sempre vivas criadas pelos botânicos mestres da Cidadela floresciam no final do verão. E a cada ano, a cor das flores mudava. Este ano, as flores eram de um laranja escuro e vibrante, a cor do amanhecer. Dalbert, o valet de Titus e seu espião-mestre pessoal, relatou ter visto os emblemas de fênix nos edifícios públicos de Delamer pintados em uma tonalidade de fogo semelhante, muitas vezes acompanhada por uma escrita imprudente. A fênix está em chamas!

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Na última vez que a fênix esteve em chamas, a Revolta de Janeiro logo ocorreu. No espaço entre as duas asas levantadas da fênix, um grande dossel branco foi erguido, brilhante à luz do sol da tarde. Sob o dossel, uma recepção diplomática estava em pleno andamento. Criados em uniformes cinzentos da Cidadela entre os convidados com túnicas de tonalidades de joias preciosas, oferecendo aperitivos e copos de vinho gelado. Uma música suave, etérea, flutuava na brisa do mar, e com isso, os sons de risadas suaves e conversas. Titus inalou. Ele estava nervoso. Era possível que estivesse respondendo à tensão sob a aparente alegria da festa, mas, na verdade, era como sempre, tudo sobre Fairfax, sua poderosa e ardente maga elementar. Ele desceu um lance de degraus largos e curtos e caminhou por uma alameda alinhada com estátuas, com um séquito de doze pessoas a reboque. Quando se aproximou do dossel, todo o grupo se curvou e fez reverência. Ele poderia estar sem poderes reais, mas ainda era cerimonialmente o senhor e Mestre do Domínio2. Uma mulher excepcionalmente linda se aproximou, um sorriso no rosto: Lady Callista, a anfitriã oficial do palácio, a bruxa da beleza mais conhecida da sua geração, e uma das pessoas menos preferidas de Titus na face da terra. Já que ele pretendia destruir Bane, o Senhor Comandante Supremo do Grande Reino de Atlantis, e o maior tirano que o mundo já conheceu, e Lady Callista era uma serva fiel a Bane. Para não mencionar, embora não tivesse provas concretas para sustentar suas suspeitas, ele sempre achou que Lady Callista era responsável pela morte de sua mãe. — Minha senhora, — ele a reconheceu. O Domínio é o termo comum para o Principado Unido dos Pilares de Hércules, assim chamado por duas extremidades de seu território no momento da unificação, A Rocha de Gibraltar e a Torre de Poseidon, uma coluna de basalto saindo do Atlântico, cerca de trinta quilômetros ao norte da ponta mais ao norte das Ilhas Siren, foram coletivamente conhecidas como os Pilares de Hércules. – De O Domínio: Um Guia de História e Costumes 2

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— Sua Alteza, — Lady Callista murmurou. — Estamos encantados por você poder se juntar a nós. Por favor, permita-me apresentar o novo embaixador do Reino de Kalahari. Titus ficou muito feliz por ver bolsas visíveis debaixo de seus olhos. A vida não foi fácil para ela desde o dia quatro de junho, quando o prisioneiro mais valioso de Atlantis desapareceu da biblioteca da Cidadela. Na mesma biblioteca, na mesma noite, a Inquisidora, um dos tenentes mais leais e capazes de Bane, encontrou um fim súbito e inesperado. Lady Callista teve a má sorte de ser a última pessoa a entrar na biblioteca antes do desaparecimento de Haywood. Também foi ela quem pediu para limpar as manchas de sangue na biblioteca, quando Atlantis teria gostado de ter algumas gotas desse sangue, a fim de descobrir quem era responsável pela morte da Inquisidora. Apesar de seus anos de serviço como agente de Atlantis, ela foi considerada tão suspeita quanto Titus, seus movimentos confinados dentro dos limites da Cidadela. Além disso, todas as semanas ela precisava se encontrar com investigadores atlantes, cada entrevista durava horas, às vezes um dia inteiro. Distraída e angustiada, Lady Callista era uma ameaça menor para Titus. Apresentações feitas, Lady Callista deixou Titus para conversar com o novo embaixador de Kalahari e os membros da família que o acompanharam

ao

Domínio.

Titus

nunca

ficava

completamente

confortável em situações sociais – ele suspeitava que parecesse rígido e desprezível. Se ao menos pudesse ter Fairfax ao seu lado. Ela sabia instintivamente como deixar as pessoas à vontade, e ele ficava sempre muito relaxado em sua companhia. Deveria ter sido um verão idílico nas Montanhas Labyrinthine para eles – assistindo o deslocamento dos picos, explorando cachoeiras escondidas, talvez até se esgueirando para os ninhos das fênix nos cumes mais altos, na esperança de ver um renascimento ardente. Não que não estivessem trabalhando duro: seus planos incluíam centenas de horas de

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treinamento extenuante, sendo muitas dedicadas ao domínio de novos feitiços, para não mencionar tentar descobrir onde seu guardião estava depois de desaparecer da biblioteca da Cidadela. Mas o mais importante era que eles estariam juntos tanto quanto possível, a cada passo do caminho. Porém, desde o momento em que saiu do trem ferroviário que servia como seu translocador particular, ficou evidente que ele seria vigiado a cada segundo das suas férias. Realmente, uma coisa terrível, quando ele a escondera em sua pessoa sob a forma de uma pequena tartaruga, como resultado de uma poção que não duraria mais de doze horas. Ele conseguiu contrabandeá-la para fora do castelo em um ímpeto desesperador, deixando-a em uma cabana de pastor abandonada, ainda em forma de tartaruga. Ele pretendia voltar mais tarde para acompanhála até a casa segura que preparou, mas dez minutos depois de retornar ao castelo, ele se viu levado para o Capitólio, a residência oficial do Mestre do Domínio na capital, da qual não conseguiria escapar para as montanhas com facilidade ou segredo. Ele e Fairfax haviam discutido dezenas de planos de contingência, mas nada perto desse cenário, em que ela ficaria presa nas Montanhas Labyrintine sozinha. Durante dias, ele quase não conseguiu dormir, até que viu um anúncio de três linhas no rodapé do Observador Delamer, anunciando a disponibilidade de vários bulbos para o plantio de outono: era ela, informando que o encontraria em Eton no começo do semestre, na festa de São Michael. Ele quase explodiu de alívio – e orgulho: confie em Fairfax para sempre encontrar um jeito, não importa quão horrível fosse a situação. A partir daí, foi uma longa e excruciante espera para o final do verão, pelo momento em que se encontrariam novamente. O final do verão finalmente chegou. Ele tinha permissão para ir para a Inglaterra imediatamente após a recepção. Ele não sabia como se mantinha em pé, falando com grupos atrás de grupos de convidados. Um

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minuto ele ficava sem fôlego ao pensar em abraçá-la, no próximo minuto com medo – e se ela não entrasse na casa da Sra. Dawlish? —... Antes de você governar por seu próprio direito. Devo admitir ter esperado vê-lo em algumas das minhas reuniões neste verão. Dois segundos se passaram antes de Titus perceber que ele deveria responder a Comandante Rainstone, a principal assessora de segurança do regente. — De acordo com a tradição judicial, eu deveria ter dezessete anos antes de participar de reuniões do conselho e relatórios de segurança, — ele disse. E ele não completaria dezessete anos por várias semanas. — Que diferença faz alguns dias? — A Comandante Rainstone perguntou, aparentemente irritada. — Sua Alteza chegará à idade em um momento mais instável e precisará de toda a experiência que puder reunir. Se eu fosse Sua Excelência, eu teria insistido que Sua Alteza fosse familiarizado com o funcionamento do estado mais cedo. Sua Excelência era o Príncipe Alectus, o regente que governava no lugar de Titus. Alectus também aconteceu de ser o protetor de Lady Callista. — O que você teria para me ensinar? — Titus perguntou a Comandante Rainstone. Ela foi membro do quadro de funcionários pessoal de sua mãe, há muito tempo, antes de ter idade suficiente para se lembrar de tudo. Ele conhecia a Comandante Rainstone, principalmente por suas viagens ocasionais para o castelo nas Montanhas Labyrinthine, para informá-lo sobre assuntos relacionados com a segurança do reino, ou pelo menos aqueles assuntos que ela pensava que ele tinha idade suficiente para entender. A Comandante Rainstone olhou para a multidão e abaixou a voz. — Nós temos notícias, senhor, de que o Senhor Comandante Supremo de Atlantis deixou sua fortaleza nas terras altas. Esta era uma novidade para Titus – uma que provocou um arrepio gélido em sua coluna. — Eu entendo que ele jantou aqui na Cidadela há

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pouco tempo. Portanto, não pode ser tão incomum ele deixar o Palácio do Comandante. — Mas esse evento por si só foi extraordinário: foi a primeira vez que ele saiu do Palácio do Comandante desde o fim da Revolta de Janeiro. — Isso significa que Lady Callista deve esperá-lo para o jantar novamente? A comandante Rainstone franziu a testa. — Sua Alteza, isso não é brincadeira. O Senhor Comandante Supremo não deixa seu palácio levianamente e... Ela parou. Aramia, a filha de Lady Callista, estava se aproximando. — Sua Alteza, Comandante, — Aramia disse amigavelmente, — Peço desculpas pela intrusão, mas acredito que o primeiro-ministro gostaria de ter uma palavra com você, comandante. — Claro, — Comandante Rainstone curvou-se. — Se você me desculpar, Sua Alteza. Aramia se virou para Titus. — E provavelmente não viu a nova adição à fonte da Derrota do Usurpador, Sua Alteza, você viu? Há quase cinco meses, em uma festa como essa, Lady Callista administrara o soro da verdade em Titus em nome de Atlantis – e fez isso através de Aramia, a quem Titus havia considerado uma amiga. Se Aramia tinha algum arrependimento a respeito de sua ação, Titus não conseguiu perceber. — Eu vi a nova adição, — ele disse friamente. — Foi finalizada há dois anos. Aramia enrubesceu, mas seu sorriso persistiu. — Permita-me apontar alguns detalhes que você pode não ter notado. Você virá comigo, majestade? Ele considerou recusar. Mas um passeio longe do dossel tinha alguns méritos – pelo menos ele não teria que falar com ninguém. — Lidero o caminho. A Derrota do Usurpador, a maior e mais elaborada das noventa e nove fontes da Cidadela, era do tamanho de uma pequena colina, com

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dezenas de wyverns sendo derrotados pelos poderes elementais de Hesperia, a Magnífica. A longa piscina refletia antes de se estender quase até a borda do promontório artificial na qual a Cidadela estava sentada. Penhascos estendiam-se por noventa metros, diretamente ao encontro da ressaca do Atlântico. À distância, uma embarcação de pesca, todas as suas velas enroladas, atravessava o mar iluminado pelo sol. Aramia olhou para trás. O séquito de Titus, oito guardas e quatro servos, os seguiram. Mas agora, com um aceno de sua mão, eles diminuíram o passo e ficaram fora do alcance da voz. — Mamãe ficará com raiva de mim se souber o que estou prestes a fazer. — Aramia colocou a mão dentro da fonte e agitou a superfície ondulante. — E ela não admitirá isso, mas está bastante assustada com todas as reuniões com os investigadores da Atlantis. Eles a fazem tomar o soro da verdade e eles são... Eles não são agradáveis. — Esse é o modo de operar de Atlantis. — Mas não há algo que você possa fazer por ela depois do que ela fez por você? Titus ergueu uma sobrancelha. Depois do que Lady Callista fez por ele? — Você superestima minha influência. — Mas tudo o... — Aí está você! — Veio uma voz clara e musical. — Tenho te procurado por toda parte. A jovem que se aproximou do lado oposto da fonte era maravilhosamente bela – a pele da cor do açúcar mascavo, um rosto de perfeição quase exagerada, e uma cascata de cabelo preto atingindo até a parte de trás de seus joelhos. Aramia olhou fixamente, boquiaberta, como se não fosse capaz de acreditar que existia uma pessoa que rivalizasse com a beleza de sua mãe. Titus, que sempre desconfiou de beleza de tal magnitude, graças à proximidade com Lady Callista, deixou de observar os traços da mulher para examinar sua túnica. Às vezes, ele ouvia túnicas serem ridicularizadas por serem parecidas com tapeçaria, mas esta parecia ser

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feita de tapeçaria – como um elaborado abajur, ele se corrigiu, com todas as bordas e franjas ainda presas. — Você se importaria de me dar um momento com Sua Alteza? — Ela falou para Aramia, sua voz amável, mas inconfundivelmente firme. Aramia hesitou, olhando para Titus. — Você pode nos deixar, — Titus disse. Ele não tinha mais nada para dizer a ela. Aramia se afastou, olhando para trás o tempo todo. — Sua Alteza, — a jovem disse. Ela se dirigiu a ele sem primeiro ser abordada por ele. Titus não se importava quando estava na escola, mas aqui ele estava em seu próprio palácio, em uma recepção diplomática, nada menos, onde os convidados adoravam essa etiqueta quase tanto quanto amavam suas próprias mães, possivelmente mais. Ocorreu-lhe que enquanto ela podia passar por um membro da comitiva do embaixador de Kalahari, ele não a viu antes, entre a multidão debaixo do dossel – e uma mulher com a aparência dela não passaria despercebida. Não que nunca tivesse acontecido anteriormente, um mago entrar em uma festa no palácio sem credenciais adequadas. Mas a Cidadela não estava em alerta máximo depois dos eventos do início de junho? — Como você entrou? A mulher sorriu. Ela não era muito mais velha que Titus, vinte ou vinte e um anos. — Um homem imune aos meus encantos – eu gosto disso, Sua Alteza. Deixe-me chegar ao ponto então. Estou interessada no paradeiro de sua maga elementar. Ele teve que lutar contra seu choque, não apontar sua varinha para ela e fazer algo imprudente. Então ele revirou os olhos, em vez disso. — Seus mestres já me fizeram todas as perguntas. Eles até me colocaram sob Inquisição. Devemos passar por mais do mesmo? O cabelo dela agitou na brisa vinda do mar, como uma bandeira de um pirata. Ela estendeu o braço e ergueu a manga. Em seu antebraço havia uma marca em linhas brancas e fortes, um elefante marfim de

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quatro presas esmagando um redemoinho de água sob os pés – um símbolo de resistência em muitos reinos perto do equador. — Não sou uma agente de Atlantis. — E por que isso deveria mudar minha resposta? Não conheço o paradeiro daquela menina. — Sabemos que ela é a profetizada – a maga elementar mais poderosa que já se viu em séculos. Também sabemos que seria desastroso para aqueles que desejam a liberdade se ela cair nas mãos de Bane. Deixe-nos ajudá-la. Nós podemos garantir que Bane nunca se aproxime dela. O que você faria se Bane se aproximasse dela? Você a mataria para que ele nunca ganhasse? E o que a impediria de matá-la desde o início, se o seu único objetivo é afastá-la dele? — Boa sorte em encontrá-la, então. Ela se inclinou para mais perto dele, obviamente não estando prestes a desistir. — Sua Alteza... Gritos entraram em erupção. Titus virou. Os guardas estavam correndo pelos degraus. O seu próprio séquito vinha correndo até ele. — Oh, querido, — a jovem disse. — Parece que eu devo me despedir de Sua Alteza. Com um puxão, sua ridícula túnica saiu completamente. Um ruído rápido e suave flutuou de – é claro – um tapete voador, muito maior e mais fino do que aquele que Titus possuía3. A jovem, agora vestida com uma túnica e calças da cor das nuvens de tempestade, saltou para o tapete voador, e com uma saudação zombeteira para Titus, acelerou para o barco a espera à distância.

Em reação às restrições de Atlantis sobre os canais de viagem, os magos em reinos sob seu domínio se voltaram para os modos de transporte mais antigos e menos avançados que foram largamente abandonados em favor da velocidade e conveniência de meios mais modernos. As docas secas funcionavam nos reinos sem litoral. As estruturas foram fabricadas em grandes quantidades em oficinas secretas. E tapetes voadores, em ressurgimento, atingiu um nível de desenvolvimento que ultrapassou as glórias de seu antigo auge. – A partir de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião. 3

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Capítulo 3 O deserto do Saara

A garota colocou o mapa no bolso, pegou a bolsa e correu para o corpo. Mas os instintos que ela nem sabia que possuía a fizeram parar no meio caminho. Sua perda de memória, os remédios para ferimentos na bolsa de emergência, a nota no mapa – o pior aconteceu e não posso mais protegê-la– tudo sobre sua situação gritava um perigo grave e, talvez, implacável. A pessoa na areia tinha a mesma probabilidade de ser um inimigo como um aliado. Ela puxou a varinha, aplicou um escudo protetor em si mesma e avançou com mais cautela. O corpo de bruços usava um casaco preto e uma calça preta, a manga de uma camisa branca espreitava para fora da manga do casaco – uma roupa de homem não mago. Roupas não magas para um homem de outra parte do mundo. Ele tinha uma forma esguia, com o cabelo escuro apesar de ter uma camada de poeira, sua cabeça virada para longe dela. Seu estômago apertou. Era ele? Se ela visse o rosto, se ele dissesse seu nome e apertasse

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sua mão, tudo voltaria a ser como antes, assim como a felicidade e a boa sorte que sempre pareciam ganhar no final de um conto heroico? Apesar de seu traje não mago, ele tinha uma varinha na mão. As costas de seu casaco estavam rasgadas, expondo um colete escuro – ele tentou protegê-la? Ao se aproximar, seus dedos flexionaram e depois apertaram a varinha. Uma onda de alívio a inundou: ele ainda estava vivo e ela não estava completamente sozinha na imensidão do Saara. Foi com muita dificuldade que ela se impediu de ir até ele. Em vez disso, ela parou a três metros de distância. — Olá? Ele sequer olhou em sua direção. — Olá? Mais uma vez, nenhuma resposta. Ele perdeu a consciência? Foi o movimento de seus dedos que ela viu antes, ou os movimentos involuntários de alguém que sofre de uma concussão? Ela pegou alguns grãos de areia e jogou-os suavemente na direção dele – uma tentativa de arremesso, por assim dizer. A um metro dele, a areia atingiu uma barreira invisível no ar. Ele virou a cabeça para ela e levantou a varinha. — Não se aproxime. Ele era jovem e bonito. Mas seu rosto não conseguiu desencadear uma inundação de lembranças. Nem mesmo provocou qualquer vaga pontada de lembrança, exceto para fazer com que ela se perguntasse se era tão jovem quanto ele. — Eu não farei nenhum dano a você, — ela disse. — Então vamos nos separar como estranhos amigáveis. Seu coração comprimiu com a palavra estranhos. Então seus olhos se arregalaram: o que ela pensava ser um colete sob seu casaco rasgado, era na verdade carne que foi – o quê? Queimada? Infectada? O que quer que tenha acontecido, parecia horrível. — Você está ferido. — Eu posso cuidar de mim mesmo. Ele ainda era cortês, mas seu tom era bem inconfundível: Vá. Você não é bem-vinda aqui.

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Ela não queria forçar sua companhia a ele, mesmo que fosse a única pessoa em uma centena de quilômetros. Mas a ferida dele – ele poderia morrer por causa disso. — Eu tenho remédios que podem ajudálo. Ele exalou, como se o esforço necessário para falar o esgotasse. — Então os deixe aí. O que ela gostaria era que ele lhe dissesse coisas em troca dos remédios – como veio parar no deserto, quem ou o que o feriu, e se por acaso ele conhecia um caminho para voltarem à segurança. Talvez sua falta de reciprocidade indicasse que ele não estava tão desesperadamente ferido quanto parecia estar; se ela estivesse tão ferida, não seria tão exigente em aceitar ajuda. Ou assim ela supôs. Na verdade, ela não tinha ideia de como teria agido, já que não tinha memória para orientar suas escolhas. Ela balançou a cabeça um pouco e procurou na bolsa. — Me ajudaria a decidir quais remédios lhe dar se você puder me dizer que tipo de lesão você tem. — Preciso de remédios que aliviem a dor, desinfetem, expulsem a toxina e regenerem a pele e os tecidos, — ele respondeu; seu tom cortante e distante. Ela começava a se arrepender de se oferecer para ajudar. Como poderia saber se ela mesma não precisaria desses remédios em um futuro muito próximo? Mas pegou os remédios que ele pediu, junto com uma pequena quantidade de comida, e enviou-os para a borda de seu escudo com um feitiço de levitação. — Você é um mago elementar com poder sobre a água? — Ela perguntou. A resposta dele foi uma careta seguida de silêncio. — É ou não? — Ela insistiu. Todos os remédios no mundo não adiantariam quando a sede o matasse em alguns dias. — Quanto tempo você vai demorar com essa despedida?

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Ela quase deu um passo atrás. Ele rosnou como se tivesse nascido para isso, o desdém em sua voz mais nítido do que os dentes de um wyvern. Ela tirou dois odres da bolsa e pediu que água potável dos rios subterrâneos e lagos de oásis fluíssem até ela enquanto suprimia o desejo de proferir uma réplica extremamente espirituosa. Ele poderia ser grosseiro, mas ela não podia simplesmente abandoná-lo sem água – e não havia nenhum ponto em chamá-lo por nomes quando ele já estava em desvantagem. A água, no entanto, não se materializou ao seu comando. Ela disse a si mesma que a água, uma substância real, levaria seu tempo para chegar, e em quantidades incertas, dependendo da distância e da abundância da fonte mais próxima. Mas e se ela não tivesse poder sobre a água? Então ela estava tão condenada quanto o garoto. Um minuto passou antes que a primeira gota se materializasse, suspensa no ar – ela fechou os olhos brevemente em alívio. O garoto observou como a gota da água crescia, permanecendo absolutamente comprimida. Ela encheu os odres e jogou-os na direção dele. Um pousou bem na areia com um gorgolejar. O outro, que ela lançara um pouco mais forte, fez o escudo brilhar ligeiramente antes de cair no chão. Isso chamou sua atenção. O odre teria saltado um escudo normal. Mas aqui, se seus olhos não a enganassem, o escudo que tinha a forma de uma cúpula, absorveu o impacto. Uma cúpula de tração. Se o menino a fez, ele deveria ser um bom mago. — Agora que mostrou sua prodigiosa gentileza, você pode simplesmente ir? — O garoto quase rosnou. — Sim, eu vou, — ela atirou, — Agora que você mostrou sua imensa gratidão. Ele teve a decência de não responder.

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Ela murmurou sob sua respiração enquanto fechava todas as divisões dentro e fora da bolsa. Tanto para a esperança de que este garoto de cara doce pudesse ser seu protetor – aquele que jamais se importaria somente consigo mesmo. Seu coração doía com tristeza pelo aliado resoluto do qual ela não podia mais se lembrar. Seus dedos tocaram a bolsa, a manifestação física do cuidado meticuloso que ele tivera com ela. Mas como ela queria poder recordar apenas um detalhe sobre ele. A risada dele, ela pensou, se não fosse mais nada, era essa lembrança que ela gostaria de levar com ela para... Suas orelhas formigaram. A tempestade de areia uivava como sempre. Mas agora parecia que havia um grande número de objetos no ar – objetos grandes que se aproximavam a uma velocidade tremenda. O resgate estava a caminho? Ou outro perigo? Em ambos os casos, era melhor ver quem vinha antes de decidir se queria deixá-los vêla. Mais cedo, ela limpou o ar por quase uma centena de metros; agora permitiu que a tempestade de areia assumisse o controle, exceto pelo espaço entre ela e o garoto. Ele também escutava com cuidado, a testa franzida em concentração. Não havia vibrações no chão, portanto os objetos que se aproximavam deveriam ser veículos aéreos, o que implicava a presença de magos, pois os balões de ar quente e as aeronaves frágeis dos não magos não seriam capazes de avançar contra uma tempestade de areia de tal magnitude. O menino murmurou. Pela primeira vez, sua expressão revelou o medo. — Carros blindados. Seu coração despencou. Ele estava certo, os sons eram metálicos. Somente Atlantis tinha esses veículos. E, a qualquer custo, ela deveria ficar longe do alcance de Atlantis. Ela não sabia o porquê, só sabia que era imperativo. Caso contrário, todos estariam perdidos.

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O ruído da areia atingindo o metal diminuiu, e desapareceu por completo. A tempestade de areia não diminuíra; os Atlantes estavam limpando o ar como ela fez anteriormente. — Deixe-me entrar sob o seu escudo, — ela exigiu. Ela ficaria bem indefesa aqui, se os carros blindados decidissem disparar um ataque mortal – ela poderia mexer com o ar, mas não poderia filtrá-lo. — Não. Seria uma perda de tempo apelar para sua melhor natureza, então não se incomodou. — Você gostaria que eu sinalizasse para eles onde você está? — Ela perguntou enquanto pegava as barras de nutrição, os remédios e os odres da areia. — É de meu conhecimento que você não pode se mexer muito. O menino rangeu os dentes. — Sua bondade é verdadeiramente notável. — E sua gratidão é humilhante de se contemplar. Agora me deixe entrar ou prepare-se para a Atlantis. Sua crueldade a surpreendeu. Ela sempre foi uma negociante tão dura, ou estava respondendo ao sangue frio do menino? — Tudo bem, — ele disse com os dentes cerrados. — Mas não te deixarei entrar sem um acordo não prejudicial. Coloque uma gota de sangue no escudo. Um garoto que praticava a magia de sangue – ela estremeceu4. Um acordo de não violência não era tão terrível quanto um juramento de sangue, mas ainda assim, toda magia de sangue era poderosa e perigosa, e deveria ser usada somente com precaução extrema. — Somente se você retribuir.

Um equívoco comum sobre a magia de sangue envolve seu propósito original – que foi o primeiro concebido para forçar os magos a agir contra a própria vontade. A verdade é muito mais complexa: magia de sangue, desde sua criação, tem sido usada para manter tribos e clãs juntos e garantir que os membros individualmente não prejudiquem o bem maior do grupo. Isso significa que às vezes a magia de sangue foi colocada em usos coercivos? Sem dúvida. É uma espada de dois gumes, assim como todo ramo da magia. – Da Arte e da Ciência da Magia: Uma cartilha. 4

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— Você primeiro, — ele disse. Ela tirou um conjunto de ferramentas compactas que viu em sua bolsa, fez um pequeno furo no dedo e tocou o escudo. Era como tocar o topo de uma água-viva gigante: agradável, macia e resistente. O garoto fez uma careta. Com relutância, ela pensou, até que percebeu que era devido a dor do movimento ao tirar um canivete de bolso de seu casaco. Ele extraiu uma gota de sangue e a enviou para o escudo, que a absorveu como se fosse um solo sedento absorvendo água. Em seguida ela se estendeu até o seu cotovelo. Ela se afastou, assustada. — Depressa, — o menino disse. O escudo ficou ligeiramente pegajoso em sua pele enquanto o atravessava. Sentada ao lado do menino, ela comandou a areia para se levantar e cobrir o escudo, não parando até que estivesse escuro lá dentro. Trinta segundos depois, os ruídos suaves de carros blindados pousaram nas proximidades. Atlantis, ao que parece, sabia exatamente onde encontrá-los.

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Capítulo 4 Inglaterra

Duas horas após a intrusa escapar da Cidadela, Titus atravessou a porta da frente da sua casa residencial no Colégio Eton. O salão da Sra. Dawlish, repleto de flores e caules impressos, estava tão limpo e apropriado como sempre. Mas as paredes reverberavam com o barulho de trinta e cinco alunos pisando de um lado para o outro, saudando amigos que não viam desde o final do verão. Uma sensação agradável expandiu dentro do peito de Titus: nesta casa ele passou algumas das horas mais felizes de sua vida. Ele quase podia ouvir as palavras presunçosas de Fairfax e ver a expressão arrogante no rosto dela. Ele entrou correndo, empurrando um bando de garotos calouros na entrada do salão, e subiu três degraus de cada vez. No final da escadaria do próximo andar havia um grupo de veteranos – mas ela não estava entre eles. Na fração de segundos em que se decidia se tentaria empurrar esses meninos de lado também, Leander Wintervale virou e o viu.

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— Você ouviu a notícia, príncipe? — Wintervale cumprimentou Titus com uma bofetada nas costas. — Fairfax está garantido como o vinte e dois, ao meu lado, é claro. Um longo momento passou antes que a frase de Wintervale fizesse sentido: ele estava falando sobre cricket. No início de Michaelmas, vinte e dois meninos eram selecionados como candidatos para o próximo ano na equipe de cricket da escola. Eles se dividiriam em duas equipes e se enfrentariam durante todo o ano. Então os onze melhores seriam nomeados para a equipe da escola no início do verão, pelo orgulho e glória de enfrentar as equipes de Harrow e Winchester. — Fairfax sabe? Wintervale sorriu. — Fairfax não deixou de se gabar disso desde que ouviu a notícia. Alívio inundou Titus, deixando-o tonto. Ela estava aqui. Ela voltou. — Onde ele está? — Foi para High Street com Cooper. Titus engoliu sua decepção. — Por quê? — Café da manhã, é claro, ou não teríamos nada para comer, — Wintervale disse, sem perceber nenhuma das emoções que golpeavam Titus. — Por sinal, Kashkari não se juntará a nós por alguns dias. A Sra. Dawlish recebeu um telegrama dele. Seu navio a vapor enfrentou um clima difícil no Oceano Índico e ele chegou a Port Said só hoje. Durante quatro anos, Titus não prestou atenção especial a Kashkari, o aluno indiano com quem ele e Wintervale tomavam seu chá da tarde – Kashkari era principalmente amigo de Wintervale. Mas alguns meses atrás, Kashkari, sem saber, desempenhou um papel crucial em manter Titus fora do alcance de Atlantis. — Port Said, — Titus disse. — Então ele tem que passar por Trieste, cruzar os Alpes e passar por Paris antes que possa chegar aqui. O tempo das férias de verão foi tempo suficiente para ir da Inglaterra à Índia e voltar. Kashkari teria sorte se tivesse passado uma semana com sua família em Hyderabad.

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— Você se esqueceu de mencionar o Canal da Mancha. É o pior. — Wintervale estremeceu. — No primeiro ano do nosso exílio, meu pai queria que a família tivesse uma autêntica experiência não maga. Então nós atravessamos o Canal da Mancha em um navio a vapor e vomitei minhas tripas mais do que o apropriado. Passei a ter muito mais respeito pelos não magos depois disso – quero dizer, as dificuldades que essas pessoas aguentam. Só Wintervale para falar assim no alcance da audição de pelo menos meia dúzia de meninos. Palavras como discrição e cautela não tinham significado para ele. Ele sabia o suficiente para não anunciar definitivamente que era um mago, mas, de outra forma, sua inclinação era continuar dizendo a primeira coisa que vinha na cabeça dele. Era parte de seu encanto, ele ser tão franco e desprotegido. — Em qualquer caso, — Wintervale prosseguiu, — Kashkari não... Um coro de Fairfax! e Nós ouvimos que você é o vinte e dois, Fairfax! Afugentou o resto da sentença de Wintervale. Titus agarrou o corrimão e lentamente, lentamente virou. Mas através do espaço entre os balaústres, ele só podia ver um monte de calouros de casacos curtos até a cintura. Ele deu um passo para baixo, depois outro, depois mais dois. De repente, ela estava lá, com um uniforme de veterano, uma camisa branca engomada, e um casaco de cauda negra, repreendendo um garoto que mal se aproximava do ombro dela. — Que tipo de pergunta é essa, Phillpott? Claro que serei um dos onze. Na verdade, West vai dar uma olhada em mim e tremer em seus pés, porque eu vou arrancar o título de capitão de seu alcance. A vibração em seus olhos, a certeza de seu tom, e a gentileza inata enquanto ela bagunçava o cabelo do garoto – uma alegria feroz varreu Titus. — Você alguma vez vai adquirir alguma humildade, Fairfax? Ela levantou a cabeça e olhou para ele durante dois segundos. — Vou, no momento em que você conseguir algumas graças sociais, Sua Alteza.

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Sua réplica foi acompanhada por um sorriso, não o sorriso largo que ela dava para os calouros, apenas um leve levantamento dos cantos de seus lábios. De repente, ele sentiu seu alívio – e por trás desse alívio, um traço de exaustão. Seu peito estremeceu. Mas no momento seguinte, ela estava novamente radiante, e cutucando o braço do veterano mais próximo a ela. — Não fique parado aí, Cooper, diga algo a Sua Magnificência. Cooper se curvou com um floreio. — Bem-vindo de volta, Sua Alteza. Nossa humilde morada é homenageada pela sua presença majestosa. De todos os meninos da casa, Cooper era provavelmente o favorito de Fairfax, porque ele era tão bobo e entusiasmado quanto um filhote de cachorro, e porque ela apreciava a reverência de Cooper com a condição principesca de Titus. Titus confirmou sua indiferença principesca. — Pode-se dizer que minha presença majestosa é diminuída por sua humilde estadia, mas não pensarei muito no assunto. Fairfax riu, o som profundo e rico. — Sua humildade, príncipe, brilha como um farol na noite mais escura, — ela disse enquanto subia as escadas. — Nós só podemos aspirar sermos assim tão humildes. Sutherland, atrás de Wintervale, gargalhou com tanta força que quase engasgou com a maçã que estava comendo. Ela caminhou até Titus. O prazer de sua proximidade era quase doloroso. E quando ela colocou a mão no ombro dele, a sensação era como eletricidade. — Fico feliz que você tenha conseguido, Fairfax, — ele disse tão baixo quanto podia. Agora ele poderia respirar de novo. Agora ele estava inteiro novamente. ***

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Quando Iolanthe Seabourne ficou na completa escuridão, nua e em agonia, ela não se alarmou: a dor era normal para o progresso de retomar a forma humana após o desaparecimento do efeito de um feitiço de transmogrificação. A falta de lembrança das horas que ela passara como uma pequena tartaruga não a incomodava – sem um juramento de sangue que a ligava ao príncipe, não havia nada para preservar a continuidade da sua consciência enquanto se metamorfoseava de uma forma para outra. A ausência de Titus, no entanto, trouxe uma sensação de frio, completamente sem relação com a temperatura da noite. Onde ele estava? Não era normal ele deixá-la sem um cobertor para se aquecer, ou uma nota para explicar seus movimentos. Ele foi levado por Atlantis? Era por isso que ele teve que afastarse, de modo que ela não perderia a liberdade ao mesmo tempo? O rugido de seu sangue era tal que seus ouvidos badalavam, e procurou ao redor da cabana por algo para se cobrir. Sua ansiedade diminuiu um pouco após encontrar mudas de roupas, barras de nutrição e moedas na cabana aparentemente abandonada. Ainda melhor, um passe de aluno emitido por um pequeno conservatório em algum lugar no nordeste do Domínio. Ela não foi afastada para uma localização aleatória por desespero. Algo surgiu e ele precisava dela fora do castelo; sem tempo suficiente para chegar a uma casa segura adequada, ele a colocou em uma cabana. Vestida e com metade de uma barra de nutrição em seu estômago, ela saiu da cabana para investigar seu novo paradeiro. O castelo não ficava a mais de oito quilômetros ao norte. Um feitiço de longa distância revelou a bandeira do Domínio, uma fênix prateada em um fundo de safira, espalhando-se sobre o parapeito mais alto. Ela franziu a testa. Se o Mestre do Domínio estiver em sua residência, seu estandarte pessoal – o de uma fênix e um wyvern que guardava um escudo com sete coroas – deveria ser a bandeira exposta no castelo.

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Onde ele estava? Seus receios voltaram com uma vingança. Ela deveria sair das montanhas e descobrir o que estava acontecendo. O castelo estava situado perto da frente oriental das Montanhas Labyrinthine. Teoricamente, não deveria estar a mais de quarenta ou cinquenta quilômetros, à medida que o corvo voava pelas planícies. Mas quando as montanhas se moviam sem ritmo ou padrão, quarenta ou cinquenta quilômetros ao voo de um corvo, poderia muito bem demorar uma semana a pé. Desde que não se perca irremediavelmente5. Passaram quatro dias, sendo que dois e meio foram gastos pensando que ela estava irremediavelmente perdida. Felizmente, as aldeias e as cidades mais próximas estavam acostumadas a ver caminhantes

perdidos

tropeçando

das

montanhas,

sujos

e

desorientados, com uma necessidade desesperada de um banho e uma refeição. A primeira coisa que Iolanthe pediu antes de um banho e uma refeição foi um jornal. Era quase o aniversário da coroação de Titus, e todos os anos, para marcar a ocasião, um desfile era realizado em Delamer. Se o desfile foi cancelado, ele estava com problemas. Mas não, o desfile aconteceria no dia seguinte, e o Mestre do Domínio participaria de várias cerimônias e daria prêmios a estudantes exemplares. Um gentil agricultor ofereceu-lhe um lugar em sua antiga carruagem, a qual era puxada por um pégasus ainda mais velho, para a cidade mais próxima que tinha serviços de expedições. A partir disso, ela Recomendo fortemente precaução aos magos que pretendem visitar a seção Middle Ridges das Montanhas Labyrinthine. Os motivos são dois. Um, grande parte da seção é reservada ao príncipe e não é aberta ao público. Dois, toda a região desloca-se e se move sem um padrão discernível – uma tática defensiva implementada há séculos por Hesperia, a Magnífica para proteger seu castelo – tornando-o difícil, até mesmo para os habitantes próximos, atuarem como guias. Uma vez, há cerca de vinte anos, consegui convencer uma juventude local a me levar rapidamente a uma excursão. A excursão se transformou em sete terríveis dias vagando pelo deserto. Se não tivéssemos acidentalmente tropeçado em uma saída, teríamos morrido nas montanhas. Mas quão lindas eram, as montanhas, tão prístinas e vivas como o primeiro dia do mundo. – De Montanhas Labyrinthine: Um Guia para Andarilhos 5

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conseguiu pegar um translocador para uma cidade maior, a qual era um ponto central de expedições. Ao entrar no centro, seu coração palpitava: poderia haver agentes de Atlantis esperando por ela. Mas ela precisava se mover rapidamente – e estava protegida por um feitiço irreproduzível, que tornava impossível que sua imagem fosse reproduzida e transmitida. Ela chegou a Delamer naquela noite. Na tarde seguinte, de certa distância, ela viu Titus passar pela Avenida do Palácio em uma carruagem flutuante, flanqueada pelo regente e Lady Callista. Ele não usava a insígnia de raio de sol do seu avô para sinalizar que estava sob prisão domiciliar ou qualquer outro tipo de cativeiro. Mas estava cercado por guardas e atendentes, com pouco espaço para respirar. Ela não podia se aproximar dele enquanto ele estivesse cercado assim. Sua única escolha era deixar uma mensagem codificada no Observador Delamer, dirigir-se a Eton, e esperar que ele também tenha permissão para voltar a essa escola não maga. Desaparecer tão cedo – e sozinha – não era como ela havia imaginado seu verão. Ela debateu se permaneceria em Delamer por mais algum tempo, para que pudesse organizar uma reunião com Titus, ou descobrir algo sobre o paradeiro do Mestre Haywood. Mas no final, ela decidiu que era muito arriscado ficar por mais tempo: havia uma tensão sutil no humor da capital; até na fila para comprar algo para comer ela ouviu sussurros sobre agentes da Atlantis sendo particularmente ativos. Sair do Domínio por meios instantâneos requeria documentos que ela não poderia apresentar. Mas viajar dentro do Domínio era muito fácil com o passe de aluno. Através de estradas rápidas e embarcações, ela chegou ao Arquipélago de Melusine, uma das distantes ilhas do Domínio. Ela aprendeu nos campos de ensino do Crucible sobre uma loja secreta de veleiros na maior ilha do arquipélago. As restrições de viagem implementadas por Atlantis não impediram os meios de locomoção não magos, e um bom barco rápido às vezes era o caminho para escapar. Seu comando de ar e água era útil para os duzentos quilômetros de Oceano aberto até Flores, uma das ilhas no noroeste de Açores. De lá,

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ela negociou uma passagem em um navio com fuzileiros navais para Ponta Delgada, e em Ponta Delgada ela entrou em um navio a vapor para as Ilhas da Madeira. Ela poderia ter permanecido na Madeira. Mas, quando ela soube, momentos depois de desembarcar, que um cargueiro francês no porto levantaria âncora e partiria para a África do Sul em duas horas, ela hesitou apenas um minuto antes de se dirigir ao escritório do agente do porto para saber se o cargueiro francês também levava passageiros. Titus criou uma boa base para Archer Fairfax, a identidade que ela assumiu quando estava em Eton estabelecendo a família de Fairfax em Bechuanaland, um lugar que outros estudantes de Eton não podiam visitar. Mas, de outra forma, o feitiço tão efetivo como era na escola desintegraria se os agentes de Atlantis a levassem para descobrir a localização exata da fazenda da família Fairfax. Ela não permaneceu por muito tempo na Cidade do Cabo, mas passou todo o seu tempo lá conduzindo uma campanha fervorosa de desinformação através de uma bateria de novos feitiços. Agora, se os agentes inquisitivos de Atlantis chegassem, eles seriam informados de que os Fairfaxes acabaram de partir: um parente distante deixou a Sra. Fairfax uma soma decente de dinheiro, e a família decidiu aproveitar a boa sorte de se livrar da fazenda e fazer uma viagem ao redor do mundo – sem o filho, é claro, que precisava voltar para Eton para o dia de Michaelmas. Mais uma vez era uma história, mas Iolanthe sempre imaginou que esses pais fictícios de Fairfax eram do tipo que foram atraídos para a África por noções românticas, apenas para se desiludir com a vida agrícola que produziu pouco romance – ou lucro, diga-se de passagem. Com uma inesperada ganância, eles decolaram com prazer para partes desconhecidas, para a aventura e a emoção que a África deixara de providenciar. Com sua família fora do caminho para o futuro próximo, Iolanthe reservou um dormitório no próximo navio a vapor para Liverpool, saindo da Cidade do Cabo. Durante as próximas três semanas, a esperança e o

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medo lutavam pela liderança em seu coração. Em um momento, ela ficava extasiada com o pensamento de ver Titus novamente, no próximo minuto, era superada por uma inquietação. E se ele não voltasse para Eton? Fazia mais sentido, ele ser mantido no Domínio e em uma coleira muito mais curta? Quanto mais perto ela ficava de Eton, pior ficava a ansiedade. Alcançando a Sra. Dawlish e não encontrando nenhum vestígio dele, o medo a inundou. Ela escapou da agitação da casa entrando em contato com Cooper, que estava indo comprar as coisas para o chá na High Street. Cooper

falou

alegremente

sobre

os

outros

alunos

que

completavam os vinte e dois, especialmente West, o garoto que todos acreditavam ser o próximo capitão da equipe da escola. Iolanthe ouviu muito pouco do que ele disse. Ela não viajou quase vinte mil quilômetros sozinha por causa de um jogo de cricket, não importando quão legal fosse. — Você pode acreditar que restam apenas quatro meses em 1883? — Cooper disse enquanto se aproximavam da porta da Sra. Dawlish novamente. — É 1883, — Iolanthe engoliu em seco. — Continuo esquecendo. — Como você pode esquecer em que ano estamos? — Cooper exclamou. — Às vezes esqueço o dia da semana, mas nunca o mês ou o ano. Ela reuniu a coragem para abrir a porta da casa da Sra. Dawlish. No meio do salão, cercado por calouros, a voz de Titus foi carregada até ela. E de repente ela estava pronta para ganhar uma centena de jogos de cricket, escrever mil artigos em latim, e viver entre dezenas de garotos barulhentos e, às vezes malcheirosos, pelo resto da vida. Ele estava de volta. Ele estava seguro. Ela mal sabia o que ela disse ou fez durante os próximos minutos, até que se separaram dos outros meninos com a desculpa de que o príncipe precisava desfazer sua mala. Quando a porta se fechou, ele a beijou. E continuou beijando-a até que ficaram sem fôlego.

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— Estou tão feliz por você estar a salvo, — ele disse; sua testa contra a dela. Ela estendeu os dedos sobre os ombros dele, sobre a lã quente e ligeiramente desfiada de seu casaco. Sob suas mãos, o corpo dele era esguio, mas forte. — Eu temia que eles não deixariam você sair do Domínio. — Como você saiu? Ela tocou o topo do colarinho dele. As roupas dele foram lavadas com algum tipo de essência de sempre-viva; a fraca fragrância lembroulhe os cumes cobertos de abetos das Montanhas Labyrinthine. — Eu te direi depois que você preparar uma xícara de chá para mim. O Mestre do Domínio começou a se afastar. — Farei isso agora. Mas ela não estava pronta para ele deixar seu abraço ainda. Ela segurou o rosto dele. Quando passou por Delamer, ela comprou um pingente com o retrato dele. Durante todo o verão, ela só tinha aquela pequena imagem como companhia. Mas agora podia absorvê-lo – os cabelos escuros, um pouco mais longos do que ela se lembrava, as sobrancelhas retas, os olhos intensos. Ela esfregou um dedo sobre o lábio inferior. Os olhos dele escureceram. Ele a empurrou contra a parede e a beijou de novo. — Então... Creme ou açúcar no seu chá? — Ele perguntou depois de alguns minutos, suas respirações irregulares. Ela sorriu e descansou a bochecha contra o ombro dele, suas respirações tão desgovernadas quanto as dele. — Eu senti sua falta. — Foi um erro voltarmos para o Domínio juntos. Eu deveria ter percebido que quando os agentes de Atlantis não pudessem localizá-la aqui na escola, eles acreditariam que você ainda deveria estar no Domínio. Eu deveria saber que eles me observariam implacavelmente. Ela colocou uma mão na frente do casaco dele. — Não foi culpa sua. Nós nos distraímos por uma falsa sensação de segurança. Ele pegou a mão dela. — É claro que foi minha culpa. Minha tarefa é mantê-la segura.

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— Mas eu não quero ser salva, — ela disse, esfregando a ponta de seu polegar ao longo da palma dele. — Sou feita para riscos temíveis e confrontos épicos. Lembra? É o meu destino. Ele recuou, surpresa escrita em seu rosto. — Então você acredita nisso agora? Depois de todos os acontecimentos angustiantes e maravilhosos do semestre anterior, como não poderia? — Sim, eu acredito. Não se desculpe por não me proteger a cada segundo do dia. Estou apenas caminhando pelo caminho que eu deveria seguir – e um pequeno perigo aqui e ali serve para manter meus reflexos afiados. Admiração veio aos olhos dele – admiração e gratidão. Ele descansou a testa na dela novamente, as mãos quentes em suas bochechas. — Estou tão feliz que seja você. Não posso enfrentar essa tarefa com mais ninguém. Ao ouvir a voz dele, lágrimas inesperadas picaram seus olhos. Eles ficariam um ao lado do outro até o fim – ela apreciava essa certeza, mesmo quando temia isso. — Vou te manter a salvo, — ela disse suavemente. — Nada nem ninguém afastará você de mim. Por que era muito cedo para chorar, ela acrescentou: — Agora prepare um chá para mim e me conte sobre quão terrível foi passar o verão no mesmo palácio opulento com a mulher mais bonita do mundo. — Huh, — ele disse. E atrasou a preparação de chá um pouco mais.

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Capítulo 5 O deserto do Saara

Dor queimava a carne do garoto. Ele apertou os dentes sobre o lábio inferior, sem saber se estava tentando manter a calma ou permanecer consciente. Não ajudava que sob a duna de areia improvisada, a escuridão fosse espessa e impenetrável – fazia-o pensar que tudo o que necessitava fazer era fechar os olhos e um doce esquecimento cairia sobre ele. — Estabeleci um círculo de som unidirecional para que ninguém possa nos ouvir, — veio a voz baixa e ligeiramente rouca do mago elementar, da qual ele não poderia se livrar. — Agora vou ampliar as vozes externas. Instantaneamente, uma voz grosseira ressoou no ouvido do rapaz. —... É possível, General? — Nós teremos nossos magos elementares varrendo a maior parte possível da área para melhorar a visibilidade — uma mulher respondeu.

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— Um raio de dois quilômetros foi definido. Homens se posicionaram e iniciaram a varredura. Um regimento no centro, dois na periferia. Uma parte dele queria se entregar – Atlantis lhe daria algo para diminuir a dor dilaceradora. Mas o desejo de permanecer livre era tão grande, era quase primordial. Era a única coisa que ele conhecia. Não o nome dele, nem o passado dele, nem um único evento que pudesse esclarecer como ele veio parar no meio de um deserto, gravemente ferido, apenas isso: ele não podia se permitir ser capturado por Atlantis ou seus aliados, ou todos estariam perdidos. As chamadas e os gritos agora eram apenas dos soldados que obedeciam as ordens. O mago elementar cancelou o feitiço para amplificação de vozes. Um silêncio abrupto caiu, calmo e sufocante. O garoto pesava suas escassas opções. Sem lembranças, ele não podia se afastar, ainda que tivesse o alcance da desmaterialização para se colocar além desse raio que Atlantis havia estabelecido. Se pudesse ver a alguma distância, então ele poderia fazer uma desmaterialização cega. Mas com a tempestade de areia obscurecendo tudo, isso também estava fora de questão. Se ao menos ele tivesse pensado mais cedo em pedir ao mago elementar que perfurasse um túnel claro no ar da tempestade de areia, então ele poderia ter se afastado dessa torrente de suspeita solicitude. Ele estava quase inteiramente convencido de que o mago elementar era o responsável por sua lesão. Quem mais estaria tão perto, se não um inimigo? Quem mais continuaria rastejando na periferia de seu escudo, apesar de seu desejo expresso de ser deixado sozinho? O medo de Atlantis por parte do mago elementar poderia ser um ato. A chantagem para entrar sob seu escudo certamente poderia ser um engodo para acabar com ele. Contudo, a disposição do mago elementar de dar a primeira gota de sangue o surpreendeu. Poderia

fazer

muita

maldade

com

sangue

oferecido

voluntariamente. Apenas um tolo – ou alguém com absolutamente

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nenhum motivo obscuro – teria ousado como o mago elementar. Agora, de um quase certo inimigo, ele se tornou um desconhecido na equação. — Você ouviu o plano de ação deles? — O mago elementar perguntou. Ele grunhiu uma resposta. — Eu irei por baixo da superfície – é o que eu deveria ter feito em primeiro lugar, em vez de me envolver em qualquer tipo de magia de sangue. — Então por que não foi? — Certamente você sempre pensa com lucidez e em todos os ângulos quando há carros blindados voando sobre você, — o mago elementar disse com um tom malicioso. — Em qualquer caso, minha falha anterior em considerar esta alternativa particular é a sua boa sorte. Posso levá-lo comigo. A oferta provocou novamente suas suspeitas. O mago elementar era uma caçadora de recompensas de algum tipo, preocupada que um prêmio em dinheiro possa ser retirado pela chegada de Atlantis em cena? — Por que você insiste em se agarrar em mim? — O quê? — Você impõe sua presença a mim. — Impor mi... Você foi criado para prosseguir quando há um mago gravemente ferido deitado no chão? — Então pergunta quem se envolve em chantagem. O mago elementar murmurou algo que se aproximava de uma obscenidade. — Acho que você prefere ficar aqui então. Adeus, e que a Sorte proteja seu eu mais encantador. Ele não podia ver no escuro, mas podia sentir a areia se movendo do seu lado direito – era o mago elementar se afundando. — Espere. — O que você quer? Ele vacilou por um momento. — Eu vou com você. Uma aliança de não violência não era um vínculo hermético como um juramento de sangue: nada impediria o mago elementar de entregá-

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lo para um terceiro caso desejasse. Mas sob a superfície, onde não haveria terceiros, ele deveria estar seguro o suficiente. — Você tem certeza? Posso aceitar isso como permissão para me impor a você. A voz do mago elementar gotejou com sarcasmo. Encorajante isto: ele preferia muito mais alguém que não queria nada com ele. — Eu terei que suportar por seus remédios. O mago elementar cavou debaixo dele, o movimento causando uma onda de agonia. Ele cerrou os dentes e concentrou-se na modificação de sua cúpula de tração em um escudo móvel normal, o qual deveria manter uma bolha de ar à sua volta e evitar que a areia caísse sobre suas costas. O mago elementar envolveu um braço em volta do seu pescoço e enganchou uma perna atrás dos seus joelhos. Eles começaram a afundar, a areia escavada fluindo de ambos os lados do escudo até o topo. — E como você sabe que meus remédios não estão envenenados? — O mago elementar perguntou conforme eles desciam. — Suponho que estejam. — Espero ansiosamente aplicá-los em você então. Eles afundaram mais rapidamente. Algo não estava certo. O mago elementar pareceu ter compleição esguia, mas com seus torsos apertados firmemente, ele não sentia tanto esqueleto quanto esperava. De fato... De fato... Ele respirou fundo – e sibilou pela dor que o atravessou. Mas não poderia haver dúvidas nisso. — Você é uma menina. Ela ficou impassível com sua descoberta. — E? — Você está vestida como um homem. — Você está vestido como um não mago. Ele não sabia disso. Quando acordou, ele estava deitado de costas, areia quente cavando a ferida aberta nas suas costas. Levou tudo o que tinha para conseguir virar de estômago e construir o escudo – ele não prestou atenção no que vestia. E posteriormente, quando precisou

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de um instrumento afiado, ele simplesmente tentou um bolso, sem pensar se o traje mago teria um bolso naquele lugar particular. A coisa toda estava ficando cada vez mais incompreensível por minuto. Despertar no meio de um deserto, ferido, sem nenhuma ideia de como ele veio para este lugar era ruim o suficiente. Agora as roupas não magas, também? Eles pararam. — Estamos abaixo de noventa centímetros. Ela saiu de debaixo dele. Suas unhas cavaram no centro de sua palma, lutando contra a dor fresca e abrasadora provocada pelo movimento. Uma suave luz mágica azul clara cresceu e se espalhou. — Vou olhar sua ferida. Você será um fardo para mim se não puder se mover sozinho. Com a aliança de não violência funcionando, ela não poderia fazer nada para piorar sua condição. Ainda assim, o desconforto o deteve no pensamento de estar mais ou menos a mercê dela. Mas ele não tinha escolha. — Claro. Ela cortou suas roupas e polvilhou um líquido fresco e perfumado sobre a ferida, uma chuva que extinguiu a queimação irritante. Ele se ouviu suspirar – pela abençoada redução da dor. — Agora eu preciso limpar a ferida, — ela o advertiu. Muitas partículas de areia cavaram em sua carne. Pode ser um banho de sangue, literalmente, para tirar todas. Medo rugiu em sua cabeça; ele apertou os dentes e não disse nada. A dor voltou, afiada e dilacerante. Ele engoliu um grito e se preparou para mais. Mas ela apenas polvilhou mais do que deve ser lágrimas dos Anjos nas suas costas. — Está pronto, — ela disse. — Removi todos os grãos de areia de uma vez, já que não temos muito tempo. Ele teria expressado gratidão, se não estivesse tremendo demais para falar.

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Ela aplicou camadas e camadas de várias pomadas, cobriu a ferida, e ofereceu alguns grânulos. — Cinzas para a força. Os vermelhos para dor – senão você estará com muita dor para se mover. Ele os engoliu inteiros. — Fique onde está por um minuto, para que tudo entre em ação. Então devemos ir. — Obrigado, — ele conseguiu dizer. — Nossa, e eu que pensei que nunca ouviria estas palavras vindas de você, — ela disse. Ela verificou e tornou a verificar todos os rótulos enquanto colocava os remédios de volta em sua bolsa, com o cuidado de um bibliotecário que organiza livros de acordo com um código de referência particularmente rígido. Agora que sabia que ela era menina, ele ficou surpreso por ter pensado que ela era um menino até que eles estivessem pressionados de ombros aos joelhos. Sim, havia as roupas do homem, os cabelos curtos e a voz um tanto grossa, mas com certeza... Ele só podia sacudir a cabeça interiormente pela força da sua suposição. Ela olhou para cima, pegou-o olhando e franziu a testa, ela tinha uma expressão bastante assustadora. — O que é essa coisa fria dentro de suas roupas? Ele estava apenas começando a se dar conta de um arrepio contra seu coração, que não havia notado anteriormente, quando a dor de suas costas sobrecarregara todas as outras sensações. Com cautela, ele colocou a mão debaixo do casaco. Seus dedos entraram em contato com algo frio. Em uma tentativa de movê-lo, algo tocou na parte de trás do seu pescoço. Esse algo era um pingente. Ele tirou o cordão do pescoço. O pingente tinha uma forma meio oval. A outra metade estava claramente desaparecida. Onde estava? Quem a tinha? E a temperatura de sua metade do pingente indicava que a outra metade estava longe, distante, talvez em um continente diferente?

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Ele se sentou e examinou seu casaco, colete e camisa arruinados. De acordo com as etiquetas nas costuras, elas foram feitas por um alfaiate da Savile Row, Londres. Ele encontrou a navalha que usou anteriormente, gravada com um brasão que tinha um dragão, uma fênix, um grifo e um unicórnio em quadrantes. O colete forneceu um relógio, feito de um metal suave, cinza prateado, gravado com o mesmo brasão. O bolso interior do casaco continha uma carteira e, novamente, o mesmo brasão. No lado da carteira havia uma quantidade insignificante de moeda não maga, britânica, pelo aspecto das moedas. Mas, mais importante, havia várias cartas, todas com o mesmo brasão de armas, e do outro lado, as palavras H. S. H. Príncipe Titus de Saxe-Limburg. Ele era este Príncipe Titus? Que tipo de lugar era Saxe-Limburg? Não havia um Domínio mago com esse nome. E, tanto quanto ele sabia, nem um não mago. Ela entregou a ele uma túnica da bolsa. Ele destruiu a roupa arruinada, guardou o pendente ao lado da carteira e empurrou a carteira e o relógio nos bolsos das calças. Uma sensação quente e desagradável rasgou suas costas quando ergueu os braços para colocar a túnica, mas era ignorável. Ela jogou um odre para ele. Ele bebeu quase metade do conteúdo do odre, devolveu para ela e apontou para a alça solta da bolsa. — Posso reparar isso para você. — Vá em frente, se isso fará com que sua consciência se sinta melhor. Ele juntou as duas metades da alça. — Por que você assume que eu tenho uma consciência? — De fato. Quando vou parar de ser uma idiota? Ela ampliou o espaço em que eles se encontravam e se levantaram. — Linea orientalis6.

6 Borda da linha.

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Uma fraca linha apareceu sob os pés, correndo para o leste. — Para onde você está indo? — Ele perguntou; uma pergunta melhor do que: Para onde estamos indo? Ele não queria discutir o fato de que não tinha ideia de sua localização. — O Nilo. Então eles estavam no Saara. — Quão longe estamos do Nilo? — O que você acha? Um calmo desafio estava nos olhos dela. Ele percebeu que gostava de olhar para ela – o arranjo de suas características era esteticamente agradável. Mas, mais do que isso, ele gostava da maneira segura como ela se portava, agora que não mais se incomodava em ser legal com ele. — Não sei o suficiente para contar. Com sua admissão, ela lançou um olhar especulativo para ele. — Estamos a quinze mil quilômetros a oeste do Nilo. — E quão longe do sul do Mediterrâneo? — Quase o mesmo. Isso os colocaria aproximadamente a duzentos, duzentos e cinquenta quilômetros a sudoeste do reino mais próximo de Beirute, aliado de Atlantis, não menos. Os carros blindados deveriam ter decolado de uma instalação atlantes nesse reino, o que explicaria como eles conseguiram chegar ao local tão rápido. Mas por quê? Por que Atlantis viria correndo? Foi pelo mesmo motivo que ele preferiria qualquer dor a ser pego? Ele se levantou e teria cambaleado se não tivesse se apoiado com uma mão contra a parede, que parecia quase úmida contra sua pele. — Você pode andar? — Ela perguntou; seu tom beirando o tempestuoso. — Eu posso andar. Ele esperava que ela dissesse algo cortante, algo como se a deixaria com prazer caso não pudesse continuar. Mas ela apenas lhe entregou uma barra de nutrição. — Avise quando você precisar descansar.

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Uma estranha sensação o dominou: depois de um momento ou dois, ele reconheceu isso como constrangimento. Mortificação até. Ainda havia uma chance, é claro, de que tudo nela fosse fingimento. Mas parecia mais e mais provável que ela fosse simplesmente uma pessoa muito decente, até mesmo compassiva. Ele deu uma mordida na barra de nutrição, que tinha um ar levemente saboroso. — Eu acho que isso também está envenenado, como seus remédios. O canto dos lábios dela levantou ligeiramente. — Claro. Ela escavou a linha que fez, mantendo um espaço de movimento grande o suficiente para que pudessem andar lado a lado. O ar que ele respirava era bom e ligeiramente úmido. A areia que cruzava sob seus pés tinha um brilho de umidade quase imperceptível. No alto e para ambos os lados, a areia se afastava, fazendo com que se sentisse um pouco tonto. Fazendo sentir como se estivesse em um navio submarino, navegando nas profundezas escuras de um oceano estranho. Um cálculo rápido dizia que estavam a vinte e oito metros abaixo da superfície. Um escudo móvel – mesmo uma redoma dura como diamante – não podia suportar o peso de tanta areia. Apenas os poderes da menina elementar impediam que fossem enterrados vivos. Seu rosto estava quase inexpressivo com concentração, seus olhos abaixados e meio fechados. Seu cabelo era preto azulado na luz mágica e o corte o fazia notar sua estrutura óssea e seus lábios cheios. Ela olhou para ele – ele estava olhando. Ele voltou sua atenção para a varinha dela em vez disso, que reconheceu como uma réplica de Validus, varinha de Titus, o Grande. Ao entrar na idade adulta, os magos costumam mandar projetos originais para suas varinhas; mas antes disso, muitas vezes eles recebiam varinhas que eram cópias daquelas que alguma vez foram empunhadas por magos lendários. Porém, não havia nada lá, senão que ela provavelmente ainda era menor de idade e que alguém na família dela acreditava em Titus, o Grande.

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— Isso lhe diz quem você é? — Ela perguntou; seu queixo apontando para a varinha dele. O significado da pergunta não escapou dele. Isso lhe diz quem você é? Ela assumiu que ele não sabia sua própria identidade. O que era bastante verdadeiro, mas não era a conclusão que alguém teria depois de conhecê-lo por alguns minutos, a menos que... A menos que ela também não soubesse nada sobre si mesma. Ele entregou um dos cartões da carteira. Ela examinou com cuidado, frente e verso, murmurando feitiços para revelar escrita escondida. Mas era o que era, um cartão de visita normal não mago. — Você tem algo que diz quem você é? — Ele fez a mesma pergunta. Ela procurou por um segundo, como se debatesse se desejava dar qualquer resposta, alcançou o bolso da calça – e ficou completamente imóvel. Ele também ouviu isso. Algo estava vindo de encontro a eles, algo grande e metálico, raspando a rocha enquanto se aproximava.

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Capítulo 6 Colégio Eton Inglaterra

— Dê uma olhada nisso, — Iolanthe disse. Ela abriu uma gaveta, tirou uma fotografia emoldurada e entregou para Wintervale. Wintervale, Cooper e Titus estavam em seu quarto. Eles acabavam de voltar de sua última aula do dia. Era hora do chá, mas ela ofereceu compartilhar um bolo da High Street, e os garotos da Sra. Dawlish não eram conhecidos por deixar escapar oportunidades para comer. Wintervale assobiou para fotografia. — Legal. Cooper pegou a fotografia emoldurada dele. — Bonita. — Eu a beijei, — Iolanthe disse. Titus, que estava examinando uma lata de biscoitos no armário, não olhou para cima. — Eu matei mais dragões do que você beijou meninas, Fairfax. — E quantos dragões você matou, Sua Alteza? — Cooper perguntou ansiosamente. — Nenhum.

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Wintervale cutucou Iolanthe. — Fairfax, eu acredito que o príncipe insultou sua masculinidade. — Meu querido, Wintervale, — Iolanthe disse, — O príncipe acabou de admitir nunca ter derrotado um único dragão em toda a sua vida. Como ele poderia insultar minha masculinidade? Titus olhou para ela então, um sorriso ligeiro e esperto no rosto. O efeito desse sorriso fez um sério calor em sua pele. Cooper empurrou a fotografia para Titus. — Você quer ver a menina que Fairfax beijou, príncipe? O príncipe mal olhou a foto. — Comum. — Sua Alteza está ciumento porque ele deseja poder tê-la beijado, — Iolanthe disse a Cooper e Wintervale. —

Eu

não

beijo

plebeias,



Titus

disse

encarando-a

completamente. Ela certamente era uma pessoa comum, sem uma gota de sangue aristocrático. E ele certamente a beijou em todas as oportunidades. — Não é de se admirar que você esteja tão mal-humorado o tempo todo, — ela respondeu. Wintervale e Cooper riram. A porta se abriu e Sutherland colocou a cabeça para dentro. — Cavalheiros, eu tenho excelentes notícias: nós poderíamos estar olhando para as 24 horas de devassidão. — Todos os dias da minha vida são vinte e quatro horas de devassidão, — Titus disse; sua atenção novamente na lata de biscoito. — Você terá que fazer melhor do que isso, Sutherland. Isso surpreendeu Sutherland. Ele era um daqueles meninos que achavam que Titus era um príncipe continental insignificante que governava um castelo dilapidado e dez hectares de terra. Mas depois dos eventos do quatro de junho, Sutherland tornou-se bem mais respeitoso. Ele ficou na porta, piscando um pouco, não sabendo como responder. — Não o escute, Sutherland. Sua Alteza sabe tanto sobre a devassidão quanto sobre matar dragões, — Iolanthe disse. — Agora me conte suas novidades.

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Sutherland limpou a garganta com timidez. — Meu tio tem uma casa em Norfolk, na costa. Ele concordou em me deixar usar para entreter alguns dos meus amigos. Nós podemos fazer uma viagem até lá no sábado e domingo – jogar um pouco de cricket, atirar em um galo silvestre, e acabar com o desperdício de uma muito fina coleção de conhaque. Wintervale estava de pé. — Eu estou dentro. — E os outros? — Sutherland gesticulou para o resto do quarto. — Eles também, é claro, — Wintervale respondeu por eles. — Excelente. Pedirei ao meu tio para emitir uma carta a Sra. Dawlish, afirmando que ele irá garantir supervisão adequada e permitir apenas atividades que fortaleçam o corpo e a alma. — O que abrange o desperdício da sua coleção muito fina de conhaque, eu acredito, — Iolanthe disse. — Precisamente! — Sutherland piscou. — E se Kashkari retornar a tempo, informe-o que ele também está convidado. Sutherland saiu. Wintervale e Cooper também partiram depois de terem saqueado o fornecimento de bolo de Iolanthe. Titus permaneceu, comendo um bolinho lentamente, estudando-a do outro lado do quarto. Era possível que durante o verão seus ombros tenham crescido. E talvez tenha ficado uns dois centímetros mais alto. Mas seus olhos ainda eram os mesmos, jovens e velhos ao mesmo tempo. E seu olhar, focado inteiramente nela... Calor a atravessou novamente. Eles se beijavam em todas as chances, mas essas chances eram muito menos frequentes do que ela gostaria. Ela só trancava a porta quando mudava de roupa ou se banhava, então os meninos costumavam entrar no quarto depois de um toque superficial, muitas vezes sem sequer esperar uma resposta – e os meninos vinham e iam o tempo todo. Mudar isso abruptamente faria alguém como Cooper perguntar o motivo na frente de outros meninos. O quarto dele era o lugar mais seguro, mas ele não estava no quarto até muito tarde: ele estava construindo outra entrada para seu laboratório, um espaço dobrado que atualmente só era acessível via um

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farol, a mais de mil quilômetros de distância, uma distância muito árdua para que ela desmaterialize dia sim, dia não. Mas quando ele terminasse, ela poderia ir até o laboratório a partir de uma antiga cervejaria a alguns quilômetros de distância. No laboratório, eles teriam segurança e privacidade. Sem mencionar que no laboratório estava o Crucible. E ela tinha a sensação que no Crucible eles poderiam fazer muito mais do que apenas beijar. — O que você está fazendo? — Ele inclinou o queixo para a fotografia, deixada por Cooper em sua mesa. — Quem é a garota? — Esse é a garota que salvará sua pele. A expressão dele mudou – ele entendeu agora que a garota na fotografia era ela. Mas como ela estava protegida por um feitiço irreproduzível, sua imagem não poderia ser capturada com precisão. Ela queria ver o que aconteceria se fosse fotografada, e a resposta era que outro rosto aparecia. Ele pegou a fotografia e olhou novamente. Ele via uma jovem mulher, de boa estrutura óssea e olhos largos, com um turbante da moda. — Onde foi isso? — Tenerife, as Ilhas Canárias. A caminho da Cidade do Cabo. O navio esteve no porto por suprimentos por meio dia. Ela desceu em terra firme, andou ao redor, viu o estúdio fotográfico e decidiu se divertir um pouco. — Talvez eu precise repensar minha política de não beijar plebeias, — ele disse. — Estou feliz que você possa ver além de seus preconceitos, — ela murmurou. Ele olhou para ela por outro momento. — Eu deveria ir. Ela juntou sua determinação. — Você escolheu um lugar? Um lugar no Crucible? Para quando eles queriam fazer mais do que apenas beijar. Ele esfregou um dedo na parte de trás de uma cadeira. — Você já esteve em A Rainha das Estações?

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— Não. — Havia tantas histórias no Crucible. Ele não olhou pra ela. — Ela tem uma casa de verão. Ela se aproximou dele lentamente e colocou a mão contra o colete de caxemira preto que espreitava por debaixo de seu casaco de uniforme. — Você está deixando a casa de verão mais agradável para mim? Seus olhos se encontraram. — E se eu estiver? Ela sorriu. — Basta lembrar, sem pétalas de flores em nada, em lugar nenhum. A expressão dele mudou brevemente. — Eu pareço com alguém que jogaria pétalas em qualquer coisa, em qualquer lugar? — Sim. — O sorriso dela aumentou. — Você se parece com alguém que pensa que alguns alqueires de pétalas de rosa são a epítome do romance. Ele a puxou para um beijo que durou meio segundo. — Não faço promessas. E então ele se foi, deixando-a sozinha com seus lábios ainda formigando. *** Na tarde seguinte foi o primeiro treino de cricket. Iolanthe colocou seu equipamento e bateu na porta de Wintervale. Ninguém respondeu. Estranho – ela teve a impressão de que eles deveriam caminhar até o treino juntos. E Wintervale levava essas coisas a sério. Ela bateu de novo. — Wintervale! Você estava aí? Parecia uma batida, como se alguém tivesse saltado de uma cadeira e caído duramente. Ela estava prestes a bater de novo quando a porta se abriu. — Onde está o príncipe? — Wintervale perguntou com urgência, sem preâmbulos. — Saiu para uma caminhada. Alguma coisa que eu possa ajudálo?

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À medida que as palavras deixavam seus lábios, ela viu o guardaroupa ainda aberto atrás de Wintervale. O entendimento surgiu. Wintervale provavelmente era necessário por sua mãe em casa. Seu modo usual de transporte era o guarda-roupa, que atuava como um portal, mas Lady Wintervale havia selado o portal em junho passado, depois que Iolanthe fez uso não autorizado dele. A ironia era que Iolanthe podia desmaterializar o suficiente para levar Wintervale até sua casa em Londres. Mas não ousava revelar seu segredo para ele. Wintervale passou uma mão em seu cabelo. — Não, tem que ser Titus. — Ah, Wintervale, você está aí, — a Sra. Dawlish disse, sorrindo um pouco ao subir as escadas. — Tenho um telegrama da sua mãe. Você precisa ir para casa com urgência. Já pedi uma carruagem para levá-lo até a estação ferroviária. Você deverá estar em casa daqui uma hora e meia. Wintervale gemeu. — Uma hora e meia? Isso é uma eternidade. Se eu fosse um desmaterializador mais forte. — O quê? — A Sra. Dawlish perguntou. — O quê? — Iolanthe ecoou, já que ela também não deveria entender o que Wintervale havia dito. Wintervale balançou a cabeça, como se estivesse se admoestando. — Não é nada. Obrigado, Sra. Dawlish. Sairei imediatamente. E você pode dar minhas desculpas para West, Fairfax? Provavelmente não voltarei antes do jantar. — Claro. Iolanthe viu Wintervale ir até a carruagem esperando abaixo, e depois caminhou para o treino sozinha. Quando se aproximou dos campos de jogos, alguém chamou seu nome. Ela se virou. Era um garoto de cerca de dezenove anos, também em seu equipamento, alto, com os membros longos e atitude séria. Seu cabelo loiro escuro estava cortado e ele exibia um bigode bem

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impressionante. Suas feições, ligeiramente irregulares para serem rotuladas de forma clássica, eram, no entanto, bastante atraentes. Ela levou um momento para reconhecê-lo – a última vez que o viu, ele tinha mais cabelo e nenhum bigode. — West! Justo a pessoa que eu estava procurando. Wintervale teve que sair para uma emergência familiar e queria que você soubesse. West, como Wintervale, foi membro da equipe de cricket da escola no último verão. A seleção de Wintervale emocionou todos na casa da Sra. Dawlish. Mas West era muito mais alto que Wintervale na escala, já que ele era amplamente esperado para ser capitão dos onze no próximo verão. Iolanthe o conheceu brevemente quando o time da sua casa jogou com o time da casa dele. A equipe dela havia perdido, mas foi uma excelente partida, o resultado incerto até o fim. West ofereceu-lhe a mão como cumprimento. — Espero que nada esteja muito errado na casa de Wintervale. — Não sei o que aconteceu, mas a mãe dele gosta de tê-lo por perto sempre que ela se sente mal. Eles caminharam por um minuto ou mais em silêncio antes de West perguntar: — Você é amigo de Titus, de Saxe-Limburg, não é? Até o último quatro de junho, ela teria dito que a maioria dos meninos na casa da Sra. Dawlish provavelmente não conseguia lembrar o nome do principado de origem prussiano constituído por Titus. Mas desde então, ela havia respondido algumas perguntas de meninos que viram a grande comitiva familiar que veio à escola e, consequentemente, ficaram curiosos sobre o príncipe. — Sim, eu vivo ao lado de Sua Alteza. — Ele parece ser uma pessoa interessante, — West disse. Iolanthe não precisou responder, pois eles chegaram e o professor de cricket quis uma palavra com West. Mas sim, uma pessoa infinitamente interessante, seu príncipe. ***

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A casa de Baycrest, a propriedade do tio de Sutherland em Norfolk, ficava em um alto promontório que se erguia no Mar do Norte, com muitos frontões7, um jardim isolado às suas costas e uma pequena faixa de praia protegida do lado, acessada por uma escada desgastada de trinta metros escavada nos penhascos. Os meninos estavam muito animados. Cooper, em particular, gritava enquanto corria para cima e para baixo, como se nunca tivesse visto o mar – ou uma casa, de fato – em toda a vida. Os outros meninos e Iolanthe estavam prestes a comer um pouco quando Cooper chamou de uma varanda no andar de cima: — Cavalheiros, nosso amigo do subcontinente chegou! Iolanthe e o príncipe trocaram um olhar. Ela gostava de Kashkari. Também estava grata pela ajuda que ele deu a Titus e a ela mesma. Ainda assim, ela estava mais do que um pouco nervosa com a perspectiva de encontrar Kashkari novamente: Kashkari que ouvia atentamente, e seus olhos inteligentes que não perdiam nada. Mas neste semestre ela estava mais preparada. Durante o verão nas viagens de navio a vapor, ela leu vários livros das bibliotecas dos navios, especialmente aqueles que lidavam com a geografia política do Império Britânico. Desde que pisou no solo da Inglaterra, ela leu The Times todos os dias. Quando tinha tempo, ela dava uma olhada no Daily Telegraph, The Illustrated London News e The Manchester Guardian – às vezes era como se ela estudasse para o retorno de Kashkari com mais diligência do que já estudara para qualquer exame em sua vida. Kashkari parecia o mesmo, de olhos azuis, impressionante e elegante. Mas depois de mais ou menos uns quinze minutos, Iolanthe realmente começou a relaxar. O menino que entrou em Baycrest House não parecia possuir os poderes de observação que Iolanthe temia.

7 Um frontão é um conjunto arquitetônico de forma triangular que decora o topo da fachada principal de um edifício, sendo constituído por duas partes essenciais: a cimalha (base) e as empenas (dois lados que fecham o triângulo). Provém da arquitetura clássica greco-romana.

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Quando perguntou de suas férias e da família dela, ela falou sobre os Fairfaxs herdando o dinheiro e vendendo a fazenda, ele apenas assentiu e disse que era um bom momento para sair de Bechuanaland, antes que a hostilidade entre os ingleses e os Boer se inclinasse para a guerra aberta. E então ele mudou para a ausência de Wintervale. — Alguém sabe sobre a emergência de Wintervale? A Sra. Hancock me disse que ele foi para casa no início da semana e ainda não voltou. — Isso mesmo, — Cooper disse. — Ele tinha uma pressa tão grande que deixou a metade do pão de Chelsea para trás – e você conhece o Wintervale, ele nunca deixa o alimento inacabado. — Alguém o viu partir? — Eu estava lá, — Iolanthe disse. Desta vez, a atenção de Kashkari estava mais focada nela. — Como ele parecia? — Preocupado, mas dificilmente em estado de devastação. Iolanthe esperava que Wintervale voltasse no dia seguinte. Quando dois dias se passaram sem sinal de Wintervale, ela ficou preocupada. Mas Titus havia dito a ela que não era incomum Wintervale ficar fora por uma semana, se sua mãe precisasse dele. — Ele deveria voltar logo, não deveria? — Kashkari perguntou com uma leve carranca. — Eu não ficaria surpreso se ele aparecer aqui amanhã. Você conhece o Wintervale, ele não perderia isso caso pudesse evitar, — Sutherland disse. — Mas voltando para nós, senhores. O que dizem de irmos até a praia, construírmos uma fogueira e contarmos histórias de fantasmas quando estiver escuro? Cooper quase gemeu. — Eu amo histórias de fantasmas! Titus olhou para ele. Ele sempre olhava para Cooper como se ele fosse um cocker spaniel que, de alguma forma, conseguia falar em uma língua humana. Mas nesses últimos dias, Iolanthe preferia imaginar que Titus começava a ter um pouco de carinho pelo menino.

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Mas quando falou, ele era novamente o grande príncipe, que não podia ser incomodado com meros mortais. — Plebeus e seus entusiasmos, — ele disse. — Onde está o conhaque que foi prometido? *** O dia estava escurecendo quando eles começaram a ir à praia. A brisa do mar tornou-se barulhenta e forte. As gaivotas rodavam sobre suas cabeças, procurando um último bocado do jantar enquanto a luz ainda permanecia. Iolanthe sacudiu a cabeça enquanto ajudava a reunir madeira: a grande maga elementar de seu tempo não podia nem estalar os dedos e convocar um pequeno fogo. No momento em que eles tinham uma fogueira e salsichas gotejando gordura nas chamas, estava bastante escuro e as estrelas eram pequenos pontos contra o céu. As histórias de fantasmas começaram com a visita de Cooper a uma casa assombrada, seguida da experiência do tio de Sutherland em uma sessão espírita de arrepiar os cabelos, e a história de Kashkari de um espírito que continuava visitando seu bisavô, até que este reconstruiu uma casa incendiada pelos fogos de artifícios de Diwali. Iolanthe contribuiu com uma história que havia lido nos jornais. Titus, surpreendendo-a – e, provavelmente, a todos ao redor do fogo – narrou um conto arrepiante de um necromante que criou um exército de pessoas mortas. Quando todas as histórias de fantasmas foram contadas e todas as salsichas foram assadas e comidas, Sutherland trouxe outra garrafa de conhaque para compartilhar. Iolanthe e o príncipe tocaram a garrafa em seus lábios sem realmente beberem – qualquer coisa que tivesse um sabor forte poderia disfarçar a adição do soro da verdade ou outras poções perigosas. Todo mundo bebeu com diferentes graus de propósito e dedicação. Kashkari, em particular, surpreendeu Iolanthe, ao tomar vários goles longos – ela teria pensado que ele bebia com moderação, se bebesse.

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Um pequeno silêncio caiu – e permaneceu. Os meninos encararam o fogo. Iolanthe estudou a interação da luz e das sombras sobre suas feições, especialmente as de Kashkari. Titus também observava Kashkari. Alguma coisa não estava bem com ele. — Não sei o que vou fazer, — Cooper disse do nada. — Meu pai está contando os dias até eu poder me juntar à sua firma de procuradores. E não acho que eu possa dizer a ele que não tenho o menor interesse na lei. Iolanthe ficou surpresa com a mudança repentina na conversa. — Então o que você quer fazer? — É simplesmente isso. Não tenho a menor ideia. Não posso ir até o velho e dizer: Desculpe, velhote, não sei o que gosto, mas sei que odeio o que você faz. — Ele pegou a garrafa de Sutherland. — Pelo menos você não precisa empreender uma profissão, Sutherland. Você tem um condado para você. Sutherland resmungou. — Você já viu o condado? A mansão está caindo sobre si mesma. Precisarei me casar com a primeira herdeira que aparecer e provavelmente nos odiaremos pelos próximos 50 anos. Agora todos olhavam com expectativa para Iolanthe. Ela estava começando a entender: o álcool era o soro da verdade dos não magos – exceto que participavam de bom grado e compartilhavam sob sua influência o que não podiam dizer completamente sóbrios. — Talvez eu não fique na escola por muito tempo. Meus pais decidiram que após o tour mundial, eles comprarão uma fazenda no território oeste americano... Em Wyoming, para ser específico. E tenho o pressentimento de que eles vão querer que eu vá e ajude-os com isso. Essa era a história que ela e Titus decidiram para explicar sua partida precipitada da escola algum dia. — Não muito mais para mim, tampouco, — Titus disse. — Tenho inimigos em casa e eles têm os olhos no meu trono. Isso causou uma respiração coletiva, mais forte de Cooper, naturalmente.

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— Não haverá um golpe, não é? — Ele perguntou; sua voz instável. — Quem sabe? — Titus encolheu os ombros. — Há todos os tipos de intrigas acontecendo nas minhas costas. Mas você não precisa se preocupar, Cooper. O que é meu, eu mantenho. Cooper balançou um pouco. Por um momento, Iolanthe pensou que ele poderia cair pela combinação de conhaque e excitação – esta deveria ser uma das poucas vezes que Titus se dirigiu a ele sem ordenar que ele deixasse as instalações. Mas Cooper endireitou-se e os meninos se voltaram para Kashkari, que sinalizou para a garrafa. — Se nós tivéssemos essa conversa antes de ir para casa no feriado, eu teria levantado as mãos e dito: Desculpe, garotos, não há muita coisa na minha vida de que eu possa me queixar, honestamente. — Ele tomou um gole de conhaque. — Mas então eu fui para casa e cheguei a tempo de celebrar o noivado do meu irmão. E, como aconteceu, meu irmão se casará com a garota dos meus sonhos. Iolanthe ficou chocada, não tanto pelos detalhes da revelação de Kashkari, mas pelo fato dele escolher divulgar algo tão intensamente particular. Claro que ela o conhecia há apenas alguns meses, mas nada nele indicou, no mínimo, que ele era o tipo de se abrir sobre sua mágoa. — Meu Deus, — Cooper murmurou. — Sinto muito. —

Meus

sentimentos,

exatamente.



Kashkari

sorriu

severamente e ergueu a garrafa. — Aqui está a vida, que te chutará nos dentes, mais cedo ou mais tarde. *** A casa de campo da Rainha das Estações estava localizada em uma península estreita que cortava um lago profundo de geleira. O sol acabara de subir os picos que rodeavam o lago; a água era quase a sombra exata da hera exuberante que subia pelas paredes cremosas da casa.

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Titus estava no terraço que dava para o lago. Sobre sua cabeça, uma treliça da pérgola envolta por videira verde e ramos de flores silvestres. Um lindo local quando banhado pelo nascer do sol ou luar. Nenhum lugar poderia ser perfeito o suficiente para Fairfax, mas este chegou perto. — E eles viveram felizes para sempre. Ele saiu do Crucible para o ambiente muito mais mundano do laboratório. Depois que ele e Fairfax empurraram e carregaram os meninos fortemente embriagados de volta pelo precipício até a casa, ele foi ao laboratório para trabalhar. Os meninos, de qualquer maneira, não se levantariam antes do meio dia, e ele desejava terminar de fazer a nova entrada o mais rápido possível. A vida era incerta, particularmente a sua. Ele bocejou. Já eram quase nove horas da manhã. Ele saiu do laboratório para um celeiro abandonado em Kent. De lá, fez uma desmaterialização rápida de volta ao seu quarto em Baycrest House. Fairfax estava lá, esperando por ele, folheando as páginas de um livro que ela tirou da estante – em deferência a sua posição social, Titus recebeu o melhor quarto da casa, com um banheiro privado, uma varanda alta que dava para o mar, e duas prateleiras cheias de volumes encadernados em couro. — Já está pronto? — Ela perguntou. Ela falava sobre a nova entrada do laboratório. — Quase. Preciso esperar cerca de vinte e quatro horas, e então eu posso completar o último passo. — Sinto falta do Crucible, — ela disse. — Deve ter sido a pelo menos três meses desde que estive lá pela última vez. Depois do quatro de junho, ele moveu sua cópia do Crucible para o laboratório para evitar que fosse confiscada por Atlantis. Havia outra cópia no mosteiro nas Montanhas Labyrinthine, mas nenhum dos dois pôde visitar o mosteiro durante o verão. — Não demorará muito agora.

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— Você teve que tirar com uma pá os montes de pétalas de flores? — Ela provocou. Barris. — Sem comentários. — Bem, eu não vou pela decoração de qualquer forma. — Agora que você me diz. Ela sorriu. — Vá dormir. Você parece cansado. Ele caiu na cama. — Estou envelhecendo. Eu costumava ficar acordado durante toda a noite e parecia melhor. — Seu espelho mentia, — ela disse, colocando um cobertor sobre ele. Ele pegou a mão dela e beijou os nós dos dedos. — Obrigado, — ele disse. — Por tudo. — O que posso dizer? — Ela disse; sua voz ficando cada vez mais fraca. — Esta donzela ama resgatar príncipes em perigo. Ele sorriu enquanto adormecia. *** E quando acordou, ele ainda estava sorrindo. Ele sonhava com os dois no terraço da casa de campo da Rainha das Estações. Mas, em vez de se beijarem, estavam sentados no parapeito decorativo, e ela estava lhe contando uma piada longa e envolvente. Ele riu quando acordou – embora, agora que tinha os olhos abertos, ele não conseguia lembrar o que ela havia dito. No momento seguinte, a voz dela passou pela janela que ele deixou um pouco aberta. Ela estava lá, conversando com Cooper. Suas palavras exatas foram borradas pelo vento e a rebentação, mas era o suficiente para saber que ela estava perto, não apenas segura, mas de bom humor. Ele se sentou e sua mão pressionou algo na cama – o livro que ela deixou para trás. Um relógio pequeno e ornamentado no parapeito da janela chamou sua atenção: quatorze minutos após as duas horas.

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Interessante. Era o momento exato mencionado na visão de sua mãe que o viu testemunhar a façanha de magia elementar que mudaria a vida de todos os envolvidos. Por causa dessa visão, sempre que ele estava no castelo, ele costumava deitar-se após o almoço e fazer Dalbert acordá-lo precisamente as duas e doze, então tudo seria levado à letra, o que já havia sido destinado. Ele entrou na varanda para sentir a brisa do mar. No horizonte, uma tempestade se reunia, mas aqui tudo ainda estava ensolarado e suave – ou tão suave quanto poderia ser para o início do outono no Mar do Norte. Abaixo, Cooper e Fairfax jogavam um jogo de croqué8 em um pedaço de gramado. Ambos acenaram quando o viram. Ele assentiu regiamente. — Você se juntará a nós, Sua Alteza? — Cooper perguntou. Titus estava prestes a responder quando sua varinha de repente se aqueceu. O aquecimento era rítmico, um momento quente, um momento normal – a varinha estava transmitindo um sinal de socorro. E não apenas qualquer sinal de socorro, um náutico, específico para embarcações marítimas. Havia um navio mago nas proximidades? — Dê-me alguns minutos, — ele disse a Cooper. Ele examinou o mar, mas não havia navios lá fora. Fairfax também estava procurando. Ela sentiu o sinal de socorro em sua varinha de reposição, a qual ela agora carregava em sua bota. Ele fez um feitiço de longa distância – e cambaleou. A oito quilômetros de distância, no meio do Mar do Norte, navegava uma embarcação atlante. Não era um navio de guerra, mas parecia muito maior do que um barco de patrulha. Um skimmer – destinado a perseguição no mar. O que estava perseguindo?

8 O croqué é um jogo de recreação, sendo posteriormente transformado em esporte, que constitui em golpear bolas de madeira ou plástico através de arcos encaixados no campo de jogo.

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Vários segundos se passaram antes dele localizar o bote que fugia do skimmer. Ele voltou a cambalear quando reconheceu o único passageiro no bote: Wintervale.

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Capítulo 7 O deserto do Saara

Seja qual fosse a máquina que vinha por trás, era grande e se movia rapidamente. Titus virou para a menina. — Você pode atravessar a pedra? Dúvida cruzou seu rosto, mas ela apenas disse enquanto apagava a luz de mago que iluminava o caminho: — Vamos ver. Segure-se em mim. Ele envolveu seus braços ao redor dela. Eles desceram através de vários metros de areia, e então, mais lentamente, a rocha sólida se rompeu sob seus pés e os detritos fluindo para fora permitiram que passassem. Bem a tempo da máquina varrer sobre suas cabeças, raspando a rocha como um pente de metal gigante. Os dentes da máquina estavam apenas a cinco centímetros deles – não havia como eles passarem. — Quão rápido você acha que isso está se movendo? — A menina perguntou.

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Ela trouxe de volta a luz mágica. De repente, ele percebeu que ainda estava com seus braços ao redor dela. Ele os afastou. — Dezesseis quilômetros por hora, mais ou menos. Mas o poço que ela fizera era tão estreito que ainda estavam quase nariz a nariz. Sua pele estava azulada na luz mágica; uma mancha de poeira de rocha na ponta do seu nariz parecia pequenas manchas de lápis lazúli. — A área de busca tem um quilômetro e meio de diâmetro, — ela disse. — O arrastão precisaria de seis minutos para ir do centro a periferia e seis minutos para retornar ao centro. Dependendo de quão longe estamos do centro, podemos prosseguir por cinco ou seis minutos antes disso nos encontrar novamente. Ele balançou a cabeça. — O General disse que há um arrastão de saída, além de um de entrada. Provavelmente eles se encontrarão no ponto intermediário e alternarão as direções. Então será apenas dois a três minutos, se muito, antes que a máquina volte. Ela franziu a testa. Seria insuficiente, para não mencionar perigoso, se eles parassem a cada dois minutos para perfurar um buraco. — Nesse caso, é melhor eu fazer um túnel abaixo da superfície rochosa. Você pode rastejar por quase um quilômetro? — Posso, mas não precisamos. Podemos levitar um ao outro9. Ela parecia quase impressionada com sua ideia. — Vamos fazer isso. Ela escavou uma passagem horizontal a um metro e meio do topo da rocha e se arrastou. Ele, atrás dela, entrou com os pés primeiro e virou para cima, até as solas de suas botas se tocarem. Eles levitaram-se alguns centímetros do chão da passagem. Um pequeno rio de detritos de

Feitiços de levitação são algumas das conquistas mais antigas da magia sutil. Como todos os feitiços destinados a imitar magia elementar, nenhum feitiço de levitação já se aproximou da gloriosa escala do último – apenas os magos elementares podem mover rochas enormes à vontade. Mas enquanto a magia elementar muda apenas terra e água, feitiços de levitação foram adaptados para uma grande variedade de propósitos. – Da Arte e da Ciência da Magia: Uma cartilha 9

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rocha começou a fluir debaixo deles, em direção à parte de trás. A cada quinze segundos ou mais, ele empurrava contra as paredes do túnel e os impulsionava para frente. Eles fizeram um progresso constante enquanto a máquina raspava atrás e acima. Quando meia hora passou, ela ampliou um pouco o túnel para sentar e descansar. Ele bebeu gananciosamente do odre que ela lhe entregou, surpreso por quão sedento ele estava, mesmo que o túnel fosse tão fresco quanto um porão. Seu relógio media distância e tempo. Ele mostrou que eles se moveram cerca de meio quilômetro de onde afundaram abaixo da superfície do deserto. Ela assentiu. — Você está bem? Sua ferida doía, com insistência e perceptivelmente. Mas em comparação com a agonia de mais cedo, a dor era nada. — Estou bem. Você? Ela ficou surpresa com a pergunta. — Tudo bem, claro. Ao lado dela, uma minúscula esfera de água apareceu, girando com um preguiçoso fluxo de ar enquanto crescia mais. Atualmente, os magos elementais eram mais propensos a serem os artistas nas festas de aniversário a qualquer outra coisa. Os poderes dela, por outro lado... — Você ia me mostrar algo, antes que a máquina de escavar nos alcançasse, — ele disse. — Oh, isso. — Ela tirou um cartão do bolso e estendeu para ele. Ele examinou o cartão. A. G. Fairfax. — Você se importa se eu chamá-la assim? Ela encolheu os ombros. — Vá em frente. — O desafio calmo voltou aos olhos dela. — Devo dirigir-me a você como Sua Alteza Sereníssima? — Você pode anunciar um príncipe como tal, mas você se dirige a ele como apenas Sua Alteza, — ele disse. — Por exemplo, Sua Alteza, tem sido um privilégio rastejar por um túnel apertado e sem ar com você. Ela zombou, mas sem rancor. A esfera da água cresceu bastante. Ela pegou o odre dele, encheu-o novamente e o colocou de volta na bolsa.

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Ele percebeu apenas quando olhou para cima e seus olhos se encontraram, que ele não havia desviado o olhar por todo esse tempo. — Sua Alteza, — ela disse, seu tom meio zombador, — Posso ter a honra de escavar outro meio quilômetro de passagem para você? — Mas certamente, — ele respondeu, devolvendo o cartão de visita. — Quando voltarmos à superfície, devemos nos lembrar de recompensar sua lealdade e devoção. Ela balançou a cabeça pela sua afetação, mas ele podia ver pela inclinação de seus lábios que ela estava se divertindo. E assustou-o que, no meio de todo perigo e incerteza, ele sentiu um deleite de pura alegria por fazê-la sorrir. *** Eles descobriram no próximo minuto que não poderiam levitar novamente. — Os feitiços de levitação que usamos antes provavelmente estavam perto de acabar quando paramos – não teríamos percebido, já que estávamos a apenas três centímetros do chão, — disse o menino que pode ou não ser um príncipe. — Se for esse o caso, seria necessária uma espera de quinze minutos. O que significa que nós podemos tentar novamente em torno de... — ele olhou para o relógio, -— Sete minutos. Ele ainda estava com dor – ele se segurou cuidadosamente para evitar movimentos desnecessários. As pessoas reagiam de maneira diferente à dor: alguns queriam simpatia e ajuda; outros preferiam sofrer sozinhos, sem testemunhas na hora da aflição. Ele provavelmente era o último tipo, aquele que ficava mal-humorado quando confrontado com um bom samaritano insistente. Ou... — Você achou que fui eu quem te feriu? Ele pareceu divertido. — Você só percebeu isso agora? — Por que deveria ter percebido mais cedo? Eu não fiz isso. Ele ergueu uma sobrancelha. — Você tem certeza disso? A pergunta a surpreendeu: ela não tinha como saber com certeza, tinha? Se ele tivesse machucado seu protetor, então ela podia se ver

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vingando-o. Mas por outro lado, a ferida dele não era causada por poderes elementais. Ela apontou isso. Ele moveu os lábios em uma representação eloquente de um encolher de ombros. — Você está me dizendo que não sabe como fazer uma poção? Ela sabia? Com a pergunta, ela começou a se lembrar de todos os tipos de receitas de poções clarificadoras, encantos, elixir de luz. Ela esfregou as têmporas. — Você sabe por que está sob o pretexto de ser um não mago? — Eu poderia ser um exilado. As roupas que eu estava vestindo vieram de um lugar em Londres, Inglaterra, e reconheci como uma rua conhecida por lojas de alfaiate. — Savile Row? — O nome rolou facilmente da sua língua, surpreendendo-a. Também o surpreendeu. Ele se moveu e estremeceu de dor. — Como você sabe? — Quando você disse que era uma rua conhecida por alfaiates em Londres, apenas veio à minha mente. — E, no entanto, ela não poderia se lembrar do seu próprio nome. —

Então

nós

retemos

conhecimentos

e

habilidades

que

adquirimos, — ele disse, — Mas não temos memórias pessoais. Isso implicava o uso preciso de feitiços de memória de precisão. Feitiços de memória de força bruta requeriam apenas a vontade de fazer dano, mas os feitiços de memória de precisão precisavam de contato: o mago que havia retirado tão bem suas memórias deveria ter tido muitas horas de contato físico direto com ela para poder usar tais feitiços. A maioria dos feitiços de contato exigiam trinta e seis horas de contato; os mais poderosos necessitavam de duas horas. Exceto as crianças, que são seguradas por pais ou irmãos, ou casais que não podem deixar de se abraçar, os magos simplesmente não se tocavam o suficiente para poder implantar os feitiços de contato. Claro que havia maneiras de contornar isso, mas, em geral, a quantidade de contato necessário

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garantia que um grande número de feitiços potencialmente perigosos não fosse usado de maneira alguma por qualquer pessoa com ódio. No entanto, esse limite de contato levantava questões difíceis: significava que a memória dela não foi tomada por um inimigo, mas muito possivelmente por alguém que ela conhecia muito, muito bem. Esse alguém se certificou de que ela mantivesse seu medo da Atlantis. E quem quer que tenha aplicado os feitiços de memória no garoto havia feito o mesmo. — Você... Você acha que nos conhecemos? Ele olhou para ela por um longo tempo. — Quais são as probabilidades de que dois estranhos completamente desconectados acabassem no meio do deserto do Saara, a poucos passos um do outro, ambos sem suas lembranças? A ideia era um pouco desconfortável, que ela poderia estar ligada a esse menino de alguma forma significativa. — Mas resta saber se éramos aliados ou inimigos, — o menino acrescentou. Ele verificou seu relógio. — Vamos continuar? *** Seria ridículo descrever a rocha como suave, mas a próxima seção do rochedo que ela escavou certamente parecia quase mais suave para ela, mais fácil de manipular. Eles avançaram mais rapidamente, o que deveria tê-la agradado, mas quanto mais perto eles chegavam da fronteira, mais desconfortável ela ficava. — Nós devemos estar quase lá, — Titus disse. — Nove, treze metros no máximo. Ela parou. — Você está bem? — Ele perguntou. — Nosso progresso foi muito fácil, você não acha? — Do que você suspeita?

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Ela balançou a cabeça. — Não posso ter certeza. Mas os carros blindados sabiam exatamente onde nos encontrar, por isso é lógico que os soldados que nos procuram sabem que eu sou uma maga elementar. Eles devem saber que posso atravessar a rocha e, no entanto, eles se contentaram em escavar a areia. — Posso desmaterializar na superfície e verificar. — Não, isso seria muito perigoso. — Você quer ficar aqui por algum tempo e ver se alguma coisa acontece? Ela olhou para o fim do túnel, a trinta centímetros do seu rosto. Parecia ter sido escavado por um animal com garras de aço. — Não importa. Vamos continuar. — Você não deve ignorar seu instinto. — Bem, não há outra saída, e não pode ser uma boa ideia ficar aqui esperando algo acontecer. Pedaços de pedras se quebraram. O fim do túnel recuou por alguns centímetros, e depois mais alguns – seus poderes elementais trabalhando. — Mova-nos para frente, — ela disse. Depois de um segundo ou mais, ele fez como ela pediu. — Os feitiços de memória que usaram em nós – eram muito sofisticados, não diria? — Ela perguntou após avançarem mais alguns metros. Eles ficaram em grande parte silenciosos durante a escavação, para que ela pudesse se concentrar na tarefa em questão. Mas agora ela precisava de algo para distraí-la. — E muito ilegal, — ele respondeu. — Não entendo o porquê de tudo. Os feitiços de memória foram adaptados especificamente para que possamos fazer o melhor para ficar longe do alcance de Atlantis, mas isso não seria mais fácil se soubéssemos por quê? — Você está assumindo que aquele que aplicou os feitiços queria nos ajudar. — Ele a empurrou para frente novamente. — Mas se...

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Dor atingiu o interior de sua cabeça, doía como uma estaca ardente sendo enfiada em sua cabeça. Ela mal reconheceu o grito ensurdecedor como seu.

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Capítulo 8 Inglaterra

O corpo inteiro de Wintervale estremeceu. Seus lábios se moveram, se com maldições ou orações, Titus não conseguiu dizer. E ele continuou olhando para trás, para o navio inimigo se aproximando dele. Titus praguejou. Cinco minutos atrás, se alguém tivesse lhe perguntado, ele teria dito que Fairfax era a única por quem ele arriscaria qualquer coisa. Mas ele não podia simplesmente deixar Wintervale cair nas garras de Atlantis, não quando tudo se desdobrava diante de seus olhos. Ele respirou fundo. Antes que pudesse desmaterializar, no entanto, Wintervale virou e apontou a mão para o skimmer. A superfície do mar pareceu estremecer. Então ficou estranhamente calma, como um lençol que se esticava perfeitamente em um colchão. No momento seguinte, Titus teve a estranha sensação de que o mar estava afundando. Era um redemoinho, enormes correntes de água agitando em torno de um eixo central.

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O skimmer, apanhado à beira desse redemoinho, tentou navegar. Mas o redemoinho aumentou com uma velocidade aterradora, seu olho se aprofundando e ampliando, expondo o fundo do mar a centenas de metros abaixo. O skimmer caiu nesta colossal cratera. Imediatamente, o redemoinho cessou. Toda a água girada para fora se precipitou de volta, esmagando o skimmer sob seu volume e peso. Titus agarrou a grade, boquiaberto. — Fairfax, o que você está olhando? — Veio a voz de Cooper. — É sua vez. Fairfax, ela causou o redemoinho? Mas ela estava olhando para ele, sua expressão tão atordoada como ele se sentia. — Jogue sua vez, Fairfax, — ele disse; um lembrete de que ela deveria continuar jogando. Ele recuou para dentro de seu quarto e voltou a aplicar o feitiço de longa distância. O deslocamento daquela quantidade de água causou ondas violentas, agitando o bote de Wintervale. Wintervale parecia não notar nada. Seus braços estavam envoltos no pequeno mastro, o rosto molhado pela água do mar – ou eram lágrimas? E a expressão era não de confusão, mas de admiração e incredulidade, como se ele soubesse exatamente como surgiu o redemoinho que engoliu seus perseguidores, mas simplesmente não podia acreditar que tivesse acontecido de verdade. Uma onda particularmente grande golpeou o bote. A próxima o virou completamente. Titus apertou os dentes e se desmaterializou. Como esperado, ele pousou nas águas geladas do Mar do Norte, o frio como fragmentos de vidro. A desmaterialização cega – paradoxalmente chamada, pois como um cego com os olhos bem abertos, usando apenas pistas visuais como guia, ao invés de memória pessoal – era notoriamente imprecisa. Ele poderia ter se desmaterializado a dois quilômetros de distância. Mas, felizmente, neste caso, ele estava a apenas trinta metros do bote virado para baixo. Wintervale surgiu ofegante e agitado.

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— Eleveris, — Titus gritou, nadando em direção a Wintervale, não se atrevendo a desmaterializar novamente por medo de se afastar ainda mais dele. Wintervale esganiçou de repente, procurando por ar. Ele nadou, virando e flutuando um pouco acima das ondas, como se estivesse sendo cuspido. As ondas batiam em Titus. Mas pelo menos Wintervale, suspenso acima da água, não podia se afogar. Os músculos de Titus protestaram enquanto ele lutava para chegar até Wintervale. Trinta metros. Quinze metros. Três metros. — Titus! — Wintervale gritou. — Obrigado, Senhor. A Sorte não cuspiu na minha cara. Titus fechou os últimos poucos metros de distância entre eles, pegou o braço de Wintervale e desmaterializou-os para a praia, abaixo da casa do tio de Sutherland. Wintervale vomitou prontamente. Titus o esperou acabar, chutou areia sobre a bagunça, e o levou a três metros de distância. Wintervale desmoronou ao chão. Titus se agachou ao lado dele, limpou-o com alguns feitiços, e verificou seu pulso e as pupilas. — O que você estava tentando fazer? — Wintervale murmurou. — Você sabe que não posso desmaterializar por mais de meio quilômetro. — A menos que você pudesse nadar oito quilômetros até a terra firme, a desmaterialização era a nossa única opção. Wintervale já estava tremendo. — Espere aqui. — Titus desmaterializou para o quarto dele, pegou uma toalha e uma muda de roupa, e desmaterializou de volta. — Você precisa tirar essas roupas. Os dedos de Wintervale tremiam enquanto ele tentava desfazer os botões de seu casaco. — Exue10 — Titus disse.

10 Tirar.

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O casaco de Wintervale saiu. Quando Titus repetiu o feitiço, o colete e a camisa de Wintervale também desapareceram. — Feitiço f... Formidável esse, — Wintervale gaguejou; seus dentes batendo. — As mulheres concordam com você, — Titus disse. Ele se virou antes de fazer o mesmo com a calça de Wintervale. Então desmaterializou de volta para Baycrest House para trocar sua própria roupa pingando, escaneando o mar por sinais de outras forças atlantes enquanto fazia isso. Uma batida familiar veio à sua porta quando ele abotoava a nova camisa. Fairfax. — Entre, — ele disse, ajustando os ombros em outro colete. Seu rosto estava pálido quando ela fechou a porta. — O que está acontecendo? Onde está Wintervale? Ele colocou os braços em um casaco. — Na praia, trocando de roupa. Vou descobrir o que está acontecendo. Ela se aproximou. — Você está bem? Ele pensou que era uma pergunta estranha até ela pegar a sua mão: ele estava tremendo sem estar ciente disso. — Deve ter sido o frio – a água estava congelando, — ele disse, extraindo um frasco de remédio de emergência em sua bagagem. Mas enquanto falava, ele não pensava na frieza do mar, mas naqueles momentos antes do sinal de socorro náutico: levantando-se da cama, olhando para o relógio, observando o tempo – quatorze minutos depois das duas – depois indo para a varanda. Havia uma aterradora familiaridade com a cadeia de ações. E isso, tanto quanto suas roupas encharcadas, o fizeram tremer. Ele a puxou para perto e apertou seus lábios na bochecha dela. — Mantenha os meninos da casa longe da praia. Fique atenta ao mar. E não faça nada que se revele a ninguém – nem pense em usar seus poderes para secar as minhas roupas, por exemplo. Se Wintervale não está seguro, então nós também não estamos.

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*** Wintervale vestiu as roupas secas, mas ainda estava tremendo. Titus entregou-lhe o remédio que trouxe. — Preciso levá-lo a algum lugar onde você possa descansar. Pense com cuidado: os Atlantes sabiam para onde você ia? — Não, — Wintervale disse com a voz rouca. — Eles nem sabiam quem eu era. — Você tem certeza absoluta? — Sim. Titus estava longe de ter certeza, mas não tinha muitas opções. — Nesse caso, eu vou levá-lo até a casa do tio de Sutherland. Wintervale empalideceu. — Por favor, não me desmaterialize novamente. Wintervale não estava em forma para ser desmaterializado novamente agora. Na verdade, ele mal podia se manter em pé. Titus olhou para o penhasco íngreme e as escadas raquíticas, e suspirou. — Nós podemos ir sem desmaterializar. Wintervale era da mesma altura que Titus, mas um pouco mais pesado. Quando Titus começou a subida, Wintervale nas suas costas, ele sentiu-se como Atlas, carregando o peso do mundo inteiro. — Por que Atlantis estava perseguindo você? Achamos que você estava em casa com sua mãe. — Eles não estavam me perseguindo. E não estávamos em casa. Minha mãe e eu estávamos na França. Em Grenoble. Titus subiu em uma protuberância nas rochas para alcançar a próxima escada, esforçando-se para não se inclinar para trás. — Grenoble? Até onde sabia, a cidade não hospedava uma comunidade exilada de tamanho apreciável. — Você sabe quem é Madame Pierredure? — Wintervale perguntou.

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— Uma senhora idosa que lutou contra Atlantis? — Madame Pierredure era uma idosa, mas ela também foi a principal estrategista da rebelião de Juras há dez anos, e responsável por uma série de brilhantes vitórias. Ninguém ouviu falar dela desde o fim daquela onda de rebeliões e insurreições. Se ainda estivesse viva, ela deve ser bastante velha. — Pensei que ela estava morta. — É o que todos pensavam, — Wintervale disse. — Então, a minha mãe ouviu notícias de que Madame estava em Grenoble. Ela estava interessada em ver por si mesma que Madame ainda estava viva... Elas se conheceram um dia. E ela queria que eu conhecesse Madame em pessoa, caso os rumores fossem verdade. Viajamos sob nomes falsos e ficamos em hotéis de não magos. Tudo estava bem até a última noite, quando ficamos sabendo que Madame chegou a um hotel no centro da cidade. Nós fomos a um café na praça do lado de fora do hotel. À esquerda e à direita havia magos – podíamos ouvi-los sussurrar sobre Madame Pierredure. Foi quando mamãe levantou e me disse que precisávamos ir embora. Ela disse que alguma coisa parecia errada, que se tudo fosse silencioso e secreto, com notícias que viajavam apenas por canais confiáveis, então não deveria haver tantos magos reunidos em um lugar – que tinha tão poucos exilados – esperando um vislumbre de Madame. Eu deveria tê-la ouvido. Mas em vez disso... — Wintervale respirou fundo. Titus poderia percebê-lo fazendo uma careta. — Em vez disso, eu disse que deveríamos ficar, pela chance de testemunhar algo histórico. Nós estávamos discutindo quando ela parou de falar e apenas me agarrou. Foi quando percebi que magos na extremidade da praça estavam caindo inconscientes. E então olhei para cima e vi os carros blindados. Titus ficou tenso. Uma narrativa quase sempre tomava um giro fatídico com a entrada de carros blindados. — Não podíamos desmaterializar, então corremos, — Wintervale continuou; sua voz tensa. — Se tivéssemos voltado para o nosso alojamento, provavelmente teríamos ficado bem. Mas um homem no nosso canto da praça gritou que tinha acesso a uma doca secreta e que

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poderia nos levar até a Inglaterra rapidamente11. Cerca de vinte pessoas o seguiram até uma casa nos arredores da cidade. Nós entramos em uma embarcação na adega. No momento seguinte, caímos no mar, e todos pensamos que estávamos seguros. Mas dois minutos depois, havia uma fragata atlante atrás de nós. Foi um caos a bordo. Mamãe perguntou onde era a casa do tio de Sutherland... Eu havia lhe dito anteriormente que eu estava perdendo uma festa para estar com ela. Eu disse que ficava em algum lugar a poucos quilômetros de Cromer. Essa é a última coisa que me lembro. Quando acordei, era de manhã. Eu estava no bote e navegando. Não tinha ideia de onde estava e mamãe... Wintervale engoliu. — Ela viveu tempos difíceis, — ele disse com fervor. — Ela deve estar bem. Lady Wintervale era a única outra pessoa que sabia que um dos meninos da Sra. Dawlish era a grande maga elementar procurada por Atlantis. Se ela fosse presa e interrogada... Titus só podia esperar que Atlantis não pensasse em fazer perguntas sobre esse assunto em particular. Estavam quase a meio caminho do penhasco. Titus percorreu a trilha estreita que o levaria à próxima escada, ajustando os braços de Wintervale para que o último não o estrangulasse inadvertidamente. Com o conto de Wintervale terminado, Titus não teve escolha senão fazer a pergunta que o perturbava muito mais do que deveria. — Você fez o redemoinho? Wintervale parou com grande parte do tremor, mas agora ele tremia. — Não sei como isso aconteceu. O skimmer Atlantes veio do nada. Em um minuto eu dormia, e no minuto seguinte ele estava lá. — Ele exalou lentamente, como se tentasse afastar a lembrança. — Entrei em pânico completamente. Tudo o que eu pude pensar foi que se eu fosse As docas secas eram uma vez comuns em reinos magos sem litoral – com uma doca seca, alguém poderia lançar um navio diretamente para o mar, mesmo que a costa mais próxima fosse a mil e quinhentos quilômetros de distância. Mas com a criação de transportes mais instantâneos que ultrapassaram as viagens marítimas, as docas secas se tornaram obsoletas como modo de transporte. – Trecho de Viagens de Magos ao longo dos séculos 11

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um mago elementar mais poderoso, abriria um enorme redemoinho diante do skimmer e então ficaria a salvo dele. O fato de Wintervale ser um mago elementar nunca foi a primeira, a segunda, a terceira, ou mesmo a quarta coisa que Titus lembrava sobre ele. Se eu quiser criar um fogo, eu uso um carvão, Wintervale confessou uma vez a Titus. E isso não foi falsa modéstia. Restos de carvões podiam produzir faíscas maiores do que as chamas débeis convocadas por Wintervale. E provavelmente morreria de sede esperando que ele enchesse um copo com água. Então, novamente, bons magos elementares tendem a não ser excepcionais quando crianças, até que seus poderes se manifestem na adolescência. Titus pensou que era tarde demais para Wintervale se submeter a essa transformação. Mas, obviamente, ele estava errado. — Então você queria fazer um grande redemoinho? — Eu fiz. E no minuto seguinte, todo esse poder que eu nunca senti vazou de mim e o mar fez exatamente o que eu queria fazer. Eu acho... Acho que sou um mago elementar melhor do que pensei que fosse. Os braços de Titus queimavam enquanto ele subia para o próximo degrau. — Você pode entrar em Vidas e feitos dos grandes magos elementares se não for cuidadoso. O som que Wintervale fez foi a meio caminho entre uma risada e um soluço. — Eu queria que mamãe pudesse ter visto isso. Quando ainda vivíamos no Domínio, ela ficou tão impressionada com meus poderes que não parava de falar. Ela teria... Ela teria gostado de ver o que eu consegui fazer hoje — Sim, isso muda as coisas, — Titus disse lentamente. Tudo, possivelmente. *** Quando chegou ao topo do penhasco, todos os músculos no corpo de Titus gritavam.

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Fairfax havia feito como ele pediu: ninguém abriu as janelas para gritar de surpresa súbita pela chegada de Wintervale. Titus meio carregou, meio arrastou Wintervale pelo resto da distância até a porta da frente. — Vou desmaterializar para dentro. Aguarde alguns segundos antes de tocar a campainha, — Titus disse à Wintervale. — E se alguém perguntar por que você se parece com a morte, diga a eles que foi algo que você comeu no caminho. De volta ao seu quarto, Titus apontou sua varinha para as solas dos sapatos e livrou-se de quaisquer detritos que se apegaram a eles. A campainha soou à distância. Ele foi para a varanda. Fairfax e Cooper ainda estavam no seu jogo de croqué, com Kashkari como observador. — Então você conseguiu sair da cama antes das três, — Titus disse a Kashkari. — Saí da cama ao meio dia, — Kashkari disse. Parecia que ele não dormia há três dias. — Passei as próximas duas horas no chão, me contorcendo em agonia. — Pelo menos você está de pé, — Cooper disse com uma satisfação um pouco sombria, considerando que ele bebeu tanto quanto eles. — Sutherland ainda está gemendo sob o cobertor pelo que eu sei. Fairfax balançou seu bastão. A campainha tocou de novo. Ela ficou tensa, mas não disse nada. Kashkari esfregou as têmporas. — Alguém está tocando a campainha? Apareceu o mordomo. — Há um visitante com o nome de Wintervale. Devo dizer que o Sr. Sutherland poderá vê-lo? — Sim! — Kashkari e Cooper responderam ao mesmo tempo. Kashkari, balançando ligeiramente, começou imediatamente a ir para a casa. Cooper apressou-se para recuperar o atraso. Fairfax, depois de um olhar para Titus, seguiu o exemplo. Titus foi o último a chegar à frente da casa, onde Wintervale era calorosamente recebido.

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— Qual é o problema? — Kashkari olhou para ele. — Você também esteve bebendo? Você não parece bem. — Algo que comi na viagem. — Wintervale virou para o mordomo. — Eu gostaria de me deitar um pouco, se você tiver uma cama sobrando. — Levará apenas um minuto para arrumar um quarto para você, senhor. — Você pode usar meu quarto até então, — Kashkari ofereceu, apoiando o braço na cintura de Wintervale. Wintervale olhou para Titus, aparentemente relutante em ir com Kashkari. Mas este último já o empurrava. — Veja seu passo. — Você deve descansar o tanto que puder, — Titus lembrou a Wintervale. A cama de Kashkari era um lugar tão bom quanto qualquer outro. — Eu direi a Sutherland que você está aqui, — Cooper disse, passando por Kashkari e Wintervale nas escadas. Fairfax não os seguiu, mas se aproximou de Titus. — Vou pedir uma bandeja de chá para você, Wintervale. — Ela falou alto o suficiente para que todos ouvissem. Então sussurrou para ele: — Você quer me dizer o que aconteceu? Ela estava preocupada com ele e preocupada com a situação. Mas, embora no limite, permaneceu controlada. Enquanto ele se sentia como o skimmer atlante, preso em um turbilhão inevitável. — Há algo que eu preciso verificar primeiro. Você mantém um olho em Wintervale até eu voltar? — Claro. O que você precisa verificar? Foi uma deslealdade falar essas palavras. Mas falou, porque não mentia para ela. — O diário da minha mãe. *** O diário da princesa Ariadne estava no centro da mesa de trabalho no laboratório de Titus. Ele olhou para ele. Ele cometeu o erro de uma vida? Sua visão, aquela dele de pé em uma varanda e testemunhando um

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ato de grande poder elementar – ela falava de Wintervale ao invés de Fairfax? Preciso ver novamente aquelas entradas. Tudo nele ansiava por Fairfax. Em um mundo de incertezas absolutas, ela provou ser a força em que ele poderia confiar quando a sua própria força falhou. Mas, e se ela não fosse a única? Por favor, deixe que seja Fairfax. O diário respondeu – pelo menos a primeira parte de seu pedido. 28 de setembro, AD 1014 O dia do seu nascimento. Um homem está em algum lugar. Ele poderia estar em qualquer lugar, uma montanha, um campo ou diante de uma janela. Tudo o que vejo é a parte de trás de sua cabeça e o céu azul além. No entanto, mesmo em uma visão tão limitada, eu vejo – ou melhor, eu sinto – seu choque. Ele está cambaleando. E foi isso.

13 de novembro, AD 1014 A alegria o atravessou. O dia anterior ao nascimento de Fairfax. Isso deveria ser um bom sinal. A mesma visão, ligeiramente expandida. Agora eu sei que ocorre em quatorze minutos após as duas horas. Embora o tempo pudesse ser enganador, assim como estava a data na livraria de Eugenides Constantinos. Quando eu costumava ler todos os livros sobre videntes em que eu poderia colocar minhas mãos, quase todas as pessoas mencionavam visões de desperdícios, aquelas visões que não tinham qualquer

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significado. O mago que sempre via o que ele comeria em uma semana no futuro, por exemplo. Pergunto-me se esta é uma visão de desperdício. Embora, é claro, até as visões de desperdícios eventualmente preveem algo. O mago que via o que ele comeria parou de ter essas visões – e uma semana depois ele estava morto. E é estranho que eu pareça ter essa visão particular logo quando alguém está em trabalho de parto. Em trabalho de parto? Quem deu à luz na noite da tempestade de meteoros? Ele virou a página. Peguei Eirene lendo meu diário. Isso me chocou totalmente. Sempre acreditei que Eirene fosse uma das magas mais honradas que eu já conheci. Mas ela se recusou a me dar uma razão para o seu bisbilhotar. Minha confiança está quebrada. Sou tão terrível em julgar uma pessoa? Estou cercada por magos que procuram trair minha confiança? Ele havia verificado a lista de funcionários da sua mãe no momento da entrada do diário, mas não encontrou ninguém com o nome de Eirene. 27 de março, AD 1016 Aquela visão novamente. Nada novo, exceto que agora estou convencida de que o homem na visão é um homem muito jovem, talvez um garoto ainda. Não posso dizer por que eu acho isso, mas eu acho. 9 de julho, AD 1018

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Uma visão mais ampla do jovem. À medida que o fenômeno que o abala se desenrola, seus dedos apertam os trilhos da varanda, com os nódulos brancos. Titus se lembrou disso, agarrando o corrimão com estupefação pelo redemoinho de Wintervale. E o termo trilhos. A balaustrada de mármore que cercava a grande varanda do lado de fora da escada do castelo é chamada de trilho? E as mãos dele estavam perto da balaustrada quando o relâmpago de Fairfax caíra? Ele não conseguia se lembrar. Seu coração batia com medo. 13 de abril, AD 1021. No dia seguinte, sua mãe soube que ele, e não ela, seria o próximo soberano do Domínio, quando ela percebeu que sua própria morte era iminente e que essa visão particular, há muito pensada como insignificante, era na verdade qualquer coisa menos isso. Estive esperando que essa visão voltasse. Felizmente, não precisei esperar muito. Finalmente, vejo o rosto do jovem. Eu suspeitava que fosse Titus, mas agora eu sei que é. Ele parece estar dormindo no início, sua mão sobre um livro antigo – minha cópia do Crucible, ou alguma outra coisa? Agora ele se levanta, verifica o tempo, quatorze minutos após as duas horas, e sai para a varanda. Mas o que isso significa? Sinto como se eu devesse saber, mas não sei. 17 de abril, AD 1021 A última entrada. Ela preenchia duas páginas inteiras, frente e verso, então serpenteavam ao redor de todos os lados. Somente os

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primeiros parágrafos lidavam com a visão real. O resto consistia em instruções para Titus; o que ele deve fazer, o que deve aprender, e como ele deve realizar essa tarefa impossível que ela percebeu que seria dele. Ele havia esperado reivindicar o lugar de Fairfax em sua vida. Agora, tudo o que ele queria era que não houvesse mais detalhes que inclinariam o saldo a favor de Wintervale. Enquanto nada o forçasse a concluir que deveria ser Wintervale, ele continuaria acreditando que seu destino estava com Fairfax. Eu gostaria que essa visão não fosse de trás, pois adoraria olhar o rosto do meu filho nos momentos antes do fenômeno elementar abalá-lo. Sim, eu sei agora que será um fenômeno elementar, e agora sei qual é o terrível ponto de inflexão. Já foi. Mas até então, ele sorri, meu filho, seu rosto brilhante com alegria e antecipação. Era tudo o que Titus poderia fazer para não gritar. Ele não sorria antes que o relâmpago de Fairfax tivesse caído – ele emergiu do Crucible desejoso e sombrio. Mas antes da chegada de Wintervale, ele estava sonhando com Fairfax. E tolo que era, ele sorriu de orelha a orelha com total felicidade, quando tudo se tratava de Wintervale. E sempre foi. Ele fechou o diário e enterrou o rosto nas mãos. Tão silencioso, quase imperceptível, o som dos sonhos que se estilhaçam.

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Capítulo 9 O deserto do Saara

Titus caiu sobre os pedaços de rocha que havia no fundo do túnel. O contato fez com que chamas de dor raspassem nos seus ombros. Ele apertou os dentes, enganchou as botas com Fairfax e a puxou para cima alguns centímetros. — Qual o problema? Ela ofegou como se estivesse quase estrangulada. — Não sei. Quando avancei um momento atrás, era como se... Como se pregos estivessem sendo cravados em meus ouvidos. O tipo de feitiço de levitação que eles usavam não era aquele que exigia atenção constante. Para que ele falhasse de repente, geralmente implicava que o mago em que ele exercia o feitiço perdeu a consciência. Mas ela não perdera. Ele só podia imaginar que tipo de agonia real fez com que sua mente recuasse assim. — Você está melhor agora? Sua voz estava instável, desconcertada. — Muito, muito melhor, depois que você me puxou para trás. Eu sinto... Eu me sinto quase bem.

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Não era uma maldição cronometrada então, ou uma reação a substâncias tóxicas no ar. — Você pode ampliar esse túnel o suficiente para eu passar por cima de você? Quero ver se acontece o mesmo comigo. Quando ela fez o que pediu, ele se manobrou até o local onde ela começou a gritar, depois passou o local. Nada aconteceu com ele. Pensando que talvez fosse porque estava com os pés para frente, ele se virou e foi de cabeça. Ainda nada. — Nada? — Ela perguntou. — Nada. Suas respirações ecoaram no espaço apertado. — Deixe-me tentar de novo. — Pode não ser uma boa ideia. — Embora ele provavelmente tivesse escolhido fazer o mesmo. Sua mandíbula estava travada. — Eu sei. E desculpe-me por fazêlo cair de costas antes. — Eu estou bem. Ele se certificou de que tinha uma mão ao redor do tornozelo dela enquanto ela se arrastava para frente. No momento em que ela gritou novamente, ele a puxou para trás. Ela tremia, seu rosto cinza. Agora ele sabia por que Atlantis não tinha pressa. — O raio de um quilômetro é um círculo de sangue. — O que é isso? — Pela primeira vez, havia medo na voz dela. — Magia de sangue avançada. Irá matá-la se você se aventurar para fora do círculo. Ela engoliu em seco. — Então é melhor você ir. Pegue a água, pegue... Ele a interrompeu. — Você esquece que poderia ser eu quem construiu o círculo de sangue. Ela piscou. Não era cínica, essa garota. Eles não sabiam nada um sobre o outro, exceto que acabaram no mesmo lugar, ao mesmo tempo, com um deles machucado – é claro que eles poderiam ser inimigos mortais.

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— Se for esse o caso, — ele prosseguiu, — Eu posso quebrá-lo. Inimigos mortais ou não, ela havia fornecido ajuda crucial para ele. E ele não estava prestes a abandoná-la em sua hora de necessidade. Talvez ele também não fosse cínico. A

esperança

acendeu

os

olhos

dela,

mas

extinguiu-se

rapidamente. — Atlantis teria tentado muito mais se soubessem que o círculo de sangue não seria capaz de me impedir. — Talvez eles não saibam que estou aqui. Ele voltou para onde o círculo de sangue deveria estar e tirou o canivete do bolso. Com um corte e sangue fresco na palma da mão, ele empurrou a mão para o limite invisível. — Sanguis dicet. Sanguis docebit. O sangue dirá. O sangue irá mostrar. Não havia formigamento ou sensação de calor na sua pele, o que ele esperaria sentir se fosse o responsável pelo círculo de sangue. — Espere, — ela disse. Ela apagou a luz mágica. Na escuridão que se seguiu, algo brilhava

levemente

diante

dos

olhos

dele,

uma

parede

quase

transparente. — Isso conta como uma reação? — Ela perguntou. Ele retirou a mão; a escuridão tornou-se completa. Ele estendeu a mão; novamente a parede apareceu, uma treliça fosforescente. — Não construí o círculo de sangue, mas parece que estou relacionado com a pessoa que fez. A magia de sangue foi desenvolvida pela primeira vez para verificar o parentesco. Qualquer gota voluntariamente dada, não importa que

outro

propósito

fosse

colocado,

ainda

pode

atestar

a

consanguinidade. — Isso significa que você ainda pode quebrar o círculo? — A voz dela traiu uma vibração de excitação. — Não, não poderei. Talvez eu possa enfraquecê-lo, mas isso poderia simplesmente significar que você seria morta um pouco mais devagar caso tentasse violá-lo.

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Na escuridão, havia apenas o som de suas respirações rápidas. Ele pediu luz. Uma luminescência azul invadiu o túnel. Ela sentou com os pulsos nos joelhos, o rosto sombrio. — É muito cedo para o desespero, — ele disse. — Ainda não esgotamos todas as opções. Os dentes dela afundaram no lábio inferior. — Você sabe mais sobre a magia de sangue do que eu. O que você sugere? — Primeiro, eu quero ver se você está relacionada com a pessoa que definiu o círculo sanguíneo. Ajudaria se essa pessoa não tem reivindicação de parentesco com você12. Ela extraiu uma gota de sangue e enviou-a flutuando em direção ao círculo de sangue. Onde seu sangue foi imediatamente absorvido pelo círculo de sangue criado por ele, a pequena esfera flutuante do sangue dela saltou como uma bola atingindo um tronco de árvore. Ele estando relacionado com aquele que criou o círculo de sangue e ela não levantou perguntas desconfortáveis. Mas ele não se incomodou em refletir sobre essas questões – não era como se ele desconhecesse a possibilidade de terem se desejado mutuamente antes que os feitiços de memória levassem o passado para longe. — Pelo privilégio do parentesco, — ele disse em latim, e ofereceu outra gota de seu próprio sangue. — Peço que o círculo de sangue não prejudique aquele que é importante para mim. Era uma linguagem padrão, mas estranhamente verdade: a menina importava para ele. — Isso deve ter reduzido um pouco a potência do círculo de sangue. Posso colocá-lo sob um congelamento por um tempo, o que deve protegê-la ainda mais. Existe alguma coisa que você possa fazer para

Porque a magia de sangue está tão intimamente ligada aos conceitos de família e consanguinidade, está sujeita ao privilégio de parentesco. Por exemplo, uma irmã pode modificar certos feitiços tecidos por um irmão, assim como em vida real, ela pode persuadi-lo a mudar de ideia em algo. Mas se o objeto de uma instância específica de magia de sangue é o filho do irmão, então a influência da tia torna-se limitada: um pai tem uma reivindicação muito maior sobre seu próprio filho. – Da Arte e da Ciência da Magia: Uma cartilha 12

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aumentar suas chances de sobrevivência? Quaisquer remédios que possam prevenir lesões traumáticas provocadas pelas artes mágicas? Ela passou os dedos pelo topo da bolsa, então sua expressão se iluminou. — Eu tenho panaceia aqui. Seus olhos se arregalaram – a panaceia era extraordinariamente difícil de encontrar. — Tome uma dose tripla. Ela extraiu um frasco, contou três grânulos pequenos e os engoliu. — Então, agora que você enfraqueceu o círculo de sangue, você me colocará em congelamento e me empurrará para passar? — Eu queria que fosse tão simples. Se sobreviver, você ainda estaria em estado crítico. E não posso escavar a rocha, então... Uma fenda rachou enquanto a rocha se dividia em duas. Eles olharam para cima: o teto do túnel estava se partindo. Quando ela tentou inconscientemente cruzar o círculo de sangue, ela deve ter sinalizado sua posição. E agora Atlantis a encontrou. — Pegue tudo, — ele gritou, pulando para ela. Ele a pegou pelo braço e desmaterializou assim que o topo do túnel se reduziu a pó.

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Capítulo 10 Inglaterra

Algo estava errado, Iolanthe tinha certeza disso, a sensação de pressentimento, um peso forte em seu peito. Mas o que estava errado? Na firme cama de dossel no quarto de Kashkari, Wintervale roncava suavemente. Kashkari sentou em uma cadeira perto da cama, um pequeno sanduíche da bandeja de chá que Iolanthe pedira nas mãos, lendo um romance intitulado, Frankenstein; ou, O Prometheus Moderno. Ele havia dado um livro chamado Vinte Mil Léguas Sob o Mar para Iolanthe, mas o abandonara depois das primeiras linhas sobre um misterioso e enigmático no mar. Ela andou pelo quarto, examinando o papel de parede com o pano de fundo densamente modelado em tom azulado, alisando os objetos na cornija, e puxando o edredom com mais firmeza em torno dos pés de Wintervale. A testa dele estava úmida, mas fria. As pálpebras vibraram em seu toque, mas ele dormia.

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Sempre a surpreendeu que Wintervale não fosse mais alto do que o príncipe – ele parecia assumir muito mais espaço: ele nunca ficava em pé em um vão de porta, mas com os dois braços sobre a cabeça, as mãos na lateral; seu discurso sempre foi acompanhado por uma grande gesticulação animada; e não importava o quanto a Sra. Dawlish se queixasse, ele continuava escorregando pelos corrimãos e pousando com altos estrondos que reverberavam por toda a casa. De certa forma, ele era um dos garotos mais robustos e de aparência viril de toda escola. Mas, ao mesmo tempo, ele também era muito mais infantil do que o príncipe, Kashkari, ou mesmo alguém como Sutherland. Pouco surpreendente, desde que continuasse sendo um menino, ele não teria que lidar com o peso das expectativas de ser o único filho do Barão Wintervale. Sempre pareceu ser o medo de Wintervale, de ser muito comum, de ser nada e ninguém em comparação com seu pai. Mas agora ele não precisava mais se preocupar com isso. Agora ele revelou ser o detentor de um poder que os magos elementais só poderiam admirar. Se apenas sua realização não tivesse feito Titus, provavelmente a pessoa mais controlada que eu conhecia, agir tão estranho e nervoso. Ela caminhou até a janela e usou um feitiço de longa distância para examinar as águas cinzentas do Mar do Norte. Em um local aproximado de onde Wintervale criou o redemoinho, o naufrágio balançava nas ondas agitadas, mas felizmente sem corpos – ou partes de corpos. E nenhum carro blindado circulava acima, pronto para voltar o olhar para a costa de Norfolk. Lobo do mar. Esse era o nome do skimmer atlantes, pintado em grego – ΛΑΒΡΑΞ – letras brancas contra o acinzentado do casco13. O navio Em diversos pontos na história de Atlantis, seus governantes tentaram instalar o Grego Clássico, a linguagem, supostamente da mítica Atlantis antiga, como a língua oficial do reino. O último rei de Atlantis emitiu um edital de que toda comunicação oficial, escrita e falada, deveria estar em grego. A ineficiência e falta de comunicação causada por esta política não desempenhou nenhum papel na queda do seu império. Um dos legados desses episódios variados de Helenização foi que os navios atlantes, tanto da marinha de guerra quanto da marinha mercante, tendiam a ter nomes gregos. 13

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afundou tão rápido que a tripulação provavelmente não teve tempo de transmitir um sinal de socorro. Uma batida silenciosa chegou à porta. Ela se virou para ver Titus entrar no quarto. — Como ele está? — Ele perguntou. — Não sei, — Kashkari respondeu, deixando de lado seu livro. — Ele disse que foi algo que comeu, não é? Mas o estômago não parece incomodá-lo tanto quanto eu posso dizer. Por outro lado, ele está suando e seu pulso está errático. Titus olhou para Iolanthe e seu mal-estar voltou. Kashkari pode não ver, mas Titus estava abalado. Não, atingido. Ela se lembrou de quando a Inquisidora sugeriu que a mãe dele apenas o usava para satisfazer suas próprias necessidades megalomaníacas. Titus pegou o pulso de Wintervale. — Vocês querem um pouco de ar fresco? Podemos pedir para uma empregada ficar com ele um pouco. — Estou bem, — Kashkari respondeu. — Sempre posso abrir a janela se eu precisar de um pouco de ar. — Eu irei com você, — Iolanthe disse. Titus abriu o caminho. Eles foram por um caminho que contornava o penhasco para uma borda debaixo de uma saliência, que não podia ser vista da casa. O mar aumentou abaixo – as nuvens de tempestade invadiam a costa, o vento salgado e frio insistente. Titus criou um círculo duplo à prova de som. Sem esperar que ela o indagasse, ele contou o que aconteceu com Wintervale em Grenoble: a armadilha estabelecida por Atlantis, a fuga da praça, a doca seca que lançou um navio diretamente no Mar do Norte, a fragata atlante que apareceu quase imediatamente depois disso. Ao longo da narrativa, sua voz permaneceu completamente plana. Não era assim que se contava uma história triunfante. Wintervale era um Por volta da época da Revolta de Janeiro, os navios dos reinos helenísticos reais foram conhecidos por pintar seus nomes no alfabeto latino, de modo a não ser levado por uma embarcação atlante e sabotado. – Trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião.

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inimigo jurado de Atlantis, e um menino cujo entusiasmo e amabilidade desmentiam um medo profundo de fracasso. Hoje, de frente para o momento mais perigoso de sua vida, perseguido pelo próprio inimigo que levara a família para o Exílio, ele saíra de uma situação que poucos poderiam. Titus deveria se alegrar por ter um novo aliado tão poderoso e, no entanto, ele parecia um homem condenado. Um medo desconhecido torceu dentro de Iolanthe. — Lady Wintervale deve ter atordoado Wintervale para mandá-lo para a segurança, — Titus disse. — Mas Atlantis o encontrou... E o resto você viu. — Se eu fosse Lady Wintervale, eu teria desativado o sinal de socorro do bote salva-vidas, — ela disse, tentando soar normal. — Isso foi provavelmente o que permitiu que Atlantis rastreasse Wintervale até aqui. A garganta de Titus se moveu. — Ela deveria ter se lembrado de fazer isso. Ele falou calmamente, mas a veemência em suas palavras era um soco no intestino. Ela poderia se segurar. — Há algo que você não está me dizendo. O que é? De repente, ele parecia abatido, como se estivesse viajando a pé por meses e meses, e dificilmente poderia ficar de pé. Ela levantou uma mão para apoiá-lo antes de perceber o que estava fazendo. — Apenas me diga. Não pode ser pior do que me deixar no escuro. Ele olhou para ela por um longo momento, como alguém que se afastaria logo. O medo a estrangulou. — Quando lemos o diário da minha mãe depois da minha Inquisição, você se lembra da entrada que mencionou que eu estaria em uma varanda, testemunhando algo que me agitaria profundamente? As palavras dele pareceram alcançá-la de uma grande distância, cada sílaba enfraquecida e estranha. Ela assentiu; seu pescoço rígido. Os

olhos

dele

estavam

nas

nuvens

de

tempestade

que

transformavam tudo no seu caminho em cinza e triste. — Eu sempre

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assumi que ela falava da varanda do meu quarto no castelo. Sempre que eu estava no castelo, depois do almoço eu me deitava e usava o Crucible – porque era o que ela viu na visão, eu acordando com a mão em um livro antigo que poderia ser o Crucible. E sempre pedi que Dalbert me acordasse as duas e quatorze, o tempo que ela especificou em sua visão. E assim foi no dia em que nos encontramos. Fui acordado às duas e quatorze. Saí para a varanda. E apenas um minuto depois, vi seu relâmpago. Por algum motivo, o fato de que ele tivesse programado o momento a encheu de horror. Ou talvez fosse a maneira como ele falava, como um autômato, como se pudesse simplesmente dizer as palavras fingindo que não tinham nada a ver com ele. Com eles. — Esta tarde, — ele continuou, — Acordei exatamente as duas e quatorze, e caminhei até a varanda. Ela olhou para ele. Será que, de alguma forma, bebera tanto conhaque na noite anterior quanto Kashkari? Ela estava instável em seus pés, e parecia ter cinzas e areia dentro da boca. — Você está querendo dizer que a visão da sua mãe, na verdade se referia a Wintervale e não a mim? Sua voz, fraca e fina, mal soou como ela mesma. Ele assentiu lentamente, ainda não olhando para ela. Sua voz tremia. — Você tem certeza? Ele ficou parado, sua expressão completamente em branco. No momento seguinte ele estava de joelhos, com a mão em seu rosto. O choque a queimou. Este era um menino que se manteve controlado até mesmo em uma Inquisição. Mas agora ele se despedaçava diante dela. Entorpecimento se espalhava por ela, triste e desajeitado. Ela não entendeu nada. Como Wintervale poderia ser o escolhido quando dependia de ela enfrentar os perigos, derrotar Bane, e manter Titus vivo por tudo isso? — Desculpe, — mal reconhecia as palavras de Titus. — Sinto muitíssimo.

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Ela apenas balançou a cabeça – e continuou balançando a cabeça. Este era o seu destino, o seu destino, e não um casaco velho que poderia ser passado para outra pessoa. Ele estava errado. Ele deve ter cometido um erro. — Mostre o diário de sua mãe, — ela disse. — Eu quero ler essas visões. *** Um minuto depois, o diário estava na mão dela. As palavras pareceram flutuar um pouco, mas ela examinou com uma determinação que sentiu quase frivolamente otimista ao lado de sua desesperança sombria. Quando ela encontrou o início da última entrada, ele disse: — Foi quando eu soube. Eu sorri hoje, quando acordei, porque eu estava sonhando com você. Pressão construiu atrás de seus olhos, uma dor que não ia embora. Ela continuava lendo. De repente, tudo fez sentido. Esta não é uma visão aleatória, este é o momento em que Titus se aproximará do seu destino. Tudo o que aprendi até agora sobre magias e magos elementares aponta para uma façanha reveladora que anuncia a chegada de um mago elementar extraordinário. O garoto que deveria ter sido o grande mago elementar da minha geração trouxe um vulcão morto á vida, a erupção visível por centenas de quilômetros. (Ele também teria morrido jovem de doença, mas Callista me informou confidencialmente que o então Inquisidor Hyas dissera a ela que não, a própria família do menino o matou, em vez de deixá-lo ser levado sob custódia do Inquisitório local). Isto é, provavelmente, o que Titus está testemunhando, a manifestação do grande mago elementar, como ele diz em uma visão diferente, seu parceiro para a tarefa.

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Ela estava completamente confusa. — Isso mesmo? Como você diz em uma visão diferente? Ela está falando sobre a conversa que tivemos no dia em que cheguei a Eton, quando me contou o que planejava fazer? A ironia poderia matá-la completamente. — Nunca encontrei a visão que ela mencionou. Iolanthe sempre considerou as visões da Princesa Ariadne com algo que se aproxima de admiração. A precisão e a quase estranha relevância abriram sua mente para a possibilidade de que ela pudesse estar destinada para algo maior do que uma posição como professora, e que poderia ter a responsabilidade de cuidar não apenas de si mesma e do Mestre Haywood, mas do mundo em geral. Então, foi com um sentido de desorientação que ela viu pela primeira vez o quanto as visões da Princesa Ariadne dependiam da ação de Titus para serem cumpridas. Anos atrás, ela leu algo que falava desse paradoxo de uma profecia que aconteceu porque – e só porque – aqueles que viram a profecia trabalhavam incansavelmente para que ela acontecesse. Qual era o termo para isso? — Criar a realidade, — ela disse. — O quê? — Você segue as profecias dela à risca para que elas se tornem realidade. Ele parecia desconfortavelmente defensivo. — Nunca se pode mudar o que já foi preordenado. Enquanto crescia, ela ouvira isso centena de vezes. Todos ouviam. — Não ficar no caminho de uma profecia não é o mesmo que desistir de toda a sua vida para que todos os detalhes da realidade correspondam ao que ela estabeleceu décadas atrás. — Eu não sei outra forma de fazer isso funcionar. Ele parecia tão derrotado, a parte de trás de sua garganta picava. O resto da entrada não ajudou sua causa, pois seguia se referindo ao Escolhido. — Não há nenhuma razão para que Wintervale tenha de me substituir. Nós podemos trabalhar juntos, nós três.

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— Mas minha mãe sempre especificou um parceiro, e apenas um parceiro. — Ela proibiu você de ter mais de um? — Não podemos abordar as visões dela com esse tipo de linguagem. Um vidente do calibre dela vem a cada quinhentos anos, e não teríamos conseguido nada se não fosse pela orientação dela. Ele poderia ser tão cínico, seu príncipe, e ainda assim sua fé na mãe dele era pura e corajosa. — Mas isso significa que você seguirá para Atlantis com Wintervale. — O pensamento fez seu sangue acelerar. — Então você estará praticamente morto. — Eu estou praticamente morto – tudo está escrito nas estrelas. Pensei... Pensei que eu teria você. — Seus olhos escureceram. — Mas não posso discutir com a força do destino. Ela agarrou o braço dele. — Eu também não tenho a força do destino ao meu lado? Foi sua mãe que escreveu as próprias palavras que me levaram a convocar meu primeiro raio. Você poderia estar morto hoje se eu não tivesse matado Bane no Crucible. Para não mencionar que eu nasci na noite da tempestade de meteoros – você não pode me dizer que a data de nascimento de Wintervale também foi falsificada. — Mas não foi minha mãe quem predisse o nascimento de um grande mago elementar naquela noite. — Tudo bem, então as datas de nascimento não importam. Mas lembre-se, Helgira no Crucible é exatamente como eu. Isso deve significar algo, certo? — Claro que sim. Mas você leu o que minha mãe escreveu... — Você está baseando tudo sobre os mais simples detalhes. Sua mãe não mencionou nenhum nome. Viu-me derrubar um relâmpago as duas e quatorze, em uma varanda. Não é o suficiente? Nossa parceria não vale a pena preservar? — Se a escolha fosse minha, você sabe que eu escolheria você mil vezes por dia. Mas esta não é minha escolha. Nada disso é minha escolha. Posso apenas caminhar pelo caminho que foi estabelecido.

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Ela o soltou, compreendendo tudo: o diário não era apenas as palavras da mãe dele. Para ele, era a mãe dele, a voz do próprio destino. E ele nunca desobedeceria a Princesa Ariadne, neste mundo ou no próximo. — Então esta é a minha despedida? — Não! — Ele pegou seu rosto. — Eu nunca poderia retirá-la da minha vida. Eu... Não diga, ela gritou em sua cabeça. Não diga. — Eu amo você, — ele disse. De uma só vez, a tristeza dentro dela se transformou em raiva. Ela empurrou o diário para ele. — Você não me ama. Você amou uma conveniência – você amou que eu me encaixava em seus planos. Seus olhos estavam cheios de perplexidade ferida. — Como você pode dizer isso? — Como posso dizer isso? Como você pode dizer o que acabou de dizer? Quem foi que jurou que eu tinha um destino, que eu sempre tive um destino mesmo que não soubesse? Há apenas quinze dias você me disse que estava tão feliz que fosse eu, que não poderia fazer isso com mais ninguém? Mas você pode. Agora você diz, obrigado, mas não, obrigado, como se eu fosse uma empregada de cozinha prestes a ser substituída! — Iolanthe... Ele raramente a chamava pelo seu verdadeiro nome. A grande maioria do tempo, mesmo quando eles estavam sozinhos, ele se dirigia a ela como Fairfax, para nunca sair do hábito. — Não, — ela disse reflexivamente. — A menos que você esteja prestes a me dizer que está errado, não há nada que você possa dizer que eu queira ouvir. Ele segurou o diário no peito, seu rosto cinza. — Sinto muito. Perdoe-me. Depois de tudo o que passaram juntos, tudo o que foram um para o outro, era tudo que ele tinha a dizer? Ela se virou e se afastou.

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*** — Aí está você, — Cooper gritou quando Iolanthe entrou na casa. — Wintervale não está bem, Kashkari está de babá, e Sutherland está fazendo uma visita à casa de um vizinho. Eu estava aborrecido com minha própria companhia. O que você diz de um jogo de bilhar? Iolanthe não queria participar de um passatempo tão pacífico. Se apenas Cooper tivesse sugerido alguns socos de boxe – como uma maga elementar criada para canalizar sua raiva por meio da violência, ela tinha uma necessidade indescritível de esmagar seu punho no rosto de alguém. — Eu não sei como jogar, — ela disse à Cooper. — Eu te ensino. Ele parecia tão esperançoso que ela não tinha o coração para desanimá-lo. Titus deixaria Cooper emocionado dizendo que não, mas isso era porque Cooper considerava Titus como um semideus, poderoso e caprichoso, para não se importar. Já Iolanthe, Cooper considerava um amigo, e ele era muito mais sensível a como seus amigos o tratavam. — Lidere o caminho então, — ela disse. Chafurdar na miséria sozinha ou jogar um estranho jogo de não mago – qual era a diferença? As primeiras gotas de chuva atingiram as janelas quando eles chegaram à sala de bilhar, a qual cheirava à uma fumaça de charuto, o aroma embutido nas cortinas carmesim e no papel de parede azulardósia. Na rodada de Iolanthe, Cooper atuou como seu conselheiro, explicando ângulos e escolhas de tacadas. Quando ela encaçapou sua primeira bola, ele bateu palmas. — Muito bem, Fairfax. Logo você será tão bom na mesa como é em um campo de cricket. E um monte de sorte também ajudaria. Mas ela não disse nada. Na

vez

de

Cooper,

enquanto

ele

circulava

a

mesa

estrategicamente, ele perguntou: — Você realmente disse na noite passada que poderia nos deixar para o oeste americano? Sua mão apertou o taco. Ela não pensou absolutamente no que fazer consigo mesma agora que já não era necessária para o Grande

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Empreendimento. — Meus pais não são bons planejadores. Amanhã poderia ser um esquema bem diferente. — Se não quiser ir para o território de Wyoming, você poderia vir trabalhar na empresa do meu pai, — Cooper disse, com toda a esperança. — Talvez ser advogado não seja tão terrível se eu tiver um amigo próximo. E você seria um bom advogado – eu apostaria dinheiro nisso. Ela não sabia por que seus olhos se umedeceram de repente – talvez por sentir-se necessária. Isso era algo que ela não apreciara o suficiente: tão petrificante como era ser informada de que ela era a chave para a queda de Bane, havia sido, ao mesmo tempo, um enorme elogio. Ser identificada como tal significava que ela era especial, que sua existência importava. Agora, o oposto: que ela não importava e não era especial, e quaisquer ilusões de grandeza, eram apenas isso, ilusões. E ouvir isso do menino por quem ela arriscou sua vida mais de uma vez, viajou a metade da circunferência da Terra e com quem ia... Ela não podia suportar pensar na casa de campo da Rainha das estações, agora sem pétalas de flores. — Obrigado por essa oferta, — ela disse à Cooper, e agarrou brevemente o ombro dele. — É muito apreciada. Cooper parecia satisfeito e envergonhado. — Bem, pense nisso. Ela não podia. Qualquer tentativa de considerar de forma responsável e realista o futuro era como respirar na água, uma dor forte e indescritível que irradiava profundamente em toda cavidade de seu crânio. Era tudo o que podia fazer para manter-se calma, de modo que não queimasse involuntariamente a casa do tio de Sutherland. *** Todo suspiro era desanimador. Parte de Titus estava convencida de que ele estava sendo punido por ter sido muito feliz, por esquecer que as crueldades da vida nunca

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estavam longe. A outra parte era um prisioneiro enlouquecido, gritando nas masmorras, sem ser ouvido pelo mundo exterior. Quando a chuva começou realmente, ele voltou para o laboratório, para guardar com segurança o diário de sua mãe. Então saiu apressadamente, para que não fosse tentado a pegar o diário e atirá-lo pela sala. Por que ele deve desistir de Fairfax? Por que, se ele fosse um prisioneiro de seu destino, não poderia ter sua pequena janela, seu pequeno quadrado do céu azul acima? De volta a Baycrest House, ele permaneceu por um longo tempo do lado de fora da porta da sala de bilhar, ouvindo os sons nítidos de marfim se chocando e a explicação envolvida de Cooper sobre como ela deveria fazer sua próxima tacada. Como ele poderia fazê-la entender que ele precisava dela tanto quanto sempre? Mais, provavelmente, o mero pensamento de levar Wintervale ao Palácio do Comandante nas terras altas da Atlantis o fez querer se arrastar para um lugar profundo e escuro e nunca mais sair. Cooper começou a falar sobre planos para o semestre, outro torneio de tênis antes de ficar muito úmido para jogar no gramado, uma competição de xadrez para aquelas noites escuras e chuvosas, e o que Fairfax pensava de conseguir uma cobaia para limpar seu quarto? Titus quase sentiu o sofrimento dela enquanto Cooper falava. Ela teria desfrutado de todas essas coisas, incluindo a cobaia, em um momento diferente, quando Eton era seu refúgio e seu vínculo com a normalidade. Sem o seu destino, a escola era apenas um lugar com sanitários que não podia usar. Ele saiu então, porque não suportava a dor em seu próprio coração. Ele não queria ver Wintervale, mas foi em direção ao quarto de Kashkari; nada disso era culpa de Wintervale, quando era a Sorte que enganava todos eles. Um Kashkari preocupado passeava de um lado ao outro do lado de fora do quarto. — Qual o problema? — Titus perguntou.

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— Fui ao reservado. Quando voltei, Wintervale estava no chão, inconsciente. Ele disse que não conseguia lembrar o que aconteceu e não me deixou chamar um médico. Eu o levei para a cama e estava prestes a descer e perguntar se eu deveria desconsiderar seus desejos e chamar um de qualquer maneira. — Melhor não. A mãe dele desconfia de médicos que são estranhos para ela. Wintervale acredita nela nesse sentido. — Mas e se ele tiver uma concussão? — E o que um médico pode fazer se ele tiver uma concussão? — Titus tinha apenas o conhecimento mais rudimentar de medicamentos não mortais; ele esperava que estivesse correto aqui. — É verdade, — Kashkari admitiu. — Mas e a possibilidade de sangramento craniano? — Deixe-me vê-lo. Wintervale estava acordado. — Eu ouvi que você saiu da cama e caiu, — Titus disse. Wintervale parecia envergonhado. — Acordei e ninguém estava aqui, então eu pensei que poderia me levantar e me juntar a todos. Talvez estivesse fraco de fome. Titus duvidou disso. Wintervale mencionou magos caindo inconscientes em Grenoble. Ele estava na vizinhança; ele poderia muito bem ter inalado alguma coisa. — Fairfax pediu uma bandeja de chá para você mais cedo, — Kashkari disse. — Ainda há meio sanduíche de salmão e peixe defumado, e dois pedaços de bolo Madeira. Titus balançou a cabeça. — Não, nada mais forte do que uma simples torrada. Kashkari já ia para a porta. — Posso ir buscar uma na cozinha. — Você iria? — Wintervale disse com gratidão. Quando Kashkari partiu, Wintervale pediu ajuda de Titus para ir até o reservado. — Eu me lembro de você me contando no último semestre que Atlantis estava procurando por um mago que criou um relâmpago? —

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Wintervale perguntou enquanto se arrastava com a marcha de um ancião artrítico. — Ultimamente eu ouvi que eles ainda estão procurando. Ele manobrou Wintervale no reservado e esperou do lado de fora. Quando Wintervale terminou, ele sinalizou para Titus para voltar. — Por que exatamente Atlantis quer um poderoso mago elementar? — Eles nunca me disseram, e espero que você não precise descobrir. — Então... O que eu faço? — Wintervale parecia terrível. Você volta no tempo. Deixa a praça quando sua mãe lhe diz. Você nunca encontra os carros blindados. Nunca afunda navios Atlantes. E nunca destrói nada que importa para mim. — O que você quer fazer? — Titus disse com cuidado. Ele quase tinha certeza de que não parecia amargo. — Não sei. Não quero me sentar em casa e me acalmar. Não ouso pedir ajuda a nenhum exilado para encontrar minha mãe – ela sempre disse que havia informantes entre os exilados. Não sei onde o dinheiro está guardado e não conheço ninguém que não seja um exilado ou um Etoniano. — Atlantis me vigia na escola, — Titus disse, ajudando Wintervale a voltar à cama. — Então, se está tentando se esconder, a escola não é o melhor lugar para você. Posso emprestar umas economias para você ir a algum lugar. Que a Sorte o proteja, ele estava deliberadamente tentando afastar Wintervale. — Deixe-me pensar nisso, — Wintervale disse, mordendo os lábios. — Por um momento, fiquei muito feliz. Nós nos juntaremos à rebelião e, finalmente, eu teria um propósito. Mas agora... Não sei o que fazer mais. O peito de Titus se apertou, Fairfax poderia ter dito exatamente essas palavras. Kashkari entrou pela porta, carregando uma bandeja com uma xícara de chá e algumas fatias de pão torrado.

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— Você está bem? — Ele perguntou a Wintervale. — Não piorou, não é? — Não, — Wintervale respondeu. — Ainda não. *** A comida acabou por ser uma ideia desastrosa. Wintervale começou a vomitar quase no mesmo instante em que comeu o último de seu chá e a torrada. Então esvaziou todo o conteúdo de seu estômago no penico. E justamente quando eles pensavam que ele havia acabado, o vômito recomeçou, até que Titus estava certo de que deveria estar vomitando seu baço, e talvez seu apêndice também. Durante uma calma entre os episódios estomacais de Wintervale, Kashkari levou Titus para um lado. — Ele deve ver um médico. Se continuar assim, ele pode ficar perigosamente desidratado. — Posso ter algo que possa ajudá-lo, — Titus disse. — Deixe-me olhar na minha bagagem. Ele saiu do quarto e saltou para seu laboratório, onde havia milhares de remédios. O problema era que ele não era um médico treinado. Não sabia o que Wintervale tinha, e os remédios que ele tinha em mãos tinham aplicações bastante específicas. Ele eliminou aqueles que tinham a ver com gravidez, intoxicação alimentar, enjoo, e um excesso de consumo de álcool, mas isso ainda o deixava com dezenas de escolhas. Ele pegou alguns daqueles com maior probabilidade de ser útil e retornou ao leito de Wintervale. — Você carrega todos esses medicamentos com você para problemas de estômago? — Kashkari perguntou, soando impressionado e desconcertado. — Constituição delicada, o que posso dizer? Titus mediu uma colher de antídoto – ele começava a suspeitar que talvez a fragata atlante que seguira o navio lançado a partir da doca

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seca havia colocado algo na água, de modo que aqueles que pulavam do navio se encontrariam incapacitados. E talvez algumas daquelas ondas tenham atingido Wintervale quando o bote dele virou. Wiintervale engoliu o antídoto e ficou quieto por alguns minutos. Titus suspirou em alívio. Wintervale levantou e vomitou de novo. Titus praguejou e lhe deu um remédio destinado a doenças mágicas – talvez uma maldição tivesse sido dirigida especificamente a Wintervale. Wintervale vomitou sangue. — O que você está dando a ele? — Kashkari gritou. — Isso contém veneno de abelha, por acaso? Ele é alérgico ao veneno de abelha. — Estou dando a ele a medicina alemã mais avançada, — Titus replicou enquanto pegava um lenço e limpava o sangue do queixo de Wintervale. — E não contém veneno de abelha. — Pelo amor de Deus, não dê mais nada a ele. — Certamente você tem algo que vai funcionar, — Wintervale murmurou. Titus olhou o resto dos tubos. Vertigem. Apendicite. Queixa biliosa. Infecção relacional. Inflamação no revestimento do estômago. Expulsão de forasteiros. Ele escolheu o último, um elixir que deveria fazer qualquer substância prejudicial ao corpo desativar e ser expulsa. — Tente isso e reze com muita força. Eles não devem ter rezado com força suficiente, pois Wintervale imediatamente entrou em convulsão.

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Capítulo 11 O deserto do Saara

O vento uivava, tão forte quanto um furacão. Areia escondeu o céu e atacou a pessoa de Titus. Ele e Fairfax estavam de volta no mesmo local onde estiveram antes dela levá-los abaixo da superfície, e, felizmente, eles não se materializaram bem em cima de um Atlante. Mas Titus estava desorientado: ele pensava que os magos elementais de Atlantis teriam limpado o espaço aéreo dentro do círculo de sangue, a fim de facilitar a busca. — Estou fazendo isso, — Fairfax disse em seu ouvido. — Não queria que nos vissem. Exceto que agora, eles mal podiam ver além das mãos estendidas. — Deprehende metallum14, — ela murmurou. A varinha estava virada a trinta graus na sua mão. Ele olhou para ela – o feitiço dela tinha como objetivo detectar a presença de metal, e os únicos grandes itens metálicos próximos eram os carros blindados. Mas a ideia era apenas louca o suficiente para fazer sentido. E se ele lembrava 14 Detectar metais.

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corretamente, um carro blindado havia pousado apenas a uma curta distância. Ele desenhou um círculo de som e delineou um plano de ação para Fairfax. Ela ouviu; sua expressão grave. — Você pode pilotar um carro blindado? — Estou esperando que opere exatamente com o mesmo princípio que uma carruagem puxada por uma besta. Mas essa é a parte fácil. Ou, pelo menos, fácil em comparação com o problema de sobrevivência dela. Ela exalou lentamente. — Vamos fazer isso, então. Que a Sorte esteja com você. — Não precisa ser tão nobre e estoica. — Ele apertou a mão dela. — Guarde isso para quando você estiver realmente morrendo. O que poderia ser em poucos minutos, se tudo o que planejaram se revelasse inadequado para preservar a vida dela. — Serei tão nobre e estoica quanto eu quiser, — ela refutou, — Para que nos próximos anos você ainda fique com olhos marejados quando se lembrar daquela garota impossivelmente valente do Saara antes de voltar para a sua bebida. As palavras dela eram astutas, mas sua mão tremia na dele. De repente, a ideia de perdê-la tornou-se impensável. — E você então será uma velha desdentada que baterá na parte de trás da minha cabeça e gritará comigo para não dormir às dez horas da manhã. — Ele a puxou para ele e beijou a bochecha dela. — Você irá morrer, mas não hoje, não se eu tiver algo a dizer sobre isso. *** Eles se arrastaram debaixo do carro blindado mais próximo. No chão, o veículo se assemelhava a um pesado pássaro, agachado e despreocupado. Mas carros blindados nunca foram para elegância, apenas para destruição.

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Os ombros de Titus quase tocaram as botas de um par de soldados. Os soldados, apesar do equipamento de proteção, levantavam os braços para enfrentar a tempestade de areia enquanto Fairfax açoitava o deserto dentro do círculo de sangue em um frenesi ainda maior. Ele se esforçou para respirar devagar, controladamente – uma vez que fizesse seu primeiro movimento, não havia como parar até que ele conseguisse. Ou falhasse completamente. Ela colocou uma mão em seu ombro, sinalizando que a tempestade de areia era tão violenta quanto podia. Ele respirou profundamente e falou: Tempus congelet. Tempus congelet. O caos da cena proporcionou uma rara oportunidade de aplicar um feitiço de tempo em cada soldado Atlante. Isso dava a Titus cerca de três minutos. Ele e Fairfax saíram de debaixo do carro blindado, pegaram as varinhas dos soldados, as quais estavam na forma de um prisma octogonal, e se apressaram em direção à escotilha de estibordo do carro blindado. A abertura da escotilha era pouco visível, mas quando abriram duas pequenas tampas redondas e colocaram as varinhas atlantes nas aberturas protegidas, a escotilha abriu discretamente. O interior do carro blindado era adequadamente austero para um veículo de transporte militar, com aço em todos os lados e arestas de titânio. Titus aplicou o feitiço de tempo no piloto antes que pudesse se virar. Ele e Fairfax subiram no carro blindado e fecharam a escotilha. Imediatamente, ele aplicou o feitiço de congelamento do tempo nela. Um mago sob um feitiço de congelamento de tempo era imune à maioria dos feitiços e maldições; ele esperava oferecer essa proteção extra contra o círculo de sangue. Caso contrário, pelo menos deveria atrasar a reação dela por alguns minutos. Ele a amarrou em um dos arneses anexados à fuselagem e correu para o piloto, esquivando-se das alças de mão que pendiam do teto. A

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varinha do piloto já estava encaixada em uma abertura octogonal ao lado do assento. Na frente do piloto, levantando-se de aberturas no chão, havia um conjunto de rédeas. Titus afastou as mãos do piloto, pegou as rédeas e as sacudiu. O carro blindado subiu, silencioso, exceto pelo assalto implacável da tempestade de areia. Ele encostou e virou o nariz do carro blindado. O lugar onde Fairfax havia sinalizado sua localização estava na borda oriental do círculo de sangue. Ele levou o carro blindado para o sudoeste. Um

olhar

para

trás

mostrou

Fairfax

imóvel,

parecendo

perfeitamente normal para alguém sob um feitiço de congelamento do tempo. Agora era uma questão de sorte. Ele levou o carro blindado até sua velocidade máxima, usando o relógio perto do assento do piloto para medir a quantidade de tempo que tinha. Em um minuto e quinze segundos em seu voo, ele puxou fortemente as rédeas. A carruagem parou de repente e o teria jogado contra as janelas, se não tivesse se segurado no piloto preso. Ele correu para trás, abriu a escotilha, tirou Fairfax e a deixou cair no chão. Então fechou a escotilha, virou o veículo e voltou correndo para o círculo do sangue, usando os medidores no painel para retraçar seu caminho exatamente. Ao chegar, estacionou o veículo no mesmo sentido em que estava antes, saltou, fechou a escotilha, devolveu as varinhas aos soldados e desmaterializou. Mas quando chegou ao local no deserto onde deixou Fairfax, ela havia desaparecido sem deixar vestígios.

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Capítulo 12 Inglaterra

Titus entrou no laboratório e extraiu um frasco de grânulos, cada um valendo o peso em ouro. Panaceia. Quando ele voltou para Baycrest House, Kashkari estava se esforçando para evitar que Wintervale engasgasse com sua própria língua. Titus segurou a cabeça de Wintervale e de alguma forma conseguiu forçar uma dose dupla de panaceia pela garganta dele. Quase imediatamente, a convulsão de Wintervale diminuiu para meros tremores. Gotas de suor apareceram na testa e no lábio superior dele. Ele ofegava, mesmo quando um pouco de cor voltou ao rosto. Dentro de dez minutos, ele caíra em um sono exausto. Kashkari limpou o suor de sua própria testa. — Agora que a medicina alemã funcionou, eu não me importo de ficar ao redor. Titus olhou para o relógio – eles precisavam voltar para a casa da Sra. Dawlish antes das luzes serem apagadas. — É melhor levá-lo para a

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estação ferroviária, — ele disse ainda ofegante depois da confusão, — Ou vamos perder o nosso trem. Kashkari agarrou a parte de trás de uma cadeira, também respirando pesadamente. — Nós temos essas costas fortes – carregá-lo é a menor de nossas preocupações. Só espero que o movimento do trem não o faça passa mal. — Ele ficará bem, — Titus disse. Wintervale tinha panaceia suficiente nele para sobreviver a uma maldição de execução, quanto mais por um pouco de chacoalhar de um vagão de trem. — Peço a Deus que você esteja certo, — Kashkari disse. — Por favor, Deus. *** Iolanthe compartilhou um compartimento ferroviário com Cooper e Sutherland, onde jogaram um jogo de vinte e um, apostando halfpennies15 no resultado de cada mão. No compartimento seguinte, os outros três meninos mantiveram um silêncio ininterrupto. Antes de embarcarem no trem, o príncipe a afastou e a avisou que Wintervale estava sob o efeito da panaceia. Ela assentiu e caminhou até Cooper. Vinte e um era o jogo de cartas não mago mais fácil que ela já havia jogado, já que só precisava se preocupar com os números em suas cartas, vindo a somar o mais próximo possível de vinte e um, sem poder ser mais. Mas mesmo assim, ela implorou novas rodadas depois que eles mudaram de trem em Londres. Deixando o compartimento, ela ficou no corredor, olhando pela janela a periferia da cidade passar, lâmpadas de rua e janelas iluminadas cada vez mais escassas à medida que se dirigiam para o campo.

15 Um tipo de moeda britânica utilizada de 1672 a 1967.

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A porta do próximo compartimento foi aberta e fechada. Seu coração torceu. Mas a pessoa que veio ficar perto dela não era Titus, mas sim Kashkari. — Sinto muito por saber que você pode nos deixar, — ele disse. Ele falava sobre os Fairfax’s e a pecuária no território de Wyoming. — Tudo o que eu queria era que tudo continuasse como antes. Mas as mudanças vêm e não consigo detê-las. — Ela olhou para ele. — Você sabe como é. Kashkari sorriu fracamente. — No meu caso, era mais como, Cuidado com o que você deseja. Eu sempre quis conhecer a garota dos meus sonhos. — Amor à primeira vista, hein? — Mais como espanto à primeira vista. — Ela é bonita assim? Kashkari tinha um olhar distante em seus olhos. — Sim, ela é, mas eu sempre soube como ela era. Fiquei chocado ao vê-la em carne e osso, quando e onde eu menos esperava. Eles devem ter passado por uma igreja; o som dos toques foi apenas audível acima do rumor do trem. Iolanthe se perguntou, meio desesperada, se havia algo mais para ela dizer do que sinto muito. Ela realmente se sentia terrível por ele – e desejou ter melhor conforto para oferecer do que uma frase que não tinha muito significado. Então ela olhou para Kashkari. Eu sempre soube como ela era. A garota dos sonhos. — Quer dizer que você a viu literalmente de noite, enquanto estava dormindo? Kashkari suspirou. — Exceto que meus sonhos não me informaram que ela estaria noiva do meu irmão. Kashkari falava sobre sonhos proféticos? — Lembra-se do último semestre, quando você me disse que um astrólogo recomendou que você frequentasse a Eton? Meu conhecimento da astrologia é muito superficial, mas o suficiente para saber que as estrelas raramente dão tais especificidades. O astrólogo estava interpretando um sonho para você em vez disso?

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— Boa dedução. Sim, ele estava. — O que você viu? — No primeiro sonho eu andava por Eton. Eu não sabia onde estava, mas após ver o mesmo sonho algumas vezes, perguntei ao meu pai sobre esta escola em uma cidade com um rio inglês, com as muralhas de um castelo visível à distância. Desenhei para ele o esboço do castelo. Ele não o reconheceu, mas quando mostrou a um amigo que esteve na Inglaterra várias vezes, o amigo reconheceu, e disse que parecia o Castelo de Windsor. Não fui ao astrólogo com esse sonho – pensei que simplesmente significava que algum dia eu visitaria a área. Mas então eu comecei a ver um sonho diferente, de me vestir com estas roupas estranhas, não indianas, e olhando no espelho. Descobrimos que a roupa era o uniforme de Eton. Foi quando consultamos o astrólogo, que disse que minhas estrelas proclamavam que eu passaria a maior parte da minha juventude longe de casa. Após a consulta, minha mãe se virou para mim e disse: — Acho que agora sabemos para onde você vai. — Isso é... Um pouco surpreendente, — Iolanthe disse bastante espantada. Ela não sabia que os não magos sonhavam assim com o futuro, mas era ter mente estreita pensar que apenas os magos pudessem entrar no fluxo do tempo, já que as visões não tinham nada a ver com a magia elementar ou sutil. — Parece misterioso, então não falo sobre isso com todos. Quero dizer, as pessoas aqui são gostam muito de sessões espíritas, mas ainda assim. — Eu entendo, — Iolanthe disse. Eles se aproximavam de Slough quando ela se lembrou de perguntar: — Então... Isso significa que você não estava apaixonado pela garota dos seus sonhos, só que você continuou a vê-la? Ela esperava tanto pelo amor de Kashkari. — Bem que eu queria. — Kashkari suspirou. — Eu estive apaixonado por ela minha vida toda.

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*** Titus bateu na porta de Fairfax. — Você está aí, Fairfax? Um longo silêncio decorreu antes de sua resposta vir. — Sim. Uma parede alta em forma de resposta. Sim, estou aqui, mas você não é bem-vindo. Era quase a hora de apagar as luzes na casa da Sr. Dawlish. Um último lote de meninos saía do lavatório. Hanson perguntou se alguém viu seu dicionário de grego, o que levou Rogers a correr para o seu quarto e obtê-lo. Sutherland, cujo quarto estava em frente a Cooper, pediu que Cooper abrisse a porta; quando Cooper abriu, um par de meias passou voando pelo corredor junto com um, — Você deixou suas meias no meu quarto de novo! Ela adorava isto: a normalidade e a tolice de tantos meninos espremidos em quartos apertados. Titus apoiou a mão contra a porta dela e desejou poder forçar o tempo a retroceder. — Boa noite, — disse, odiando a futilidade de tudo. Ela não falou nada. No final do corredor, Kashkari emergiu do quarto de Wintervale – apesar da confiança de Titus de que a condição de Wintervale não pioraria enquanto ele dormia, Kashkari escolheu permanecer ao lado de Wintervale. Titus andou até Kashkari. — Como ele está? — Na mesma. Dormindo profundamente, sinais vitais fortes... Tanto quanto posso dizer. — Kashkari hesitou um momento. — Você tem certeza absoluta de que não lhe deu nada com veneno de abelha como ingrediente? — Sim, tenho certeza, — Titus disse; não se preocupando se Kashkari acreditava nele. — Boa noite. Sua cabeça latejava enquanto caminhava mais uma vez em seu laboratório depois das luzes serem apagadas. Ele tinha uma faixa de desmaterializar

de

cinco

quilômetros

de

uma

vez,

e

nunca

desmaterializara o suficiente para estabelecer um limite superior para

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uma faixa diária pessoal. Mas, com todas essas viagens ao laboratório nas últimas vinte e quatro horas, ele se aproximava dessa fronteira. Ele trouxe consigo todos os remédios que retirou do laboratório: a panaceia e a miscelânea de remédios que dera com muita dificuldade a Wintervale. Titus preferia ser organizado – ele tinha muito pouco tempo para perder com desorganização, mas essa noite ele não conseguia lidar com a simples tarefa de arrumar os remédios, além de guardar os frascos em uma bolsa e empurrá-la para uma gaveta vazia. A

panaceia,

no

entanto,

não

poderia

ser

tratada

tão

descuidadamente. Aquele frasco em particular ele colocou no seu lugar perfeito, na bolsa de emergência que ele preparou para Fairfax. Ele seguiu os dedos pela alça da bolsa, um dos lugares onde havia deixado as mensagens escondidas para ela. É melhor apagar as mensagens que não tratavam de sua tarefa, mas com sentimentos que eram mais fáceis de escrever do que falar em voz alta. Mas ele não queria; seria quase como apagá-la indiscriminadamente de sua vida. Exaustão o inundou, não apenas a fadiga, mas a perda de esperança. Ele tomou uma dose de auxiliar de desmaterialização para ajudar com sua dor de cabeça, sentou na longa mesa de trabalho no centro do laboratório, e abriu o diário de sua mãe. Era o professor mais cruel que conhecia, mas permanecia sendo seu único guia confiável em uma paisagem sempre em movimento. 25 de fevereiro, AD 1021 Odeio visões de morte. Odeio especialmente visões de morte daqueles que eu amo. Titus quase fechou o diário. Ele não queria lembrar os detalhes de sua morte, detalhes que a tornavam real e inescapável. Mas não podia deixar de ler.

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Ou, na verdade, uma morte que aflige alguém que eu amo. Mas suponho que não haja como contornar isso. A morte vem quando lhe agrada, e os sobreviventes sempre devem sofrer. Ele exalou. Não era sua morte. O que era então? Nevoeiro, de um tom amarelado e espesso, como se manteiga tivesse caído na terra. Alguns segundos passam antes de eu distinguir um rosto no nevoeiro. Reconheço imediatamente como pertencente a Lee, querido filho de Pleione. Wintervale. Ele ainda é um menino novo, mas vários anos mais velho do que é agora, olhando por trás de uma janela fechada, o nevoeiro denso e deslocador que parecia empurrar contra o vidro, procurando uma maneira de entrar. Ele está em um quarto. Dele, talvez. Não posso dizer, pois está decorado com uma grande quantidade de cores escuras, em um estilo estranho aos meus olhos. Não há sons dentro ou fora da casa. Começo a pensar que esta pode ser uma visão silenciosa até que ele sussurra audivelmente, um som muito melancólico, muito carregado com a perda e anseio para uma criança tão jovem, uma criança que deveria não ansiar por nada. Um grito quebra o silêncio. Lee recua, mas corre para a porta de seu quarto e grita: — Você está bem, Mamãe? Ele é respondido por outro som penetrante. Ele corre em um corredor – é uma bela casa, tenho certeza, mas parece ser muito pobre e apertada para alguém com a fabulosa riqueza do Barão Wintervale. Agora ele está em um quarto maior e mais ornamentado. Pleione jogou-se sobre o corpo do marido. Ela soluça incontrolavelmente.

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— Mamãe? Papai? — Lee fica perto da porta, como se tivesse medo de se mover. — Mamãe? É papai... Pleione treme – Pleione, que sempre foi tão composta, tão no controle de si mesma. — Desça as escadas e diga a Sra. Nightwood que o leve à casa de Rosemary Alhambra. E quando você chegar lá, peça a Srta. Alhambra para vir e trazer o melhor médico que ela possa encontrar entre os Exilados. Lee permanece onde está. — Vá! — Pleione grita. Ele corre; seus passos ecoando pelo corredor. Pleione volta para o marido inerte. Ternamente, ela segura o rosto dele e beija seus lábios. Sua mão se aproxima e levanta o cabelo na têmpora. Eu engasguei quando vi o ponto vermelho na têmpora dele, o sinal revelador da maldição de execução. Então era verdade. A causa da morte do Barão Wintervale foi divulgada como um ataque do coração, mas o rumor circulou durante anos que ele havia morrido de uma maldição de execução ordenada por Atlantis. Ele deveria estar morto por horas, dado o tamanho em que o ponto vermelho ficou. Quando Lee retorna com Rosemary Alhambra e um médico competente, o ponto – e seu gêmeo na outra têmpora – desaparecera completamente. O olhar de Pleione ficou duro. Ela segura a mão sem vida. — Talvez os Anjos tenham misericórdia. Mas eu não terei. Não vou esquecer e não vou perdoar. E então ela colapsa novamente sobre ele e chora. Minha visão acabou por lá. Saí para ver Titus brincando sozinho, traçando um pequeno galho na superfície de um viveiro de peixinhos. Eu me apressei e o abracei forte. Isso o surpreendeu, mas ele me deixou continuar abraçando-o por muito tempo.

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Eu me perguntei por que, na minha visão do funeral da Baronesa Sorren, este foi tão pouco assistido. É verdade que ela era mais admirada do que amada, mas ela emana uma consideração tão extraordinária que eu sempre achei o vazio de seu funeral tão perturbador quanto ameaçador. Agora eu entendi. Esse nosso levante vai falhar. Poucos se atreverão a vir e prestar seus últimos respeitos à Baronesa de Sorren porque ela será executada por Atlantis. E Baron Wintervale, por enquanto ele pode escapar, entretanto, em pouco tempo, ele também sucumbirá à vingança de Atlantis. E eu, e eu? Se nosso esforço colapsar, o segredo do meu envolvimento será revelado? Em caso afirmativo, quais seriam as consequências? — Quer vir alimentar os peixes comigo, mamãe? — Perguntou Titus. Beijei o topo da cabeça dele, minha doce e maravilhosa criança. — Sim, querido. Vamos fazer algo juntos. Enquanto ainda podíamos. Titus se lembrou daquela tarde. Eles não apenas alimentaram os peixes, mas jogaram vários jogos de cerco e foram para uma longa caminhada nas montanhas. Ele se sentiu bastante atordoado – não era frequente que ele fosse o destinatário da atenção total de sua mãe. Mas, sob seu prazer, havia uma sensação de morte. Que de alguma forma tudo poderia ser tirado dele. Foi tirado, apenas algumas semanas depois. E agora novamente, tudo o que lhe importava foi arruinado. Nada e ninguém afastará você de mim, disse Fairfax. Nada e ninguém, exceto a mão forte do próprio destino. *** Parecia que Iolanthe não havia nem piscado, mas de manhã ela acordou repentinamente. Estava escuro lá fora. Ela pediu um pouco de fogo para que pudesse ver a hora. Dez minutos para às cinco.

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A ironia. Este era o horário em que ela acordava diariamente no último semestre. Com os olhos meio fechados, ela vestia suas roupas e ia ao quarto de Titus, onde ele já teria uma xícara de chá esperando por ela. Dava pequenos goles e entrava no Crucible, para treiná-la até os limites de sua resistência. Enquanto esperavam a conclusão da nova entrada ao laboratório – ele não ousou mais guardar o Crucible na escola – o treinamento ainda não havia começado neste semestre. Mas ela sabia que seria mais árduo. Porque ganharam uma batalha e não a guerra. Porque a estrada ainda era longa. E agora seus caminhos divergiram e o dela correu direto em uma parede. Ela balançou as pernas ao lado da cama e deixou cair o rosto em suas mãos. Como deixar de ser a Escolhida? Como voltar a uma vida comum quando ela veio de todo o coração a acreditar que era o sutentáculo sobre o qual as alavancas do destino giravam? Ela se lavou, vestiu-se, tomou uma xícara de chá, e sentou à mesa para memorizar os versos latinos que foram designados na aula, todo o tempo sentindo-se como uma atriz no palco, realizando uma sequência de ações coreografadas. Eu vivo por você, e somente por você. Estou tão feliz que seja você. Não posso enfrentar essa tarefa com ninguém mais. Como facilmente essas declarações tão fervorosas perderam todo o significado, como as folhas verdes do verão, que são frágeis e sem vida com o início do inverno. Ele a amava porque ela era a parte mais importante de sua missão. Agora que não era mais, ela foi descartada como o jornal de ontem. Ela mal podia respirar pela agonia em seu peito. E o terrível era que seu coração – e sua mente – entenderam que ela foi descartada, mas seu corpo não. Seus nervos e ossos desejavam estar dentro do Crucible, lutando contra dragões, monstros e magos sombrios. Ela não conseguiu impedir que seus dedos mexessem

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inquietos contra a borda da mesa. E a cada dois minutos, ela pulava da cadeira para andar pelo quarto que se tornou uma prisão. Parecia que o amanhecer nunca chegaria e nenhum dos meninos acordaria. Ela respirou com grande alívio quando ouviu passos e uma batida em algum lugar pelo corredor. Mas a hesitação veio sobre ela enquanto segurava a maçaneta da porta. E se fosse Titus? Ela abriu a porta. Era a Sra. Dawlish e sua segunda em comando, a Sra. Hancock, que

também

era

uma

enviada

especial

do

Departamento

de

Administração de Atlantis. A porta de Kashkari abriu no mesmo instante. — Bom dia, Kashkari. Bom dia, Fairfax, — a Sra. Dawlish disse sorrindo. — Vocês acordaram cedo. — Aqueles versos não se memorizam sozinhos, — Iolanthe respondeu, injetando em sua voz um ânimo que não sentia. — E bom dia para você também, senhora. Bom dia, Sra. Hancock. — Ouvi do vigia noturno que Wintervale teve que ser levado para a casa quando vocês voltaram ontem à noite. — A Sra. Dawlish balançou a cabeça. — Exatamente quais atividades saudáveis vocês estavam fazendo na casa do tio de Sutherland? — Nadando em águas geladas o dia todo e cantando hinos ao redor da lareira toda a noite, senhora, — Iolanthe disse. — Mesmo? — A Sra. Hancock perguntou com uma sobrancelha levantada. — É isso mesmo, Kashkari? — Perto o suficiente. — Kashkari saiu no corredor, com sua túnica e calças brancas de pijama. — Mas Wintervale não chegou até a tarde de ontem. Algo que ele comeu na viagem não fez bem a ele. Sra. Hancock abriu a porta de Wintervale, entrou e ligou a lamparina na parede. A Sra. Dawlish entrou atrás dela. Kashkari e Iolanthe trocaram um olhar e seguiram o exemplo.

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Wintervale dormia, profundamente e pacificamente. A Sra. Hancock teve que sacudi-lo várias vezes antes que abrisse um olho. — Você. Então ele voltou a dormir. Sra. Hancock o sacudiu de novo. — Wintervale, você está bem? Wintervale grunhiu. Sra. Hancock se virou para Iolanthe e Kashkari. — Esse é um tipo estranho de doença estomacal, não é? — Ele estava pior na noite passada, vomitando as tripas, — Kashkari respondeu. — O príncipe deu-lhe algum remédio preparado pelo médico da corte de... A... — O principado de Saxe-Limburg, — a Sra Dawlish disse utilmente. — Certo, obrigado, senhora. Imagino que o medicamento provavelmente era principalmente de ópio e Wintervale apenas deve dormir. — E eu imagino que o Sr. Doktor von Schnurbin não ficaria satisfeito por você discutir abertamente os ingredientes secretos de seus melhores remédios, — veio a voz do príncipe da porta. Iolanthe sentiu-se asfixiada. Enquanto permanecesse em Eton, ela teria que desempenhar o papel de amigo de Titus. Mas agora não havia mais fundamento para a amizade deles: o destino compartilhado era o grande vínculo; sem isso, ela não era nada senão um erro que ele cometeu em algum lugar ao longo do caminho. — Bom dia, Sua Alteza, — a Sra. Dawlish disse. — Não duvido que seus remédios tenham feito Wintervale melhorar, mas ele precisa ser examinado por um médico. Iolanthe olhou para a Sra. Hancock. A Sra. Hancock sabia quem era Wintervale. Provavelmente, ela sabia que Lady Wintervale nunca consentiria que ele fosse examinado por um médico não mago. Mas Sra. Hancock parecia satisfeita em permitir que a Sra. Dawlish se encarregasse disso.

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— É melhor enviar um telegrama para a mãe dele, então, — o príncipe disse. — Ela enviará seu médico particular... Os Wintervales são muito seletivos na escolha dos médicos. E peça que uma das criadas fique com ele, caso ele precise de algo. Sra. Dawlish não teve objeção ao seu tom imperioso, mas ela foi bastante firme em sua própria resposta. — Esse médico particular deve chegar pela manhã, o mais tardar. Somos responsáveis pelo bem-estar de Wintervale enquanto ele estiver sob nosso teto, e essas coisas não podem esperar. Agora, rapazes, se preparem para a aula da manhã. A Sra. Dawlish e a Sra. Hancock partiram. Kashkari bocejou e voltou para seu quarto. — Fairfax, — o príncipe disse. Ela o ignorou, passou por ele até sua própria porta e a fechou. Uma leve luz começava a passar pela cortina. Ela pegou uma lata de biscoitos e caminhou até a janela. Outro dia estava começando. Um nevoeiro parecido com vapor ondulava perto do chão, mas o céu estava claro, e logo um sol nascente lançaria um matiz dourado avermelhado sobre o topo das árvores. O mesmo bosque de árvores de onde ela olhara com saudade para a janela deste quarto, exatamente antes de deixar o príncipe, porque não queria nada com suas ambições loucas. Ela entrecerrou os olhos. Havia pessoas nessas árvores ou seus olhos estavam brincando com ela? Ela abriu a janela e inclinou-se para fora, mas agora ela podia ver apenas troncos, ramos e folhas que, em grande parte, ainda se agarravam às lembranças do verão, com apenas alguns se tornando amarelos e carmesins aqui e ali. Quando ela era pequena, todos os meses de outubro, o Mestre Haywood a levava para ver as cores do outono em Upper Marin March, onde setembro e outubro tendiam a ser claros e ensolarados. Eles ficavam em uma pousada com um lago e acordavam todos os dias para o esplendor do nascer do sol e ver a folhagem acobreada refletindo nas águas brilhantes como espelho. Mestre Haywood.

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Mestre Haywood. Ela pensava nele o tempo todo, é claro, mas de uma forma melancólica, como os astrônomos que desejavam as estrelas que não podiam alcançar. Mas o Mestre Haywood não estava longe dela pela vastidão do tempo e do espaço; ele só estava escondido. Culpado por ser responsável por ela. Se ela quisesse o suficiente, ela teria desenterrado algumas informações úteis até agora. Exceto que ela, convencida de seu propósito maior, não deu um único passo para localizá-lo. Ela saiu do quarto e bateu na porta do príncipe. — Fairfax! — O brilho de uma esperança cautelosa nos olhos dele fez seus pulmões doerem. Ele avançou como se quisesse tocá-la, mas se deteve. — Por favor, entre. Ela entrou no que foi um de seus lugares favoritos. — Chá? — Ele já estava se movendo em direção à grelha. Ela se endireitou. — Não, obrigada. Quero apenas perguntar se a nova entrada para o laboratório já está pronta. Ele parou. — Estará nesta tarde. — Está tudo bem se eu fizer uso dela? Preciso procurar algumas coisas na sala de leitura. — Sim, é claro. Você é mais do que bem-vinda. A qualquer momento. Aquele resíduo de desespero era dela, ou dele? Ela apertou as mãos atrás das costas. — Isso é muito amável da sua parte, Sua Alteza. Obrigada. — Há algo mais que eu possa fazer por você? — Não, obrigada. Ele olhou para ela. — Tem certeza? — Sim, tenho certeza, — ela se obrigou a dizer. Ela voltou para seu quarto e se inclinou por um minuto contra a porta. Então foi isso que aconteceu, essa cortesia rígida, como a de um casal divorciado que ainda deve lidar um com o outro.

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Com ela sendo a pessoa que não encontrou mais ninguém, é claro.

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Capítulo 13 O deserto do Saara

Titus girou ao redor, o terror como uma adaga nos seus pulmões. Ele estava a cerca de seis quilômetros do círculo de sangue. Aqui, a verdadeira tempestade de areia era raivosa e a visibilidade era inferior a noventa centímetros. Uma bênção, pois eles não poderiam ter melhor proteção contra os perseguidores. Mas ele não podia encontrá-la, se ela tivesse se movido tão pouco quando... Uma mão agarrou seu tornozelo. Sua varinha estava apontada e um feitiço de ataque furioso estava prestes a deixar seus lábios quando percebeu que era ela. Ela se escondeu debaixo de uma camada de areia. Agachando-se, ele a pegou pelo braço e levantou-a. Ela mal estava consciente e ele podia ver manchas de sangue ao redor de seus lábios, mas ela conseguiu abrir seus olhos. — Você está bem? Antes que pudesse responder, ela vomitou um fluxo de sangue na areia.

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Ele dificilmente podia respirar pelo pânico que entrou em erupção dentro dele. Se a panaceia não pudesse mantê-la viva, então nenhum poder que ele possuía ajudaria. Ele segurou o rosto dela. — Vá dormir. Vá dormir e você ficará bem. Seus olhos fecharam e ela desmaiou. *** Não era possível fazer nada além de se abrigar. De um dos bolsos maiores do lado de fora da bolsa de Fairfax, Titus desenterrou uma barraca dobrada apertado. À medida que a areia voando a atingia, o material da tenda mudou de um verde indefinido para a mesma cor e opacidade da areia – uma barraca de camuflagem. Ainda melhor, poderia ser montada em várias formas, algumas delas imitações razoáveis de formações naturais. Ele se instalou em uma que parecia uma ondulação suave da terra, manobrou Fairfax para dentro, aproximou-se dela e selou a tenda por dentro. Suas costas novamente pareciam estar em chamas. Ele tomou mais remédios para dor e permitiu-se cochilar um pouco, revirando cada vez que ouvia o barulho da areia contra o metal – um carro blindado na vizinhança – depois cochilava novamente à medida que o perigo passava. Quando acordou bem, ele comeu meia barra de nutrição e fez um estudo completo sobre o conteúdo da bolsa. Além da farmácia bem abastecida, ela tinha quase tudo que um fugitivo poderia possivelmente precisar, incluindo uma jangada, lençóis de aquecimento, cordas de caça e rédeas que poderiam ser usadas em wyverns, perytons e vários outros corcéis alados. Cada item vinha com uma explicação sobre seu uso escrito em papel tão fino como a casca de cebola, e ainda tão forte como tela. Explicações excessivamente detalhadas, como se o escritor tivesse esperado que a sacola acabasse nas mãos de alguém muito menos capaz do que Fairfax.

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Foi quando ele progrediu para o menor compartimento da bolsa que suas sobrancelhas se elevaram. Varinhas civis atlantes, 2. Chaves do anjo, 6. Interruptor do destino do translocator para a plataforma central do leste de Delamer, 4. As varinhas civis atlantes foram emitidas pelo estado, cada uma numerada e registrada, usada como meio de identificação pessoal. As penas por relatar roubo, perda ou destruição acidental eram altas, a fim de desencorajar qualquer Atlante a possuir duplicatas. Mas duplicatas ainda apareciam periodicamente no mercado negro. Por outro lado, chaves de anjo, chamadas assim porque não havia portas que não pudessem abrir, eram muito mais raras e quase proibitivamente caras. E um interruptor de destino adaptado a um translocador específico – que não poderia ter sido obtido no mercado negro mesmo que se tivesse uma fortuna para gastar. Fairfax pretendia viajar para Atlantis por meios ilegais e, uma vez lá, passar-se como uma Atlante e... Não teria problema nenhum para abrir portas? Ele pegou a mão dela. Seu pulso latejava, lento e estável. A interrupção da tempestade de areia foi tão abrupta quanto a de uma tempestade de verão: inundando um momento, céu claro no outro. Ele soltou a mão dela e escutou por um bom minuto na abertura da tenda antes de se aventurar a sair para investigar. As estrelas estavam lá fora, brilhantes e inúmeras. Ele entrecerrou os olhos, à procura de manchas móveis em movimento no céu – sem areia voando, batendo contra eles, e assinalando suas posições, os carros blindados poderiam estar descendo logo acima dele, e ele poderia não saber. Mas por enquanto, nenhum perigo apareceu por cima.

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Suas opções eram notavelmente poucas. Ela não estava em forma para ser desmaterializada – em sua condição atual, desmaterializar por três metros poderia matá-la. Eles não tinham nenhum veículo e nenhum animal de carga. Ficar no lugar estava fora de questão: eles ainda estavam próximos do círculo de sangue. Quanto mais longe eles estivessem, menos provável seria que Atlantis os encontrassem. Ele se preparou para andar. *** O vento era cortante como gelo. As temperaturas caíram; o nariz e as bochechas de Titus estavam entorpecidas pelo frio. Sua túnica leve, no entanto, manteve-o aquecido. O capuz da túnica protegeu sua nuca e o topo da cabeça; as mãos ele manteve dentro das mangas, apenas retirando ocasionalmente para verificar o pulso de Fairfax. Ela flutuava no ar ao lado dele, as mãos enfiadas em suas próprias mangas, a maior parte da cabeça coberta por um lenço que ele encontrou, e um lençol de aquecimento envolvia as calças e botas, as quais eram feitas de material não mago. Na cintura havia uma corda de caça, amarrando-a a ele. Ela dormia pacificamente. A cada minuto mais ou menos, ele apontava a varinha para trás para excluir suas pegadas da areia. A cada trinta segundos, ele examinava o céu com um feitiço de longa distância. Ele seguia para o sudoeste. O primeiro esquadrão de carros blindados que avistou voou na velocidade máxima em direção ao nordeste, longe deles. O próximo esquadrão foi avistado de forma mais inconveniente vários quilômetros ao sul. Embora não estivesse exatamente no caminho deles, havia uma chance de que pudessem circular em volta e passar por cima deles. Ele caminhava há cerca de três horas quando viu picos rochosos saindo do chão, como pilares de um palácio arruinado. Ele virou na direção deles. Fairfax começava a afundar, o feitiço de levitação desaparecendo. A noite era sem lua, mas a massa de estrelas acima deu

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ao ar uma leve luminosidade; nas sombras escuras das colunas de rochas seria seguro para ele pousá-la e descansar por alguns minutos. Rapidamente seus pés já não afundavam polegadas a cada passo. Mas suas panturrilhas protestavam com uma tensão diferente: o solo estava subindo, devagar, mas inconfundivelmente. E os pilares da rocha, que à distância pareciam incrivelmente retos e uniformes, vistos de perto tinham formas em ziguezague, com vento, algumas com topos de pedra que se equilibravam precariamente em suas bases desgastadas pela areia. Fairfax agora flutuava não mais alto que nos seus joelhos, a bainha de sua túnica ocasionalmente escovava contra o chão. Ele queria que ela ficasse no ar até que estivessem dentro da formação rochosa. Mas ela estava afundando rápido demais para durar o resto da distância. Ele desatou a corda de caça que os conectava e a colocou no chão. A temperatura dela estava boa – sem hipotermia. O pulso também estava bom, lento, mas constante. Quando a persuadiu a acordar para beber um pouco de água, ela sorriu para ele antes de voltar a dormir. Ela estava sonhando? Sua respiração era profunda e regular. Nenhum franzir de testa ou vibração das pálpebras prejudicava a tranquilidade de suas feições, quase invisíveis, exceto pelo leve brilho na bochecha e no cume do nariz. Ela não parecia como uma rebelde que queria derrubar impérios. Ele teria imaginado que ela fosse uma estudante da academia superior, cujo tipo de competência e dedicação irritaria os colegas de classe, se não fosse por sua vontade de ajudá-los a se preparar para seus exames. Ele virou a mão dela na dele, olhando no escuro para a palma da sua mão, como se linhas que ele não conseguia ver delineassem os eventos que a levaram a esse tempo e lugar. Ele ergueu a mão para os lábios dele. No próximo momento, ele percebeu o que estava prestes a fazer e afastou a mão apressadamente, envergonhado. Outro feitiço de longa distância revelou que o que antes pensava ser um único esquadrão de três carros blindados no sul era, na verdade, três esquadrões diferentes. Agora que estava em um ponto de vista mais

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elevado, ele podia ver a luz inundando suas barrigas, iluminando o solo do deserto em seu caminho enquanto eles circulavam, procurando. Eles estavam se aproximando. Ele precisava mover Fairfax e ele mesmo para dentro da formação rochosa, ou seriam visíveis demais naquela luz fria e nítida. Provavelmente, havia outras criaturas que viviam dentro do abrigo oferecido pela formação rochosa. O orvalho da manhã que se juntava na parte inferior de pedras poderia fornecer umidade suficiente para manter uma criatura bem adaptada por dias. E onde havia lagartos e tartarugas, também haveria escorpiões e cobras. Seria melhor ele investigar o terreno, a fim de garantir que ele não a colocaria em cima de um ninho de víboras. Após deixar Fairfax sob uma cúpula de tração, ele se dirigiu para a formação rochosa. Sua respiração vaporizou. O chão debaixo de seus pés era escorregadio, uma camada de areia em cima da pedra dura. E acima, uma paisagem espetacular, a Via Láctea inclinada sobre o arco do céu, um rio luminoso e azul prateado de estrelas. Diante deste cenário, erguiam-se as colunas mais próximas da rocha.

No

topo

da

coluna

descansava

uma

rocha

bulbosa,

impossivelmente equilibrada. Ele parou e entrecerrou os olhos. Algo parecia estar balançando na rocha. Uma cobra? Uma dúzia de cobras? Seu sangue esfriou rapidamente. Cordas de caça. É claro que Atlantis colocaria cordas de caça em tal local, provavelmente em todos esses lugares em um raio de oitenta quilômetros, abrigos para os quais ele gravitaria quando percebesse quão difícil seria permanecer escondido ao ar livre. Ele parou bem a tempo. As cordas de caça começaram a mexer, sentindo seu movimento. Agora ele e elas estavam em um impasse. Se ele se mexesse, elas viriam atrás dele – e as cordas de caça gozavam de velocidade muito superior à de um mago a pé. Mas se não se movesse, ele e ela ficariam presos sob o olhar das luzes de busca dos carros blindados.

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Ele correu. Atrás dele, dezenas de cordas de caça caíram, um sólido baque após a outra. Seus pés ardiam; sua forte respiração enchia seus ouvidos. No entanto, ainda assim ele podia ouvi-las se arrastando, muito mais leves e mais rápidas do que qualquer cobra real. Ele entrou na cúpula de tração exatamente quando elas o alcançaram. Mas a segurança deles era temporária. Elas já estavam cavando. O chão embaixo do círculo era duro e compacto, mas ainda assim seria apenas uma questão de tempo antes de entrarem debaixo dele. Ele pegou a bolsa de emergência. Ao fazê-lo, a ponta de sua mão escovou algo longo e flexível. Ele pulou; um grito subindo em sua garganta antes de perceber que era a corda presa à Fairfax, sua corda de caça, e não estava prestes a atacá-lo. Um rápido feitiço de desatar e a corda se afrouxou de Fairfax, estendendo-se em três comprimentos. Ele pegou a corda e esfregou-a de ponta a ponta três vezes. — Traga de volta um escorpião. A corda disparou para fora da cúpula de tração na direção da formação rochosa. Todas as outras cordas de caça que escalavam sobre o círculo, ou tentavam cavar embaixo, foram atrás. O que se seguiu soou como se o chão fosse açoitado por uma dúzia de cavalos galopando. Sua corda de caça, enquanto perseguisse, não pararia de tentar alcançar seu objetivo, mesmo que fosse incomodada por duas dúzias de outras cordas de caça tentando pará-la e amarrá-la. A algazarra deveria atrair todas as outras cordas de caça na área, caso houvesse mais delas esperando, e manteriam a atenção longe dele. Ele segurou a mão de Fairfax em alívio. Apenas para recuar em alarme quando um raio de luz veio ao redor da formação rochosa, seguido por outro, e outro. Acima deles, silenciosos e escuros, carros blindados atravessavam a noite, como feras das profundezas.

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Capítulo 14 Inglaterra

Iolanthe está em pé na janela, espiando de um lado da cortina, quando o príncipe entrou em seu quarto. — O que foi? — Ele perguntou. — É possível que eu tenha visto alguém olhando a casa atrás das árvores pela manhã. Eu não podia ter certeza. — Eu não ficaria surpreso. No que diz respeito à Atlantis, eu ainda sou o único suspeito sobre o seu paradeiro. Se eu fosse eles, também me colocaria sob vigilância. Isso fazia sentido. Ela recuou da janela. — Vamos, então? Ele ofereceu o braço para que ela pudesse desmaterializar com ele. Ela mordeu o interior de seu lábio inferior: ela não o tocava desde que ele lhe deu a notícia de seu erro ao selecioná-la como seu parceiro. Mas essa era a vida: não importa quão dramática a fratura, em algum momento, as situações diárias se tornavam inúmeras e eles deviam continuar vivendo ao lado um do outro, jantando na mesma mesa

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todas as noites, e até mesmo, ocasionalmente, entrando em contato físico. Ela colocou a mão no antebraço dele e ele os desmaterializou para o interior de um pequeno edifício vazio, uma cervejaria fechada na propriedade de uma casa de campo. Aparentemente, não era incomum o mordomo de uma propriedade inglesa preparar sua própria cerveja, especialmente porque a bebida costumava figurar como parte da compensação dos empregados. Mas o dono atual da casa era um líder do movimento de moderação. Como resultado, o equipamento para a fabricação de cerveja foi desligado e a instalação fechada. Titus deu-lhe a senha e a contrassenha. Ela virou a tranca de uma porta de armário de vassoura e voltou ao laboratório pela primeira vez em meses. Parecia mais ou menos o mesmo: livros, equipamentos e ingredientes ordenadamente arrumados em prateleiras, com muitos armários e gavetas cujos conteúdos ainda não foram explorados, já que ela visitara com pouca frequência. Três vezes no total, de fato: a primeira vez no dia em que se encontraram; da próxima vez, quando ele a transformou em um canário; na terceira vez, no final do semestre de verão, pouco antes de viajarem para o Domínio juntos. Ela esteve transbordando com felicidade na última vez. Ambos estavam – eles superaram muita coisa e se aproximaram mais. Lembrouse de correr de mãos dadas com ele em direção ao laboratório, vertiginosa de esperança e sem medo. Foi uma época completamente diferente. — Fairfax, — ele disse suavemente. Ela virou. O olhar dela permaneceu por um momento. Ele parecia cansado; ela provavelmente estava pior. Ele colocou o Crucible na mesa de trabalho. — Aqui está. É seu durante todo o tempo que você precisar. Ele falou com tanto cuidado, como se ela fosse infinitamente frágil e uma palavra errada pudesse quebrá-la. Mas ela não era frágil – ela era

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uma convocadora de relâmpagos e chamas. Algum dia sua força transformará o mundo tal como o conhecemos, ele já havia dito. O que ela deveria fazer agora com toda essa força, todo esse poder? Guardá-lo como uma túnica que acabou de sair da moda? — E sinta-se livre para usar o laboratório a qualquer momento, — acrescentou, — Agora que você pode vir aqui facilmente. Com o tempo, ela poderia ficar menos amarga, mas agora, tudo o que ouvia era a oferta de presentes menores, como se isso pudesse compensar sua remoção da única coisa que ela realmente queria. — Obrigada, — ela disse, simplesmente. — É muito gentil da sua parte. Um silêncio desconfortável se seguiu. Ela mordeu o interior de sua bochecha, sentou à mesa de trabalho e colocou a mão no Crucible. — Eu vou, então. — Se você não se importa de eu perguntar, o que espera encontrar na sala de leitura? — A identidade da guardiã da memória. — Aquele que defraudou o Mestre Haywood. Iolanthe não tinha dúvidas de que a mulher estava envolvida em seu desaparecimento. Titus parecia alarmado. — Você não fará nada imprudente, não é? Ainda é você quem Atlantis está procurando. Apenas não era mais o que ele precisava. Todo o incômodo da vida em fuga e sem nenhuma satisfação para importar. — Não posso fazer nada precipitado até ter a informação, — ela disse. Mas ela não foi diretamente para a sala de leitura. Em vez disso, ela visitou A Princesa Dragão, um dos contos mais apocalípticos de todo o Crucible. Ruínas ardiam sob um céu flamejante, o ar era todo fumaça e cinza. No alto da muralha da última fortaleza em pé, meio ensurdecedora por gritos de dragões, ela convocou um relâmpago após o outro, espalhando pela terra queimada wyverns mortos e cockatrices inconscientes. Um mago elementar sempre era mais poderoso em um estado de turbulência emocional.

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O esforço a esgotou – ela nunca convocara tantos relâmpagos em tão pouco tempo. Sua fadiga a envolveu como um casulo, e a fez sentir segura, porque estava cansada demais para sentir. E foi assim que ela tomou a decisão de ir à casa de campo da Rainha das Estações. Era um lugar deslumbrante, telhados ocres e jardins em terraços contra o pano de fundo de um monte alto e escarpado. Flores vermelhas brilhantes floresciam em urnas de pedra que deveriam ter séculos de idade; as fontes salpicavam e borbulhavam, e alimentava uma lagoa da qual subiam dezenas de lírios d’água lavanda claro, suas pétalas se juntavam como mãos em oração. O ar era perfumado com o cheiro de madressilva, misturado com a nota residual e aquecida pelo sol da floresta de cedro que se espalhava nas colinas circundantes. A temperatura era a de um dia de verão perfeito, com bastante brisa que nunca era quente, mas também com calor suficiente para uma bebida fria ser agradável. Em um terraço sombreado por trepadeiras, essas bebidas já estavam dispostas, junto com uma variedade de sorvetes. Ela experimentou um que parecia pinemelon, e ficou chocada ao perceber sabores frescos explodindo em sua língua, que era de fato pinemelon, o qual há anos ela não provava, já que era uma especialidade da Sra. Hinderstone da loja de doces, na University Avenue, a poucos minutos do campus do Conservatório de Artes e Ciências Mágicas, onde ela e o Mestre Haywood viveram. Passos ecoaram. Ela se virou para ver Titus saindo das portas abertas da casa, prestes a subir os degraus que levavam ao terraço. Ele congelou quando a viu. Suas bochechas escaldaram; parecendo tão mortificado quanto ela se sentia. Após um interminável silêncio, ele apoiou a mão na balaustrada dos degraus e limpou a garganta. — O que você acha do sorvete? — Muito saboroso. — Ela conseguiu encontrar a voz. — Já experimentei o sabor de pinemelon da Sra. Hinderstone em Delamer.

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— Quando estive em Delamer neste verão, eu fiz que Dalbert me trouxesse alguns dos sorvetes da Sra. Hinderstone – já que você mencionou o lugar. Ela mencionou apenas uma vez, de passagem, quando eles estavam discutindo algo diferente. — Você gostou deles? — Sim, especialmente o sabor lumenberry. Mas o pinemelon também é bom. — Mestre Haywood sempre pedia o de lumenberry. Eu preferia o pinemelon. — Eu estava torcendo para um deles ser seu favorito, — ele disse calmamente. Do que ele havia contado, não era difícil modificar os detalhes em uma história dentro do Crucible: apenas necessitava escrever as mudanças na margem das páginas. Então não era como se ele tivesse furtivamente voltado ao Domínio e contrabandeado os sorvetes contra todas as probabilidades. Mas mesmo assim, algo flutuava em seu estômago, seguido por uma sensação de aperto em seu peito. Ele queria que tudo fosse perfeito. Isso teria sido. E teria sido. No seu silêncio, ele limpou a garganta novamente. — Eu estava prestes a sair. Aproveite o seu sorvete. Ele desapareceu depois dessas palavras, deixando-a sozinha em um lugar onde eles queriam estar juntos. Ela veio porque não conseguiu evitar. Por mais difícil que possa ser a experiência, ela queria ver o lugar que ele preparou para ela – para eles. Por que ele voltou? Ele já sabia exatamente o que fizera com o lugar. Porque ela não era a única que desejava que o redemoinho jamais tivesse acontecido. Que foi atraída para a casa de campo, apesar da dor que causaria, para imaginar o que teria sido se as coisas fossem diferentes. Ela apertou os olhos com a palma da mão. Como se apaixonar poderia doer tanto ao mesmo tempo?

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*** A sala de leitura, a biblioteca principal nos campos de ensino do Crucible, era vasta. Poderia muito bem ser infinita, por tudo o que Iolanthe sabia: as prateleiras continuavam até que elas convergiam para um único ponto à distância. Ela se aproximou do serviço de referência – uma estação vazia perto da porta – e disse: — Eu gostaria de tudo disponível sobre Horatio Haywood dos últimos quarenta anos. Os livros encheram a prateleira atrás da mesa: compilações de jornais dirigidos por estudantes, nos quais ele serviu como repórter e editor; revistas que publicaram seus artigos acadêmicos; a dissertação que ele escreveu para seu Mestrado em Arte e Ciências da Magia do Conservatório. Ela pegou a dissertação. Havia uma cópia dela em sua casa, que ela tentara ler quando era uma menina e não entendera nada. Mas agora, ao folhear as páginas, seus olhos ficavam cada vez mais arregalados. Ela sabia que a especialidade de pesquisa do Mestre Haywood foi mágica arquivista, a qual tratava da preservação de feitiços e práticas que não eram mais de uso popular. Mas notou que a dissertação dele girava em torno da memória mágica. Na dissertação, Mestre Haywood rastreou o desenvolvimento da magia da memória e descreveu a notável precisão dos feitiços no auge de sua popularidade16. Um que poderia apagar as memórias por hora – por minuto, caso alguém realmente quisesse. E com os contornos de eventos

A regulação da magia muitas vezes está atrasada no desenvolvimento da magia. Feitiços feitos com entusiasmo ao mundo mago e tão abraçado com entusiasmo pode muito bem ser legalizado uma geração ou duas mais tarde. Tal foi o caso com o feitiço de memória, que ficou desaprovado – e muitos dos feitiços mais grosseiros declarados ilegais – por sua intrusão e o potencial dano infligido. Atualmente, o feitiço da memória é geralmente implantado por criminosos que não querem que suas vítimas lembrem que foram roubados e, ocasionalmente, por profissionais médicos licenciados para recuperar recordações de trauma inexplicável, mas somente depois que o sofredor do trauma passou por um processo de aprovação substancial. – Da Arte e da Ciência da Magia: Uma cartilha 16

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precisos e concretos. Apreciou enormemente uma festa, com exceção de um beijo bêbado? Com uma ondulação da varinha, seria como se o beijo nunca tivesse acontecido – a festa era agora um longo e não marcado trecho de lembranças excelentes. Ela deixou a sala de leitura com relutância – havia horários determinados no dia, chamados de Ausências, quando a Sra. Dawlish e a Sra. Hancock contavam seus garotos, a fim de se certificar de que nenhum havia desaparecido. O príncipe ainda estava no laboratório, sentado em frente a ela, virando as páginas do diário da mãe dele. Era como se um punho tivesse fechado em torno de seu coração, vendo-o passar o tempo com seu único amor. Ele olhou para cima. — Você achou algo útil? Ela estava determinada a falar normalmente. — Mestre Haywood fez sua dissertação sobre a magia da memória, do tipo que o guardião da memória eventualmente aplicou nele. — Então ele forneceu a experiência que foi usada contra ele? — Provavelmente. Ele ficou em silêncio por um momento. — Você quer descobrir se você tem lapsos de memória? A pergunta a surpreendeu. — Eu? Ele apontou a varinha para ele mesmo. — Quid non memini? O que eu não lembro? Uma linha apareceu no ar, reta e marcada em intervalos regulares, como uma fita métrica. Com a sua varinha, a linha se aproximou de Iolanthe, para que ela percebesse que era uma linha de tempo, dividida em anos, meses, semanas e dias. Cerca de três quintos da linha do tempo estavam em branco, o resto vermelho. Ela nunca viu nada parecido. Até a dissertação do Mestre Haywood não mencionara nada disso. — Isso representa o estado de suas memórias? — Sim.

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— O que aconteceu quando você tinha onze anos? — Três dias antes de completar onze anos, na verdade. Foi quando a linha ficou abruptamente vermelha. — Eu soube que morreria jovem. E decidi me livrar das lembranças dos detalhes da profecia, para que eu não ficasse constantemente preocupado com ela. Você não morrerá jovem, não se eu... Ela mal se impediu de falar essas palavras em voz alta. Wintervale precisaria mantê-lo vivo agora, Wintervale, que não era conhecido por sua habilidade de permanecer calmo sob pressão. Ela disse, em vez disso, — É prejudicial, não é, suprimir memórias por tanto tempo? — Depende de como você faz isso. Vê esses pontos? — Os pontos eram de cor preta e flutuavam acima da linha. O primeiro coincidiu com a mudança de cor da linha do tempo, o resto foi distribuído em intervalos de três meses. — Eles mostram com que frequência essa memória particular é permitida a superfície da minha mente. A cor e a forma dos pontos me asseguram que a mesma memória é novamente recortada a cada vez, e que nada mais foi adulterado. — Você se preocupa com as pessoas adulterarem suas memórias? — É quase impossível que isso aconteça sem meu consentimento total... Os herdeiros da Casa de Elberon são protegidos por muitos feitiços hereditários

para garantir

que

eles não

se

tornem marionetes

involuntárias nas mãos dos outros. Mas posso fazer isso sozinho. Esta ferramenta me assegura que não fui persuadido a manipular minhas próprias memórias e depois me esquecer disso. — Ele afugentou a linha da memória. — Você gostaria de ver o estado de suas memórias? — Você acredita que minhas memórias foram adulteradas? Sua pergunta pareceu surpreendê-lo. — Você não pensa assim? Seu guardião é um especialista. O guardião da memória é outro especialista. Eles tinham um enorme segredo para proteger em você. Entre os dois, seria quase impossível que você ficasse incólume.

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Por muito tempo, ela não soube que poderia controlar o ar, mas ela pensou que fosse resultado de um feitiço. Poderia ter sido causado pela magia de memória, em vez disso? — Mostre-me, então. Ele apontou a varinha para ela. Ela ofegou: a representação do estado de suas memórias era uma linha simples, mas a dela era um mural inteiro. Não havia quase nenhuma parte da linha de quase dezessete anos que não foi adulterada. Ela mostrou branco durante apenas os primeiros meses de sua vida. Então todas as cores do arco-íris apareceram, algumas severamente degradadas. Acima da linha do tempo não estavam apenas pontos, mas triângulos, quadrados e pentágonos – todo o caminho para dodecágono. E enquanto que na linha de memória do príncipe o ponto que representava sua memória suprimida permaneceu do mesmo tamanho em sua linha, as formas continuavam aumentando de tamanho em cada aparição. A mente dela não é bem dela. O Mestre Haywood disse há muito tempo sobre a mãe idosa de um de seus colegas. Iolanthe nunca pensou que poderia se aplicar a ela, mas se aplicava. Sua memória estava cheia de buracos. O príncipe olhou para a linha do tempo. — São todos eventos compostos. — O que é um evento composto? — Quando minha memória suprimida é permitida a superfície, e depois ressurge, eu lembro superficialmente, simplesmente não me lembro do que surgiu. Mas para você, cada vez que suas memórias são permitidas à superfície, todas as lembranças ao redor do revestimento também são suprimidas. Para que não perceba que há coisas sobre você que você não pode se lembrar. Ela examinou o padrão do ressurgimento. — A cada dois anos. — Dois anos estão na extremidade da margem de segurança. Então, o guardião da memória não queria corromper a saúde de sua mente, mas também não queria que ela se lembrasse com mais frequência do que era absolutamente obrigatório.

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— A próxima vez que eu lembrarei será no próximo mês de novembro, se o padrão for válido. — Seu aniversário. Seu aniversário, durante a chuva de meteoros, que no final não representava grandeza. O truque do guardião da memória, os sacrifícios da parte do Mestre Haywood – foram todos sem sentido. — Eles poderiam ter se salvado de um grande problema, — ela disse com um tom severo. — Mestre Haywood jogou fora toda a sua vida. O príncipe desviou o olhar, fechou o diário da mãe dele e disse: — Vamos. O médico de Wintervale deve chegar a qualquer momento agora.

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Capítulo 15 O deserto do Saara

Os carros blindados avançavam com muita rapidez. Apesar do ar frio da noite, Titus transpirava. Fairfax não podia ser desmaterializada. Ele não conseguiria levitá-la novamente tão cedo. Ocultar-se dentro da formação rochosa não era uma opção: pelo menos metade das cordas de caça que ele acabara de desviar viria atrás deles em massa. E nem havia areia o suficiente debaixo dos pés para se enterrar, apenas um centímetro que não ajudava. Ele murmurou uma oração, saiu da cúpula de tração, e fez uma desmaterialização cega em direção ao oeste no horizonte, materializando no meio de uma duna maciça. Apontando a varinha para o céu, ele enviou uma luz prata e branca que explodiu no ar em um padrão intrincado que ele não podia reconhecer de onde estava. Ele se desmaterializou novamente, para o norte desta vez, e enviou outra luz, esperando que parecesse ser um sinal de resposta para o primeiro, que não só ainda estava pendurado no ar, mas se expandia

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para dimensões notáveis, brilhantes e enormes contra o cenário das estrelas – uma fênix, suas asas erguidas. Respirou fundo e voltou para a formação rochosa, para defender Fairfax, caso os carros blindados não se mostrassem dispostos a se afastar. Os carros blindados, porém, desapareceram, acelerando para as luzes, a segunda delas também era uma enorme fênix, de cor flamejante e bélica. Não eram sinais comuns, mas ele os havia produzido sem pensar. Ele deu um passo para trás, dentro da cúpula de tração e caiu de joelhos. — Começo a pensar que não quero saber quem eu sou, ou quem você é, se este é o tipo de perigo que continua nos perseguindo. Ela dormia; inconsciente de seu perigo. Ele descansou a palma da mão contra o cabelo dela por um minuto, feliz por sua segurança. Mas nunca havia descanso para os cansados. — Hora de fugir novamente, Bela Adormecida. *** Ela parecia estar se movendo. De forma leve e suave, como uma balsa flutuando por um rio largo e calmo. Ou poderia estar flutuando em nuvens, como às vezes fazia nos sonhos. Toda vez que parava, ela recebia água. Em algumas dessas ocasiões, ela tentou acordar; outras vezes, sequer possuía a vontade de tentar, bebendo enquanto dormia. Quando finalmente rompeu novamente a consciência, eles pareciam estar em uma caverna de algum tipo, escura, quente e abafada. Ela não podia vê-lo, mas podia ouvi-lo ao lado dela, suas respirações profundas e lentas. Ela fez uma oração silenciosa por seu bem-estar antes que o sono pesado a tomasse novamente. Na próxima vez que acordou, ela estava no mesmo lugar, e estava claro o suficiente para ver que estava sozinha. Os dois odres de água estavam lá. Um ao lado dela tinha um pouco de água; o outro, sequer

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uma gota. Com seus olhos meio fechados, ela pediu que água de rios subterrâneos e lagos de oásis – ou mesmo umidade que se agarravam à parte de baixo das rochas – fluíssem para ela. Passaram-se vários minutos antes da primeira gota se materializar. Ela encheu seu odre de água em três quartos antes de ficar exausta, mal conseguindo tapar o odre antes de deixá-lo cair de sua mão. O mesmo sonho voltou para ela, de flutuar docemente por um rio tranquilo. Ela viajou ao longo do Nilo, ou assim parecia, antes de perceber que estava realmente flutuando, mas no ar, graças a um feitiço de levitação. Era o amanhecer. Metade do céu se transformou em um tom alaranjado, quase translúcido. À sua esquerda, no topo de uma duna montanhosa, a areia já estava da cor do ouro fundido. Eles estiveram em movimento durante a noite toda? Quando cuidou dele pela primeira vez, ela aplicou uma quantidade generosa de analgésico no ferimento. Mas seu efeito teria desaparecido há algum tempo, ele não teria conseguido alcançar a parte ferida sozinho, e os grânulos só seriam meio efetivos sem o remédio analgésico que acalma a ferida. Então ele deveria estar com um pouco de dor – de vez em quando ele respirava fundo, como se fosse através dos dentes cerrados. Mas caminhava silenciosamente e firmemente, puxando-a. Ela olhou para trás. Não havia nenhuma impressão de pegadas a ser vista em lugar nenhum – ele teve o cuidado de apagar todos os vestígios de sua caminhada. — Você está acordada, — ele disse, se virando para ela. A sujeira manchava o rosto dele. Os olhos estavam afundados, a voz rouca, os lábios rachados. Ela sentiu um choque de algo que não era somente gratidão – algo que quase se aproximava da ternura. — Me dê os odres de água agora... Não sei por quanto tempo posso ficar acordada. Ele apertou os odres na mão dela. — Por quanto tempo eu dormi?

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— Esta é a segunda manhã desde que nos conhecemos. Então ainda não fazia nem quarenta e oito horas desde que se encontraram no Saara. — A retaguarda está limpa? — Eles não estavam sob a custódia de Atlantis – isso sempre era algo digno de celebrar. — Não, — ele disse. — Eles estão nos procurando. — É por isso que estamos no exterior apenas à noite? — Eles também procuram na noite. Na noite passada, havia pilotos em pégasus. — Eles chegaram perto? — Não muito perto. Encontrei alguns incendiários na sua bolsa antes de começarmos e disparei-os em várias vezes. Os pilotos estavam circulando sobre esses pontos. — Não posso acreditar que eu dormi por tudo isso. — A panaceia irá te manter dormindo enquanto você estiver prestes a morrer. Dado que ela já estava com sono novamente, esse era um pensamento sensato. O globo de água cresceu o suficiente, e ela dirigiu um fluxo para encher os odres. Ele parou. — É melhor nos escondermos. Nós seremos muito visíveis à luz do dia. Ela fechou os odres. — Você encontrou uma caverna ontem? — Não, eu usei sua barraca. Montei-a na sombra de uma duna de areia, mas ainda ficou quente durante a tarde, quando o sol apareceu. Hoje eu pretendo movê-la ao meio dia. Ele formou a tenda na forma de um meio tubo e a manobrou para dentro. — Posso cobrir a tenda com areia, — ela disse enquanto ele fechava a abertura da tenda. — Não, você não deve se esforçar mais do que o necessário. Lembre-se de que recebeu um golpe quase fatal há menos de quarenta e oito horas.

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— Apenas verei o que eu posso fazer antes de adormecer novamente. O fluxo de areia estava muito lento, mas ela podia ouvi-lo subir pela lateral da tenda. Titus aplicou vários feitiços anti-intruso, todos agressivos, alguns além do nível de crueldade. — Você realmente não espera que sejamos encontrados sob areia, não é? — Ela perguntou, alarmada. — Eu me preocupo com os wyverns de areia. — Mas o Saara não tem dragões. — Os desertos da Ásia Central têm. Se eu fosse Atlantis, eu enviaria Wyverns de areia no momento em que eu precisasse procurar fugitivos em um deserto. Eles se especializam em cheirar presas que estão escondidas sob camadas de areia – ou rocha até. E eles podem cavar a velocidades aterradoras – então, ainda que você estivesse em plena capacidade, sua capacidade de nos colocar no subsolo seria inútil contra eles. — Isso é assumir que Atlantis passaria por esse tipo de problema por nossa causa. Ele suspirou. — Tenho a sensação de que sim. Tenho uma sensação muito desagradável de que nós – ou pelo menos você – pode ser importante. Isso a enervou. — Não quero ser importante. — Eu acompanhei os carros blindados em busca, uma vez que cada um tem um número de identificação único. Na primeira noite, contei vinte e três diferentes. Agora, se assumirmos que o círculo de sangue forma o centro de um plano coordenado e todos os carros blindados que eu vi procuravam em um quadrante, isso significa que quase uma centena de carros blindados está nos procurando, muito possivelmente mais. — Ele olhou para ela. — Agora você me diz se somos importantes ou não. — Que a Sorte me proteja, — ela murmurou. — Exatamente.

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A areia cobriu toda a barraca. Agora estava imóvel e escuro lá dentro. Ele convocou luz mágica e entregou um odre para ela. — Beba. Você está precisando tanto quanto eu. Foi quando ela tomou seu primeiro gole que percebeu que estava quase adormecida novamente. Ela fechou os olhos. — Então, o que vamos fazer? — Você dorme, — ele disse, a voz parecendo chegar até ela de longe. — Eu cuidarei de tudo.

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Capítulo 16 Inglaterra

O médico era um charlatão, é claro, mas era um charlatão de aparência distinta, que lançava bastantes disparates que provavelmente pareciam convencer a Sra. Dawlish de que Wintervale acordaria rejuvenescido – e assim por diante. A senhora Hancock, por outro lado, não foi enganada. Depois que o médico foi embora, encurralou Titus no quarto dele. — Sua Alteza, com todo o devido respeito, este homem era um charlatão, se alguma vez vi um. — Mas a enfermeira que veio com ele é uma exilada e muito qualificada nas artes médicas. — Titus mentiu fluentemente. A Sra. Hancock franziu a testa, possivelmente na tentativa de recordar a enfermeira indescritível. — E qual era a opinião dela? — Igual ao que o curandeiro lhe disse, que a vida de Wintervale não está em perigo e que, quando ele acordar daqui alguns dias, ele deverá estar bem.

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A Sra. Hancock ajustou os punhos perfeitamente passados de sua blusa. — Isso é o que a panaceia faz, repara o corpo enquanto dorme. Mas o que estou interessado, Sua Alteza, é a principal causa da condição de Wintervale. — Que a enfermeira não conseguiu determinar. — E você? — Seu olhar era penetrante. — Você também não sabe? Titus apoiou os pés na escrivaninha, sabendo muito bem que o desrespeito aos móveis irritava a Sra. Hancock. — Foi o que aconteceu no domingo. Wintervale chegou à casa do tio de Sutherland entre as duas e meia e as três e quinze. Ele parecia frio e disse que iria tirar uma soneca. Ele dormiu por um tempo, depois comeu um pouco de torrada, o que o fez vomitar. Naturalmente, eu suspeitei de intoxicação pela Atlantis, então dei dois antídotos para ele. A Sra. Hancock ergueu uma sobrancelha. — Naturalmente, você suspeitou de envenenamento pela Atlantis, Sua Alteza? — Dado a maneira suspeita da morte do Barão Wintervale, é claro. — A Atlantis não teve nada a ver com a morte de Baron Wintervale. — Não, não, é claro que Atlantis não procuraria atacar um líder da Revolta de Janeiro que era ainda jovem o suficiente e ambicioso o suficiente para levantar uma segunda rebelião algum dia. A Sra. Hancock ficou em silêncio por um momento. — Vejo que a mente de Sua Alteza é fértil. Por favor, continue com sua narrativa. — Os antídotos pioraram o vômito de Wintervale, então eu dei um remédio diferente, o que infelizmente contém veneno de abelha como ingrediente, e Wintervale, sem o meu conhecimento, é altamente alérgico ao veneno de abelha. Naquele momento, ele entrou em convulsão, e não tive escolha a não ser administrar panaceia. Titus deliberadamente pintara uma imagem de incompetência. Muito melhor dar a impressão de que seu remédio deixara Wintervale devastadoramente doente do que deixar a Sra. Hancock suspeitar que houvesse algo realmente importante com o Wintervale.

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E se ela questionasse Kashkari, este último provavelmente dirá a ela que Titus negou dar a Wintervale qualquer coisa com veneno de abelha, mas então não era como se o Mestre do Domínio admitisse um erro tão estúpido de sua parte para um não mago. — Eu recomendaria que Sua Alteza não praticasse medicina nos meninos desta casa no futuro. — A Sra. Hancock disse ironicamente. Titus franziu o cenho. — Wintervale só recebeu ajuda porque é um primo de segundo grau. Os outros meninos desta casa não valem a pena a excelência dos meus remédios. — Então a Sra. Dawlish e eu devemos nos considerar afortunadas. Vamos observar Wintervale atentamente. Titus olhou para ela. — E por que você está tão interessada em Wintervale de repente? Você não está aqui apenas para me vigiar? A Sra. Hancock já estava na porta. Ela virou alguns graus. — Oh, é por isso que eu estou aqui, Sua Alteza? E então ela se foi, deixando Titus franzindo o cenho para aquela pergunta inesperada. *** — Você não acha que ele tem a doença do sono africano, não é? — Cooper perguntou a Kashkari. Eles estavam no quarto de Wintervale, que estava muito cheio antes para Cooper e Iolanthe entrarem. Mas agora, apenas Kashkari permaneceu, fazendo seu trabalho escolar na mesa lotada de Wintervale. — A Sra. Dawlish perguntou. O médico disse que não, — Kashkari respondeu. — Bem, de qualquer maneira, é uma façanha magnífica cochilar, — Cooper disse, inclinando-se sobre Wintervale. Acordado, Wintervale estava no lado inquieto, um menino de energia tremenda que nem sempre sabia como se livrar dela. Adormecido, ele parecia mais calmo e mais maduro. Iolanthe olhou para ele, desejando

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que ele fosse uma pessoa diferente quando acordar, uma pessoa a quem ela ousou confiar a vida de seu amado. Não se atreva a ouvir o que ele diz sobre sua morte precoce. Não ouse arriscar-se e deixá-lo para trás. Cooper a cutucou. — Devemos fazer a nossa lição de Grego? Ela começou. — Claro. Depois de você. Eles foram ao quarto dela e abriram seus livros. — Eu invejo os gregos, — Cooper disse. — Eles não tiveram que aprender grego... Eles já sabiam. — Você está certo – eles tinham sorte, — Iolanthe disse. — Deus, como eu odeio grego. — Mas você é bom nisso. — Somente porque você é terrível, então minha mediocridade parece boa em comparação. Cooper riu. — Eu sei o que você quer dizer – você me faz parecer um jogador de cartas decente. Iolanthe riu sem querer. Ela era péssima em jogos de cartas não magos. O príncipe abriu a porta e entrou. Sua risada sumiu. Ele olhou para Cooper, que estava presumivelmente impressionado. Ela se perguntou se Titus estava fazendo um esforço extra para Cooper atualmente: ele era sempre mais distante, mais majestoso, quando Cooper estava por perto. O pensamento doía, como se alguém tivesse jogado uma agulha em seu coração. Sem que Titus precisasse nada, Cooper recolheu seus livros e notas, disse um adeus silencioso e fechou a porta. — Posso ajudá-lo? — Ela perguntou, evitando a inflexão de sua voz. — Preciso falar com você. — Ele estabeleceu um círculo de som. — Sra. Hancock estava perguntando sobre a condição de Wintervale, e isso me fez lembrar que, na verdade, eu tinha uma ferramenta de diagnóstico no laboratório.

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Do bolso, ele tirou algo que parecia um termômetro de mercúrio usado por não magos. Um medidor sabe tudo. — Pensei que ninguém mais usava isso. — Porque não oferecem um diagnóstico imediato, não porque são imprecisos. — Ele entregou o instrumento para Iolanthe. — Chequei Wintervale agora. Iolanthe segurou na luz. Em vez das minúsculas linhas que marcavam graus de Fahrenheit, o instrumento tinha pequenos pontos com palavras igualmente pequenas escritas ao lado deles. Ao girar a haste de vidro triangular, as lentes incorporadas na haste ampliaram as letras e as leituras. Função de musculação. Função do fígado. Densidade óssea. Força muscular. E assim por diante, dezenas e dezenas de sinais e métricas vitais avaliados. Ela deve ter passado mais de cinquenta leituras aceitáveis quando chegou a uma que mostrou vermelho. Habilidades motoras graves. Não surpreendente, já que Wintervale não conseguiu sair sozinho da cama. Até o final da longa lista, outra leitura inaceitável. Estabilidade mental. Iolanthe apertou os olhos. Mas não, ela não interpretou errado. — Você tem certeza de que o medidor está devidamente calibrado? — Eu testei primeiro comigo. Estava bom. — Mas não há nada de errado com a estabilidade mental de Wintervale. — Wintervale pode não possuir uma mente extraordinária, mas ele certamente teve uma saudável. — Isso é o que eu sempre pensei. — Talvez ele estivesse em choque com o que conseguiu fazer. — Ela certamente não conseguia tirá-lo da mente. Todas aquelas poderosas correntes de água girando em torno daquele olho monstruoso e cada vez mais profundo. O Lobo do mar, tão pequeno em comparação, tão impotente.

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Titus desviou o olhar. — A mãe dele não está bem. Não é insana, pelo menos não o tempo todo. Mas você se encontrou com ela. Sabe que ela não pode ser confiável. Iolanthe havia lidado com Lady Wintervale, que uma vez quase a matou. Mas então, também foi Lady Wintervale quem a salvou posteriormente – e o príncipe por extensão. — Se ela é desequilibrada às vezes, é por causa do Exílio e da morte do marido, não por causa de qualquer coisa inata que Wintervale poderia herdar. Ele ficou em silêncio. De repente, ela se perguntou se ele esperava que a leitura do medidor sabe tudo pudesse ser uma saída de uma parceria com Wintervale. Se um impulso a forçasse, ela aceitaria essa razão – ela confiava em si mesma para mantê-lo vivo melhor do que Wintervale – mas não ficaria feliz com isso. Ela queria que ele a escolhesse, porque ousava desafiar os ditames de sua mãe além do túmulo, não porque um instrumento desatualizado não soubesse como avaliar o estado mental de alguém sob um sono induzido por panaceia. — Você já sabe que eu acho que Wintervale é a última pessoa que deve acompanhá-lo até Atlantis. Mas ele é temperamentalmente inadequado para a tarefa, não desequilibrado. Ele caminhou até a janela e olhou pelo espaço da cortina, como ela havia feito antes, quando ele chegou para levá-la ao laboratório. Depois de um minuto ou mais, ele olhou para ela. — Lembra-se dos feitiços de memória que descobrimos em você esta tarde? — Como posso esquecer? — O choque disso, saber que sua memória parecia ter mais buracos do que uma peneira. — Posso ver sua linha de memória novamente? Ela encolheu os ombros. — Vá em frente. Ele refez o feitiço e a linha de memória apareceu entre eles, preenchendo quase toda a largura do seu quarto, todas as cores e padrões que a faziam sentir como se olhasse para ele através de um painel de vitral.

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— Há algo específico que você deseja verificar? — Vê as linhas subsidiárias que conectam as formas que representam as memórias suprimidas à linha principal? As linhas subsidiárias eram tão finas quanto teias de aranha. — Sim? — Elas são verdes na maior parte da linha de tempo. Mas olhe aqui, — ele apontou para o último conjunto de linhas subsidiárias que se ramificaram, a partir do instante mais recente do ressurgimento de suas memórias. — Essas últimas linhas são pretas, o que significa que o guardião da memória conseguiu fazer com que suas memórias não voltem a ressurgir. A implicação disso foi como um duro baque no interior da sua cabeça. — Eu vou acabar como o Mestre Haywood? Mestre Haywood tornou-se um casco de seu eu anterior: porque não foi permitido que suas memórias enterradas ressurgissem, seu subconsciente pressionou por meios cada vez mais autodestrutivos para atrair a atenção do guardião da memória. Titus dissipou a linha de memória. — Você já sentiu sua mente em um estado de inquietação incontrolável? — Não. Pelo menos ainda não. — Então você ainda tem tempo. E nós vamos encontrar um jeito. Ela riu; mais do que um pouco amargamente. — Nós? Ele olhou em seus olhos. — Claro. É você quem eu ainda amo. É você quem eu amarei até o dia em que eu morrer. Ela queria discutir isso, dizer que suas confissões eram apenas palavras sem força de ação. Mas não disse nada. Ele a beijou na testa, a olhou por outro momento, e saiu. *** Na tarde seguinte, Iolanthe estava novamente na sala de leitura, examinando a dissertação do Mestre Haywood. Desta vez, na seção sobre como poderia proteger-se de feitiços de memória.

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No auge da popularidade da magia da memória, os magos tentaram alcançar certa imunidade contra possíveis ataques. A dissertação listava páginas e páginas de diferentes defesas para evitar ou minimizar o apagamento e o rearranjo das memórias. Iolanthe apertou a ponta do nariz. O Mestre Haywood sempre soube de tudo isso, mas não pensou em se defender – ou a ela – com algumas dessas defesas. Ele deve ter confiado no guardião da memória como ela confiava no príncipe, nunca por um momento acreditando que um vínculo como o deles poderia ser qualquer coisa além de invencível. Pensando nisso, mesmo que ele nunca tenha pensado em desconfiar do guardião da memória, ele ainda deveria ter dado mais informações a Iolanthe, sabendo que se o guardião da memória não pudesse chegar até Iolanthe, ela poderia ficar sem informações essenciais. E se ele tivesse? Ela se sentou mais ereta. Na bolsa de emergência que ele empurrara em suas mãos, pouco antes de deixar o Domínio, havia uma carta. Ela havia verificado a carta por escrita escondida. Não havia nenhuma, ou pelo menos nenhuma que estava ao seu alcance para revelar. Mas o que dizer a respeito do envelope? Ela não podia dizer a senha para sair do Crucible rápido o suficiente. **** De volta no laboratório, alguém segurava sua mão. O príncipe. Ele estava olhando para ela, o desejo palpável nos olhos. É você quem eu ainda amo. É você quem eu amarei até o dia em que eu morrer.

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Sem pensar, ela estendeu a mão e afastou uma mecha de seu cabelo – só para voltar de repente aos seus sentidos, uma dor elétrica em seu coração. Ela saiu do banquinho em que estava sentada e caminhou até o armário em que guardava as coisas que trouxera com ela do Domínio. Encontrou a carta do Mestre Haywood, e colocou a carta e o envelope na mesa de trabalho. — Revela omnia. — Eu já tentei o envelope, — o príncipe disse. Claro que tentaria, ele que se aproximou de sua missão com meticulosidade, sem nenhuma ponta solta. — Tem que haver algo mais. Minhas memórias suprimidas apenas ressurgem a cada dois anos. Se alguma coisa acontecesse com o guardião da memória antes que pudesse me alcançar, eu ficaria sem fatos importantes para a minha sobrevivência por um longo e longo tempo – e me recuso a acreditar que o Mestre Haywood não teria se preparado para essa possibilidade. — Ela tocou seu dedo no envelope. — É possível fazer com que a escrita secreta só fique visível se um feitiço revelador for anexado? — É possível. Mas então, também exige que você conheça a contrassenha. Ela observou a carta. Ela não conhecia a contrassenha. Se o mestre Haywood usou uma, ele a incluiu na carta. E se tivesse feito isso, ele teria chamado sua atenção, colocando-a separadamente de algum modo. Os olhos dela caíram na segunda observação. Não se preocupe comigo. Poderia ser? Ela tentou o feitiço revelador no envelope novamente, enquanto silenciosamente recitava. Não se preocupe comigo como contrassenha. Imediatamente, apareceu uma nova escrita no envelope. Mas só se você estiver armado com uma faca e disposto a usá-la. — Experimente na carta também, — o príncipe disse, com a voz cheia de excitação pouco contida.

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Ela fez, e foi recompensada com: Ostras dão pérolas. — Ostras dão pérolas, mas apenas se você estiver armado com uma faca e disposto a usá-la, — ela leu a voz em voz alta. — Isso deveria significar algo para mim? — Me dê um minuto. — O príncipe entrou no Crucible e voltou um minuto depois. — É uma frase de uma peça de Argonin chamada, A peregrinação dos pescadores. Argonin foi considerado o maior dramaturgo do Domínio que já existiu. Iolanthe estudou sobre as peças de Argonin na escola, mas não A peregrinação dos pescadores. A frase foi dada em duas partes, como senha e contrassenha. Mas por quê? De repente, ela sabia: por que havia algo que o Mestre Haywood tinha motivos para confiar que estaria sempre com ela. Sua varinha. Sua varinha também estava guardada no laboratório – seria difícil se passar como não maga se fosse pega com ela. Ela a pegou no armário e a virou para a luz. Era seu orgulho e alegria, sua varinha, uma peça de artesanato extraordinária. Videiras esmeralda e flores de ametista foram esculpidas na superfície; as veias das folhas eram compostas de filamentos finos de malaquite17, os pistilos e as pétalas das flores, minúsculos diamantes amarelos. Uma varinha especialmente encomendada para o seu nascimento, o Mestre Haywood lhe havia dito, para ser uma herança. E ela não se perguntou como seus pais, ambos ainda estudantes, ambos de origens extremamente modestas, conseguiram pagá-la. Mas agora ela sabia que não foram os Seabournes que encomendaram uma varinha tão espetacularmente suntuosa, mas o guardião da memória, a pessoa mais indigna de confiança que conhecera. Sua mãe, se o príncipe estivesse certo sobre isso.

17 É um mineral, um cristal com vários tons de verde.

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— Ostras dão pérolas, — ela disse em voz alta, e recitou o resto silenciosamente. A varinha deslizou, separando-se. As incrustações foram feitas em uma concha, que agora se separou da base da varinha para revelar um núcleo separado. Quatro pequenos objetos foram incorporados no núcleo; eles eram idênticos, como caroços de ervilhas tão pretos quanto carvão. O príncipe se levantou. — Estes são os vértices de um quasedesmaterializador18. O único dispositivo conhecido por contornar uma zona sem desmaterialização totalmente estabelecida – e provavelmente o que permitiu o desaparecimento do Mestre Haywood da Cidadela em junho passado. — Tenho tentado comprar um quase-desmaterializador no mercado negro por cinco anos, — o príncipe continuou. — Nenhum foi encontrado à venda em todo esse tempo. Mas agora ela tinha um à sua disposição e poderia escapar de qualquer lugar. Algum dia. Ele pegou os caroços e entregou para ela. — Os vértices necessitam de contato e precisam estar em sua pessoa por pelo menos setenta e duas horas antes de transportá-la. É bem provável que já tenha sido feito quando você era um bebê, mas é melhor ter certeza.

O quase-desmaterializador não foi inventado para contornar as zonas sem desmaterialização, mas para ajudar magos que não pudessem mostrar que possuíam tal habilidade. Os quatro pequenos pontos, chamados de vértices, eram ativados quando colocados no chão, de forma a marcar os cantos de um quadrilátero. Um mago entrando dentro desse quadrilátero seria instantaneamente levado para um pré-arranjo, e os vértices se desintegrariam, sem deixar vestígios para trás. Quando os magos perceberam que os quase-desmaterializador podiam atravessar zonas sem desmaterialização, eles exigiram que o inventor desistisse de informações proprietárias para que os novos feitiços anti-desmaterialização pudessem ser formulados para impedir o quasedesmaterializador. O inventor, uma velha excêntrica, tirou seus produtos do mercado ao invés de divulgar seus segredos comerciais, os quais ela levou com ela para a pira. Não é preciso dizer que os quase-desmaterializador foram imediatamente procurados no mercado negro – e ainda mais, quando Atlantis começou a construir seus Inquisitórios nos reinos magos ao redor do mundo. – Um trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião. 18

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Ela os deixou cair no bolso interno do casaco e cuidadosamente fechou o bolso. — Mas onde é o alvo? Um conjunto completo de quase-desmaterializador veio com cinco peças, quatro vértices e um a ser colocado no alvo antes. Ela estava muito confiante de que o alvo não seria dentro de um vulcão ativo, mas preferiria saber para onde ia. — Em algum lugar que Atlantis não possa te encontrar, eu espero, — o príncipe disse. — Você está fazendo um progresso impressionante, por sinal. O que planeja fazer se localizar seu guardião? Perguntas sobre o futuro doíam – todos os possíveis cursos de ação invariavelmente envolviam deixar Titus para ir a lugares desconhecidos. — Libertá-lo e escondê-lo. — Você pensou em um lugar? Ela balançou a cabeça. — Terei tempo suficiente para pensar nisso quando conseguir realmente libertá-lo. — Por favor, me fale se eu puder ajudar de qualquer maneira, — ele disse solenemente. — Ainda é tão perigoso como sempre para você. Ela queria segurar o rosto dele e dizer que não era o perigo que ela temia. Não mais. Mas ela apenas assentiu. — Obrigada. É melhor ir agora... Treino de cricket em vinte minutos. *** Quando Iolanthe chegou ao treino, para sua surpresa, Kashkari já estava lá, vestido com o equipamento, nada menos. Ela apertou a mão dele. — Você está se juntando a nós, senhor? — De acordo com West, quando elaboraram a lista para os vinte e dois, eu era o número vinte e três. Por isso, eu estarei jogando no lugar de Wintervale até que ele não esteja mais incapacitado. — Estou surpreso por você estar disposto a deixar o lado dele. Como ele está hoje? — Eu estava com ele há algum tempo agora. Ele acordou por trinta segundos.

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— Isso é algo. — Isso é algo, realmente. E parecia estar com bom espírito, embora tenha ficado desapontado por não ser o príncipe. Alguns outros jogadores de cricket chegaram, seguido por um homem que carregava uma pesada caixa preta. O homem abriu a caixa e começou a montar um equipamento – uma câmera. — O que está acontecendo por ali? — Ela perguntou a Kashkari. — Aquele é o Roberts? — É Roberts. Este é o último ano dele e, pela terceira vez, ele foi escolhido para os vinte e dois, mas ainda não foi os onze. Há rumores de que ele está falando sobre tirar uma fotografia caso seja selecionado para os onze ou não, parece que ele conseguiu. Iolanthe resmungou. — Você tem que aplaudir esse tipo de iniciativa. Embora... — ela se virou para Kashkari. — Você não sabe se ele será um dos onze? Kashkari poderia ter sonhado com isso, por tudo o que ela sabia. — Não tenho a menor ideia. Nunca sonhei com os jogos de Eton e Harrow. — O que você sonha, além de vir para Eton? E os outros sonhos se tornaram realidade? — Houve uma vez quando eu era pequeno, quando sonhei com um bolo de aniversário para o meu sétimo aniversário. Tenha em mente que os bolos de aniversário não são a norma. Em nossa família, sempre fizemos doces indianos para aniversários. Mas no meu sétimo aniversário, na verdade, fui presenteado com um bolo ocidental com velas brilhando no topo, assim como eu sonhei. Seu eu mais novo teria achado seu dom fascinante. Mas agora, sua visão de videntes e visões foi colorida com um preconceito acentuado. Todo o ponto da vida era a capacidade de fazer as próprias escolhas. O conhecimento prévio de qualquer coisa – especialmente o tipo circular, como a presença de Kashkari em Eton, porque ele sonhara com isso – era extremamente limitante e corria contra o conceito de livre arbítrio. — Mas você queria um bolo de aniversário?

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— Eu não pensava muito se eu queria um bolo de aniversário. Naquele ponto, apenas um dos meus sonhos se tornou realidade – que o antigo colega de classe da minha avó viria ficar conosco. Então eu estava mais interessado em saber se este sonho também era profético. — Você já pensou em uma vida diferente para você? Uma que não envolvesse deixar sua família e vir para Eton? — É claro que eu pensei nisso. — Você se arrepende do caminho não tomado? Os sonhos, eles não lhe permitem qualquer escolha, não é? — É um ponto de vista muito ocidental, ver visões do futuro como verdades eternas esculpidas em mármore, que não devem ser adulteradas ou perturbadas. Nós vemos uma visão mais como uma sugestão, uma ou várias possibilidades diferentes. Depois de eu ter uma fatia daquele bolo de aniversário, perguntei se eu também poderia ter algumas ladhoos – um doce compacto e redondo que eu adorava – e eis que também me deram um prato de ladhoos. E quando se tratava de Eton, nunca vi esses sonhos como vinculativos. A questão era sempre se eu queria ter essa aventura, e no final eu decidi que sim, então eu vim. — Então houve sonhos que você ignorou? — Bem, houve um que eu mais ou menos decidi ignorar, como um

experimento,

porque

pareceu

estúpido

e

absolutamente

insignificante. Vi algumas vezes nos últimos dois anos. Eu estaria no quarto do príncipe durante a noite, com vários outros meninos. E então, eu arregaço as mangas do meu kurta19 e saio pela janela, descendo pelos canos. Iolanthe assentiu. — Eu uso meu kurta apenas para dormir – o que significa que foi depois das luzes serem apagadas. Isso simplesmente não pareceu algo que eu faria; sair de uma janela para fazer travessuras no meio da noite. Mas quando a cena se desenrolou realmente, tinha a ver com Trumper e 19 O Kurta é uma espécie de bata longa, roupa clássica indiana, (vestimenta masculina), de algodão.

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Hogg e os tijolos lançados. De repente, pareceu ser uma coisa muito importante, ir atrás deles. E, ao fazê-lo, ele se revelou o escorpião do qual o Oráculo das Águas Paradas havia falado, alguém em quem ela poderia procurar ajuda. — Eu estava lá, no seu sonho? — Você falava antes que eu saísse pela janela. Nunca consegui recordar o que você disse, mas sim, você estava lá. — Cavalheiros, eu odeio interromper essa conversa cativante, mas o treino está prestes a começar, — West disse. Foi uma conversa fascinante. Iolanthe sequer havia notado a abordagem de West. Ela apertou a mão dele. — Estamos atraindo uma multidão hoje. West olhou para as dezenas e dezenas de meninos reunidos à beira do campo de jogo. — Isso não é nada. Espere até o semestre de Verão. — Cooper e Rogers, por aqui, — Iolanthe disse a Kashkari. Cooper acenou. Iolanthe lhe mandou um beijo exagerado. Tanto Cooper quanto Rogers se curvaram, como se fosse a coisa mais engraçada que já viram. — O príncipe não vem vê-los jogar? — West perguntou. — Ele tem tanto interesse em cricket como tem na gramática medieval francesa, — Iolanthe respondeu. — É mesmo? O tom de West parecia casual, mas Iolanthe podia sentir sua decepção – um movimento sutil na parte inferior da mandíbula, da maneira como ele se aproximou mais de sua pessoa. Por que West se importava se Titus viria ao treino? Ele era um agente da Atlantis, haveria alguma possibilidade? Essa possibilidade a distraiu tanto que não foi até que passou vinte minutos no treino que o significado do que Kashkari disse ficou completamente compreendido. Kashkari a viu – ou a Fairfax, em vez disso – muitas vezes em sonhos nos últimos dois anos, enquanto que Fairfax deveria ter ficado

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ausente da escola por três meses, de acordo com as estipulações do feitiço que o príncipe criou e manteve a identidade fictícia de Fairfax. Quando Iolanthe finalmente apareceu, sob o nome de Fairfax, Kashkari saberia que Fairfax não esteve ausente por apenas três meses, mas sim que nunca foi visto na casa da Sra. Dawlish até aquele momento. Não é de duvidar que no começo da sua atuação ele tenha feito a Iolanthe tantas perguntas e ficara tão nervoso. Ele havia suspeitado desde o primeiro segundo que algumas peças sobre Fairfax não se encaixavam. Que o Fairfax, que deveria ter vivido sob o teto da Sra. Dawlish nos últimos quatro anos, não existia até o início do semestre de verão. *** Iolanthe continuou olhando Kashkari enquanto caminhavam juntos para a casa da Sra. Dawlish. Ele era possivelmente mais difícil de ler do que o príncipe. E conseguia isso sem a altivez do último, como um traje de armadura cravejado de espinhos. Ele a surpreendeu agora, atrás dessa amabilidade de cavalheiros, o quanto Kashkari guardou consigo mesmo. Não só seus próprios segredos, mas também os dela, nunca revelando nada de seus pensamentos internos, exceto talvez uma pergunta ocasional que a deixou agitada para uma resposta. Mas por que ele divulgava todos esses segredos para ela? E por que agora? Ele estava tentando dizer alguma coisa? Ou era um aviso? O príncipe saiu de seu quarto quando ela e Kashkari chegavam ao final da escada do corredor na casa da Sra. Dawlish. — Nossos lacaios têm o nosso chá quase preparado. Eles costumavam tomar o chá no quarto de Wintervale. Agora que Wintervale estava indisposto, a localização foi mudada temporariamente para o quarto de Kashkari. Iolanthe não queria chá, mas também não

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queria arrastar o príncipe para o quarto para desabafar, não com Kashkari já dizendo: — É um prazer hospedar meus amigos. O quarto de Kashkari era quase tão escasso quanto o do príncipe. Um tapete de aparência antiga cobria o chão. Na estante de livros brilhavam placas de latão que reluziam com lamparinas e pequenos montes de cinabre20 e cúrcuma. Acima deste altar diminuto, a imagem pintada do deus Krishna, sentado com um pé sobre o joelho oposto, uma flauta nos lábios. — Bonita cortina. — Ela apontou o queixo em direção à cortina de brocado azul-celeste, que proporcionava uma onda de cor no espaço de outra forma simples. — Obrigado. Algo mais substancial na janela para o inverno inglês – caso contrário, o frio apenas se infiltra. Calouros vieram, trazendo pratos de feijão quente em torradas e ovos. Kashkari serviu o chá. Eles falaram sobre a condição de Wintervale, as últimas novidades da Índia, Prússia e Bechuanaland – o que permitiu a Iolanthe participar. A cadeira também poderia ter crescido espinhos. Quanto mais tempo eles deveriam manter isso? E por que o príncipe veio? Ontem ele ignorou o chá completamente. Ela olhou para o relógio. Passaram-se vinte e cinco minutos. Mais cinco minutos, e ela sairia. Uma batida leve veio da porta. Era a Sra. Hancock, com uma carta para Kashkari. — Isso acabou de chegar do correio para você, querido. Kashkari levantou, pegou a carta da Sra. Hancock, agradeceu e voltou à mesa. O envelope era marrom, quadrado, com grandes letras pretas escritas na frente e atrás. FOTOGRAFIA DENTRO. POR FAVOR, NÃO DOBRE. Kashkari colocou a carta de lado, sentou, e então passou a mão em seu cabelo com grande agitação, ruborizado. — Não importa.

20 Sulfureto natural de mercúrio que ocorre em forma de cristais vermelhos brilhantes no sistema trigonal, usado para extração do mercúrio e na preparação de tintas especiais e substâncias venenosas;

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— O quê? — O príncipe perguntou. — Eu sei o que é: um retrato da festa de noivado do meu irmão. Não posso evitá-lo para sempre, então muito bem poderia abri-lo agora. — Se você quiser alguma privacidade... — começou Iolanthe. — Eu já desabafei com vocês mais cedo. Seria bobo fingir. — Ele abriu o envelope e entregou a fotografia para Iolanthe. — Essa é ela. Três pessoas estavam na foto – Kashkari, uma jovem em um sari, e um jovem bonito que deveria ser o irmão de Kashkari. O cabelo da mulher estava coberto pelo sari. Um enorme anel em seu nariz – com uma corrente amarrada em algum lugar do cabelo – obscurecia um pouco de seu rosto. Mas ainda era fácil ver que ela era extraordinariamente adorável. — Ela é bonita o suficiente para ser a garota dos sonhos de alguém. Kashkari suspirou. — Isso ela é. Iolanthe passou a fotografia para o príncipe, que tomou um gole de chá enquanto aceitava a fotografia. Mais imediatamente ele começou a tossir – e continuou tossindo. Iolanthe ficou perplexa – o Mestre do Domínio não era o tipo de garoto que se sufocava com seu chá. Kashkari levantou e golpeou o príncipe com força entre os ombros. Ofegante, o príncipe devolveu a fotografia para ele. — Meu chá... Desceu pelo caminho errado. Ela é muito bonita. — Ela parece ter um forte efeito não apenas em você, — Iolanthe disse a Kashkari. O príncipe a olhou estranhamente. — Como ela e seu irmão se encontraram, Kashkari? — É um casamento arranjado, é claro. — Claro. O que eu quis dizer era, ela é da mesma cidade que você? — Não. Nós pertencemos à mesma comunidade, mas a família dela se instalou há anos no Punjab. — Kashkari sorriu fracamente. — Eles poderiam ter encontrado qualquer garota para ser a noiva do meu irmão, e tinha que ser ela.

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O príncipe se levantou para sair logo depois disso. Iolanthe ficou um minuto mais. Então ela estava batendo na porta dele – ela deveria falar com ele sobre as implicações dos sonhos proféticos de Kashkari – e se encontrou sendo arrastada para dentro. — Kashkari... — ela começou. Ele a interrompeu. — Aquela mulher na fotografia... Foi ela quem invadiu a festa no jardim da Cidadela. Aquela que escapou em um tapete voador. Aquela que perguntou por você.

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Capítulo 17 O deserto do Saara

Ele ainda estava dormindo, seu ombro estava tocando o dela quando ela acordou, transpirando. Dentro da tenda enterrada, estava escuro e prodigiosamente quente. Ela convocou a água, encheu o odre e o fechou. Então se sentou, criou uma luz mágica e voltou sua atenção para o Príncipe. Ele estava dormindo de bruços, sem sua túnica. Ela respirou fundo ao ver a bandagem nas costas dele: se fosse vermelho brilhante, seria uma coisa, mas era sangue misturado com uma substância escura como tinta – era uma visão terrível. — Apenas meu corpo expulsando o veneno. — Suas palavras eram lentas e sonolentas. — Tomei todos os antídotos em sua bolsa. Ela tirou a velha bandagem e a destruiu. — O que no mundo era isso? — Deve ser um veneno de algum tipo, mas não consigo sentir nenhuma marca de punção.

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— Também não vejo nada. — Ela lhe deu alguns grânulos para dor. — Parece que sua pele foi comida por ácido, ou algo assim. — Mas essa substância é orgânica, porque os antídotos funcionaram. Ela balançou a cabeça. — Uma área tão grande. Quase como se alguém tivesse um balde de veneno e simplesmente jogou em você. E, no entanto, ele havia andado, Deus sabia quantos quilômetros neste deserto, arrastando-a. Ela limpou a ferida, aplicou mais analgésicos no local e espalhou um remédio regenerativo. — Sabe o que estou me lembrando? Você já leu a história do abismo de Briga? — Sim. — Você se lembra dos pulpwyrms que protegem a entrada do abismo? Aquelas criaturas desagradáveis que são grandes como estradas? Dizem que vomitam um fluxo interminável de uma substância negra que pode dissolver um Mago até sobrar dentes e cabelos. — Mas os pulpwyrms não são reais. — Agora, por que você deve mudar uma hipótese perfeitamente boa com coisas tão incômodas como fatos? O canto dos lábios dele se levantou e interrompeu seu pensamento. Ela olhou para o perfil dele, por mais tempo do que deveria, antes de lembrar que tinha uma tarefa à mão. — Por quanto tempo você está acordada? — Ele perguntou. Ela

pegou

dois

outros

frascos.



Cinco

minutos,

aproximadamente. Enchi os odres de água. — Você realmente parece acordada, por uma vez. — Estou ligeiramente grogue, mas não sinto como se eu fosse começar a roncar no próximo minuto. Ele sibilou quando ela salpicou o conteúdo de um frasco em suas costas. — Bom. Eu estava prestes a ficar surdo com seu ronco.

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— Ha! — Ela derramou outro remédio na ferida, contando cuidadosamente as gotas. — Falando em ser importante, o Mestre do Domínio não se chama Titus? Não é um nome muito comum21. Ele pensou por um momento. — É bastante comum entre o Sihar22. Ela ficou surpresa, mas quase fazia sentido – o Sihar era conhecido por seu entusiasmo e domínio da magia do sangue. — Você acha que é Sihar23? O anúncio de hoje, quando a princesa Ariadne chamaria seu primogênito de Titus, causou agitação entre os observadores do palácio. Após o reinado de Titus VI, um dos mais ultrajantes soberanos da história da casa de Elberon, o nome Titus caiu quase totalmente em desuso entre a população do Domínio. A casa de Elberon tem hesitado em reclamar o nome que já foi associado a vários membros mais ilustres: o jovem príncipe é o primeiro menino nascido na casa a se chamar Titus em mais de duzentos anos. – De Reação ao Nome do Jovem Príncipe Causa Confusão, O Observador Delamer, 28 de setembro, Ano do Domínio 1014. 21

É muito triste que Titus VI, um dos magos com mais princípios e coragem que já existiu, seja casualmente referido pela equipe de escritores do Observador Delamer como ultrajante no artigo Reação ao Nome do Jovem Príncipe Causa Confusão. Entristece-me ainda mais que os leitores do Observador Delamer aceitem essa reivindicação sem qualquer dúvida. Sim, todos nós aprendemos na escola que Titus VI teve que abdicar do trono em favor de seu filho, depois que ele usou força mortal contra seus próprios súditos. Mas ninguém fora da comunidade Sihar lembra o contexto das decisões de Titus VI? Aqueles foram alguns dos dias mais sombrios para os Sihar no Domínio: estabelecimentos dos Sihar em todas as grandes cidades destruídos, crianças Sihar sendo espancadas em plena luz do dia, e Sihar que cumpriam perfeitamente a lei eram forçados a fugir de suas casas. As multidões indisciplinadas convergiam no Lower Marin March, orgulhosamente proclamando que não parariam até que tivessem empurrado todos os Sihar para o mar. Titus VI ordenou que as multidões se dispersassem por qualquer meio necessário. Houve 104 mortes antes que os movimentos fossem dissolvidos, mas o número de Sihar que teria morrido caso Titus VI ficasse de lado e não tivesse feito nada, teria estado nas incontáveis dezenas de milhares. E não seja dito que o nome de Titus tenha caído em desuso entre a população do Domínio. Nós, os Sihar, representamos nove por cento da população do Domínio e nomeamos muitos, muitos dos nossos filhos como Titus, em memória e gratidão eterna. – De Cartas ao Editor, O Observador Delamer, 30 de setembro, Ano do Domínio 1014. 22

23 A maior população de Sihar no mundo vive no Domínio, concentrada principalmente em Lower Marin March, embora comunidades menores sejam encontradas nas regiões e nas cidades mais importantes. O Sihar historicamente foi marginalizado da grande comunidade maga por sua prática de magia de sangue. As perseguições, especialmente nos reinos do continente, atingiram uma febre durante o reinado de Hesperia, a Magnífica. A história contada de sua chegada ao Domínio geralmente começa com a súplica dramática da Grande Matriarca dos Sihar a Hesperia, e que a última, então uma jovem mãe, simpatizou com o desespero da matriarca e concedeu aos Sihar um lugar de refúgio. Hesperia atendeu ao pedido da matriarca. Aos Sihar foi oferecido um estatuto especial como convidados da princesa, e deram a terra no Lower Marin March para uso deles, as fronteiras garantidas pelos guardas da princesa para proteção deles. A proteção, no entanto, também efetivamente segregou os Sihar do resto do Domínio. Não

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— Não tenho a menor ideia. Eu simplesmente não queria ser uma dessas pessoas que perderam suas memórias e decidem que devem ser o Mestre do Domínio. — Suas sobrancelhas se juntaram. — Por outro lado, na noite anterior, disparei duas luzes. Duas grandes luzes de fênix. E a fênix representa a Casa de Elberon. Ela guardou todos os remédios e voltou a se sentar. — Talvez você fosse um garoto humilde do estábulo em uma das casas do príncipe, onde adquiriu um amor por fênix. Tendo tido o suficiente de limpar dia após dia, você começou uma aventura que o levou através dos oceanos. Você matou dragões, conheceu lindas garotas e conquistou elogios por sua coragem e cavalheirismo... — E acabei meio aleijado no meio de um deserto? — Toda história deve ter um momento terrível, ou não seria interessante. Ele soltou um bufo. — Eu acho que já tive muitas aventuras. Nas últimas trinta e seis horas, pelo menos três vezes, eu pensei que morreria de susto. Estou pronto para implorar a Sua Alteza que me aceite de volta ao meu emprego, para que eu possa limpar seus estábulos em paz e tranquilidade para o restante da minha vida simplória. Ela sorriu. — Eu amo um homem de ambição. Ele sorriu novamente. E novamente ela ficou bastante, bastante distraída. — Eu preciso admitir, — ele disse, — O céu noturno do deserto é deslumbrante. Não me importaria uma oportunidade para aproveitar sem Atlantis na minha cola... Uma fogueira, uma xícara de algo quente, e todo o cosmos para minha apreciação visual. — Um homem de ambição – e gostos simples.

foi até duzentos anos depois que um decreto principesco de Titus V concedeu aos Sihar a liberdade de movimento em todo o reino. Titus VI, durante seu reinado, revogou o requisito de que o vestuário de Sihar os identificasse enquanto viajam fora do Lower Marin March. Mas ainda assim o status deles permaneceu como o de convidados e, portanto, sujeitos a despejo a qualquer momento. – De Uma Revisão Etnográfica do Domínio.

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— O que você faria se Atlantis não nos perseguisse de um extremo do Saara ao outro? Ela pensou nisso. — Você pode rir, mas se Atlantis não estivesse na foto, eu me perguntaria se não estaria ficando atrasada em minhas aulas por estar no Saara no meio de um semestre acadêmico. Ele riu. — Ria o quanto quiser. Não vou me desculpar pelo desejo ardente de ter sucesso nos meus estudos. — Por favor, não. Além disso, aposto que é o que seu namorado mais ama em você. Ela se sentou em seus calcanhares. — Como você sabe sobre ele? — A escrita escondida na alça da sua bolsa. Ela agarrou a bolsa. — Revela omnia. As palavras apareceram. Na noite em que você nasceu, as estrelas caíram. No dia em que nos encontramos, um relâmpago caiu. Você é meu passado, meu presente, meu futuro. Minha esperança, minha oração, meu destino. Seu protetor. — O homem está louco por você, — Titus disse. Ela olhou para ele, a sujeira, a exaustão, os lábios rachados pela desidratação do deserto. Seus próprios lábios não estavam nem de perto tão terríveis, ele cuidou melhor dela do que dele mesmo. — Você poderia ser ele, por tudo o que sabemos, — ela disse, estendendo um novo pedaço de curativo para ele. Ele mudou de posição. — Eu não poderia escrever nada assim. Desculpe-me, mas deve haver uma lei contra frases como, No dia em que nos encontramos um relâmpago caiu. Com um aceno de mão, ela se livrou do grão que ficou preso em seus cabelos. Alguns outros feitiços de limpeza e ele estava quase impecável. — Talvez você estivesse muito ocupado empacotando tudo isso, pensando em cada eventualidade, para polir suas palavras. — Nós, exímios garotos dos estábulos, podemos embalar e produzir prosas implacáveis ao mesmo tempo.

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A luz mágica revelou algumas manchas mais claras em seus ombros, algumas sardas que ela não notou antes. Um detalhe bastante atraente em um corpo forte e firme, como uma constelação para a ponta de um dedo explorar, para mover-se de um ponto ao outro e... A textura da pele dele – e o fato de ter estremecido – fez com que percebesse que estava tocando-o. — Sua pele está um pouco pegajosa, — ela disse rapidamente, embora não fosse de todo verdade. — Toda essa transpiração não sai apenas com feitiços. Deixe-me lavar você com água. Você se sentirá mais refrescado. — Isso pode ser demais. Você deve descansar mais. — Que a Sorte me proteja, eu literalmente tenho dormido por dias. O glóbulo de água que ela convocou girou furiosamente no ar, refletindo sua agitação. Qual era o problema com ela? Ela deveria aceitar a desculpa que ele ofereceu e deixá-lo em paz. Mas não conseguiu parar. Ela molhou o cabelo dele e usou o sabão da bolsa, o que produziu uma espuma suave e espessa. Suas pontas dos dedos pressionaram o couro cabeludo, trabalhando a espuma em cada mecha. Ela convocou mais água para derramar sobre os cabelos. A água que escorreu, ela desviou para fora da tenda, em direção ao centro da duna nas proximidades. Quando terminou, ela tirou a água que ainda se agarrava aos cabelos e ondulava. Com a mão, ela acariciou os cabelos, certificando-se de ter secado adequadamente. E agora, ela deveria levantar a mão e dizer: tudo pronto. Em vez disso, a palma da mão deslizou até a nuca dele. Então, enquanto observava, meio horrorizada, seus dedos se espalharam onde seu ombro se juntava ao pescoço. Ele respirou fundo. Ela abriu a boca para dizer que nada disso estava acontecendo, que deveria ser uma alucinação da parte dele – e dela. Mas o calor da pele dele sob sua mão não era ilusão. E curiosamente, aquela pele ficou

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mais fresca quando a mão dela percorreu a borda de seu ombro e desceu pelo braço. De repente ele estava de joelhos, de frente para ela. Eles se encararam. Seus olhos eram azuis, ela notou pela primeira vez, a cor dos oceanos de profundidades insondáveis. Ela amava seu abstrato protetor, mas ela conhecia apenas esse menino, que lhe dava mais água do que ele mesmo bebia. Ela passou um dedo pela bochecha dele. Ele pegou a mão dela. Ela prendeu a respiração, sem saber se ele afastaria sua mão ou pressionaria os lábios na palma da sua mão. Um rugido de tremer o chão quebrou o momento.

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Capítulo 18 Inglaterra

— Isso faz sentido. Qualquer reação que Titus esperasse de Fairfax ao ser informada de que a amada de Kashkari era uma maga que estava procurando por ela não era isso. — O que você quer dizer? Ela contou a ele sobre as duas conversas separadas com Kashkari sobre os sonhos proféticos, culminando com o sonho sobre ela, muito antes de ter entrado na casa da Sra. Dawlish. — É bastante seguro assumir que Kashkari é de uma família maga, provavelmente uma no exílio. — Você deveria ter me contado isso há muito tempo. Qualquer coisa que afeta você, eu preciso saber imediatamente. Tudo mudou, mas nada mudou. Ele ainda ficava acordado à noite, preocupado com a segurança dela. E quando ele acordava todas as manhãs, ela ainda era em quem ele pensava antes e depois.

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Ela bateu os dedos no topo de uma cadeira – aquela em que ela sentava quando eles treinavam no Crucible juntos no semestre de verão. — Kashkari não me traiu então, por enquanto podemos assumir que ele não quer prejudicar nenhum de nós. O que precisamos saber é o porquê, depois de manter sua própria identidade em segredo por tanto tempo, ele agora escolhe se revelar a nós. O interior do crânio de Titus latejava. Ele não podia acreditar que viveu na mesma casa que Kashkari por tanto tempo sem nunca adivinhar a verdade. O que mais ele perdeu? — Primeiro, eu preciso consultar o diário da minha mãe. Essa foi a coisa errada para dizer a ela, mas ela não teve nenhuma reação além de elevar um canto de seus lábios. — Eu preferiria tomar minha decisão depois de reunir toda a informação disponível. Seria equivocado ignorar o que ela poderia ter previsto. — Ele odiava se sentir compelido a defender como preferia proceder. Ela sorriu ligeiramente – ou foi uma careta? — Você deve fazer o que quiser, é claro. — Não estou ansioso para isso, sabe. Eu estou... Ela o agarrou pela frente da camisa. — Não. Você escolheu. Agora se comprometa com isso! E se você vai pedir ao Wintervale que enfrente Bane, então ele merece pelo menos isso de você. A voz dela estava a meio caminho entre raiva e angústia. Os olhos dela, escuros e ferozes. Os lábios, cheios e vermelho, separavam-se de suas respirações agitadas. Ele não deveria, mas segurou o rosto dela e a beijou. Porque eles passaram o ponto em que as palavras eram úteis. Porque ele mais uma vez tinha medo de morrer. Porque ele a amava tanto quanto amava a própria vida. Uma batida alta fez com que pulassem. — Você está aí, príncipe? — Kashkari chamou. — Wintervale está acordado e quer ver você.

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*** Wintervale estava sentado na cama, um grande sorriso no rosto. — Titus, é bom te ver. Você também, Fairfax. Como foram os treinos de cricket? Eles sentiram minha falta? — Desesperadamente, — Fairfax disse, sorrindo de forma convincente. — Meninos se jogaram no chão, uivando e esperneando, quando a sua ausência foi anunciada. Wintervale colocou uma mão sobre o peito. — Isso aquece o meu coração. Afastando o cobertor, ele colocou os pés no chão. Tanto Titus quanto Fairfax avançaram para ajudarem-no. Mas Wintervale ergueu uma palma para indicar que queria se levantar sozinho. Fairfax, forte como era, quase não o pegou quando ele tombou. — Deus todo-poderoso, Wintervale. Deve ter um pequeno bezerro em Wyoming menos pesado do que você. Surpresa está escrita em todo o rosto de Wintervale. — O que é isso? Eu me senti perfeitamente bem agora. — Você está acamado há dois dias, — Titus disse. — Pouco surpreendente que suas pernas estejam vacilantes. — Acho que um de vocês terá que me ajudar no lavatório então. — Essa é uma tarefa para um homem de verdade, — Titus disse. — Temo que você tenha que se afastar, Fairfax. — Eu sabia. Você ainda está amargo desde quando comparamos nossas bolas. Wintervale cambaleou enquanto se arrastava com seu braço sobre os ombros de Titus. Ele foi recebido calorosamente no corredor. No caminho de volta, eles pararam várias vezes para falar com meninos que queriam saber como ele estava. — Cavalheiros, deixem Wintervale voltar para a cama, — veio a voz firme da Sra. Hancock. — Se desejarem visitá-lo e conversar, faça isso de uma maneira que não o cansará.

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— Sra. Hancock queria vê-lo assim que acordou, — Kashkari disse; e deve ter ido buscá-la. Wintervale sorriu para a mulher. — Claro que sim, querida Sra. Hancock. Fairfax ainda estava lá no quarto de Wintervale quando eles voltaram. Ela ajudou Wintervale a voltar à cama. Mas, à medida que mais e mais meninos entravam, ela saiu, em grande parte despercebida. *** Iolanthe abriu a porta do laboratório ao som de uma de máquina de escrever. O príncipe tinha uma bola de digitação que transmitia mensagens de Dalbert, seu espião pessoal. A bola de digitação já esteve armazenada em um armário em seu quarto na casa da Sra. Dawlish, mas ele a tranferiu até o laboratório para guardar. As chaves de latão, que pareciam pedras grosseiras em um porcoespinho não muito ameaçador, pararam de mexer para cima e para baixo quando ela chegou. Ela pegou o pedaço de papel colocado na bandeja abaixo. A mensagem parece ser uma linguagem sem nexo, mas ele a ensinou a decifrar o código. Ela pediu para ele, lembrou-se com dor, no dia em que decidiu que realmente o ajudaria com seu objetivo impossível. Um pensamento estranho borbulhou do fundo de sua mente. Ela considerou o amor dele como fraco, porque ele não a escolheria sobre as palavras de sua mãe, mas o que ele amava? Era alguma força maior ou constância? Ele estava, como sempre, se dirigindo para o perigo desastroso, e ela o deixaria ir com nada mais do que um, Que a Sorte esteja com você. Ela permaneceu um minuto com os dedos na nuca, tentando aliviar a tensão no pescoço que não queria ir embora. Então suspirou e começou a ler o relatório de Dalbert. Sua alteza Sereníssima,

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Por suas instruções, eu investiguei os eventos em Grenoble, na França. De acordo com meus informantes em Lyon e Marselha, as comunidades exiliadas nessas cidades foram avisadas a não ir para Grenoble, por causa de uma informação sugerindo que poderia ser uma armadilha. Os exilados dessas comunidades fizeram a viagem a Grenoble, mas com o propósito expresso de advertir os magos que vinham de Cáucaso, atraídos por rumores do retorno de Madame Pierredure. Eles relatam que conseguiram afastar vários magos com sucesso, embora houvesse outros que não conseguiram localizar a tempo ou persuadir a sair. A invasão em Grenoble é a mais recente armadilha Atlante, usando Madame Pierredure como uma isca. Relatos convincentes revelam a morte de Madame há oito anos e meio, o que nunca foi divulgado porque ela tirou a própria vida. (Era bem conhecido durante as rebeliões de dez anos atrás que Atlantis havia capturado seus filhos e netos, então os torturou e eventualmente os matou). Mas muitas das armadilhas, antes da verdade ser descoberta, foram bastante eficazes. A recente morte da Inquisidora e os rumores da morte de Bane foram vistas como uma abertura, um sinal de fraqueza da parte de Atlantis. Novos grupos clandestinos de resistência foram formados; os idosos foram despertados da inatividade. A aparente ressurreição subsequente de Bane não provocou um entusiasmo por ele – o pensamento comum era que ele não poderia continuar ressuscitando. Agora, muitos desses grupos de resistência, antigos e novos, foram dizimados, seus membros mais ousados e mais entusiasmados foram levados à guarda Atlante. Proponho meus humildes desejos pela saúde e bem-estar de Sua Alteza. Seu fiel súdito e criado, Dalbert

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Tendo passado o verão em um isolamento quase completo, Iolanthe não tinha ideia de que o que ela e o príncipe realizaram na noite de quatro de junho inspiraria tantos outros a se organizar contra a Atlantis, nem que a Atlantis já havia respondido rápida e cruelmente para enfraquecer essas novas ambições. Seu coração doía com uma consternação que não tinha nada a ver com a sua própria rejeição do caminho do destino, mas pelas esperanças esmagadas de todos aqueles que acreditaram que a primeira luz do amanhecer estava finalmente sobre eles. Ela colocou a mensagem de Dalbert na mesa de trabalho. Já estava na mesa uma cópia do Observador Delamer, feita de uma seda fina, porém robusta, que poderia ser dobrada e carregada no bolso. O jornal estava aberto na última página, cheio de propagandas de três linhas para potros fofinhos, tônicos de beleza e capas que prometiam tornar quase impossível ver à noite. O que o príncipe estava procurando? Então ela viu, escondido perto de um canto, um anúncio de Grandes Observações de pássaros. Pássaros curiosos e insólitos, vistos pela última vez em Tangier, Grenoble e Tashkent. Enquanto ela lia, o texto mudou para visto por último em Tangier, Grenoble e St. Petersburg. Com exceção de Grenoble, todas as outras cidades não magas tinham grandes populações exiladas. Atlantis estava longe de terminar com sua repressão. Ela entrou na sala de leitura com um coração pesado e ficou de pé diante do balcão de atendimento, ainda distraída. Talvez fosse bom e certo que Wintervale tenha aparecido. Se o vórtice que afundou o Lobo do mar fosse alguma indicação, seus poderes a envergonhariam. E era preciso um poder dessa magnitude para enfrentar Atlantis. A imagem voltou para ela novamente, o navio pego como uma folha em um redemoinho, impotente para escapar. — Um redemoinho que janta navios, — ela murmurou.

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Um livro apareceu na prateleira atrás do balcão de atendimento, o qual deveria ter pensado que ela queria algo sobre o assunto. Ela o pegou e distraidamente virou algumas páginas. Era um diário de viagem escrito por um mago que navegou com um grupo de amigos do Domínio para a Atlantis, a fim de testemunhar a demolição de um hotel flutuante que foi condenado. No caminho para a Baía de Lucidias, passamos perto de um redemoinho atlante, uma visão ao mesmo tempo terrível e inspiradora. De diâmetro, tinha quase dezesseis quilômetros, as águas escuras agitando incessantemente em torno de um centro em forma de funil. Em cima dos círculos, os carros e cavaleiros circulavam em cima de pégasus – esse fenômeno é tão novo e impressionante para os Atlantes como é para os turistas. E embora grande parte do país seja pobre, as elites ainda possuem poder suficiente para fazer a viagem de oitenta quilômetros da costa. Ninguém sabe como o vórtice surgiu. Um dia não estava lá, no próximo estava. Meus amigos declararam ser uma visão tão notável quanto os picos inconstantes das Montanhas Labyrinthine, e devo concordar. Ela olhou para a capa do livro. Foi publicado em AD 853, quase cento e oitenta anos. Ela sabia que o redemoinho estilizado, que era o símbolo da Atlante, representava um verdadeiro turbilhão, mas não sabia que o redemoinho nem sempre esteve lá. Interessante, mas ela tinha um propósito diferente em mente. Ela guardou o livro. — Mostre-me tudo com esta frase dentro: Ostras dão pérolas, mas apenas se você estiver armado com uma faca e disposto a usá-la. O diário de viagens desapareceu, para ser substituído por centenas de edições das peças de Argonin. Ela modificou seu comando. — Tudo que não seja uma peça de teatro.

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Ainda havia muitos livros. — Leve os livros didáticos e os livros de citações. Três livros permaneceram. Primeiro, talvez sem surpresa, era a dissertação do Mestre Haywood. A frase estava na página final, sem contexto ou explicações. O próximo era a compilação anual do Observador, de AD 1007, seis anos antes de Iolanthe ter nascido. O artigo que continha a citação tinha como assunto uma festa à fantasia realizada para comemorar o tricentenário do nascimento de Argonin – e marcar o início de um ano de renascimento de suas peças, maiores e menores. A maioria dos convidados estavam vestidos como os personagens mais conhecidos de Argonin. Um número justo chegou como Argonin – é sempre uma surpresa para alguns que Argonin não era um, mas dois escritores, uma equipe de marido e mulher. E uma senhorita, que não queria que mostrássemos sua imagem ou nome, já que era menor de idade, escandalizava um pouco com uma fantasia de ostra que se abria para revelar uma grande e luminosa pérola; juntamente com sua amiga, que carregava um cutelo, elas formavam uma imagem de sua frase favorita de Argonin, Ostras dão pérolas, mas apenas se você estiver armado com uma faca e disposto a usá-la. O último era um trecho de uma publicação oficial da melhor escola do Domínio para o treinamento de oficiais militares. Cinco cadetes foram apresentados como os graduados mais promissores do ano. E a frase de Argonin foi dada como a citação favorita de um cadete com o nome de Penelope Rainstone. O coração de Iolanthe disparou. Quem era Penelope Rainstone? Sua pergunta foi facilmente respondida pelas fontes na sala de leitura: Penelope Rainstone era a principal assessora de segurança do regente, especializada em ameaças externas ao Domínio. Iolanthe voltou ao artigo original, que pintava um retrato brilhante de lealdade, brilho e perseverança da jovem Comandante

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Rainstone. Parece que ela tinha os ingredientes do soldado perfeito, mas na seção de entrevista, quando lhe foi perguntado se ela quebraria regras, ela disse, eu gosto de regras e ordem tanto quanto o próximo soldado. Mas devemos lembrar, as regras e os regulamentos são muitas vezes feitos para o tempo de paz e condições típicas, enquanto nós, futuros oficiais das forças de segurança do Domínio, estamos sendo treinados para guerra e caos. Em circunstâncias extraordinárias, decisões extraordinárias devem ser feitas. Em outras palavras, se necessário, ela não hesitaria em quebrar todas as regras no livro. As mãos de Iolanthe se agarravam na borda da mesa. Mas não havia nada a fazer senão a próxima pergunta lógica. — Mostre-me tudo o que você tem de Horatio Haywood e Penelope Rainstone juntos. E lá estavam eles, em uma seção de edição especial para Observador Delamer, posando juntos em uma recepção realizada na Cidadela, para os veteranos graduados da melhor academia do Domínio. A legenda dizia: Horatio Haywood, 18, da Escola Trident e Hippocampus em Sirenhaven, Siren Isles e Penelope Rainstone, 19, da Commonweal Academy de Delamer. Eles vão para o Conservatório de Artes e Ciências Mágicas, e o Centro de Aprendizagem Marcial Titus, o Grande, respectivamente. Embora o Sr. Haywood e a Srta. Rainstone tenham se encontrado apenas na recepção, eles não economizavam elogios suficientes um para o outro. O jovem e a jovem na foto estavam de frente um para o outro, seus rostos brilhando de prazer. Era isso? A comandante Penélope Rainstone era a guardiã da memória? Ela era a mãe de Iolanthe?

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Capítulo 19 O deserto do Saara

O rugido soou novamente. Fairfax mergulhou para a sua bolsa. Titus agarrou sua túnica e puxou a varinha de sua bota. Ela acenou com a mão. Um barulho quase tão aterrador quanto o rugido de um dragão retumbou através da tenda, ela estava causando uma avalanche, destinada a assustar e distrair o wyvern de areia lá fora. — Fique aqui, — Titus pediu enquanto colocava a túnica. Ele desmaterializou – e ficou imediatamente enterrado sob um deslizamento de areia. Ele desmaterializou novamente, em direção a parte superior da duna alta, bem quando um wyvern de areia, quase exatamente da mesma cor do Saara, voou para o céu gritando, suas asas batendo forte. Ele sabia que os wyverns de areia eram maiores do que os wyverns normais, mas este era pelo menos três vezes do tamanho que ele antecipou; a envergadura de suas asas com as dimensões de uma pequena mansão, e carregava dois cavaleiros, em vez do habitual.

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Os cavaleiros, em uniformes atlantes, tentavam controlar o wyvern da areia e apontar o nariz em direção à Fairfax novamente. Titus lançou uma sucessão de feitiços de defesa nos cavaleiros, seguido por um feitiço de inconsciência. Um cavaleiro caiu. O wyvern de areia virou e expeliu um fluxo de fogo na direção de Titus. Ele criou um escudo e apontou um ataque na barriga do animal. Wyverns – wyverns comuns pelo menos – tinham um abdômen suave, o motivo pelo qual eles poderiam ser pegos e domesticados por magos habilidosos. Mas

o

wyvern

de

areia

nem

reagiu

quando

o

feitiço

desestabilizador de Titus atingiu diretamente o seu abdômen, com exceção de avançar para ele, uma enorme garra estendida. Com a esperança de afastar o wyvern de areia para longe de Fairfax, ele saltou para o topo da próxima duna – ele havia montado o acampamento no estreito vale entre duas dunas altas que ficavam próximas e paralelamente uma com a outra, esperando uma melhor proteção contra o calor do sol durante o dia. Desmaterialização cega, sendo o que era, ele terminou a meio caminho da encosta da areia que ele havia apontado, em vez de no topo, com o wyvern de areia já em seus calcanhares. Olhando para o vale, em direção ao ponto à distância onde as dunas surgiram, ele desmaterializou novamente. Desta vez, ele se materializou a pelo menos meio quilômetro de distância. O wyvern de areia girou e avançou para ele. Então, no ar, ele estremeceu – convulsionou, quase – e com um enorme rugido, voltou em direção a Fairfax, ainda que Titus o atacasse com vários feitiços. Ele praguejou e desmaterializou de volta para a tenda, apenas para se encontrar completamente enterrado na areia. Não só Fairfax foi embora, como a barraca também desapareceu. Praguejando novamente, ele se levou a um ponto alto. Fairfax estava no vale entre as dunas, completamente cercada pelo wyvern de areia, não mais de seis metros dela. Seus braços estavam levantados, como se estivesse sinalizando para a besta parar. E o animal

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parecia estar cooperando de uma maneira mais civilizada, pairando no ar, a ponta da cauda quase tocando o chão. Dois segundos se passaram antes de Titus entender exatamente o que estava vendo. O wyvern de areia estava tentando avançar, centímetro a centímetro, contra o vento que Fairfax criou, enquanto enviava ondas de areia na direção dela. Ela gritou. O wyvern de areia, com a envergadura de trinta metros, estava realmente recuando algumas jardas. Titus enviou mais ataques no cavaleiro restante em cima do wyvern de areia. Mas o cavaleiro se abaixava atrás da asa direita do dragão, protegendo-se dos ataques. Titus desmaterializou várias vezes, tentando encontrar um bom ângulo – ele esperava que o wyvern de areia não estivesse acostumado a trabalhar tão duro para conseguir seu jantar e, com prazer, deixaria o mago elementar não cooperativo para presas mais fáceis, caso pudesse se livrar do cavaleiro. Finalmente, ele encontrou um ponto adequado que lhe deu uma visão relativamente sem obstáculos. Ele levantou o braço. Mas o que ele estava ouvindo? Misturado com o uivar do vento, a areia sendo levada como as águas de um rio, e a batida das asas do wyvern de areia, havia alguma outra coisa? Ele desmaterializou quando uma onda de calor atingiu sua pele. Um esquadrão de wyverns albinos chegou. Ele desmaterializou até Fairfax. Ainda seria muito arriscado para ela desmaterializar, mas não sabia como tirá-la dessa situação. Ele jogou um escudo sobre ela, mal a tempo de bloquear uma torrente de fogo combinada dos wyverns. Ela estendeu uma mão em direção aos wyverns, redirecionando o fogo um contra o outro, forçandoos a quebrar a formação e a dispersar. Mas com essa interrupção em sua concentração, a corrente de ar que ela estava usando para conter o Wyvern de areia ficou menos intensa. O wyvern de areia, ainda batendo suas asas poderosamente, passou por eles.

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Ele pediu outro escudo, o mais forte que conseguiu. — Se você enterrar o wyvern de areia, ele vai escavar mais rápido do que você. E mesmo que você mantenha todos os wyverns à distância, isso só daria tempo para mais reforços chegar. E se os cavaleiros conseguissem formar uma zona temporária sem desmaterialização – uma com três metros de diâmetro, que poderia ser feita facilmente em quinze minutos, o que os aprisionaria – então nem mesmo ele seria capaz de sair. A única escolha que restava era que ele a desmaterializasse, uma decisão potencialmente fatal que não desejava fazer para ela. Ele pegou a mão dela. — Você quer vir comigo? As pontas dos seus dedos tremiam contra a mão dele. — Quais são as minhas chances de sobrevivência? — Dez por cento. Na melhor das hipóteses. — Eu não quero morrer, — ela murmurou. — Ou ser capturada. Não há outras escolhas? Sua voz tremia. — Convocar um ciclone. Explodir todos. — Se eu pudesse. — Ela respirou fundo. — Espere um minuto, o que o meu admirador disse? No dia em que nos encontramos, um relâmpago caiu. Você acha que ele poderia ter dito isso literalmente? Isso não era possível. — Ouça, Fairfax... Quase casualmente, ela levantou a mão livre para o céu sem nuvens. Sua mão apertou um punho. E veio o relâmpago. Ele abriu a boca, para arquejar ou gritar, ele não sabia dizer. Mas nenhum som surgiu. Ele apenas olhou, com os olhos arregalados, enquanto o brilhante cometa de eletricidade se precipitava para a Terra. Quando se aproximou do chão, o relâmpago se dividiu em meia dúzia de ramos. Cada ramo atingiu um wyvern. Cada wyvern se contraiu e caiu, atingindo o deserto com golpes que chocalharam o esqueleto de Titus. Piscando, ele se virou para ela. Ela parecia tão espantada quanto ele.

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— Que a Sorte me proteja, — ela murmurou. — É por isso que Atlantis me quer? A menção da Atlantis o tirou de seu atordoamento: o relâmpago atuaria como um farol para qualquer um e para todos os perseguidores próximos. Ele começou a correr, puxando-a com ele. — Depressa. Carros blindados estarão aqui a qualquer minuto. O wyvern de areia era o único com uma sela dupla. Ele soltou a correia e afastou o cavaleiro inconsciente, mas ainda respirando, enquanto ela procurava por rastreadores – os corcéis Atlantes geralmente usavam vários como parte do equipamento. Após ela descartar alguns pequenos discos, ele a ajudou a sentar na frente dele. À distância, ele conseguiu ver um trio de carros blindados se aproximando. Ela apontou a varinha para o wyvern de areia. — Revivisce omnino. A fera estremeceu e cambaleou em seus pés. Titus pegou as rédeas. O wyvern de areia espalhou suas asas e iniciou um voo um pouco cambaleante. Um wyvern em condições normais pode concorrer com um carro blindado para uma corrida curta, mas este não estava em condições normais e eles tinham um longo caminho a percorrer. Ele virou o wyvern de areia para o leste. — Você queria ir para o leste, se me recordo corretamente. — Tão longe de Atlantis quanto possível. — Ela olhou para o norte, observando a aproximação de carros blindados. — Eu deveria assumir que eles são construídos para resistir a ataques de raios? — Sim, deveria. Ela suspirou. — Ninguém pensou em me facilitar as coisas? — Ela apontou para o chão. — Faça o wyvern voar entre as dunas. Ele dirigiu o wyvern de areia mais baixo. Os carros blindados perseguidores os seguiram até o vale, aproximando-se o tempo todo. — Mais perto do chão, — ela disse.

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Ele estava começando a ter uma ideia do que ela planejava fazer. Ele olhou por cima do ombro dele. Os carros blindados estavam a meio quilômetro atrás e se aproximavam; eles também voavam perto do chão. — Se aproxime, — Fairfax murmurou, olhando ao redor dele. — Se aproxime um pouco mais. — Você pode ser a garota mais assustadora que eu já conheci, — ele disse a ela. — Não vamos ser dramáticos, — ela disse secamente. — Eu sou a única garota que você pode se lembrar de encontrar. Então ela sorriu e apontou a varinha. As dunas se elevaram, como duas ondas enormes, e caíram sobre os carros blindados, enterrando-os sob uma montanha literal de areia. Ele pediu que o wyvern voasse mais alto, dirigindo-se mais uma vez para o leste. — Se houvesse uma competição para garotas assustadoras, eu colocaria minha última moeda em você. Ela apenas riu suavemente e deitou a cabeça contra o ombro dele, adormecendo novamente em poucos minutos.

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Capítulo 20 Inglaterra

2 de janeiro, AD 1010 Está escuro – crepúsculo ou madrugada – não consigo dizer. Por trás, vejo dois homens – ou meninos quase crescidos – caminhando, um apoiando o outro. Eles se movem furtivamente, olhando constantemente em todas as direções. Quando eles finalmente param e se agacham atrás de uma rocha, vejo o lugar onde estão se aproximando. Um forte palaciano, ou um palácio de fortaleza, situado no topo de uma colina rochosa que domina o centro de um vasto vale cercado por picos pontiagudos. Quase todos os picos têm torres de guarda, suas janelas estreitas brilhando como olhos semicerrados de bestas noturnas. O pavimento do vale está iluminado, revelando anéis de defesas. Escrevi isso esta manhã, atormentada porque estava prestes a chegar atrasada para uma reunião com o alto conselho que o meu pai

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desejava que eu assistisse. Durante todo o dia, eu lembrei da visão e me perguntei o que no mundo eu estava olhando. Só agora visitei o meu pai nos campos de ensino. Ele é tão difícil pessoalmente, mas o velho ele, o recorte e semelhança que ele deixara para trás nos campos de ensino do Crucible – eu adoro aquele jovem. E quebra meu coração perceber que eu considero alguém que não existe mais, não apenas um amigo querido, mas a única pessoa que entende a vida em que vivo agora e todas as responsabilidades que eu enfrentarei. Como receio que eu venha a ser como meu pai algum dia, dura e sombria, cheia de raiva e recriminação. Lembrar o quão encantador e exuberante ele foi uma vez, apenas aprofunda esse medo. Mas eu divago. O jovem Gaius me disse que, sem dúvida, eu vi o Palácio do Comandante, o retiro de Bane no interior de Atlantis. Os jovens que vi na visão são os magos mais valentes ou os mais estúpidos vivos.

Depois da revelação no chá, o que Titus queria ver era algo sobre Kashkari. Mas o diário escolheu mais uma vez confirmar que Titus iria para Atlantis com apenas outra pessoa, alguém que precisava de ajuda para caminhar. Ele fechou o diário. Do outro lado da mesa, Fairfax estava sentada, saindo do Crucible. — Você conhece alguém chamada Penelope Rainstone? — Ela perguntou, com uma estranha insipidez na voz. — Ela é a principal assessora de segurança do regente. — Que tipo de pessoa ela é? — Extremamente capaz. Parece dedicada à coroa. Nenhuma evidência de qualquer transação extracurricular com a Atlantis. Por que você está interessada nela? Ela não respondeu, mas parecia perturbada. Poderia ser? — Você encontrou o nome dela enquanto procurava por pistas sobre a identidade do guardião de memória?

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Pois era assim que ela conseguiria encontrar o caminho para Horatio Haywood, primeiro descobrindo a identidade do guardião da memória. Ela saiu do banquinho e encolheu os ombros para colocar o casaco de uniforme que estava na mesa de trabalho. — A frase de Argonin é a citação favorita dela. E ela e o Mestre Haywood se conheceram há muitos anos, durante uma festa na Cidadela, antes mesmo de começarem seus estudos universitários. Mas nada conclusivo. Ele não sabia o que esperava, mas isso era um choque. A Comandante Rainstone? — Eu vou voltar, — Fairfax disse. A casa era trancada antes do jantar. Depois disso, para voltar, alguém teria que escalar através de uma janela ou desmaterializar-se. E fazer uma desmaterialização em qualquer momento, havia uma chance de ser visto. Para ele não importava. Para ela, tudo importava. Mesmo subir por uma janela, se houvesse testemunhas, poderia suscitar a suspeita da Sra. Hancock. Ela sempre foi escrupulosa antes. Ela deveria lembrar que embora não pudesse levá-la em sua missão, ela ainda era a maga mais procurada da Terra. Mas não tinha o coração para dar um sermão, então apenas disse: — Deixe-me ir primeiro e certificar de que a barra está limpa. *** Depois que Titus deixou Fairfax com segurança, ele procurou Kashkari no quarto de Wintervale. Mas só encontrou Cooper e Sutherland, já saindo. Wintervale bocejou imensamente, seus olhos fechando. Kashkari estava no próprio quarto. — Sente-se, príncipe, — ele disse quando Titus entrou. — O círculo de som já foi definido, a propósito. Titus chegou ao ponto. — Quem é você?

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— Não sou importante, mas você pode ter ouvido falar do meu tio ultimamente. Seu nome era Akhilesh Parimu. Titus olhou para Kashkari – o nome não significava nada para ele. Então, de repente, sim. — Akhilesh Parimu, o mago elementar nascido na noite da grande tempestade de meteoros em 1833, aquele que despertou um vulcão inativo? Kashkari assentiu. — Então você também sabe o que aconteceu com ele. — Sua família o matou ao invés de deixar Atlantis capturá-lo. — Ele implorou para matá-lo, em vez de ser levado – ou pelo menos essa sempre foi a versão contada para mim, — Kashkari disse. — Em qualquer caso, em retaliação, Atlantis matou todos os outros da família, exceto minha mãe, que era muito jovem na época e foi enviada para ficar com um amigo, logo que os poderes de Akhilesh se manifestaram. Uma amiga, a mulher que eu sempre conheci como minha avó, convenceu o marido de que eles deveriam levar minha mãe e fugir para um reino não mago, então eles fugiram, deixando sua ilha no mar da Arábia para se instalar em um subcontinente, em Hyderabad. Minha mãe cresceu sabendo que era uma maga refugiada, mas não sabia nada sobre a história de sua família biológica. Uma onda de revoltas nos reinos subcontinentes trouxe um influxo de magos refugiados para Hyderabad. Alguns queriam formar uma nova comunidade coerente; outros simplesmente desejavam desaparecer na multidão. Ela se casou com um jovem do último grupo. Ele tornou-se um advogado, eles tiveram dois filhos, e viveram uma vida que, no exterior, dificilmente se distinguia daquelas dos não magos ao redor deles. E então ela engravidou novamente e eu nasci durante a grande tempestade de meteoros de 1866. Isso assustou meus avós, que lembraram o que aconteceu na vez anterior, uma criança da linhagem de minha mãe nasceu durante uma tempestade de meteoros. Eles finalmente contaram a minha mãe a verdade sobre o irmão e os pais dela, e mesmo que os poderes elementais raramente funcionassem em famílias, eles me observaram ansiosamente.

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O meu poder, descobriu-se, não estava nos elementos, mas em sonhos proféticos. Fairfax lhe contou? Titus debateu se deveria envolver Fairfax na conversa. — Ele acha sua habilidade bastante curiosa. — Quando minha família percebeu que eu não era um mago elementar, eles relaxaram o suficiente para me permitir tomar uma decisão sobre se eu queria vir à Inglaterra para estudar. Nós, da herança oriental, não consideramos visões do futuro como algo que deve ser aceito, então eu me inclinei a ficar com minha família, até que eu tive um novo sonho que mudou minha decisão. O sonho era apenas um fragmento de várias pessoas em um quarto - seu quarto na verdade – e um deles me dizia: Ao ficar perto de Wintervale, você o salvou. Isso não era o que Titus esperava ouvir. Por algum motivo, porque seu conhecimento dos sonhos proféticos de Kashkari viera pela primeira vez de Fairfax, e porque o Oráculo lhe dissera que Kashkari era aquele a quem ela deveria procurar por ajuda, ele havia antecipado que qualquer outra coisa que Kashkari diria a ele também giraria em torno de Fairfax. Mas, é claro, ele deveria ter sabido melhor. A partir do momento em que Kashkari começou sua explicação, apesar de ainda não ter mencionado especificamente, cada palavra que ele havia proferido se centrou em uma coisa: no grande mago elementar não do tempo de seu tio, mas de seu próprio. E apesar do quanto Titus desejava ferozmente, esse mago era Wintervale, e não Fairfax. — Então você veio para salvar Wintervale, — ele disse, com o cuidado de não mostrar seu desapontamento em sua voz. — Eu sabia quem era Baron Wintervale – a Revolta de Janeiro teve tanto sucesso por um tempo que o nome dele se tornou sinônimo de esperança em todos os reinos magos. Minha família não conseguia parar de falar sobre todas as suas novas vitórias – não soubemos até mais tarde que ele tinha a Baronesa Sorren como estrategista; pensamos que era tudo ele, de uma só vez superando e dominando Atlantis. E lembro de meus pais sussurrando um com o outro sobre a possibilidade de finalmente voltar para casa, de não ser mais um exilado. Toda essa

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esperança foi esmagada quando a Revolta de Janeiro foi derrotada. E quando comecei a ter esse sonho particular, Barão Wintervale já estava morto. Mas pensei comigo mesmo, e se isso significar que eu tenho um papel maior a desempenhar do que eu imaginava? E se eu puder resgatar o filho do Barão Wintervale de um perigo terrível e ajudá-lo a reavivar o sonho de seu pai? — E pensar que pensei que sua ambição era ajudar a Índia a alcançar a independência da Grã-Bretanha. — Não, minha ambição sempre foi derrubar Bane, — Kashkari disse facilmente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Justiça para meu tio e toda a família. Justiça para todas as outras famílias que foram sacrificadas na busca de Bane por um poder cada vez maior. — E você acha que Wintervale é a chave para tudo isso? — Eu não sei de uma maneira ou de outra. Assim como não posso dizer que minha aproximação de Wintervale por todos esses anos tiveram algum efeito. Titus percebeu quão perto Kashkari esteve de Wintervale nas últimas semanas. Mas mesmo antes disso, os dois eram quase inseparáveis há anos. — Você contou a Wintervale? Kashkari balançou a cabeça. — Você sabe como ele é. Ou ele precisa se tornar muito mais discreto ou a situação deve ficar mais terrível, antes de me arriscar a dizer toda a verdade a ele. — Por que você está me contando então? — Preciso de um conselho. Titus sentiu uma estranha premonição. — Vá em frente. — Recentemente, tive o sonho novamente, e desta vez eu finalmente vi o rosto de quem disse: Ao ficar perto de Wintervale, você o salvou. — Quem é? — Sra. Hancock. — O quê?

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Sra.

Hancock,

enviada

especial

do

Departamento

de

Administração da Atlantis? — Eu estive no gabinete dela. Vi o símbolo do redemoinho na gaveta dela, — Kashkari disse. — Eu sei que ela é uma agente da Atlantis. Mas Atlantis tem muitos agentes, e nem todos são leais ao Bane. — Não vi nada da Sra. Hancock que sugeriria que ela não fosse extremamente leal ao Bane. O rosto de Kashkari se abateu. — Eu esperava que você soubesse algo sobre ela que eu não. Que talvez ela seja amigável com nossa causa. — Sua causa, não a nossa, — Titus o lembrou, de forma clara. — Mas Amara me disse que Atlantis o considera um adversário. Ela disse que Atlantis também acredita que você está escondendo um mago elementar tão poderoso quanto foi o meu tio. Amara deve ser aquela que invadiu a festa na Cidadela, que alegadamente se envolveu com o irmão de Kashkari. Titus fez seu tom desdenhoso. — Um mal-entendido que ficou fora de controle. Quando o mago elementar convocou o relâmpago, eu peguei meu peryton e fui olhar. Os agentes da Atlantis chegaram ao local comigo ainda circulando por cima e me perseguiram desde então. — Entendo, — Kashkari disse cuidadosamente. — Mas não precisa se preocupar que qualquer coisa que você diga aqui encontre o caminho para as orelhas erradas. Talvez eu não tenha a mesma ambição que você, mas não tenho amor por Atlantis e não ficarei no seu caminho. Titus estava prestes a dirigir-se para a porta quando se lembrou de algo. — Pode me dizer por que você chegou tarde à escola? Sabendo o que sei agora, imagino que você não estivesse preso em um navio não mago no Oceano Índico. — Não, eu estava na África no noivado do meu irmão – a família da noiva dele mudou-se para o Reino de Kalahari há várias gerações, e até mesmo no exílio, eles não se deslocam para longe do Kalahari. — Então a mulher é realmente sua futura cunhada?

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— Eu temo que sim. — O olhar de Kashkari vagou brevemente para a fotografia da festa de noivado. — Nós conversamos lá. Amara relatou o que pensou ser uma notícia encorajadora, que Madame Pierredure surgiu para distribuir armamento e habilidades para magos em

vários

reinos

que

planejavam

secretamente

ataques

contra

instalações atlânticas. — Quando na verdade ela se suicidou anos atrás. — Em nossa casa, nada menos – ela e minha avó foram amigas na escola e ela apareceu à nossa porta depois que as rebeliões falharam. Nós contamos a Amara tudo isso. Os próximos dias foram um borrão – foi o que atrasou o meu retorno à Grã-Bretanha. Titus assentiu. — E há uma razão particular pela qual você escolheu dizer à Fairfax sobre seus sonhos proféticos? — Fairfax é um caso estranho. Eu esperava que você pudesse me contar mais, já que sempre foi entendido que ele era seu amigo. Mas, embora eu saiba que ele nunca esteve aqui antes do início do último semestre, o que não posso decidir é se você o colocou aqui, ou se Atlantis o colocou aqui e você deve se esforçar para tolerá-lo. Titus olhou para Kashkari. Ele se preocupou com muitas coisas e inventou inúmeros cenários possíveis para se defender, mas nunca lhe ocorreu que alguém veria Fairfax como uma possível agente de Atlantis. — Por que você acha que Atlantis o colocou aqui? — Porque, para duas pessoas que deveriam ser amigas, às vezes vocês certamente não se suportam. Por vezes, Titus esquecia o grande abismo entre ele e Fairfax no começo do semestre de verão. A divisão entre eles pareceu um abismo – completamente intransponível. O que, no entanto, conseguiram superar. Isso significava que havia esperança para eles desta vez também? — Você mencionou suas suspeitas sobre Fairfax para alguém, qualquer um? — Não. Desde que chegou ao nosso meio, ele não tem sido nada mais do que prestativo ao nosso redor.

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Beleza interior. Era o que os meninos viram em Fairfax desde o início; sua bondade, sua companhia confortável, sua aceitação fácil de como eles eram. — Eu continuaria não dizendo nada sobre Fairfax. — Eu entendo. E a Sra. Hancock? A Sra. Hancock era um problema muito diferente. Titus não tinha a intenção de confiar em ninguém com o símbolo de Atlantis em sua gaveta. — Deixe-me perguntar ao redor. Eles disseram boa noite e Titus caminhou até a porta. Quando estava prestes a sair, no entanto, Kashkari falou novamente: — Sua Alteza. Titus não se virou. — O que é? — Você pode não dizer nada sobre o que acredita, Sua Alteza, mas lembre-se dos meus poderes, —

Kashkari disse, sua voz calma e

tranquila. — Eu vi quem você é, e essa é a única razão pela qual arrisquei minha vida, e as vidas de todos aqueles que eu amo, dizendo a verdade. Algum dia, eu espero que você retorne essa confiança.

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Capítulo 21 O deserto do Saara

Meia hora se passou desde que Fairfax convocou o relâmpago e enterrou os carros blindados, meia hora sem problemas com os agentes da Atlantis. O sol refletia branco e implacável; a areia ondulava, como a superfície de um mar movido pelo vento. O wyvern de areia, uma criatura robusta, se recuperou em grande parte do choque elétrico que recebeu e voou constantemente em velocidades superiores a cento e vinte quilômetros por hora. Mas Titus não se atreveu a baixar sua guarda e continuou examinando diferentes partes do céu com feitiços de longa distância. Uma vez que ele e Fairfax fossem encontrados, tornava-se muito mais fácil para Atlantis estabelecer um novo alcance de busca. Suas forças já não precisavam peneirar cada centímetro de areia em todas as direções do círculo de sangue original, mas poderia se concentrar em uma área fortemente reduzida. Com certeza, antes de mais cinco minutos passarem, ele viu um trio de wyverns albinos. Eles estavam vários quilômetros atrás, mas eram

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mais rápidos – as criaturas pequenas e suaves eram muitas vezes mais rápidas em voo. Além disso, o problema não estava nesses três wyverns, mas em todos os outros que certamente viriam, agora que ele e Fairfax foram vistos novamente. Após estudar os cavaleiros mais atentamente, no entanto, ele mudou de ideia sobre não ser sua maior preocupação. Os cavaleiros lançaram uma rede atrás deles, a qual se parecia com um toldo de aparência impraticável usada em uma cabeça invisível. Um acelerador de feitiços: eles estavam prestes a lançar um feitiço à distância. Em um feitiço à distância, a parte em perseguição estava em desvantagem, já que o alvo continuava em movimento, o que significava que um feitiço precisava viajar mais longe. Embora fosse necessária certa distância para que a força do feitiço fosse construída – cinco quilômetros geralmente eram considerados a distância ideal – mais do que isso, o feitiço começava a enfraquecer novamente. Mas um acelerador de feitiços impulsionava tanto o poder quanto a resistência do feitiço, o que representava problemas para dois fugitivos escaparem. Titus tirou sua varinha – os Atlantes não eram os únicos familiarizados com os feitiços à distância. Ele concentrou-se, estabilizou e olhou seu próprio alvo, feitiços saindo de seus lábios um atrás do outro. Ele podia ver o que estavam fazendo e eles estavam sem dúvida, conscientes de sua ação. Mas nenhuma das partes escondeu-se, cada um determinado a implantar tantos feitiços quanto possível, caso a maioria deles atingissem apenas um fio do cabelo do alvo, deveria silvar em algum lugar alto na atmosfera, ou contra a superfície do deserto abaixo. No último momento possível, Titus enviou o wyvern de areia para um mergulho quase vertical.

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Atrás dele, o trio de wyverns albinos, que voavam em estreita formação, responderam à falta de peso de seus cavaleiros e viraram em direções diferentes. *** O wyvern da areia parou de mergulhar e começou a ganhar altitude novamente. — Qual é a turbulência? — Fairfax murmurou com seus olhos fechados. — Nós esquivamos alguns feitiços à distância. — Meu herói. Mas uma garota pode dormir em paz por aqui? — Havia uma pitada de um sorriso malicioso na curva de sua boca. Ele beijou o topo de sua cabeça. — Claro. Eu garantirei pessoalmente um passeio tão suave quanto o de um tapete voador. Mas o wyvern de areia não queria cooperar. No momento em que um pequeno oásis apareceu no horizonte, dirigiu-se direto para o bosque das palmeiras. E Titus, apesar do seu melhor esforço, não conseguiu desalojá-lo do seu curso. Ele só poderia apontar uma onda de feitiços de pacificação na cáfila de camelos que ficavam logo além das palmeiras. Os camelos mastigavam e olhavam com calma para o wyvern de areia enquanto as palmeiras se balançavam pela corrente gerada por suas asas maciças. Os humanos, no entanto, não possuíam tal equanimidade. Dos quatro homens barbudos e bronzeados, um desmaiou completamente, dois alcançaram seus rifles e um ao Alcorão24. Titus desmontou e conduziu a besta da altura de uma casa de dois andares para a poça no centro do oásis. — Assalamu alaykum, — ele disse aos três homens que ainda estavam conscientes. Que a paz esteja com você.

24 É o livro sagrado do islã.

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O homem mais velho com o Alcorão, abriu e fechou a boca várias vezes, mas nenhuma palavra saiu. Um jovem com um keffiyeh25 vermelho empoeirado falou algo, mas como a compreensão de Árabe de Titus era restrito a algumas frases de cortesia, ele não se incomodou em responder. Outro jovem em um turbante marrom armou sua arma de fogo, mas o velho colocou uma mão em seu braço. O wyvern bebeu e bebeu e bebeu. Quando terminou, Titus o persuadiu a puxar ramo de palmeiras com tâmaras, para que ele pudesse cortar um grande conjunto delas. Com outro Assalamu alaykum para os caravanistas ainda boquiabertos, ele pediu que o wyvern de areia voasse para o céu novamente. *** Depois de uma hora mais ou menos, Titus pousou o wyvern de areia a cerca de um quilômetro e meio de distância de uma baixa colina rochosa. A colina parecia estéril, mas qualquer sombra no deserto, em alguma parte, a água poderia liquefazer e acumular. Ele enviou as duas cordas de caça ainda em sua posse para encontrar uma boa refeição para o wyvern e se agachou para dar um pouco de água a Fairfax. Ela bebeu com os olhos fechados. — Eu adormeci de novo? — Com a panaceia, mesmo quando parar de dormir o tempo todo, você ainda dormirá muito. Além disso, você se esforçou quando a Atlantis nos encontrou.

25 Keffiyeh é o nome dado a um tradicional lenço quadrado dobrado e usado em volta da cabeça, pelos homens no Oriente Médio e por soldados do Batalhão de Operações Policiais Especiais do Estado do Rio de Janeiro no Brasil em suas operações. Em geral, o kufiyyah é feito de algodão, sendo branco e preto entre os beduínos, branco e vermelho entre os jordanianos (geralmente com cordões de algodão) e da Arábia Saudita, e branco imaculado entre os homens das cidades. Foi associado ao movimento nacionalista palestiniano desde a Revolta Árabe (1916-1918) até mais recentemente, devido à sua adoção pelo líder palestiniano Yasser Arafat.

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O que poderia impedir sua recuperação. Idealmente, não deveria fazer mais nada além descansar, até que seu horário de dormir voltasse ao normal. — Mais coisas perigosas aconteceram depois dos feitiços à distância? — Não para nós, mas há alguns caravanistas que terão histórias para contar aos netos. Eles provavelmente tecerão detalhes elaborados sobre o wyvern de areia comendo metade de seus camelos enquanto o cavaleiro demoníaco e com chifres ria. Ela disse. — Isso soa como você. — Estou muito orgulhoso da minha cauda bifurcada, mas negarei a existência de chifres até o meu último suspiro. Agora ela abriu os olhos. — Tudo o que vejo é uma auréola. — O seu elogio fez cair minha cauda. Agora olhe o que você fez. Ela riu novamente, suavemente. — Então, o wyvern da areia tomou água suficiente? — Eu acho que sim. E isso foi pura ganância da parte do Wyvern da areia... Eles podem passar dez dias sem água. — Seria bom se pudéssemos também, embora eu não tenha certeza de que eu quero que minha pele tenha essa aparência. O wyvern de areia era quase invisível quando colocado contra o chão do deserto, seu exterior exatamente com uma pilha de pequenos pedregulhos meio enterrados em areia. — Odeio dizer isso, mas é assim que a nossa pele já parece. Ela fechou os olhos novamente. — Sua aparência é horrível, sem dúvida. Minha beleza, no entanto, é tão indestrutível quanto às asas dos anjos. — Bem, — ele disse, — Você parece muito... Seus cílios vibraram —... enrugada. Seus lábios curvaram. — Posso lembrá-lo de que você está falando com alguém capaz de golpeá-lo com um raio?

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— Há algum motivo em flertar com uma garota que não é capaz disso? — Então esta é a sua ideia de flertar? Ele colocou a mão em uma das suas para verificar seu pulso. — Seja lá o que eu faça, seu coração está batendo rapidamente. — Tem certeza que não é um efeito residual da panaceia? Ele esfregou o polegar sobre o pulso dela. Sua pele era tão suave quanto a primeira brisa do verão. — Tenho certeza absoluta. Suas respirações se aceleraram. Os lábios dela se separaram levemente. E, de repente, seu próprio coração acelerou, o sangue correndo em suas orelhas. No momento seguinte, ele foi atropelado por uma corda de caça que voltou enrolada em torno de uma cobra. Ela riu e riu enquanto ele lutava com a corda de caça tentando afrouxá-la sem ser picado pela cobra e o wyvern de areia, com fome, que rosnava com impaciência. Com o wyvern de areia finalmente aproveitando o lanche da tarde, ele voltou para o lado dela. Ela já estava quase adormecida novamente. — Bem, — ele disse, — Pelo menos, desta vez não fomos interrompidos por um wyvern de areia. — Não, — ela respondeu com sua voz mal audível. — Eu pensei que poderíamos criar algumas faíscas juntos. Mas agora eu sei que nada que fizermos pode rivalizar com o abraço apaixonado entre uma corda de caça e uma cobra. Ela adormeceu com um sorriso no rosto. Ele a olhou por muito tempo, sorrindo.

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Capítulo 22 Inglaterra

O equilíbrio e mobilidade de Wintervale se recusaram a melhorar. Uma semana depois que ele acordou do seu longo período adormecido, ainda não podia ficar de pé sozinho, e muito menos deslizar pelo corrimão com um baque e um grito triunfante, como costumava fazer. Para caminhar para as aulas, para suas refeições na sala de jantar, até para ir ao lavatório, outra pessoa precisava acompanhá-lo. Este alguém era quase sempre Kashkari, que se acomodou no quarto de Wintervale, para que ele não precisasse gritar escandalosamente caso precisasse de um biscoito ou sentisse necessidade de abrir a janela para um sopro de ar fresco. Mas essa não era a única coisa diferente em Wintervale. Ele sempre foi mais aberto com Titus do que com os outros meninos, mais franco sobre as frustrações de sua vida: sua mãe frágil, sua saudade do Domínio e, mais obliquamente, seu temor de não estar à altura do grande nome Wintervale.

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Vislumbres de uma vida secreta. Vislumbres fugazes, já que Wintervale estava decidido a se divertir o máximo – ou assim Titus suspeitava – adepto a enterrar qualquer turbulência emocional sob uma nova rodada de diversão. O novo Wintervale ainda sustentava essa aparência externa de convívio borbulhante. Mas agora, quando estavam sozinhos – com pouca frequência, já que Kashkari era seu companheiro quase constante – Titus encontrou-o mais silencioso e mais curioso. Sua principal ansiedade era por sua mãe, e Titus estava feliz em dizer a verdade: não havia notícias de Lady Wintervale. Wintervale também queria saber o que aconteceu com todos os outros magos presos por Atlantis naquela noite em Grenoble; no qual Titus também falou a verdade, ou seja, que Titus realmente não sabia. Foi quando Wintervale perguntou sobre o estado da resistência como um todo que Titus disfarçou suas respostas. Ele não queria que Wintervale ficasse desmoralizado pelo forte golpe com que Atlantis tratou a resistência, nem queria dar a impressão de que estava pessoalmente interessado em tais eventos. Foram seis dias depois que Wintervale acordou que ele falou do futuro pela primeira vez, duas frases simples e declarativas. — Eu vou encontrar a resistência. E vou me juntar a ela. — Você nem pode caminhar sozinho. O problema desconcertou Titus. Wintervale poderia mover os dedos dos pés. Os membros inferiores tinham no máximo sensações – calor, frio, toque, ele sentia todos eles. Com apoio ele cambaleava, efetivamente o suficiente para chegar onde precisava ir. Mas sem a força de outro para compensar sua própria falta de equilíbrio, mesmo que estivesse de costas contra uma parede, depois de um minuto ou mais começaria a inclinar para um lado e não poderia se endireitar. Eles disseram a todos que Wintervale havia esticado muito um músculo, mantendo a verdade escondida, pois caso contrário, a Sra. Dawlish insistiria em atenção médica adicional, e Wintervale não queria ser cutucado e pressionado.

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— Não preciso caminhar para usar meus poderes elementais, — Wintervale disse. — Eles podem me colocar em um wyvern. — Você nunca esteve em um wyvern. — Eu posso aprender, depois de encontrar a rebelião. Tem certeza de que não tem nenhum contato? — Tenho certeza. — Pelo menos nessa parte Titus não precisava mentir. Sua mãe morreu por estar envolvida com os rebeldes; ele não tinha planos de repetir esse erro. — Boa sorte localizando a resistência sem ser pego por Atlantis. O olhar no rosto de Wintervale não foi tão decepcionante quanto o desespero – ele havia sobrevivido ao fato de ser perseguido por Atlantis, ele descobriu uma habilidade rara e maravilhosa, e ainda assim ele permanecia preso nessa escola não maga, sem encontrar nenhuma maneira de procurar sua mãe ou contribuir com a resistência. Kashkari entrou no quarto, com Cooper e Sutherland a reboque. Titus escapou, mas o sofrimento de Wintervale ficou com ele. Por natureza e por necessidade, ele se preparou incessantemente para o futuro. No entanto, após descobrir que as visões de sua mãe significavam Wintervale, ele não podia pensar na próxima semana, ou mesmo no dia seguinte sem uma parte de si mesmo recuar – sem Fairfax, que futuro havia? Mas ele não podia permitir que essa autoindulgência perigosa continuasse. Seus sentimentos pessoais não estavam em questão – nunca estiveram. Apenas a tarefa era primordial. O

que

mais

precisava,

obviamente,

era

que

Wintervale

recuperasse o equilíbrio e a mobilidade. Era impossível para ele arrastar Wintervale em sua condição atual por toda a extensão de Atlantis até o Palácio do Comandante nas terras altas – ou pelo menos extremamente desaconselhável. Em algum momento ele teria que contar tudo a Wintervale – ou, no mínimo, admitir a Wintervale que ele também estava disposto a derrotar Atlantis. Mas com o histórico de indiscrição de Wintervale, Titus planejava esperar até que ele precisasse absolutamente.

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O que ele poderia fazer enquanto isso, tanto para preparar Wintervale quanto para reforçar a moral do último, era levá-lo ao Crucible. Atlantis já sabia sobre o Crucible. Então, mesmo que Wintervale inadvertidamente falasse sobre ele, não alertaria Atlantis para nada novo. Antes que ousasse mostrar o Crucible para Wintervale, no entanto, ele deveria apagar todos os vestígios de Fairfax do livro. Ele se sentou no laboratório e estudou as imagens por um longo tempo, nas ilustrações de O Oráculo das Águas Paradas e Bela Adormecida. Sem essas ilustrações, depois que ela deixasse a escola, ele nunca mais poderia vê-la novamente. Ele desfez as mudanças e devolveu as ilustrações ao seu estado original. Quando estava prestes a fechar o Crucible, ele se lembrou de verificar A Batalha do Bastião Negro, a história de Helgira. E lá estava, o rosto de Fairfax. Ele adicionou a imagem dela às outras duas histórias, mas não esta. Uma rápida análise do registro das modificações que o Crucible mantinha informava que a imagem foi alterada há vinte anos. Há vinte anos, essa cópia do Crucible pertencia a sua mãe. Não, ele disse a si mesmo. O que importa agora porque a princesa Ariadne fez a mudança? Mas ele pegou o diário e o abriu.

5 de fevereiro, AD 1011 Muitas vezes eu vejo um lugar nas minhas visões e não tenho ideia da localização. Não desta vez. Desta vez eu reconheço imediatamente a forma atrativa do Bastião Negro, um dos locais mais difíceis do Crucible. É de noite, mas a fortaleza está iluminada com tochas. E perto do topo do bastião, sobre uma sacada que durante o dia teria uma visão magnífica, ficava de pé uma jovem com um vestido branco, o cabelo comprido e preto chicoteando no vento.

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É essa a Helgira? Meu pai queria que eu praticasse entrar nas câmaras internas do Bastião Negro para usar a alcova de oração de Helgira como um portal. Para esse fim, uma vez eu me vesti como uma serva que serviria uma garrafa de vinho, mas fui reconhecida como uma impostora de forma quase imediata, e tive pouco tempo para gritar “E eles viveram felizes para sempre” antes de evitar ser despedaçada. Quando a visão me deixou, encontrei minha cópia do Crucible e voltei para a imagem de Helgira. A ilustração mostrava uma mulher de trinta e poucos anos, ainda bonita, mas com cicatrizes de batalha, nada como a beleza delicada que eu vi na sacada. Quem é ela, então?

3 de setembro, AD 1011. É Helgira. A jovem com o vestido branco e o cabelo chicoteando levanta as mãos e abaixa, lançando o relâmpago mais impressionante que já testemunhei; a energia de todo o céu turbulento focada em um feixe de poder singular. Helgira, a dominadora de relâmpagos. Nunca houve nenhuma outra. Então é assim que ela é.

19 de setembro, AD 1011 Mudei o rosto de Helgira em minha própria cópia do Crucible, a cópia do mosteiro e a cópia da Cidadela – eu espero que o meu pai não se importe, já que ele considerava a cópia da Cidadela sua cópia pessoal. Mas agora que fiz isso, eu começo a me perguntar por que eu deveria ter visto essa visão. Os atos de um personagem folclórico que só

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existe na ficção – e no Crucible – não são algo que se deve ver em uma visão sobre o futuro, são?

Mas a minha mãe realmente viu o futuro. Era Fairfax de pé na sacada de Helgira, convocando o relâmpago que mataria Bane. Mataria temporariamente, pelo menos. Porque a princesa Ariadne alterou a imagem de Helgira dentro do Crucible, Fairfax foi capaz de se mover pelo Bastião Negro livremente. E quando os Atlantes exigiram respostas sobre a menina que convocou o relâmpago, Titus conseguiu encolher os ombros e dizer para eles aprenderem algo sobre o folclore do Domínio. Fairfax estava ligada a grande parte de sua vida. Por que, então, ela não poderia permanecer sendo a Escolhida? *** O lago se separou. Era um mar interno, na verdade, tão grande que as costas distantes estavam abaixo do horizonte. Em seu fundo, um grupo de estudantes estava preso dentro de uma bolha de ar sempre encolhendo. Fairfax passou um bom tempo nesse conto, tentando resgatar os alunos. Ela nunca conseguiu completamente. Mas agora, com Wintervale na tarefa, as águas profundas do lago separaram-se em um caminho lamacento. Titus sacudiu a cabeça lentamente. O que poderia fazer, a não ser maravilhar-se com o poder dessa magnitude? Ele levou Wintervale para uma história diferente, O Gafanhoto Outonal. Wintervale examinou o local próximo ao campo de um agricultor pobre e, com um sorriso de lobo, levantou as mãos. Ele convocou um ciclone e todo o enxame foi destruído sem deixar rastros. Em outra história, ele levantou pedras de cinquenta toneladas como se não fossem mais pesadas do que bolas de tênis e construiu um

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muro alto em volta de uma cidade prestes a ser pisoteada por gigantes. Do topo da parede, as pessoas da cidade atacaram os pontos fracos vulneráveis em cima das cabeças desprotegidas dos gigantes, levando a uma vitória emocionante. — Este é o melhor sentimento que já tive, em toda a minha vida! — Wintervale gritou para Titus enquanto os gigantes pareciam dominós, fazendo a plataforma embaixo dos pés dele tremer. Titus deveria estar feliz: ele havia lido As Vidas e mortes dos grandes magos elementares algumas vezes; e Wintervale estava certamente equivalendo-se a eles. Ele deveria estar aliviado por ter feito a escolha certa: além da incapacidade de controlar o relâmpago, os poderes de Wintervale eram certamente superiores aos de Fairfax. No entanto, Titus sentia-se... Desconfortável: ele nunca soube o que era alcançar o objetivo em um salto gigante, em vez de anos de trabalho árduo. Ele balançou a cabeça e lembrou-se de que deveria aproveitar o momento, porque a parte mais difícil estava por vir. Sempre. A excitação de Wintervale permaneceu inabalável quando eles saíram do Crucible. — Não posso nem dizer quão pronto eu estou para pegar um esquadrão de carros blindados e cumprimentá-los com esses pedregulhos enormes. — O que você só pode fazer quando houver pedregulhos perto deles. — Ou posso arrancá-los de dentro da terra, — Wintervale se entusiasmou. — Imagine se meu pai tivesse alguém como eu durante a Revolta de Janeiro. O resultado teria sido diferente, Titus teve que admitir, pelo menos em algumas batalhas. Com o Crucible na mão, ele se levantou da cama de Wintervale, na qual eles estavam sentados ombro a ombro. Havia um risco calculado para levar o Crucible à escola, mas Wintervale nunca desmaterializou bem e Titus não estava pronto para divulgar a localização da nova entrada do laboratório.

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— Pode me acompanhar ao reservado antes de ir? — Wintervale perguntou. Os poderes elementares de Wintervale explodiram em amplitude, mas sua bexiga parecia encolher de tamanho, pelo menos quando Titus estava por perto. — Venha, então. Wintervale saltou, não na direção da mão estendida de Titus, mas em direção à janela – e quase caiu de cabeça em sua aflição. Titus mal o impediu de bater em um canto de suas prateleiras. — Cuidado! Wintervale ergueu-se com a testa pressionada contra o peitoril da janela. — Por um momento... Por um momento, pensei que era minha mãe. Mas tudo o que Titus viu quando olhou para fora, além de um vendedor que nunca viu antes deste semestre, era a rua habitual da casa da Sra. Dawlish. *** Quando Iolanthe chegou ao laboratório, depois das luzes serem apagadas, o príncipe já estava lá. Ou melhor, ele estava no Crucible, a mão sobre o livro, a cabeça apoiada sobre a mesa. Mesmo parecendo adormecido, ele parecia tenso e preocupado. Seu coração se apertou – ela desejou que ainda pudesse ajudá-lo. Então por que não pode? Perguntou a outra parte dela. Mesmo que você não seja a grande heroína que imaginou ser, ainda há muito a fazer. Mas ele não quer minha ajuda. Ele só disse que você não é a Escolhida. Quando ele disse que não precisava mais de sua ajuda? Ao lado do Crucible na mesa estava uma caixa de pastelaria com uma nota embaixo. Ela tirou a nota para ler.

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Dalbert me disse que a loja da Sra. Hinderstone também vende Frankish pastry26, que é muito popular com os clientes. Estes são de Paris. Espero que você goste deles. Estes eram duas sopas de creme, uma pequena torta de frutas e um mil-folhas, que consistia em alternar creme de pastelaria suave e bolinhos amanteigados. Ela quase afastou a caixa de si mesma, com medo de seu conteúdo ter gosto somente de mágoa e rejeição. Mas, de alguma forma, um pedaço da torta de frutas encontrou caminho para a boca dela. Estava inacreditavelmente delicioso – e tudo o que ela podia pensar era o cuidado que ele sempre teve com ela. Ela colocou a mão sobre a dele e a manteve lá por vários minutos, antes de dizer a senha e a contrassenha para entrar no Crucible. *** Na sala de leitura, Titus sentou-se com a testa na cabine diante dele, os olhos turvos. — Você está bem? — Veio a voz de Fairfax. Ele se endireitou. — Odeio parecer um disco quebrado, mas não é seguro para você sair da casa da Sra. Dawlish depois das luzes apagadas. — Eu sei. Ela olhou para ele estranhamente. Ele não podia decidir se estava desagradada com ele – ou completamente o contrário. — Você não está dormindo o suficiente, — ela disse. — Eu não durmo bem, em qualquer caso. Mas não tive sono, apenas estou surpreso com informações. — Que informações?

26 Enroladinho com salsicha.

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— Preciso que Wintervale possa caminhar sozinho antes que possamos ir para Atlantis. Mas antes disso, preciso descobrir qual exatamente é o caso dele. — Ele tocou o livro grosso na mesa. — Esta é a referência mais abrangente sobre como interpretar as leituras do medidor sabe tudo. Algumas combinações imediatamente reduz a escolha para um ou dois diagnósticos prováveis. Mas a motricidade grosseira e a instabilidade mental abrem infinitas possibilidades... Desde o início de uma nova fobia até um dano irreparável da psique. — O quê? Ele sacudiu a cabeça. — O dano na psique data de quase quinze séculos atrás, quando os magos ainda estavam debatendo se o câncer era punição divina por crimes ilícitos. Não estou preocupado com isso. — Então com o que você está preocupado? — Hoje mais cedo, ele quase caiu em direção à janela porque achou ter visto a mãe dele lá fora. No entanto, de onde estava sentado, ele não teria visto nada além do céu – e talvez um pouco do telhado no lado oposto da rua. — Você acha que ele estava alucinando? — Não, não acho. Ele estava muito lúcido. Mas o incidente me fez lembrar que quando usei o medidor sabe tudo em Wintervale, ele ainda estava sob o efeito da panaceia, dormindo o tempo todo. Na época eu pensei que o medidor dava uma leitura de flagrante deficiência das habilidades motoras porque ele não podia se mover sem ser carregado – que o indicador havia sido enganado pela panaceia, se você desejar. — E você esperava que a leitura da instabilidade mental também tivesse sido influenciada pela panaceia, — ela disse, porque não é normal que alguém durma o tempo todo. — Exceto que o indicador acabou por estar correto com relação ao problema de movimento. Ele se perguntou se ela voltaria a explodir por sua falta de compromisso com Wintervale, mas ela apenas disse calmamente: — Nada nunca foi fácil para você, não é?

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Algo no tom dela chamou sua atenção: a ausência de raiva. Desde o dia do redemoinho, por mais educadamente que ela falasse, ele sempre ouvia, alto e claro, a fúria por baixo. Mas não neste momento. Neste momento, ela era apenas sua amiga. — Não, você está errada, — ele disse. — Eu fui imensamente afortunado, especialmente com meus amigos. Com você. Ela olhou para ele por um longo momento, então pegou seu casaco e tirou um pequeno envelope. — Tome isso. Um presente de aniversário. Era seu décimo sétimo aniversário, um dia que ele queria deixar passar sem ser marcado, mas o emocionou ela ter se lembrado. Quando abriu o envelope, no entanto, ele viu que continha os vértices do quasedesmaterializador. — Não, — ele disse em estado de choque. — Não, eu não posso. Eles deveriam mantê-la segura. Ela deu a volta na mesa e empurrou o envelope para dentro do bolso dele. — Estou segura o suficiente. Você precisa cuidar de si mesmo. Após vê-la a salvo em seu quarto, Titus ficou na cama por um longo tempo, o envelope sobre o peito, pensando em quão imensamente afortunado ele era por ter seus amigos. Por ela.

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Capítulo 23 O deserto do Saara

Levou às cordas de caça várias viagens cada uma para satisfazer o apetite do wyvern da areia. Enquanto o wyvern jantava, Titus procurou, como cortesia de um cavaleiro, ter certeza de que o corcel não tivesse nenhum ferimento ou desconforto. Ele quase não viu a leve descoloração na crista da espinha do wyvern. Uma sensação de frio na sua nuca o fez olhar novamente: um rastreador feito exatamente na mesma cor que o wyvern, exceto que descoloriu um pouco pela exposição aos elementos. Quase entorpecido, ele verificou o resto dos cumes na crista de forma estranha. Mais dois rastreadores. Quantos mais que não encontrou? Ele destruiu todos os rastreadores e olhou para cima. Ainda não havia nada no céu. O grupo que ele despachou com feitiços de distância mais cedo, provavelmente havia encontrado por sorte; o tipo de rastreadores colocado no wyvern de areia levaria algum tipo de verificação e lapso para rastrear.

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A indecisão o paralisou: metade dele queria pular em cima do wyvern e fugir; a outra metade reconheceu que não havia motivo em ir a qualquer lugar a menos que limpasse o corcel de todos os rastreadores. Ele procurou, inspecionando cada centímetro quadrado do exterior escamoso da criatura e toda a envergadura das asas. Ele encontrou um rastreador anexado a uma garra, outro na ponta de um osso da asa. Isso era tudo? Estava ficando escuro, mas não havia dúvida sobre a nuvem de tempestade que se espalhava no horizonte, a qual não era uma nuvem de tempestade, mas sim centenas de wyverns voando em estreita formação. Que a Sorte o proteja, pois nada mais o faria. Em vez de destruir o último lote de rastreadores, ele os jogou no chão. Ele sentou na sela atrás de Fairfax, já amarrada e profundamente adormecida, e exortou o wyvern da areia a voar, o mais perto do solo possível, sem as pontas de suas asas atingirem a superfície. Quando ele seguiu por talvez um quilômetro e meio, ele pousou o wyvern, o fez deitar, e realizou um feitiço de hipnose. O wyvern resmungou algumas vezes e fechou os olhos. Ele levantou Fairfax da sela, tirou a sela das costas do wyvern e escondeu-a sob uma das asas do wyvern. Em seguida, ele estabeleceu um círculo de som e um escudo de tensão ao redor, de modo que a presença do wyvern não pudesse ser detectada pelo seu cheiro ou por sua respiração. Fairfax e ele mesmo se esconderam sob a outra asa do wyvern. Ele deveria afastá-los do wyvern, mas se a besta provasse ainda ser rastreada, eles estavam condenados em qualquer caso, pois ele não podia cavar as dunas, e a barraca de camuflagem não era algo em que ele ousava confiar quando uma luz brilhante poderia recair diretamente sobre ela. Com um barulho como milhares de bandeirinhas que agitavam em um vendaval, seus perseguidores chegaram. Ele segurou a respiração e levantou a asa do wyvern de areia apenas o suficiente para uma

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espiada. Wyverns e carros blindados escureceram o céu já sombrio. Alguns

rodeavam

acima,

alguns

se

precipitavam

em

padrões

entrecruzados, e outros se dirigiam diretamente para o local onde ele deixou os rastreadores. A escala da caçada tirou-lhe o fôlego. Um wyvern pousou a sessenta metros de distância. Ele pegou a mão de Fairfax. Isso não fez com que ele tivesse menos medo, mas fez com que o sofrimento de ter medo fosse mais suportável. Outro wyvern pousou, ainda mais perto. Uma comoção passou pelos Atlantes. Gritos se levantaram. — A base está sendo atacada! — Nós devemos voltar! — Devemos proteger o Senhor Comandante Supremo! O Senhor Comandante Supremo. Fairfax gemeu... Titus estava esmagando sua mão na dele. Ele forçou seus dedos a afrouxar. Bane estava no Saara? — Não iremos a lugar nenhum! — Retrucou uma voz rude e autoritária. — Nosso pedido veio diretamente do Senhor Comandante Supremo e essa ordem é apreender esses dois fugitivos. Algo atravessou o ar. Seguiu-se um grito penetrante, como se um cavaleiro tivesse sido atingido no estômago. Mais projéteis, uma floresta de objetos longos e finos se precipitaram para os atlantes. Por um momento, Titus pensou que estava olhando centenas de cordas de caça. Mas não, eram lanças, enfeitiçadas para perseguir e empalar inimigos. Ele ficou sem palavras – deveria ter um milênio pelo menos, uma vez que as lanças enfeitiçadas eram os armamentos mais avançados em uma batalha maga. Mas a vantagem de provocar armamentos antigos era que poucos soldados modernos foram treinados para lidar com eles. As lanças procuraram cavaleiros em vez de wyverns, já que a pele e as escamas eram muito difíceis de penetrar. Os cavaleiros pediram que seus wyverns batessem nas lanças com suas asas, mas uma lança que foi derrubada

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no chão simplesmente voltava a subir e iria atrás do cavaleiro mais próximo. Alguns wyverns sopraram nas lanças, mas o fogo do Wyvern não era suficientemente quente para derreter as lanças, apenas quente o suficiente para aquecê-las para um vermelho incandescente, tornandoas ainda mais perigosas. — Voe! — Falou uma voz clara e afiada acima do caos e a confusão. Titus reconheceu esse como o General do primeiro dia da caçada da Atlantis. — O encantamento dessas lanças não pode durar mais do que poucos quilômetros de distância. Nós podemos ultrapassálas! O barulho ficou mais distante quando os atlantes seguiram o conselho do General. Titus ouviu intensamente. Poderia ser um estratagema para fazê-lo sair do esconderijo. Mas ele não tinha muitas escolhas. Fugir é perigoso; permanecer no lugar, também. Ele murmurou uma oração rápida antes de se levantar e colocar a sela na parte de trás do wyvern de areia. Levando Fairfax em seus braços, ele a levou para a sela e colocou-a de volta. — Vamos, garota. Se tivermos sorte, poderemos ver o Nilo antes do nascer do sol. Caso contrário, eles podem ver o Bane em vez disso.

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Capítulo 24 Inglaterra

— Wintervale está melhor? A pergunta veio de West, no final do treino, enquanto Iolanthe colocava um casaco de lã sobre o equipamento. Nos últimos dias, o clima ficou frio, quase severo. Os vinte e dois praticaram em uma leve névoa de chuva, com os espectadores esfregando as mãos e pulando no lugar para se aquecer. — O mesmo que antes, mais ou menos, — Iolanthe disse, abotoando o casaco. — Como ele está levando, não conseguindo se virar sozinho? — Com estoicismo louvável, devo dizer. Ela ouviu falar da facilidade dele em dominar seu poder pelo príncipe, que o acompanhara no Crucible. O qual foi provavelmente o motivo de Wintervale, de outra forma ativo e quase inquieto, conseguir lidar com sua perda de mobilidade com tanta graça. O que eram as vitórias e perdas nos jogos de cricket quando o menino que sempre viveu

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uma vida de mediocridade agora tinha a oportunidade de ser um herói de todas as eras? — Vou convocá-lo em alguns dias, — West disse. — Não quero que Wintervale pense que ele deixou de ser importante quando deixou de ser um dos vinte e dois. West havia raspado o bigode que usava no início do semestre. Sem o pelo facial, ele parecia bem diferente. E pela primeira vez, ela percebeu que ele a lembrava um pouco do príncipe – não como irmãos, mas poderiam passar por primos. — Tenho certeza que o Wintervale ficará emocionado com sua visita. — Ou pelo menos o antigo Wintervale iria. Iolanthe juntou seus equipamentos e começou a voltar para a casa da Sra. Dawlish, Cooper e Kashkari ao lado dela. Depois de um minuto ou mais, ocorreu-lhe que Kashkari estava caminhando com um leve mancar. — Qual o problema com sua perna? — Ela perguntou. — Você não acreditaria se eu lhe dissesse. — Eu vou, — Cooper disse com entusiasmo, envolvendo um cachecol ao redor do pescoço. — Meus irmãos sempre dizem que acredito em qualquer coisa. Iolanthe balançou a cabeça com exasperação. — Pelo menos você não quer ser advogado – é importante se autoconhecer. — Bem, aqui está a história, — Kashkari disse. — Wintervale e eu paramos na biblioteca ontem – já que ele tem que passar muito tempo deitado, ele queria algo para ler. Então eu estava andando e um enorme livro caiu da prateleira oposta e atingiu a minha panturrilha. Livros não caem simplesmente das prateleiras, embora pudessem ser empurrados facilmente. Na antiga escola de Iolanthe em Delamer, havia um aviso proeminente na biblioteca: Não são permitidos feitiços de convocação. Os infratores se reportarão diretamente ao gabinete do diretor. — Alguém empurrou do outro lado? — Cooper perguntou.

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— Ninguém estava do outro lado. Tive a sorte de ter me movido na hora, ou poderia ter caído na minha cabeça. — Kashkari olhou para eles. — Vocês acreditam em mim agora? — Eu não me lembro de você mancar ontem, — Iolanthe disse. Kashkari havia ajudado Wintervale a entrar e sair da sala de jantar na última noite. — Eu sinto isso mais hoje. E o treino piorou tudo. — Você não acha que o livro fraturou um osso, não é? — Não, mas certamente deixou um grande hematoma. — Às vezes os poltergeists fazem isso, — Cooper disse com toda a seriedade. — Não ouvi sobre a biblioteca estar assombrada, mas esta é uma escola velha. Deve haver fantasmas descontentes de antigos alunos vagando por aí. Um vento feroz soprava. Iolanthe apertou o boné para impedir que ele fosse levado. — Talvez a Sra. Dawlish tenha algo para isso. Você sabe, senhoras velhas e seus músculos doloridos, — Cooper continuou. — Posso perguntar a ela, — Kashkari disse, sem parecer excessivamente entusiasmado por estar fisicamente como a Sra. Dawlish. — Se isso piorar muito, eu não poderei levar o Wintervale às aulas. Cooper, sempre procurando ser útil, saltou para a oportunidade. — Eu farei isso. Você já fez isso muito. — Obrigado, — Kashkari disse. Então, depois de um tempo, — Receio que Wintervale ache minha presença um pouco obsoleta nestes dias. Uma mudança de companhia pode ser bem-vinda. Wintervale costumava ser bastante indiscriminado: ele passava muito tempo com Kashkari, mas ele era igualmente feliz passando tempo com outros meninos da casa da Sra. Dawlish. Agora, ele parecia desejar apenas a presença de Titus. Era perfeitamente compreensível, só com Titus ele poderia ser ele mesmo. Mesmo assim, Iolanthe sentiu-se mal por Kashkari.

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— Isso não pode ser verdade, — Cooper disse. — Penso que o Wintervale está francamente grato por você estar sempre lá para ajudálo. Deus sabe que eu estaria. Kashkari suspirou. — Eu espero... Algo capturou a atenção de Iolanthe, uma noção de objetos caindo sobre ela. Ela balançou o bastão de cricket... E sentiu o forte impacto do golpe em seu ombro. Cooper gritou em meio a um barulho de baques e coisas quebradas. Telhas de telhado... Da casa da Sra. Dawlish, já que quase estavam prestes a entrar pela porta. Iolanthe acertou uma telha e enviou vários pedaços para o meio da rua. Kashkari parecia abalado, mas não ferido. Cooper, no entanto, foi atingido por outra telha e estava sangrando um pouco na lateral da cabeça. Iolanthe olhou para o telhado – ninguém estava lá em cima. Do outro lado da rua, o vendedor ambulante muito suspeito, que estivera andando lentamente recentemente, também não estava lá. Ela começou a correr e rodeou a casa, mas não havia ninguém do outro lado do cume do telhado, nem ninguém entrando pelas janelas ou fugindo. Quando voltou para a calçada da porta da frente, Kashkari estava segurando um lenço de mão contra a cabeça de Cooper. — Você se sente fraco? Náuseas? Ou algo fora do comum? Cooper olhou fascinado para uma mancha de vermelho brilhante na sua mão. — Bem, meus ouvidos estão zumbindo um pouco, mas acho que estou bem. — Ele sorriu. — Eu terei uma história para contar no jantar. Kashkari balançou a cabeça. — Vamos. Primeiro vamos levá-lo à enfermaria. Após a ferida de Cooper ser limpada e enfaixada, Iolanthe comprou para ele um cone de papel com castanhas torradas de um vendedor de rua. De volta à senhora Dawlish, eles o instalaram em seu

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quarto com um pouco de chá e um sanduíche. Sutherland, Rogers e alguns outros meninos se aglomeraram no quarto. Cooper relatou seu acidente singular com um grande prazer. Sutherland, no entanto, franziu a testa. — Você não acha que Trumper e Hogg estão por trás disso, não é? Iolanthe sacudiu a cabeça. Trumper e Hogg, dois alunos que causaram um grande problema para os garotos da Sra. Dawlish no semestre anterior, e foram humilhados, já não estavam na escola. E mesmo que tivessem retornado a Eton especificamente para buscar vingança, não tinham competência para organizar um ataque preciso à distância, pois não havia ninguém no telhado. Esse ataque, no entanto, seria muito fácil para um mago. Mas contra quem? Iolanthe, que ainda era a maga mais procurada do mundo, ou Kashkari, que, pelo menos de acordo com o que ele havia dito ao príncipe, era um inimigo implacável do Bane? Mais meninos vieram ver Cooper. Iolanthe e Kashkari renderam seus lugares e saíram para o corredor. — Obrigado, — Kashkari disse. — Não foi nada. — Eu poderia ter sido atingido por aquela telha se você não tivesse reagido tão rápido. — Ou talvez tivesse sido eu. — Talvez, — Kashkari disse, não parecendo terrivelmente convencido. — É melhor eu ir verificar Wintervale. E, decidiu Iolanthe, seria melhor ela falar com o príncipe. *** O príncipe não estava no quarto dele. Também não estava no laboratório. A outra entrada do laboratório foi feita através de um farol em Cape Wrath, na Escócia. Ela colocou o casaco impermeável que estava no farol e saiu, apesar do vento uivante e da chuva motriz – às vezes o

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príncipe gostava de caminhar no promontório, quando esteve lendo por muito tempo. Não havia nenhum sinal de uma única alma. Perplexa, ela voltou para a casa da Sra. Dawlish. De lá, caminhou até a High Street, perguntando-se se ele foi comprar algum gênero alimentício – ele geralmente preferia não desmaterializar em Londres para buscar seu suprimento, indo a uma loja diferente de cada vez, para que pudesse ter certeza que seus bolos e latas não foram adulterados. Um inimigo do Bane tinha muitas preocupações. Ela comprou um pão picante quente no padeiro e acabava de sair pela porta da loja quando alguém a pegou pelo braço. Lady Wintervale, pálida, indecisa, e quase somente um esqueleto. Iolanthe quase deixou o pão cair. Levou um longo momento antes que ela pudesse levantar o chapéu. — Boa tarde, minha senhora. Sem uma palavra em resposta, Lady Wintervale levou Iolanthe a um beco e desmaterializou. Elas se materializaram em uma sala com papel de parede de seda de marfim, uma enorme lareira e um teto dourado. Uma grande janela dava para fora... Iolanthe deu alguns passos para mais perto. Era o rio Tâmisa e o Colégio Eton do outro lado. — Nós estamos na casa da rainha inglesa? — Sim. — Lady Wintervale tirou suas luvas e jogou-as de lado. — Isso é uma cabana. O interior do castelo de Windsor era indigesto, com certeza, mas parecia suficientemente respeitável. Então, novamente, a propriedade de Wintervale, antes da sua destruição no final da Revolta de Janeiro, deveria ter rivalizado com a magnificência da Cidadela. — Os criados sabem que você está aqui? — Sim. Eles pensam que eu sou um dos parentes alemães da rainha. — Lady Wintervale sentou em uma cadeira estofada com narcisos amarelos. — Agora, diga-me, como está Lee? O nome de Wintervale era Leander, mas ninguém nunca o chamava assim – ou qualquer variante disso. — Ele não pode andar

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sozinho, mas, em todo o caso, ele parece estar bem. Ele pergunta muito sobre você. — O que ele pergunta sobre mim? — Eu... Ele nunca faz isso na minha frente, então eu só posso relacionar o que ouvi de Sua Alteza. O príncipe diz que Wintervale está sempre ansioso por notícias suas. E Sua Alteza está feliz por não ter notícias, então não precisa mentir para Wintervale. Lady Wintervale colocou dois dedos contra a têmpora. — E por que Lee não pode caminhar sozinho? — Não sabemos. Você gostaria que eu trouxesse o príncipe aqui para vê-la? Lady Wintervale levantou a cabeça. — Não. Não. Isso seria muito perigoso. Absolutamente não. E não diga nada a Lee sobre minha presença, você entende? Nem uma palavra. A mulher sempre deixou Iolanthe nervosa. — Sim, minha senhora, eu entendo. Wintervale não precisa saber que você está aqui. — Bom. Você pode ir, — Lady Wintervale disse, fechando os olhos como se estivesse exausta pela conversa. — Se você souber qualquer coisa que eu devesse saber, volte para esta sala e diga Toujours fier. *** Desta vez, o príncipe estava no laboratório. — Onde você estava? — Iolanthe mal podia conter-se. — Tenho procurado você por toda parte. — Eu estava em Paris. Paris novamente. — O que você estava fazendo lá? — Comprando coisas para você, obviamente. Ele apontou para uma bolsa de doces colocada na mesa de trabalho. Ela não achou que ele tivesse saltado pelo canal apenas pelos produtos assados, mas isso era um assunto para outro momento. — Acabei de falar com Lady Wintervale. A expressão dele mudou instantaneamente. — Como ela escapou? Ou ela foi solta?

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O coração de Iolanthe despencou. — Não perguntei. Parte dela estava sempre petrificada com medo de estar cara a cara com Lady Wintervale, já que Lady Wintervale quase sufocou Iolanthe até a morte quando ela chegou pela primeira vez à Inglaterra. — Eu estava em choque. Ela me desmaterializou para o Castelo de Windsor, me fez algumas perguntas sobre Wintervale, não me disse nada sobre sua presença e me dispensou. E ela estava muito feliz por ser dispensada. — Conte tudo de novo, — Titus pediu. — Mais lentamente desta vez. Dê-me todos os detalhes. Ela fez, enquanto ele ouvia com atenção. Então ela perguntou: — Por que você supõe que Lady Wintervale tenha vindo até mim, em vez de você? — Ela sabe que eu sou vigiado, agora mais do que nunca. O vendedor ambulante que sempre passava diante da casa da Sra. Dawlish, a pessoa que poderia ou não estar se escondendo no bosque atrás da casa – era apenas a ponta do iceberg. Alguns dias, quando Iolanthe caminhava para a escola com os outros meninos, ela podia sentir a vigilância durante todo o caminho. — E o que você estava fazendo na High Street? — O príncipe perguntou. — Não é sua vez de providenciar o chá. A Sra. Dawlish fornecia três refeições por dia, mas os meninos eram responsáveis por seu próprio chá, que era essencialmente uma quarta refeição. O príncipe, Wintervale, Kashkari e Iolanthe se revezavam para comprar o chá da semana para os quatro. Iolanthe se lembrou. — Esqueci completamente por que eu estava lá em primeiro lugar. As telhas. Ela relatou o incidente das telhas e do livro que caiu de uma prateleira e atingiu Kashkari. — Muitos itens caindo para ser uma coincidência. Kashkari acha que eram todos para ele, o livro e as telhas. O rosto de Titus estava sombrio. — Muito especialmente as telhas. Antes de eu ser enviado até aqui, magos do Domínio vieram e

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aperfeiçoaram a casa de cima a baixo. Você já notou drenagens entupidas, degraus rangentes ou barulhos estranhos nesta casa? Ela teve que pensar nisso. — Não. Se elas aconteceram, passaram despercebidas. — E não haveria, não enquanto eu permanecer aqui, e talvez nem mesmo por anos depois. Portanto, é bastante impossível que as telhas tenham se desprendido. Essas telhas deveriam ter permanecido no lugar, mesmo que um tornado assaltasse a casa da Sra. Dawlish. Ele abriu o saco de pastelaria, entregou-lhe um éclair e pegou um. — Mais alguma coisa que eu precise saber? Algo a incomodava. Levou alguns segundos para ela perceber o que era. — West, o jogador de cricket. Ele parece mais interessado em você do que tem razões para estar. Titus franziu a testa. — Não sei se lembro como ele é. Irei assistir seu próximo treino. Eles passaram alguns minutos em silêncio, comendo. Era confortável, quase. Quando terminou com seu éclair, ele a olhou, como se tivesse tomado uma decisão. — Sobre Lady Wintervale, eu acho que são boas notícias. Ela sabe sobre você, então se não está sendo interrogada por Atlantis, melhor para você. Quanto ao West, não sei o suficiente para temer. Mas as telhas voadoras são um assunto totalmente diferente. — Elas provavelmente não eram destinadas a você – Atlantis quer você inteira, não mutilada. Mas qualquer coisa tão próxima de você me preocupa. Se alguém quer prejudicar Kashkari, porque ele é parte da resistência ou porque guarda o caminho para Wintervale, o ponto é que alguém sabe alguma coisa. Ele exalou. — Você deve ir embora. Logo. Seu coração desacelerou; talvez parando completamente. — Você quer que eu vá? — Quanto mais penso sobre as telhas, mais isso me perturba. Podemos todos ter que ir embora antes do tempo esperado. Quando nos

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separarmos, no entanto, não poderei ajudá-la a encontrar seu guardião, e eu quero ajudar – ou pelo menos levá-la perto o suficiente. Quando nos separarmos. Algo quase a sufocou, com raiva, mas não totalmente. Oposição. Ela estava resignada à sua eventual partida da escola, da vida dele. Mas agora que ele falou essas mesmas palavras, essa resignação se evaporou como a névoa da manhã. Ela não queria ir embora. Ela nunca quis. *** Quinze minutos depois, Iolanthe foi a primeira pessoa a entrar no quarto de Wintervale para o chá. Antes de Wintervale tornar-se o Escolhido, ela e ele raramente passavam algum tempo sozinhos – sempre estiveram envolvidos como membros de um grupo. Depois, ela não viu motivos para mudar isso. Sempre era melhor manter como amortecedor a presença de alguém, ou muitos outros, entre eles. Era mais fácil fazer isso, como se nada tivesse mudado, apenas outro jovem arrogante que, por sua vez, era um pouco grande demais para suas calças. Ela caminhou até o fogo queimando na grelha e estendeu a mão para o calor. — Está ficando frio. — Ouvi que você esmagou uma telha voadora hoje, — Wintervale disse de sua cama. Iolanthe encolheu os ombros. — Ganhando a admiração de West no campo. Salvando a vida do meu companheiro no caminho de casa. Apenas outro dia na vida extraordinária de Archer Fairfax. O velho Wintervale teria gargalhado, e depois lamentado pelo resto do dia por ter perdido uma visão tão incrível. Mas o novo Wintervale apenas sorriu – e apenas um meio sorriso.

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Ocorreu a Iolanthe que ele parecia cansado, tão cansado como o príncipe às vezes parecia, um cansaço além do que poderia ser apagado por uma boa e longa noite de sono. A facada de culpa era afiada. Mais do que qualquer outra coisa, ela o invejava. Seu poder. Seu destino. Sua reivindicação agora inquebrável sobre Titus. Quando ela, de todas as pessoas, deveria entender o que deveria ser uma provação terrível. E perdendo sua mobilidade em cima disso. E a mãe também, ou pelo menos assim ele acreditava. — Isso está incomodando você, não ser capaz de se mover? Ele suspirou. — Tantos planos, tantas visões de grandeza, e eu nem consigo andar sozinho. — Você melhorou desde que parou de dormir o tempo todo? — Às vezes eu acho que sim. Às vezes eu tenho certeza que sim. E então, na próxima vez que eu me levanto, é a mesma coisa de novo. — Bem, você não pode desistir, — ela disse suavemente. — Esses planos e visões de grandeza não se realizam sozinhos, sabe. Esse Wintervale menos robusto e mais sério assentiu. — Você está certo, Fairfax. E isso pode ser exatamente o que preciso ouvir agora. Sensato, tão sensato. Drenado, talvez, mas inquestionavelmente saudável e moderado. E agora, com a prova de que sua mãe estava perto, eles sabiam com certeza que ele nunca alucinou, mas na verdade ele viu Lady Wintervale, que provavelmente estava no topo do telhado no lado oposto da rua, para conseguir uma melhor visão do quarto dele. Então por que o medidor sabe tudo estava certo sobre suas habilidades motoras grosseiras, mas tão errado sobre o estado mental? Os calouros entraram com pratos de ovos fritos e salsichas grelhadas. Kashkari entrou na sua vigília, parecendo calmo, um pouco sombrio. E a conversa mudou para coisas que, essencialmente, não importavam para ninguém.

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Capítulo 25 O deserto do Saara

A garota acordou para um céu estrelado e o som do ar correndo sobre suas orelhas. Ela estava se movendo, amarrada na sela, em cima de um grande corcel voador. Alguém a segurava por trás com um braço. — Uma estrela acabou de cair, — Titus disse. Ela inclinou a cabeça em seu ombro. — Você viu um meteoro? — Estou começando a pensar que talvez seu admirador não estivesse sendo hiperbólico, mas sim literal, pelo que ele escreveu: você poderia ter nascido durante uma chuva de meteoros e poderia ter convocado uma série de relâmpagos no dia em que se conheceram. — Então ele está perdoado de suas atrozes ofensas literárias por ser sincero? — As partes que têm a ver com a magia elementar, talvez. Mas ainda é o auge da falta de vida, Você é minha esperança, minha oração, meu destino.

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— Posso lembrá-lo que é a única maneira de abordar adequadamente uma garota que convoca relâmpagos? Qualquer coisa menos reverente e, poof, seu cabelo está em chamas e o cérebro mexido. — Tudo bem, minha esperança – mas não estou dizendo que o resto disso... Eu tenho algo que você precisa sentir. Ela fingiu o som da indignação. — Mas mal nos conhecemos, senhor! Ele riu suavemente. — Mas você deve segurá-lo e senti-lo mudar, — ele exortou em seu ouvido. — Eu insisto. Não posso esperar mais. Ela sabia que eles estavam em um assunto sério, mas o calor da respiração dele em sua pele, e o som baixo de suas palavras – calor correu por todas as suas terminações nervosas. — Eu vou gostar? — Bem, eu tenho que me desculpar pelo tamanho. É bem pequeno. — E com isso, ele pressionou algo um pouco pequeno na mão dela. Era um pingente em uma corrente, e enquanto a corrente estava fria, o pingente estava quente. — Lembra-se do primeiro dia, você me perguntou o que estava tão frio sob minhas roupas? Era isso. Então isso estava gelado; agora não estava mais frio. Deveria ser metade de um par de medidores de calor: a temperatura de um medidor aumentava à medida que a distância com o seu companheiro diminuía. O companheiro deste medidor em particular esteve bem longe antes. Mas agora, quem carregava a outra metade do par estava muito, muito mais perto. — Assim que possível, devemos pousar e colocar o pingente a certa distância, — Titus continuou, — Então podemos nos esconder e ver quem está vindo antes que nos vejam. — Quanto tempo antes que este mago nos encontre? — Essa ideia funcionaria melhor durante a luz do dia. — Depende da nossa velocidade relativa. Apenas fique de olho nisso. Ela assentiu e colocou na bolsa.

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— Há algo mais que você provavelmente deveria saber, — ele disse. Ela

não

conseguia

decidir

por

seu

tom,

se

ele

estava

transformando um assunto bobo em sério ou trazendo à luz algo grave. — Nós falaremos de dimensões novamente? — Sim, o enorme tamanho dos meus olhos chamativos – bem, se eu devo ser específico, nosso – problema: Bane está aqui no Saara. Ela estremeceu. — Por nós? — Por enquanto eu assumo que sim, até que eu saiba o contrário. — E como você descobriu isso para começar? Ele fez um breve relato dos rastreadores adicionais que encontrou no wyvern, o que levou as forças de Atlantis a se aproximaram deles, antes que esses batalhões fossem atacados. — Lanças enfeitiçadas? — Seu maxilar caiu. — Em que século estamos vivendo? — Era como assistir a uma reconstituição de uma batalha histórica, sem dúvida sobre isso. — Que tipos de magos carregam com eles várias centenas de lanças enfeitiçadas? — O tipo que não quer que Atlantis descubra quem são. — E eles estão nos ajudando? — Acidentalmente, eu imaginaria. Provavelmente estão causando problemas a Atlantis, porque é para isso que eles vivem. Ela assentiu lentamente, digerindo tudo o que ele contou. — E este é o mesmo wyvern de areia de mais cedo? — Sim. — Você tem certeza que se livrou de todos os rastreadores Atlantes? — Difícil de saber. Mas não tivemos problemas na última hora e... Ele olhou para o relógio e praguejou. — Qual é o problema?

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— De acordo com a bússola incorporada no meu relógio, estamos voando na direção errada. Eu estabeleci um curso de aceleração direta para o sudeste, mas agora estamos indo quase ao norte. Aceleração direta era um feitiço usado para manter um wyvern no caminho mais direto possível durante uma velocidade ideal. Um wyvern em aceleração direta não tinha motivos para se desviar do curso definido. Ele murmurou, reiniciando a aceleração direta. Mas, em vez disso, o wyvern virou para o norte, depois gradualmente, norte-noroeste. — Está nos levando para a costa do Mediterrâneo? O braço dele apertou sua cintura. — Não, acho que está nos levando na direção da base Atlante. — O quê? — Elixir de Regresso a casa. Para cavalaria, e mesmo para grandes estábulos particulares, a prática era bastante comum. Bestas criadas nesses estabelecimentos eram alimentadas com pequenas quantidades de elixir que os mantinham

dóceis

e

felizes.

Esses

elixires,

quando

formulados

especificamente para o estabelecimento, também serviam para evitar que os animais perdidos ou roubados fossem longe demais, porque se não voltarem por mais de vinte e quatro horas, ele giram automaticamente em direção a casa. — Mas pensei que este wyvern não fosse daqui. Pensei que precisasse ser transportado da Ásia Central. Além disso, ainda não o tivemos durante vinte e quatro horas. Doze horas, quase. — Os atlantes podem ter deixado uma trilha de seu elixir para guiá-lo – e a nós – na direção da base mais próxima. — Nós precisamos sair, então. Pouse-o! Ele praguejou novamente. — Está se recusando a seguir as instruções... E estamos a meio quilômetro de distância. Ela engoliu em seco. — Você pode nos desmaterializar até o chão? — Ainda é muito cedo para você desmaterializar. Não posso arriscar.

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Ela usou um feitiço de longa distância. — Mas há carros blindados à frente! — Eu posso ver isso! E não quero ouvir você toda mártir me dizer para desmaterializar sozinho... Não te arrastei tão longe para entregá-la à Atlantis. Ela mal podia respirar. — Então o que fazemos? — Vamos pular. — O quê? Ele já estava desabotoando seu arnês. — Se você pode produzir uma corrente de ar o suficiente para segurar um wyvern de areia enorme, então pode produzir uma para parar a nossa queda. Ele se levantou e a puxou da sela. Ela quase não conseguia suportar a força do vento passando. — E se eu não produzir esse ar atual? — Você produzirá. — Ele pegou a mão dela, seu tom não tolerando nenhuma divergência. — Agora, após o três. Um. Dois. Três. *** Eles caíram, rapidamente alcançando o chão a nove metros por segundo. A queda livre parecia empurrar o coração e os pulmões de Titus para cima, comprimindo-os em metade de seu tamanho contra o topo de seu peito. O ar vociferando fez seus olhos encherem de água, mas ele não ousou fechá-los. Onde estava a corrente de ar que os salvaria? — Faça alguma coisa! — Ele gritou. — Cala a boca! Estou tentando! Eles colidiram com pequenos bolsões de ar que não fizeram nada para desacelerar a queda, mas os fez virar e cair. A noite estrelada e o deserto escuro disputavam sua visão enquanto girava em todas as direções. O chão subia em direção a eles em velocidade aterradora. Eles gritaram.

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E continuaram gritando.

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Capítulo 26 Inglaterra

Em sua mesa na sala de leitura, Iolanthe olhou para a imagem de uma jovem Comandante Rainstone, parecendo com uma garota pirata, um cutelo na mão. A imagem era de um artigo diferente, que Iolanthe encontrou sobre a festa à fantasia tricentenária de Argonin, evidência de que a Comandante Rainstone tinha de fato, feito parte da dupla que se vestiu como a frase de Argonin: Ostras dão pérolas, mas apenas se você estiver armado com uma faca e disposto a usá-la. Foi mais fácil desenterrar informações sobre a juventude da Comandante Rainstone do que descobrir sobre ela no presente. Sobre atualmente não havia nenhuma notícia e não agitou nenhuma controvérsia. Ela nunca se casou ou teve filhos – pelo menos nenhum registrado. E vivia uma vida simples fora do trabalho, preferindo noites calmas passadas em casa à glamorosa vida social da Cidadela. Ela viver sozinha poderia ser resultado de já ter uma vida secreta. Essa vida secreta também era facilitada pelo fato de não ter família. E os sinais sempre apontaram para o guardião da memória estar bem

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posicionado na vida e perto do centro do poder, o que certamente poderia ser dito sobre a Comandante Rainstone. — Mostre-me tudo o que tem de Penélope Rainstone e Barão ou Lady Wintervale, — Iolanthe perguntou ao serviço de referência. No dia em que ela revelou seus poderes, o Mestre Haywood a colocou em um baú. Ela foi transportada para o seu gêmeo, localizado no sótão da residência dos Wintervales no exílio, em uma parte elegante de Londres. O que significava que deveria haver alguma conexão entre a Comandante Rainstone e os Wintervales. O que foi confirmada por uma imagem da Comandante Rainstone ao lado do Barão Wintervale, que foi quem lhe deu o distinto prêmio de graduação que ela recebeu no final de seus estudos no Centro de Aprendizagem Marcial Titus, o Grande. Iolanthe esfregou as têmporas. Todas as peças que encontrou foram úteis, é claro. Mas nenhuma delas a levaram a qualquer lugar definido. — Sem progresso? — O príncipe disse do outro lado da mesa. Ele a ajudava com a busca na última hora, assim que voltou de seu misterioso propósito na França. Ela respirou fundo. — É tão difícil encontrar... — ela parou. O brilho da excitação no rosto dele – ele descobriu algo útil. — O que você tem? — A segunda vez que minha mãe teve uma visão sobre mim, de pé na varanda, ela mencionou alguém chamado Eirene, que perdeu a confiança dela ao ler o diário sem sua permissão. Iolanthe tinha uma lembrança muito vaga disso. Ela não havia lido essas visões sob as melhores condições. — Eu apenas pedi ao serviço de referência por qualquer coisa que mencionasse a Comandante Rainstone e Eirene, — Titus continuou. — E isso foi o que encontrei. Isso era uma entrevista diferente que a jovem Penélope Rainstone deu, também na época da sua nomeação para fazer a graduação na escola

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dos oficiais, mas era para o jornal estudantil de sua antiga academia, localizada em uma área menos afluente do Delamer. Titus apontou para um parágrafo específico. R: Você tem um apelido? E: Alguns dos meus amigos me chamam de Eirene, por diversão. Eirene é a deusa da paz, mas estudo a arte da guerra. As pontas dos dedos de Iolanthe formigaram. O que a fez se lembrar de ter lido nas visões da princesa Ariadne, pela primeira vez no dia do nascimento do príncipe e, pela segunda vez, nas horas anteriores ao nascimento de Iolanthe. — Você lembra o que sua mãe estava fazendo na segunda vez que teve a visão? — Sim, — Titus disse. — Ela estava no parto de alguém. No parto de Eirene. Eirene havia lido seu diário, uma visão que provavelmente não fazia sentido para a princesa Ariadne, mas que Eirene reconheceu como sendo sobre ela e seu filho, e que a levou a ir a tais extremos para garantir que seu filho não fosse encontrado por Atlantis. E Eirene era a Comandante Rainstone. — Eu chequei, — Titus disse. — Naquela época, Penélope Rainstone estava na equipe pessoal da minha mãe, mas em algumas semanas foi reatribuída à equipe geral da Cidadela: ela perdeu a confiança da minha mãe. Era estranhamente desanimador ouvir isso da Comandante Rainstone. Iolanthe supôs que era porque ainda não conseguia conectar a Comandante Rainstone ao desleal guardião da memória. — A Comandante Rainstone não tem filhos. Ela teria que disfarçar uma gravidez inteira. E se ela disfarçou seu próprio filho como Iolanthe Seabourne, o que teria feito com o bebê dos Seabournes, a verdadeira Iolanthe Seabourne? — Foi feito antes, uma mulher escondendo uma gravidez de todos. E ela poderia ter encontrado pais adotivos para o bebê.

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A verdadeira Iolanthe Seabourne nasceu no Hospital Real Hesperia, perto do final de setembro. Seu nascimento foi dois meses e meio prematuro. Por semanas ela permaneceu no hospital, seus pais ansiosos visitavam todos os dias e permaneciam o tempo que pudessem. No final de uma visita particular, dirigindo para casa em uma carruagem emprestada, eles colidiram no ar com um veículo muito maior cheio de turistas bêbados. De acordo com Mestre Haywood, Jason e Dalfine Seabourne morreram instantaneamente. Na noite fatídica da tempestade de meteoros, a verdadeira Iolanthe Seabourne tinha seis semanas de idade, mas poderia passar facilmente por um recém-nascido. E uma troca ocorreu nesse tempo. Ela esteve... Em algum lugar. E o bebê da comandante Rainstone foi criada pelo Mestre Haywood como Iolanthe Seabourne. Titus estava diante do serviço de referência novamente. — O que você está procurando? — Registros do Hospital Real Hesperia por volta daquele tempo. — Ele olhou vários volumes. — Nada sobre Rainstone dando à luz. Alguém, no entanto, pagou pela melhor maternidade do hospital e solicitou anonimato completo. Essa mãe sequer usou a equipe do hospital. Mas, apenas meia hora após o nascimento do bebê, ele foi levado para o berçário e não foi levado para a mãe até várias horas depois, ao amanhecer. Quando foi levado, não era mais o mesmo bebê. — E seu guardião visitou o hospital ao mesmo tempo. Titus empurrou um livro grosso de registro de visitantes para Iolanthe. Ela o folheou, o som das páginas virando estranhamente ruidoso em seus ouvidos. Mestre Haywood visitou o berçário do hospital em setembro, pouco depois da verdadeira Seabourne nascer. Nos dias subsequentes, ele veio com frequência, seu motivo para a visita sempre o mesmo, Estou no lugar dos pais para que eles possam descansar um pouco. Depois que os Seabournes morreram, ele ainda veio várias vezes por semana, para olhar a filha órfã dos amigos.

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Em que ponto ele começou a conspirar com Penelope Rainstone para planejar uma troca? Penelope Rainstone, que descobriu o que aconteceria com seu próprio filho, porque espionava o diário de visões da princesa Ariadne? Ele mencionava de passagem que havia uma menina órfã no hospital, alguém que estava prestes a ser confiada aos cuidados de um parente idoso que nunca viu? A inspiração veio a partir daí? A última vez que o Mestre Haywood visitou o hospital foi na noite da tempestade de meteoros. Ele entrou às sete horas da noite e saiu uma hora depois. Ao lado da entrada, no entanto, havia uma nota do pessoal administrativo do hospital: foi encontrado por seguranças às três e meia da manhã e escoltado até as instalações. Mas ele teria tido tempo suficiente para fazer a troca. *** — Eu quero falar com Lady Wintervale, — Iolanthe disse. Quando chegou ao sótão da casa de Wintervale em Londres, Lady Wintervale quase a matou. Não porque pensasse que Iolanthe fosse uma intrusa, mas porque ela afirmava que Iolanthe era responsável pela perda da honra de alguém. Iolanthe havia escapado convencida de que Lady Wintervale estava completamente louca. Mas agora que ela sabia que Lady Wintervale era principalmente lúcida e apenas ocasionalmente instável, viu as palavras de Lady Wintervale com uma luz diferente. — Não é uma má ideia – ela poderia saber mais do que pensamos, — Titus disse. — Eu irei com você. Cinco minutos depois, eles estavam dentro da sala de estar no Castelo de Windsor, onde Lady Wintervale trouxera Iolanthe uma vez. — Toujours fier, — Iolanthe disse. Eles não precisaram esperar muito antes da porta da sala de estar se abrir e Lady Wintervale entrar. Ao ver o príncipe, ela se curvou. — Milady, sente-se, — Titus disse. — Obrigada, Sua Alteza. Devo pedir o chá?

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— Não, isso não será necessário. Ficaríamos satisfeitos se você pudesse responder algumas perguntas para a minha amiga. — Claro, Sua Alteza, — Lady Wintervale disse. — Você pode me dizer, milady, — Iolanthe disse, — Porque eu fui transladada para sua casa quando deixei o Domínio? — Você é a filha ilegítima do meu falecido marido, — Lady Wintervale disse com calma, — E ele prometeu proteger e cuidar de você, se necessário. Uma campainha soou na cabeça de Iolanthe. Titus parecia quase tão espantado. Seus lábios se abriram e fecharam várias vezes antes de conseguir fazer um som. — Eu sou filha do Barão Wintervale? — Sim. No seu leito de morte, ele me pediu para jurar que eu a protegeria como eu faria com meu próprio filho, Lady Wintervale já havia dito a ela. Ela deveria ter adivinhado então. Para quem mais seria isso, se não sua carne e seu sangue? — E... — a voz de Iolanthe parecia ecoar em sua própria cabeça. — E você também sabe quem é minha mãe? — Claro. Mas não falo o nome daquela mulher. — Então... Eles tiveram um caso? Iolanthe poderia ter se chutado assim que a pergunta deixou seus lábios. Claro que eles tiveram um caso. — Sim, um caso de longa data. Continuou até mesmo no exílio dele – eles costumavam se encontrar em Claridges, em Londres. — Ela também é uma exilada? — Isso significaria que o guardião da memória não era a Comandante Rainstone. — Não, ela nunca foi exilada – ela era muito inteligente para se misturar na rebelião. Quando Atlantis restringiu todos os modos instantâneos de viagem, ela conseguiu provocar algumas lacunas apenas para si. Então não era difícil para ela escapar por uma tarde e encontrálo.

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Por você, ele desistiu de sua honra, Lady Wintervale já disse uma vez a Iolanthe. Por você, ele destruiu tudo. — Foi por isso que você disse que o fiz perder a honra dele? Lady Wintervale ergueu o queixo uma fração de um centímetro. E de repente ela não era mais uma exilada, mas uma maga de grande dignidade e poder. — Eu casei com meu marido sabendo muito bem que ele nunca seria fiel a uma mulher. Mas naquele momento, eu acreditei que ele tinha as marcas de grandeza e estava orgulhosa de ser a esposa dele. Mas, infelizmente, eu fui enganada. No final da Revolta de Janeiro, quando o resultado ficou claro, a Baronesa Sorren teve a coragem e convicção para enfrentar a execução, mas ele não podia suportar o fato de perder a vida. Ele precisava viver, ele se convenceu, porque você, sua filha, algum dia seria a maior maga elementar da Terra, e deveria ser protegida das forças da Atlantis – embora eu nunca tenha entendido completamente o porquê de Atlantis ir atrás de você. Ele acordou de um pesadelo, gritando com medo do julgamento dos Anjos. A história derramou de seus lábios. Mas, depois de um tempo, fui incapaz de ouvir corretamente, porque percebi o que ele estava me dizendo: ele havia dado a minha prima à Atlantis em troca de sua própria vida. Titus se levantou; seu rosto pálido. Compreensão atingiu Iolanthe como um bastão em sua têmpora: a prima de que Lady Wintervale estava falando não era outra senão a princesa Ariadne, a mãe de Titus. E o Barão Wintervale, o herói da rebelião, foi quem a traiu. — Por que você nunca me disse? — A voz dele estava rouca. — Por causa de Leander, guardei isso em segredo. Eu não queria que Lee soubesse que o pai dele foi um covarde tão desleal. — Ela sorriu um pouco, um sorriso estranho e vazio. — Mas não tenha medo, Vossa Alteza. Eu vinguei sua mãe. Ele balançou a cabeça. — Atlantis colocou a maldição de execução sobre ele. — Não, sua alteza, fui eu. Não pude suportar viver com ele depois disso. Ele não tentou me impedir, mas pediu que eu fizesse um juramento

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para cuidar de sua filha como se fosse minha própria carne e sangue. Não fiz tal coisa; somente acabei com ele. Lady Wintervale apertou e fechou as mãos. — Assassinato muda uma pessoa. Eu costumava ser calma, imperturbável até. Mas depois disso, às vezes eu... Eu... — rigidamente, ela se levantou da cadeira. — Espero ter respondido todas as perguntas para sua satisfação, majestade. Titus rangeu sua mandíbula. — Obrigado, milady. Existe alguma mensagem que você gostaria que déssemos ao seu filho? Ele ficaria muito aliviado ao saber que você está segura e bem. — Não. — Sua resposta foi inflexível. — Ele não deve saber que estou aqui. — Mas ele ficou mais fechado. Você não acha, príncipe? — Iolanthe disse. — Eu não acho que... — Minha jovem, você me permitirá saber melhor o que fazer nesta situação, — Lady Wintervale cortou. Ela se curvou novamente para Titus. — Sua Alteza. *** Depois que a porta se fechou atrás de Lady Wintervale, nem Titus nem Iolanthe disseram nada por um minuto. E então, quase ao mesmo tempo, eles se viraram e se juntaram em um abraço apertado. Ele não estava seguro se ele a estava confortando, ou vice-versa. Provavelmente ambos. — Você está bem? — Ela perguntou. — Estou bem, — ele respondeu, deixando a cabeça no seu ombro. — Estranho, não é? Eu sempre quis vingar minha mãe. Mas agora que ela já foi vingada, gostaria que não tivesse sido a cargo do pai de Wintervale... E do seu. — E a paz de espírito de Lady Wintervale, destruída para sempre. — Ela suspirou. — Acho que não posso ver o Barão Wintervale como meu pai.

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— Pode ser mais fácil depois que suas memórias suprimidas ressurgirem, — ele lembrou. Ela ficou em silêncio por um minuto. — Isso incomoda você, que meu pai seja responsável pela morte de sua mãe? Ele balançou a cabeça. — Eu sou o neto de um homem que assassinou sua filha... Muito hipócrita da minha parte se eu julgar alguém em sua linhagem. Além disso... — a voz dele se apagou. — O que você ia dizer? — Ela passou os dedos pelos cabelos dele. Ele respirou fundo. — Que tenho minhas suspeitas de que meu pai é Sihar. Ela ficou quieta. — Você tem certeza? — Cem por cento de certeza não. E, no entanto, todos os tipos de fofoqueiros e repórteres investigativos, com todos os recursos à sua disposição e promessas de grande recompensa – todos queriam saber a identidade do homem que havia gerado o próximo herdeiro do trono – vieram de mãos vazias em suas pesquisas. O que me diz que meu avô estava envolvido de alguma maneira. A Casa de Elberon não é nada do que era, mas dentro do Domínio, ainda é uma força a ser contada. E se meu avô desejasse silenciar as testemunhas, ele tinha seus meios. Os cidadãos do Domínio gostam de incluir e conviver relativamente sem problemas com os Sihar, como sinal de suas atitudes esclarecidas. Mas a verdade é que o Sihar é um pária no Domínio, tal como em outros lugares. E o meu avô nunca permitiria, nem mesmo um sopro de insinuação, que sua filha e herdeira poderia ter se apaixonado por um Sihar. Os livros didáticos de Iolanthe enfatizavam vigorosamente que a magia do sangue em que o Sihar se especializou não era mágica sacrificial – e que o Sihar foi injustamente condenado ao ostracismo ao longo da história, um bode expiatório fácil sempre que as coisas davam erradas e os magos desejavam apontar os dedos sobre quem havia se exposto à ira dos Anjos. Apesar da insistência oficial, o Sihar ainda era o Outro. Os refugiados dos reinos Frankish, os reinos subcontinentais e os reinos

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sub-saarianos foram assimilados – ela foi para a escola e fez amizade com seus filhos. Mas os Sihars... apesar de ter parado para ouvir músicos de Sihar na rua, comprado bolos de creme de padarias Sihar e, uma vez, quando ainda morava em Delamer, assistido a uma procissão em pleno verão de Sihar na Avenida Palace, uma celebração que marcava o ano novo e feriado importante, ela nunca visitou a casa de um Sihar, nunca conheceu um Sihar na escola, e nunca soube se o Mestre Haywood tinha colegas Sihar – pelo menos ninguém que tenha admitido isso. Até o Mestre do Domínio. Ela segurou o rosto. — Você ainda é você. Nada mudou. Ele olhou para ela por um momento. — O mesmo vale para você, lembre-se disso. Para mim, você é... E sempre será, tudo pelo qual vale a pena viver. E para mim, você é – e sempre será – tudo pelo qual vale a pena lutar. Ela não disse as palavras, ela só o puxou para perto e o beijou. *** Wintervale estava em sua cama, como de costume, apoiado em uma pilha de travesseiros. Ele sorriu ligeiramente enquanto Iolanthe entrou. — Fairfax, meu velho, veio para ver o paciente? Onde está a Sua Alteza? — Provavelmente nos banhos, esfregando sua pele principesca. — Ou, mais provável, em Paris, em seu negócio misterioso, que Iolanthe suspeitava ter algo a ver com a condição de Wintervale. Paris hospedava uma das maiores comunidades de exilados no mundo, com uma população maga maior do que a de alguns reinos. E ela ouviu coisas boas sobre a reputação de seus médicos magos. — Como você está? Wintervale encolheu os ombros. — Poderia ser pior, eu suponho, mas não desejaria isso a ninguém.

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Ele tinha vários livros ao lado dele na cama e a visão deles a entristeceu: Wintervale preferia atividades vigorosas a aquelas que exigiam que ele ficasse quieto por longos períodos de tempo. — Os livros são bons? Ele encolheu os ombros novamente. — Eles ajudam o tempo a passar. Ele estava cada vez mais pálido, por estar tanto dentro de casa. E atarracado, aquela grande construção atlética começou a perder a musculatura devido à falta de exercício, ou mesmo de movimento. — Se eu fosse um melhor jogador de cartas, eu jogaria com você... Exceto que não acho que você goste tanto das cartas também. — Não, nunca vi graça nelas, — ele disse, batendo os dedos no topo de um livro grosso e vermelho. Ela estudou seu rosto. Algo nele se parecia com ela? Se a mãe dele estivesse certa, então ele era seu meio irmão. Mas por mais que tentasse, ela não podia ver nenhum dos seus próprios traços nele. Uma gota de sangue de Wintervale era o que ela precisava. Uma gota de sangue dele, uma gota do dela, e Titus poderia informá-la se ela e Wintervale estavam verdadeiramente relacionados. Mas não se podia simplesmente se aproximar de um mago e pedir uma gota. A estima do sangue mago era profunda, e a maioria dos magos guardava seu sangue como fariam com suas vidas. — Você acha que pode pedir a Titus que me leve ao jantar esta noite? — Wintervale perguntou. A melancolia em sua voz a fazia se sentir culpada: se não fosse por sua causa, Wintervale provavelmente teria a completa e total atenção de Titus. — Se eu vê-lo antes do jantar, eu aviso. — Eu me pergunto por que Titus está tão ocupado o tempo todo, — Wintervale murmurou. Não, ela pensou. Ela não podia vê-lo como um irmão. Pelo menos ainda não. Talvez algum dia, se eles pudessem trabalhar juntos em direção ao mesmo objetivo...

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A porta se abriu e Kashkari entrou. — Fairfax, — ele disse um pouco surpreso. — Você o levará para o jantar? — Eu gostaria que ele quisesse que eu o levasse. Mas acho que Wintervale colocou o coração sobre o príncipe... Como qualquer herdeiro direto faria, — ela disse, passando por Kashkari. — Vou encontrar seu príncipe para você, Wintervale. *** No meio da noite, Titus se afastou da cama. Ele estava meio que sonhando, mas agora não conseguia lembrar o que o acordara. Ele levantou para beber um pouco de água e, com o copo na mão, espiou por detrás da cortina. Pela primeira vez, viu os observadores que Fairfax havia suspeitado de estar lá – três homens, vestidos com roupas não magas e juntos, a atenção deles fixa na casa da Sra. Dawlish. Quando se afastou da janela, a ideia que o tirou de seu sono incômodo retornou: tinha a ver com a visão de sua mãe sobre a morte do Barão Wintervale. E sua interpretação errada dela. Na maioria das vezes a princesa Ariadne não oferecia sua própria opinião sobre o significado de suas visões, confiando que uma visão suficientemente longa e detalhada era sua própria melhor explicação. Mas, com a visão da morte do Barão Wintervale, ela imediatamente interpretou a maldição de execução como ter sido ordenada por Atlantis, nunca suspeitando que sua esposa aflita, uma maga habilidosa e poderosa por si mesma, poderia ser a assassina. E se a princesa Ariadne errou uma vez, quem disse que não poderia ter cometido outro erro em alguma outra vez, numa visão que tinha um impacto muito maior na vida de Titus. ***

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Iolanthe queria ir ao Claridge no dia em que se encontrou com Lady Wintervale, para ver se o guardião de memória ainda o usava. Titus a persuadiu a esperar até que Dalbert verificasse o cronograma da Comandante Rainstone, de modo que eles pudessem escolher um momento durante o qual a Comandante Rainstone estaria ocupada de alguma forma. Essa oportunidade veio alguns dias depois: a Comandante Rainstone deveria entregar prêmios em sua antiga universidade a tarde toda, e Titus e Iolanthe tinham um curto dia na escola e nenhum treino de cricket exigindo a presença deles. O Claridge era um grande hotel localizado na área de Mayfair de Londres, cheio de respeitabilidade e características inglesas. Enquanto o príncipe fazia seu reconhecimento dentro do hotel – ele ainda estava relutante em deixá-la ser vista em qualquer lugar, exceto na escola Iolanthe esperou na banca de jornal na esquina, fingindo procurar na coletânea. O dia estava frio e nublado. As folhas acinzentadas que ainda permaneciam nas árvores balançavam e agitavam. Um trio de músicos de

rua

no

lado

oposto

da

interseção

tocava

uma

melodia

incongruentemente alegre em seus violinos. Os pedestres, vestidos quase invariavelmente em casacos preto ou marrom, corriam de um lado ao outro, prestando pouca atenção aos cartazes de teatro que dois meninos colavam em um poste de iluminação, ou no homem anunciando o tônico de emagrecimento milagroso da Sra. Johansson. Logo, o príncipe apareceu ao seu lado. — Encontrei uma suíte de onde não posso ir além da antessala. As solas de seus pés formigaram. Ela pagou o jornaleiro por um mapa de Londres e o enfiou no bolso do casaco. — Vamos, então. — Deixe-me ir primeiro para me certificar que é seguro, — ele disse após estarem fora da audição do jornaleiro. — Eu quero ir com você. — O guardião da memória passou por uma série de problemas para mantê-la fora do alcance da Atlantis, então ela não deveria estar em perigo naquele quarto. E, em qualquer caso, se

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Dalbert estivesse certo, a Comandante Rainstone ficaria ocupada a tarde toda. — Sua segurança é tão importante quanto a minha – não sei se Wintervale duraria cinco minutos em Atlantis sem você. — Tudo bem, — ele cedeu. — Mas não abaixe a guarda. De um beco vazio nas proximidades, ele os desmaterializou para a antessala da suíte do hotel. O pequeno espaço estava coberto com papel de parede carmesim – Iolanthe se lembrou de alguém, provavelmente Cooper, dizendo que não havia motivos em fazer paredes interiores em Londres de qualquer cor que não fosse escura; a qualidade do ar era tal que alguém certamente teria paredes de cor escura em alguns anos, não importando o quê. O príncipe começou a trabalhar, desenrolando os feitiços antiintrusos. Ela não sabia o suficiente das técnicas para ajudá-lo, então se manteve em um canto, fora do caminho dele, e tentou respirar devagar e lentamente. Para não ficar muito animada, ou deixar suas esperanças se afastarem... Passos se aproximaram do outro lado da porta. Titus saltou para trás e imediatamente começou a criar os escudos. Iolanthe tinha sua varinha de reposição apontada para a porta, medo e uma sensação de vertigem se revezando e acelerando seu pulso. Os passos pararam. A maçaneta da porta virou e lentamente a porta abriu uma fenda, revelando o rosto familiar do Mestre Haywood. *** Os cabelos de Mestre Haywood foram cortados, e ele exibia um bigode engraçado, mas não havia dúvida de que era ele. Era ele. E então Iolanthe dificilmente podia vê-lo pelas lágrimas nos olhos. Ela se lançou para ele. — Perdoe-me! Perdoe-me por ter demorado tanto para encontrá-lo. Ele a abraçou com força. — Iola. Que a Sorte me proteja, é você. Eu pensei que nunca a veria novamente, — ele disse, soando atordoado.

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Lágrimas rolavam pelas bochechas dela. O Barão Wintervale poderia ter fornecido o início biológico da sua existência, mas o Mestre Haywood era seu verdadeiro pai, aquele que se sentou ao lado de sua cama quando ela estava doente, verificou sua lição de casa e a levou para a Sra. Hinderstone nos dias de verão para tomar sorvete de pinemelon e até ao zoológico para olhar os dragões e os unicórnios. — Estou tão feliz que você esteja a salvo, — ele disse com voz rouca. — Tão, tão feliz. Só então ele olhou para cima e notou que ela não veio sozinha. Ele a soltou e se curvou para o Mestre do Domínio. — Sua Alteza. — Mestre Haywood, — Titus o reconheceu. — Com sua permissão, eu gostaria de pesquisar as ideias para translocadores. — Claro, majestade. Devo pedir um pouco de chá, senhor? — Não, não há necessidade. Você pode ficar à vontade. Titus se moveu para o interior da suíte. O Mestre Haywood ficou boquiaberto por um segundo a mais, e então se virou para Iolanthe e a puxou para a sala de estar. — Então, por todo esse tempo, você esteve naquela escola não maga em que eles me levaram, a escola do príncipe? — Sim, sim, e vou contar tudo, — Iolanthe disse. — Mas primeiro diga-me, como você desapareceu da Cidadela naquela noite? — Eu queria ter uma ideia melhor do que aconteceu. Durante toda a noite, guardas atlantes em torno de mim continuavam sussurrando um ao outro sobre o Senhor Comandante Supremo. Isso me deixou com medo, pensando que o próprio Bane poderia me interrogar. Estive na Cidadela por quase uma hora antes de entrar na biblioteca. Meus joelhos tremiam. Eu mal conseguia sentir o chão sob meus pés. A próxima coisa que sabia, eu estava dentro da suíte do hotel, com uma nota na mesa que me instruía a nunca deixar o perímetro caso quisesse ficar fora do Inquisitório. E é aqui que estive desde então. — Você realmente não saiu nenhuma vez? A sala de estar, com as mesmas paredes de cor carmesim, era de tamanho decente. E o quarto, que ela podia ver pela porta aberta,

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também. Mas ainda assim, não deixar esse espaço limitado por quatro meses... — Em comparação com o Inquisitório, isso é o paraíso. Muito espaço para esticar minhas pernas, ninguém para me questionar, e todos os livros e jornais não magos que eu posso pedir para serem entregues. Exceto pela falta de notícias suas, eu realmente não posso reclamar. Seu coração se apertou ao se lembrar de sua minúscula cela no Inquisitório. — Mas você poderia deixar este hotel se quisesse? Mestre Haywood empalideceu. — Eu... Não quero. É muito perigoso lá fora. Estou muito melhor aqui dentro. — Mas se você sair daqui, ninguém saberá onde você está. Você será completamente anônimo e isso o protegerá melhor do que qualquer feitiço anti-intruso. — Não, não. É impensável. — Mestre Haywood apertou o encosto de uma cadeira. — Foi porque eu destruí aquele lote de elixir de luz que você convocou o relâmpago... E agora você nunca estará segura. Ao ficar aqui, pelo menos eu não causarei mais problemas. Sua atitude desconcertou Iolanthe. Era mais um sintoma causado pelos feitiços de memória? — Pelo som, Fairfax, eu diria que seu guardião foi colocado dentro de um círculo de medo, — o príncipe disse, saindo do quarto. — O que é isso? — Iolanthe nunca ouviu falar de tal coisa. — Um feitiço antigo, de quando as guerras eram assuntos mais íntimos. Se você pode definir um círculo de medo em torno de seus inimigos, você pode praticamente entrar correndo e matá-lo. Iolanthe olhou para o Mestre Haywood, que tentava absorver a notícia de que o que ele mais temia era o próprio medo. Ela voltou para o príncipe. — Você encontrou algum portal? — Existem dois no armário e um na banheira; eu configurei alertas para... A expressão dele mudou. Pegando Iolanthe pelo braço, ele os ocultou atrás das pesadas cortinas azuis.

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Iolanthe espreitou. O Mestre Haywood estava virando para a porta aberta do quarto. A borda do que parecia ser uma túnica marrom apareceu por um momento perto do chão – do outro lado da parede, alguém estava escondido, esperando para reconhecer a situação na sala de estar. O príncipe abriu discretamente a janela francesa que levava à sacada estreita. Iolanthe manteve o ar imóvel, de modo que as cortinas não balançassem com o vento. Ele desapareceu na sacada. Pouco tempo depois, ele se materializou, parecendo um pouco aturdido. — Ela está aqui, — o príncipe disse. — Eu a coloquei sob um congelamento de tempo pelo lado de fora da janela do quarto de dormir... Mas não consegui entrar, porque ainda tem feitiços anti-intrusos. — Você fala da Comandante Rainstone? — A voz de Iolanthe soou como um chiado. — Vá e veja. Ela não pode machucar ninguém agora. Um congelamento de tempo durava mais de três minutos. Iolanthe respirou fundo e entrou no quarto – e quase caiu para trás em estado de choque, enquanto olhava para o lindo rosto de Lady Callista.

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Capítulo 27 O deserto do Saara

As estrelas giravam na visão de Titus, faixas brilhantes e frias. A mão de Fairfax ameaçava escorregar da dele. Ele instintivamente aumentou seu aperto, mesmo enquanto caía de cabeça para baixo. No momento seguinte, ele percebeu que não estava mais caindo tão rápido. Ele pensou que ela deveria ter conseguido, eles certamente sofreram ferimentos, batendo em uma poderosa corrente de ar exatamente na direção oposta da aceleração deles. Mas ela havia convocado múltiplos fluxos de ar, então ele sentiu entrelaçado – quase abraçado – e apenas a velocidade suficiente para retardá-los em vez de fazê-los parar de uma vez. À medida que o solo subia para encontrá-los, eles desaceleraram de forma constante, e depois mais acentuadamente, à medida que a distância para o impacto diminuía. Embora tenha caído primeiro de cara na areia fria e dura, era como se ele tivesse saltado de uma altura de três metros, em vez de quase mil metros.

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Levantando de joelhos, ele começou a rir. Oh, era o sentimento mais maravilhoso de estar vivo. — Você conseguiu. Que a Sorte nos proteja, você realmente conseguiu. Ela também estava de joelhos, apertando o peito. — Meu coração vai explodir. Ele vai estourar o meu peito e espalhar sangue por um raio de dezesseis quilômetros. — Nós estamos bem. Nós estamos bem. Você foi magnífica. — Magnífica, minha bunda. Você não era responsável por nos salvar enquanto estávamos em queda livre, seu fodido idiota. No final, devemos ter mergulhado de cabeça a mais de trezentos quilômetros por hora. Como você espera que alguém apenas pare isso com um simples ar? Que tipo de presunção estupidamente alegre foi essa? Se eu não morresse de susto, teria morrido de vergonha pelo fracasso! A irritação dela só parecia aumentar enquanto o censurava. — Foi o ato mais imprudente, mais idiota, mais impensado, mais... As palavras falharam. Mas o punho não: ele se conectou com seu maxilar e o derrubou. Certo. Nunca se deve irritar uma maga elementar que deve ter aprendido a usar a violência como uma saída emocional desde uma idade precoce. Mas ele apenas riu de novo, vertiginoso por estar em segurança. Sua alegria a enfureceu ainda mais. Ela saltou em cima dele, agarrou-o pelo colarinho e ergueu o punho. Ele a puxou e a beijou em vez disso. Um estremecimento a atravessou. Ele levantou o rosto e repetiu. — Você foi magnífica. Ela ofegou como se tivesse corrido uma maratona. O dedo dele rastreou seu lábio inferior. A outra mão apertou o braço dela. Seus batimentos cardíacos, já instáveis, tornaram-se completamente erráticos. Ele colocou as mãos em seus cabelos, apertou-a e a beijou novamente. — E os carros blindados estarão aqui em três, dois, um... — ela murmurou; sua respiração mais acelerada do que nunca.

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Os carros blindados não chegaram no horário previsto. — Bem, — ela disse, — Isso é irritante. Quando pensei que meus beijos tinham o poder de alertar Atlantis para minha presença em qualquer lugar do mundo. — Agora estou disposto a escrever versos muito ruins para você. Isso não comprova o poder dos seus beijos? — Quão ruins? — Êxtase será forçado a rimar com destino. Ela riu e se levantou. — Isso é, eu devo admitir, satisfatório e abominável. Mande emoldurar antes de me presentear. Ele pegou a mão que ela ofereceu e se levantou também. — Emoldurar? Vou mandar esculpir em cinquenta toneladas de mármore que até mesmo você teria problemas para mover. — Hmm, eu poderia ter que construir uma casa em cima e chamála de Mansão Burlesca. De mãos dadas, ombro a ombro, eles observaram o céu. — E lá vêm eles, — ele disse. — Você acreditaria nisso, eles trouxeram o nosso wyvern de areia para nos cheirar, caso nos escondamos no subterrâneo ou dentro das dunas. Não era uma boa ideia em qualquer caso. Se ela adormecesse de novo, eles ficariam presos dentro da rocha. Ou pior, enterrados sob uma montanha de areia. — Você acha que Bane está com eles? — Eu certamente espero que n... Um movimento em sua visão periférica o fez virar para o oeste; ela refletiu seu movimento quase em uníssono. Alguém se precipitava em direção a eles em um tapete voador. Eles tinham suas varinhas prontas. O tapete voador parou subitamente. — Vocês não conseguem ver o que está por vir? — O condutor gritou. — Por que vocês estão aí? Mexam-se! Titus e Fairfax se entreolharam. Eles não podiam vê-lo muito bem no escuro, mas a voz era a de um jovem.

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— Não temos nenhum corcel e ela não pode ser desmaterializada, — Titus disse. O condutor pareceu espantado. — O que aconteceu com o tapete que eu te dei? Ele saltou de seu próprio tapete e se aproximou deles. — Você pode me dar uma faísca ou duas, Fairfax? Ela ficou tão atordoada com ele chamando-a pelo nome dela que quase não fez o que ele pediu. Mas se recuperou a tempo de produzir o mais leve cintilar de fogo, que iluminou um jovem magro e bonito, da sua idade, usando uma túnica e keffiyeh das tribos beduínas. Com um movimento rápido e impetuoso, ele arrancou a parte externa da bolsa que ela carregava, fazendo-a ofegar. A parte externa da bolsa não era, de fato, uma parte da bolsa, mas uma couraça com bolsos. E a couraça era um pedaço maior de tecido que foi dobrado de forma fina e forte para encaixar no corpo da bolsa sem lacunas ou protuberâncias. Com uma batida vigorosa dos pulsos do condutor, a couraça se desenrolou inteiramente. E com uma senha murmurada, levantou do chão um tapete voador pronto para uso. Titus e Fairfax trocaram outro olhar, estupefatos. — Apressem-se! — O condutor gritou novamente, empurrando-os para o tapete voador. — O que há de errado com vocês? Vamos!

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Capítulo 28 Inglaterra

— Não entendo, — Iolanthe disse estupefata. — O que ela está fazendo aqui? Lady Callista era a guardiã da memória? — Rápido, — o príncipe disse. — Preciso de toda ajuda possível para criar um círculo de contenção. Um círculo de contenção não protegia o mago dentro dele de forças externas, mas ao contrário: era para proteger os que estavam afastados do interior. Eles acabaram o círculo quando o feitiço de congelamento do tempo estava passando. Lady Callista piscou, encontrando-se cercada de repente. — Eu acho que meu segredo foi revelado, — ela disse; aparentemente despreocupada, mas seus dedos apertaram firmemente uma varinha com joias, não muito diferente daquela que pertencia a Iolanthe.

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Lady Callista foi quem deu à luz na noite da tempestade de meteoros. Lady Callista foi quem teve um caso com o Barão Wintervale. Lady Callista, a última a entrar na Biblioteca da Cidadela antes do Mestre Haywood, foi quem espalhou os vértices de uma quase desmaterialização que o levara embora. — Não pode ser você, — Iolanthe se ouviu dizer. — Você trabalhou contra nós o tempo todo. — Se você se refere, por exemplo, ao dia em que você convocou o relâmpago, quando coloquei um rastreador na manga do príncipe, isso foi feito apenas a pedido de Atlantis. Eu não tinha ideia de que os guiaria para você, até que eu mesma entrei na cena e vi agentes de Atlantis trabalhando para desfazer os feitiços anti-intrusos que Sua Alteza havia posto em prática. — Você estava lá? — É claro – eu fiz sua varinha com um rastreador. Eu deveria ter localizado você naquele dia e ter acabado com todo esse absurdo há muito tempo. Mas ela não conseguira. Titus e Iolanthe escaparam para o laboratório. Desde então, a varinha de Iolanthe ficou guardada no laboratório, um espaço dobrado que não podia ser localizado – e assim Lady Callista perdeu a pista de Iolanthe. — Não acredito em você, — Titus disse. — Você me deu o soro da verdade em sua festa de primavera, pouco antes da minha Inquisição. O que você poderia ter esperado alcançar? Que a Inquisidora soubesse o paradeiro da sua filha ainda mais cedo? — Nisso, somente você tem culpa, Sua Alteza, — Lady Callista retrucou. — Sim, eu fiz Aramia lhe administrar o soro da verdade – a Inquisidora me disse em termos inequívocos para fazer isso. Mas o que a Inquisidora não sabia era que eu havia substituído por um tipo diferente de soro da verdade, de ação lenta. Titus estreitou os olhos. — Você deveria ter sua entrevista com a Inquisidora assim que ela chegasse, — Lady Callista prosseguiu. — Ela veria a bebida em sua mão

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e saberia que você foi medicado. Mas o soro não teria nenhum efeito sobre você por quase uma hora, altura em que você teria terminado com ela e não pior do que quando você começou. Então eu poderia fazer-lhe perguntas, assim que o soro da verdade começasse a atuar e descobrir o paradeiro da minha filha. Mas você não conversou com ela na Cidadela. Em vez disso, sobre as objeções de todos, você foi para o Inquisitório. E não iniciou sua Inquisição até que o soro da verdade tivesse entrado em vigor. Algo ainda não fez sentido para Iolanthe. — Você estava lá na nossa escola no quatro de junho. A Inquisidora poderia ter me encontrado. Você se sentou lá. Você não fez nada. — O que eu poderia ter feito? Eu estava lá, como você disse. Precisei suprimir todas as minhas lembranças para não me entregar. E arrisquei tudo para tirá-lo da Cidadela naquela noite, não é? Lady Callista apontou para o Mestre Haywood, que parecia completamente atordoado com os acontecimentos. — Somente porque você mesma estava em perigo de ser desmascarada, — Iolanthe replicou, ficando mais irritada com cada palavra. — Você estava com medo de que se a Inquisidora pudesse ver os feitiços da memória anteriores, sua própria posição estaria em perigo. Se você se importasse com ele, não teria confundido sua memória de forma a nunca permitir que ele tivesse acesso. As feições de Lady Callista se endureceram. — Decisões difíceis devem ser feitas às vezes. Você é muito jovem e não conhece os homens. Quando eles querem você, eles vão dizer e fazer praticamente qualquer coisa, mas você não pode esperar constância da parte deles. Como eu poderia confiar nisso, se eu o deixasse lembrar, ele ainda continuaria mantendo o meu segredo ou mantendo você a salvo? Os dedos de Iolanthe apertaram um punho. — É assim que você trata as pessoas que te amam, que desistem de tudo por amor a você? — Sim. Porque ele... — Lady Callista apontou novamente um dedo na direção do Mestre Haywood, — Não me ama. Ele ama uma invenção

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de sua própria imaginação. O seu verdadeiro eu usa pessoas, as descarta e não tem arrependimentos. Ele ama isso? Iolanthe ficou sem palavras. — E você, sua pequena ingrata. — Lady Callista estava ficando cada vez mais veemente. — Você tem alguma ideia de quão difícil foi, quão terrível, descobrir como fazer tudo o que meu eu futuro estava dizendo que precisávamos fazer? Um som tiniu. O príncipe abriu a mão e sua varinha, que caiu no chão, voltou para a palma da sua mão. Iolanthe olhou para ele: não era mais provável que soltasse sua varinha do que ele perder o diário de sua mãe. — E para quê? — Lady Callista continuou. — Nunca tive um único agradecimento de você. Tudo o que você faz é lamentar sobre como eu não estou ajudando o seu precioso Mestre Haywood. Não havia discussão com uma autojustificação de tal magnitude, e Iolanthe não se incomodou em tentar. — Quebre o círculo do medo. Você o libera e deixamos você ir. É uma troca justa o suficiente. — Absolutamente não. Não deixarei você correr e me causar mais problemas. Você virá comigo. Você vai se esconder. E não será vista de novo até que o mundo acabe ou eu vá para os Anjos. O príncipe tocou o Mestre Haywood no braço e sussurrou no ouvido dele. O Mestre Haywood olhou para trás. Mas Titus falou novamente. E o Mestre Haywood assentiu finalmente. Ele ficou na frente de Lady Callista e começou a cantar uma longa série de feitiços. — Como você se atreve? — Lady Callista gritou. Ela disparou vários feitiços para atordoar e silenciá-lo, mas o círculo de contenção tornou-os ineficazes. — Como você se atreve? — Ela gritou novamente. Mas Mestre Haywood continuou obstinadamente com seus feitiços. E quando ele ficou em silêncio, Lady Callista caiu no chão, inconsciente.

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Titus a colocou em outro feitiço de congelamento antes de desfazer o círculo de contenção. Segurando-a pelos braços, ele começou a arrastála para a porta da frente. — O que você fez com ela? — Iolanthe perguntou ao Mestre Haywood. — O príncipe me pediu para guardar todas as lembranças que tinham a ver com você. Quando ela acordar, saberá como voltar para a Cidadela. Mas não pensará em voltar e persegui-la. — Não é como se ela não tivesse feito isso antes, — Titus disse. — Todas as lembranças dela que têm a ver com vocês provavelmente foram suprimidas por um tempo, considerando que Atlantis está interrogandoa diariamente. Iolanthe balançou a cabeça um pouco. — Então, como ela sabia vir aqui? — Você pode fazer provisões especiais. Para mim, minha lembrança sobre a visão da minha morte retornará totalmente quando eu entrar na própria Atlantis. — Ele apoiou Lady Callista contra a porta e colocou sua mão na maçaneta. — O que você está fazendo agora? — Iolanthe perguntou. — Eu preciso da mão dela na porta para quebrar o círculo do medo. Graças a Deus, ela não estabeleceu um círculo de sangue... Isso não seria tão fácil de quebrar. Mas, novamente, a autoria de um círculo de sangue pode ser verificada, então ela provavelmente não se arriscaria dessa forma, a menos que sentisse que não tinha outra escolha. Ele murmurou os encantamentos necessários. Iolanthe observouo cuidadosamente, se perguntando o que exatamente Lady Callista dissera anteriormente para fazer com que ele soltasse sua varinha. Ele parecia um pouco sombrio, mas também parecia normal o suficiente. Quando terminou, ele e o Mestre Haywood levaram Lady Callista para a espreguiçadeira na sala de estar. — Mestre Haywood, — Iolanthe disse. — Existe alguma chance de você ter mudado de ideia sobre deixar esse lugar?

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O Mestre Haywood começou a balançar a cabeça, mas então ele parou. Um sorriso lentamente surgiu em seu rosto. — Agora que você perguntou novamente, Iola, eu acredito ter tido o bastante deste lugar. *** Lady Callista permaneceu inconsciente após o feitiço de congelamento acabar. — Não se preocupe, — Titus disse. — Quando os feitiços de memória produzem efeito, não é incomum um mago ficar inconsciente por até uma hora. O Mestre Haywood suspirou. — Droga, eu achava que ela era tão encantadora. — Precisamos verificar se não há rastreadores que possam estar em sua pessoa, — Titus disse ao Mestre Haywood. Enquanto procuravam, Iolanthe perguntou: — Como você conheceu Lady Callista, Mestre Haywood? — Através da minha amiga, Eirene. Você pode conhecê-la como a Comandante Rainstone, a conselheira de segurança do regente, Sua Alteza, — Mestre Haywood disse com uma meia reverência deferente na direção do príncipe. Estranho como ela conhecia os dois homens tão bem, mas eles eram essencialmente estranhos um para o outro. E Mestre Haywood, pelo menos, parecia determinado a observar todas as etiquetas. — Eu a conheço. Por favor, continue, — Titus disse. — Encontrei Eirene, a Comandante Rainstone, em uma cafeteria, e ela me contou que se encontraria com sua amiga, Lady Callista, na livraria de Eugenides Constantinos, depois perguntou se eu gostaria de ir. Eu aceitei, e então foi assim que aconteceu. Iolanthe tirou os sapatos e meias do Mestre Haywood para se certificar de que eles estavam livres de rastreadores. — E o que Lady Callista estava fazendo na livraria? Ela não me parece ser alguém com interesse em livros.

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— Ela disse que estava lá para comprar um livro que uma amiga dela havia arruinado. Sua companhia era tão agradável que eu me ofereci para comprar o livro para ela. — A poção completa. — Sim, como você adivinhou? Iolanthe mordeu o interior de sua bochecha. — Você sempre levou esse livro em todos os lugares conosco, embora tenha dito que era um livro terrível. — Sim, valor sentimental. Ela era linda, mas fiquei impressionado com a vivacidade de sua presença. Eu realmente pensei ser uma pena nunca vê-la novamente, embora eu tivesse toda a intenção de fazer isso. — Mestre Haywood ficou em silêncio ao perceber que falava de memórias incompletas. — Talvez fosse melhor se eu realmente nunca mais a tivesse visto. — Falando por mim mesmo, esse foi o jeito mais encantador como já a vi, — Titus disse. — Pelo menos ela foi verdadeira, por uma vez. Acho que o soro da verdade ainda permanece em seu sistema desde seu último interrogatório. Uma vez que eles estavam convencidos de que o Mestre Haywood não tinha nenhum rastreador em sua pessoa, e que eles próprios não tinham pegado nenhum, Iolanthe percebeu que não planejou para onde levá-lo. — Devemos colocá-lo em um hotel diferente por enquanto, até encontrarmos um alojamento mais permanente? — Ela perguntou. — Tenho um lugar que eu gostaria de colocar à sua disposição, — Titus disse ao Mestre Haywood. — Se você não se importar que esteja do outro lado do Canal da Mancha. Do outro lado do Canal da Mancha? Paris. ***

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O outono em Paris tem pouca semelhança com o seu homólogo em Londres. O ar era frio, mas puro, o céu azul, e as janelas altas e claras eram iluminadas, dando para uma tranquila avenida flamejante com a luz do sol. O apartamento que o príncipe escolheu tinha quartos espaçosos, tetos altos pintados em tons suaves e imensos quadros de não magos vestidos com roupas de uma era diferente, brincando em um campo ancestral. Iolanthe,

mesmo

com

a

dor

de

cabeça

por

ter

sido

desmaterializada cerca de cento e oitenta quilômetros – apesar de serem divididas em três partes – ficou encantada. — É um lugar adorável. Titus deu-lhe outra dose de auxiliar de desmaterialização. — O porteiro tem a impressão de que existem várias pessoas na família – um tio, uma sobrinha e um sobrinho que são gêmeos. Então não ficará surpreso ao ver um jovem ou uma mulher jovem – ou um homem mais velho. Ele abriu uma gaveta e tirou caixas de cartões de visita para o Sr. Rupert Franklin, o Sr. Arthur Franklin e a Srta. Adelia Franklin. — A padaria ao virar a esquina é muito boa. O restaurante também. Três vezes por semana há um mercado na praça da rua. E a família Franklin tem uma conta com o Banco de Paris que deve durar anos. — Então é isso que você tem feito em Paris, — Iolanthe disse suavemente, mais do que um pouco emocionada por tudo o que ele fez. — Parte disso. — Parte disso? Qual é a outra parte, então? Ele os conduziu por um corredor em direção a outro aposento. Era mobiliado com uma grande mesa no centro e prateleiras nas paredes. Iolanthe reconheceu alguns dos equipamentos na mesa como vindos do laboratório. — Logo que eu percebi que suas memórias não voltariam a ressurgir, eu quis protegê-la contra danos causados pela supressão permanente. O que significa que eu precisava encontrar uma maneira de trazer suas memórias de volta. Decidi duplicar o tipo de proteção que foi colocada em mim. Se alguém mexer com minha memória, e esse alguém

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requer o limite de contato necessário, minha memória se recuperará dentro de semanas, se não dias. Mas alguns dos ingredientes necessários para a base da poção não podem ser armazenados – eles devem ser usados muito frescos, e perdem sua eficácia se forem desmaterializados. Então eu precisava montar um laboratório temporário aqui em Paris – é a cidade mais próxima com um botânico mestre que pode atender às minhas necessidades. E enquanto procurava uma localização adequada, eu decidi que poderia também conseguir um lugar onde vocês pudessem viver juntos confortavelmente, após se encontrarem. Mestre Haywood inclinou-se profundamente. Iolanthe não fez nada – ela não sabia o que fazer. Titus acenou para a mesa. — De qualquer forma, eu não contei mais cedo, porque não tinha a base da poção pronta e não queria que você pensasse que eu estava tornando mais fácil para você deixar Eton. Quero dizer... — ele deu de ombros. — Você sabe o que eu quero dizer. Ele trouxe dois copos e encheu-os até a metade com um líquido de um jarro que ele disse conter água do mar. — Precisa ser a água do primeiro oceano em que você colocou o pé – e eu suponho que seja o Atlântico para vocês dois. E então você deve adicionar três gotas de seu próprio sangue, e três gotas voluntariamente dadas por alguém que o ama. Você se importaria de nos dar um pouco de fogo, Senhorita Seabourne? Ela criou uma pequena bola de fogo. O príncipe pegou a navalha de bolso, passou a lâmina pelo fogo e a entregou para Iolanthe. Ela deixou cair três gotas em cada copo, passou a faca pelo fogo novamente e a entregou ao Mestre Haywood. Quando o Mestre Haywood espremeu três gotas em um copo e estava prestes a fazer o mesmo no segundo copo, o príncipe o deteve. — Eu gostaria de ter a honra para a poção da Senhorita Seabourne. Sangue de alguém que o ama. Mestre Haywood olhou para Iolanthe, não tão chocado quanto pensativo.

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Então Titus pegou um frasco de pó cinzento, dividiu-o entre os copos e agitou até que a cor se tornasse brilhante e dourada. Tinha gosto de luz do sol e chá de camomila. Mestre Haywood se curvou novamente para Titus, que o levou a outro aposento e mostrou aonde havia um suprimento de dinheiro. — Isso deve durar até você poder ir ao banco. Você também tem crédito na maioria das lojas próximas, caso precise usar. Ele se virou para Iolanthe. — Quase na hora de outra verificação de ausência na escola. É melhor voltarmos. — Contagem de verificação, — Iolanthe explicou ao Mestre Haywood. — Eles estão sempre contando os garotos. — Mas ainda não ouvi sua história, — o Mestre Haywood protestou. — Outro dia, — ela disse, abraçando-o. — Eu virei te ver sempre que eu puder. De volta ao quarto da senhora Dawlish, Titus se virou para ela e disse: — Estes são para você. Estes eram cartões de visita para A. G. Fairfax, de Low Creek Ranch, Território de Wyoming. — Antes de deixar a casa da Sra. Dawlish, dê estes cartões aos seus amigos. Quando eles escreverem para este endereço, as cartas irão para o esconderijo. E as cartas que você enviar do esconderijo serão recebidas como se tivessem vindo do Oeste americano. — Obrigada. — Mais palavras não expressariam melhor seus sentimentos. — Não precisa agradecer, — ele respondeu suavemente. — É uma compulsão minha te dar tudo enquanto eu ainda posso.

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Capítulo 29 O deserto do Saara

O recém-chegado era incrivelmente rápido em seu tapete. Titus teve que fazer um esforço real para não ficar mais do que um comprimento de corpo para trás. E enquanto Titus colocava seu tapete em um ângulo de aproximadamente dez graus, com a frente do tapete enrolada embaixo, o tapete do recém-chegado estava inclinado em pelo menos trinta graus, com duas dobras no corpo, de modo que de perfil parecia um Z alongado e para trás. Um dragão poderia manter seu próprio curso, mas um tapete geralmente dependia da distribuição do peso do condutor para as direções.

Um

condutor

iniciante,

enquanto

aprendia,

poderia

acidentalmente colocar o tapete em um colapso não fazendo nada além de tentar olhar sobre um ombro. Este jovem, no entanto, casualmente virou ao redor, uma mão direcionando o tapete ao seu curso, a outra criando feitiços de longa distância.

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Feitiços de longa distância – quando os perseguidores mais próximos ainda estavam a quilômetros de distância - e com incrível precisão. O garoto era um atirador para contemplar. Titus virou para Fairfax, que ainda estava boquiaberta pelo recém-chegado, e disse: — Existe alguma chance dele ser seu admirador? Em sua pergunta, ela entrecerrou os olhos. — Provavelmente não. Quando ele saiu do tapete para nos colocar no nosso, ele poderia facilmente ter me dado um beijo. Mas ele simplesmente me empurrou para o tapete como um saco de batatas. — Mas e se ele for? — Hmm. — Seu tom tornou-se provocativo. — Você está me pedindo para fazer uma escolha agora entre vocês dois? — Agora você vai me escolher, é claro. Mas e depois que você se lembrar? — A questão o deixou mais nervoso do que queria admitir. — Você não pode fazer algo sobre os carros blindados, Fairfax? — O assunto gritou acima da discussão deles. — Eles estão se aproximando rapidamente. — Tudo bem! — Ela gritou. — Vou tentar. Então, na orelha de Titus: — Acho que ele sequer sabe – ou se importa – que eu sou uma menina. Titus teve que concordar com ela nessa explicação – e ficou feliz com isso. — Segure o tapete bem firme, — ela disse a ele e virou um pouco para trás. Depois de um minuto, ela recostou. — Não posso desestabilizar os carros blindados. Deixe-me tentar outra coisa. Mantenha-se firme! As últimas palavras foram gritadas para o outro garoto ouvir. Um segundo depois, um vento de cauda quase soprou Titus para fora do tapete completamente. Ambos os tapetes aceleraram como se tivessem sido colocados em foguetes. E atrás deles, quase invisíveis no escuro da noite, a areia subia como uma cortina, obscurecendo-os da visão dos atlantes.

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*** O outro garoto indicou que eles descessem. — Meu tapete quase atingiu os limites da sua extensão. Uma vez que um tapete se aproximava dos limites da sua extensão de voo, precisava ser reabastecido, ou cairia do céu como uma rocha. E uma vez no chão, precisava de algum tempo antes de poder voar novamente. — Você gostaria de um pouco de água? — Fairfax perguntou. A esfera de água que ela convocara brilhava sob a luz das estrelas. O menino estendeu um odre. — Sim, eu gostaria, obrigado. — Algum alimento ou um lençol de calor? — Titus perguntou, colocando o braço em volta do ombro de Fairfax. Se o menino fosse o admirador dela, então ele deveria se apresentar para contestar suas afeições ou renunciar para sempre. O menino olhou para eles um momento, sem desânimo nem ciúme, mas algo parecido com surpresa. — Não, obrigado. Estas roupas são destinadas para o deserto e a água é tudo que eu preciso. Um pequeno silêncio caiu. Titus estava prestes a dizer ao menino que eles não tinham ideia de quem ele era quando ele falou novamente. — O pingente estava tão frio no começo que eu tive que afastá-lo da minha pessoa. E já que eu não estava procurando vocês especificamente, mas apenas viajando para encontrar meu irmão, não fiz questão de verificar. Imagine minha surpresa quando me deparei com isso ao meio dia e estava quase morno. Eu tinha um caderno de duas vias comigo, então entrei em contato com meu irmão e sua noiva. Eles escreveram imediatamente, dizendo que as luzes de fênix já haviam sido vistas no deserto algumas noites antes, e os batedores já estavam à procura de vocês. Eis que algumas horas depois vocês entraram em um oásis montando um wyvern de areia. O maxilar de Titus caiu. — Aqueles caravanistas, eles eram magos? — Eles certamente eram.

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— Mas um desmaiou, e dois alcançaram seus rifles quando viram o Wyvern de areia. — É uma boa estratégia pelo menos um membro do grupo fingir ficar inconsciente quando avistar um mago. E eu sempre achei que os rifles são um toque de gênio... Quando você vê alguém segurando uma arma de fogo, seu instinto é considerar essa pessoa como não maga. — Eu devo me lembrar disso, — Fairfax murmurou. — E não só os magos dos caravanistas, o oásis em si é um translocador, — o menino disse com óbvio orgulho. — Nós construímos três como ele. Atlantis não presta muita atenção aos não magos e seus camelos amontoados ao redor de um buraco no chão. Permite que nossos batedores se movam livremente ao redor do deserto. De qualquer forma, os batedores reconheceram você e Fairfax. Eles relataram de volta. A escolha foi feita para tomar qualquer medida necessária para mantê-lo longe das mãos de Atlantis. Por isso, quando viram um grande contingente de bestas e carros blindados deixando a base, eles decidiram atacar a base para forçar os Atlantes a retornar e defender sua instalação. — Por que seus amigos decidiram usar lanças enfeitiçadas? — Fairfax perguntou. — O quê? Fairfax se virou para Titus. — Eu pensei que você havia dito que aqueles que nos ajudaram usaram lanças enfeitiçadas. — Tivemos que usar alguns métodos pouco ortodoxos, mas não lanças enfeitiçadas, — o menino disse. — Ainda não estamos tão desesperados. — Os Atlantes que estavam literalmente em cima de nós não voltariam à base para ajudar. Eles tinham suas ordens para nos caçar, e obedeceriam essas ordens até que ouvissem o contrário, — Titus disse ao menino. — Não sei o que teria acontecido se um monte de lanças enfeitiçadas não tivesse chegado a tempo para forçá-los a sair. — Isso é estranho. Não conheço grupos rebeldes que usem armamento antigo. Existe alguma outra coisa que você possa falar sobre eles, príncipe?

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Fairfax estava prestes a recarregar o odre do menino novamente. O fluxo de água que ela apontava para ele errou completamente o curso, pousando com um splat na areia. Titus também sentiu como se o chão tivesse se deslocado debaixo de seus pés. — Você me chamou de príncipe? O menino pareceu surpreso. — Minhas desculpas, Vossa Alteza. Na escola, não observamos rigorosamente o protocolo. Mas vou garantir de conceder-lhe todo o respeito devido ao Mestre do Domínio. O Mestre do Domínio. Ele agarrou o braço de Fairfax, não sabendo se poderia sequer entender essas palavras. Ou se queria. O garoto observou o céu. — Patrulha noturna da base – excelente. Posso voltar com eles e não precisamos esperar até que meu tapete esteja pronto novamente. — Você tem certeza de que podemos confiar neles? — Fairfax perguntou. Ele dobrou o tapete e depois o enrolou em um tubo apertado e colocou-o em uma bolsa fina que tinha nas costas. — Eles são os primos de Amara, então sim, tenho certeza de que não são atlantes disfarçados como rebeldes. Quando os rebeldes pousaram, o menino apresentou as duas mulheres como Ishana e Shulini. Quando chegou a hora de dar o nome de Fairfax, ele perguntou: — Devo apresentar você como Fairfax, ou pelo seu nome verdadeiro? Fairfax hesitou. — Meu nome verdadeiro. Ela parecia quase com medo. Titus sentiu medo. Será que descobrir sua verdadeira identidade seria uma experiência tão infeliz para ela quanto descobrir a dele havia sido para ele? — Iolanthe Seabourne, — o menino disse. Iolanthe Seabourne – um nome robusto e forte, mas que não trouxe reconhecimento a nenhum deles. Ela pegou a mão dele. Ela ficou

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aliviada, ele poderia dizer. Mas, misturado com seu alívio, talvez fosse também uma pequena decepção por permanecer incerta sobre quem era. — Prazer em conhecê-las, — Titus disse a Ishana e Shulini. As mulheres inclinaram a cabeça em respeito. — Um prazer ver Sua Alteza novamente, — Ishana disse. E depois para Fairfax. — Nós também a vimos antes, mas você estava dormindo na parte de trás do wyvern de areia. Os olhos de Titus se arregalaram. — Vocês estavam no oásis? Elas riram suavemente. — Nós pegamos os rifles, senhor. É muito menos suspeito nos vestirmos como homens não magos, — Shulini disse. Quinze segundos depois, eles estavam no ar. O tapete carregando Shulini, Ishana e o menino era, se possível, ainda mais rápido do que aquele do menino. Mas desta vez, Titus não se importou. Ele deliberadamente ficou alguns metros para trás. Fairfax segurou a mão dele e não disse nada. Quilômetros se passaram. O ar da noite do deserto cortou forte contra a pele exposta de seu rosto, mas ele estava quase contente pela dor entorpecida, pela distração oferecida. — Não quero ser o Mestre do Domínio, — ele disse depois de um longo tempo. O Mestre do Domínio não era alguém para ser invejado no melhor dos tempos. O Mestre do Domínio como fugitivo de Atlantis era uma posição insustentável. — É possível eu me tornar um menino de estábulo? — Você deveria tentar, — ela disse; seus dedos apertando os dele. — Eu realmente gosto de garotos de estábulo, especialmente quando eles cheiram como a sujeira que passam o dia todo recolhendo. Ele estava a meio caminho entre risos e lágrimas. — Não consigo pensar em nada que eu queira fazer menos do que ser responsável por um reino inteiro. — Bem, se você cuidar da metade do Domínio assim como cuidou de mim, você e o Domínio estarão bem. — Você realmente acha isso?

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— Sim, eu acho. Para não mencionar, agora você sabe de pelo menos uma garota que te beijaria, mesmo que não fosse um príncipe. Não é o que todos os príncipes estão tentando encontrar? — Este foi um choque terrível, — ele disse devagar. — Precisarei de dúzias de beijos para me ajudar a lidar com isso. — Eu ia guardar meus beijos até ver a placa de mármore de cinquenta

toneladas

esculpida

com

versos

indescritíveis.

Mas

circunstâncias extraordinárias exigem medidas extraordinárias, então você pode ter um beijo agora. Ele conseguiu, por pouco, não deixar o tapete cair. — Melhor? — Mais um, e eu posso continuar. Mas mais um não estava no destino. À frente, Ishana gritou: — Vossa Alteza, a base está próxima. Temos que começar nossa descida agora. Por favor, siga de perto.

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Capítulo 30 Inglaterra

— Qual é o problema? — A voz veio de Fairfax. Titus se assustou – ele sequer percebeu que ela havia chegado ao laboratório. — Vejo que você ainda está decidida a não me ouvir sobre não se arriscar no exterior após as luzes serem apagadas. Ela se sentou em frente a ele na mesa de trabalho. — Eu nunca ouço você quando sei o suficiente para fazer minha própria escolha. Seu tom era suave, mas a verdade de suas palavras o golpeava com força: ela dependia de seu próprio julgamento. Ele, por outro lado, estava acostumado a seguir a vida de acordo com as instruções que sua mãe deixou para trás. O que estava bem quando ele não questionava essas instruções. Mas quando questionava, ele mergulhava em um estado de entorpecimento. — É algo que Lady Callista disse? — Fairfax perguntou. Ela ficou chocada ao ver Lady Callista revelada como a guardiã da memória,

mas

não

parecia

particularmente

afetada

por

isso,

provavelmente porque sempre desgostou do guardião da memória – e

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provavelmente porque todas as suas memórias pessoais de Lady Callista como sua mãe ainda eram inacessíveis. — Houve algo que ela gritou quando estava acusando você de ser ingrata, — Titus respondeu. — Não consegui tirar da minha cabeça. Você tem alguma ideia de quão difícil foi, quão terrível, descobrir como fazer tudo o que meu eu futuro estava dizendo que precisávamos fazer? Ele repetiu essas palavras em voz alta para Fairfax. — Observa qualquer coisa? — Sim, eu entendo, — ela disse devagar. — Nós sempre assumimos que o guardião da memória estava trabalhando contra uma visão do futuro, por isso tudo acabou dando errado. Mas foi ao contrário: Lady Callista fez tudo em seu poder para tornar realidade uma visão. — Há isso. E há o fato de que a visão que ela deixou dominar sua vida não era uma visão de ação, mas da fala: nessa visão, seu eu futuro contava ao seu futuro guardião o que eles precisavam fazer. Fairfax franziu a testa. — Não sei se entendi. — Nunca houve acordo sobre o que os magos deveriam fazer quando tivessem conhecimento prévio de eventos que ainda não aconteceram. Alguns acham que enquanto não se está tentando impedir esse futuro, nada mais precisa ser feito. Alguns acham o contrário: o futuro foi revelado para aqueles que estão no presente possam tentar mudá-lo. Você mencionou o paradoxo de criar a realidade há algum tempo: um futuro que provavelmente não se tornaria realidade se não tivesse

sido

revelado

e,

então,

for

assiduamente

influenciado.

Obviamente, eu não me importo com uma pequena realidade criada. Mas mesmo entre os magos que acreditam que alguém deve trabalhar em direção a um futuro revelado, existem grandes diferenças de opinião sobre o quanto deve ser feito. Por exemplo, minha mãe se viu escrevendo: Não há elixir de luz, por mais estragado, que não possa ser revivido por um relâmpago nas margens de uma cópia de A poção completa. Não há nenhum argumento ali – ela definitivamente deveria ter feito isso quando se encontrasse na situação prevista. Mas, e se ela tivesse se visto dizendo

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a alguém que era o que ela havia feito? Ela ainda deveria escrever sobre elixires de luz e relâmpagos no manual de poções? Fairfax piscou. — Isso pode ficar complicado. Estritamente falando, para cumprir a profecia ela apenas precisa dizer as palavras, não precisa realmente fazer a escrita. — Isso fica ainda mais complicado. E se ela tivesse se visto dizendo a alguém que planeja escrever estas palavras dentro de uma cópia de A poção completa? — E você está dizendo que é o equivalente da visão que Lady Callista trabalhou, a visão de um plano falado em voz alta. Ele assentiu. Assim como os videntes tinham importâncias muito diferentes, também as visões. — Uma visão de alguém discutindo seus planos é muito menos significativa do que uma visão de eventos reais. Mas não tem a ver com Lady Callista a questão sobre a qual estou preocupado... — ele quase não conseguiu falar as próximas palavras. — É a visão da minha mãe que está me preocupando. Ela se levantou do assento. — O quê? — As visões da minha mãe quase sempre diziam respeito a eventos. Minha coroação foi um evento. A morte da Inquisidora, um evento. Ela mesma escreveu as palavras que um dia te inspirariam a convocar um relâmpago, uma série de ações que constituíram um evento. — Ele colocou as mãos sobre o diário, que durante tanto tempo foi sua balsa em um mar de incertezas da vida. — Mas agora percebo que alguns dos pressupostos mais importantes da minha mãe não consistem em uma visão de ação, mas de uma fala. Isto é, provavelmente, o que Titus está testemunhando, a manifestação do grande mago elementar, como ele diz em uma visão diferente, seu parceiro para a tarefa. Como ele diria. — Você pode pedir ao diário para lhe mostrar essa visão, então você saberá de um jeito ou de outro? — Posso, mas tenho medo, — ele olhou para ela. — Já lhe disse que ela previu a morte do Barão Wintervale? Mas ela interpretou mal o

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que viu, ao acreditar que Atlantis era responsável pela maldição de execução. Ela era uma vidente impecável, mas não era infalível nas interpretações de suas visões. No entanto, a direção de toda a sua vida foi estabelecida com base nessas interpretações. Ela rodeou a mesa e ficou em pé ao lado dele, a mão no seu ombro. Ele colocou a mão sobre a dela. — Eu sou um covarde? — Porque você tem medo? Não. Apenas os tolos nunca têm medo. Ele olhou para a borda dourada das páginas do diário. — E se tudo mudar? — Às vezes isso acontece. — Odeio mudanças assim. — Eu sei, — ela disse gentilmente. — Eu também. Ele

inalou

profundamente

e

abriu

o

diário,

pedindo

silenciosamente para mostrar a visão em que ele falava do grande mago elementar que seria seu parceiro para a tarefa.

24 de abril, AD 1021 Apenas alguns dias antes da morte da princesa Ariadne. É Titus – ou pelo menos eu acho que é Titus – talvez dez anos ou mais do que ele tem agora, um menino de dezesseis ou dezessete anos, magro e bonito. Ao lado dele, outro garoto, com a mesma idade, bem bonito, mas de certa forma quase bonito demais para um jovem. Eles parecem estar de pé na margem de um lago ou um rio, jogando pedras, mas não reconheço o lugar como um que já visitei. — Eu vou derrubar o Bane, — Titus diz. Precisei me afastar da minha mesa por um momento para me recompor. Então é para isso que todas as outras visões foram feitas. Pela milésima vez, gostaria de nunca ter sido amaldiçoada com esse dom.

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— Por quê? — O outro garoto pergunta, soando assustado e surpreso como eu me sinto. — Porque é isso que eu deveria fazer, — Titus responde, com uma certeza absoluta. Ele fechou o diário. Era a conversa que ele e Fairfax tiveram na margem do Tâmisa, quando ele contou a ela sobre seu destino. — Lembre-se, isso não diminui o poder de sua mãe como vidente, — Fairfax disse com urgência. Não, mas lançou dúvidas sobre sua interpretação de tudo. A princesa Ariadne escreveu que havia um parceiro para Titus, porque o futuro Titus havia dito isso. Mas o futuro Titus havia dito isso porque a princesa Ariadne havia escrito isso. Era um paradoxo completo e vicioso. — Que a Sorte me proteja, o que isso significa? — Ele se ouviu murmurando. — Existe um Escolhido ou não? Foi a coisa mais dolorosa para dizer a Fairfax, que ela não era parte de seu destino, mas ele fizera isso sem hesitação, porque, como ele disse a ela, não se discutia com a força do destino. Agora, no entanto, a força do destino provava que não era mais do que um enigma hesitante. — Isso importa? — Ela perguntou. — Como isso pode não ser importante? Se não há um Escolhido, então o que sou eu, aquele cuja tarefa é treinar e orientar o Escolhido, o que devo fazer? Ela virou a cadeira para que ele a encarasse. — Escute-me. Esqueça como ela interpretou tudo; as visões são e sempre foram coisas esquisitas. Olhe, em vez disso, o que as visões dela o levaram a realizar: você me salvou duas vezes e derrotou a Inquisidora, a tenente mais capaz de Bane. Sua mãe morreu, porque Atlantis queria que ela fosse morta. Você sempre seria um inimigo implacável para Atlantis. Você sempre faria o melhor para destruir o reinado de Bane. A única diferença foi que a princesa Ariadne se certificou de que você estivesse pronto mais cedo do que poderia ter estado. Wintervale não precisa ser o Escolhido a erguer sua varinha contra Atlantis – ele quer ser parte de algo maior do que ele.

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Eu também não preciso ser a Escolhida – se eu posso fazer a diferença, então estou disposta a fazer o meu melhor. Mas nós precisamos de você – você está melhor preparado para derrubar o Bane do que qualquer outro mago na Terra. Então não me diga que você não sabe o que deveria fazer. Seu papel não mudou. Levante-se e volte a fazê-lo. Ele olhou nos olhos dela e sentiu que seu desespero drenava. — Então você não acha que tudo o que fiz foi em vão? — Não, não acho que qualquer coisa que você já fez foi em vão. Tudo se concretizará algum dia. Além disso, estou convencida que você viverá para ver esse dia. Ele pegou as mãos dela. — Quando chegar a hora, você virá para Atlantis com Wintervale e eu? — Eu vou. — Ela o beijou nos cabelos. — Agora vá descansar um pouco. A estrada ainda é longa. *** — Não acredito, — Cooper disse, olhando para o cartão de visita. — Low Creek Ranch, Território de Wyoming. Você está realmente nos deixando? Iolanthe caminhou até a janela de Cooper. — Não vai demorar muito agora. E eu realmente sentirei falta desta vida fácil. Cooper ficou em pé ao lado dela. — Sabe o quê? Talvez algum dia eu fuja e me junte a você no Território de Wyoming. Pelo menos não terei que ser advogado, se eu for pastorear gado. — Boa sorte em me encontrar. Aposto que esta fazenda abandonada está a quatrocentos quilômetros sem estradas, da estação ferroviária mais próxima. Você estará melhor se pedir ao príncipe para se tornar seu secretário. — Sabe o que eu gostaria? Eu gostaria de ver o meu futuro, então eu poderia deixar de me preocupar com isso. Iolanthe resmungou e balançou a cabeça. — Oh, olha o West. Eu acho que ele está vindo para a casa da Sra. Dawlish. — Cooper abriu a janela, seu temido futuro como um relutante

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advogado logo esquecido. — West, você vai entrar? Já viu onde eu fui atingido na cabeça por uma telha voadora? Ele não precisava mais usar a atadura, mas ainda gostava de mostrar a ferida. — Sim, vou entrar, — West disse, já vestindo seu equipamento de cricket. — Pensei em ver Wintervale, mas com prazer inspecionarei suas feridas de guerra também, Cooper. — Você deve ir primeiro ao escritório da Sra. Hancock para assinar um cadastro de visitantes. Ela está determinada a manter influências nocivas fora desta casa, — Iolanthe disse a ele. — Então o que você está fazendo aí dentro? — West respondeu com bom humor. — Obviamente, sua vigilância não é compatível com minha astúcia. Uma visita do futuro capitão da equipe de cricket acabou por ser um negócio muito maior do que Iolanthe havia imaginado. A própria Sra. Hancock acompanhou West subindo as escadas, parecendo tão perturbada quanto uma jovem em seu primeiro baile. Wintervale, a quem Iolanthe havia pensado estar além de coisas como cricket e times da escola, depois de um momento de surpresa, irrompeu em um sorriso tão grande que Iolanthe teria pensado que ele havia derrotado Bane. Outros veteranos se alinhavam na parede de Wintervale enquanto os calouros se empilhavam ao lado da porta. Iolanthe teve que sair do caminho quando percebeu que ela ainda não havia trocado de roupa para o treino de cricket. Ela olhou para o quarto de Titus – essa seria uma boa oportunidade para ele ver West de perto e talvez descobrir por que ele estava tão interessado nele. Mas Titus não estava lá. *** Depois do laboratório, Titus voltou para seu quarto para pegar um casaco. Ele havia dito a Fairfax que iria avaliar West no treino de cricket,

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e pretendia estar quente e confortável cumprindo sua promessa – ou pelo menos tão quente e confortável quanto possível, em mais um dia sombrio e frio. Enquanto abotoava seu casaco, ele colocou a cabeça no quarto de Wintervale para ver como ele estava passando. O quarto de Wintervale estava vazio. Mas um rápido olhar para fora da janela de Wintervale mostrou que Wintervale e Cooper não estavam muito longe na rua, movendo-se na direção dos campos de jogo. Ele saiu da casa e os alcançou. — Vai assistir ao treino de cricket com a gente, príncipe? — Wintervale perguntou. — Essa é a minha intenção. — Excelente, — Wintervale disse. — Então você pode ser minha muleta. Desculpe Cooper, mas Sua Alteza tem uma altura melhor para mim. Cooper cedeu seu lugar e deu um relato completo sobre quão grandiosa foi a visita de West à Wintervale. E Titus ficou preso ouvindo a narrativa carregada de detalhes enquanto Wintervale prosseguia no ritmo de um caracol sonolento. Levou-lhes uma quantidade ridícula de tempo para chegar aos campos de jogo, onde os meninos da casa da Sra. Dawlish – mais a Sra. Hancock – estavam presentes como espectadores. Agachado atrás de Fairfax, na posição de wicket, estava um garoto cujo rosto lhe era familiar. West. Mesmo se alguém tivesse muito pouco interesse na elite esportiva da escola, ainda acabava sabendo quem era quem. Mas essa não foi a razão para o reconhecimento que reverberou em Titus, produzindo ondas do que ele poderia apenas classificar como medo. Fairfax acertou a bola e deu duas voltas, voltando à sua posição original. West deixou seu lugar, aproximou-se e falou com ela brevemente. Quando voltou a ocupar seu lugar, ele olhou na direção de Titus, estudando-o brevemente antes de retornar sua atenção ao jogo.

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Titus sentiu como se tivesse caído em gelo fino. Quando teve o breve vislumbre de Bane na noite de quatro de junho, ele se lembrou de pensar que Bane parecia vagamente familiar. Agora ele sabia o motivo. Havia uma estranha semelhança entre West e Bane. Eles tinham pelo menos trinta anos de diferença, e Bane tinha uma barba perfeitamente aparada. Mas não havia dúvidas sobre isso, suas características eram de uma semelhança notável. Se o Bane poderia ressuscitar, quem poderia dizer que ele não seria capaz de parecer algumas décadas mais jovem? E vir à Eton para caçar o próprio Fairfax, onde seus agentes falharam? Fairfax correu mais duas vezes e voltou a conversar com o West – o próprio Bane, possivelmente. Titus teve que sentar-se por um minuto para que pudesse pensar com calma. O que aconteceria se West simplesmente esticasse e agarrasse Fairfax? Quão rápido ela poderia reagir? Quão rápido Titus poderia reagir? E quão rápido ele poderia fazer Wintervale, também sentado no chão e desfrutando com entusiasmo do jogo, pela expressão em seu rosto, entender que ele deveria libertar todo o poder a sua disposição para manter Fairfax longe do mal? Sim, ele estava disposto a expor os poderes elementais de Wintervale por ela. Sim, ele estava até mesmo disposto a arriscar a vida de Wintervale por ela. Ele deveria ter vergonha, mas não se importava. O jogo, no entanto, continuou calmamente, imperturbável. Quando o sol tocou o horizonte ocidental, West sinalizou que eles se dispersariam pelo dia. E Fairfax saiu, sem ter ideia de que durante duas horas ela esteve a uma curta distância do Senhor Comandante Supremo do Grande Reino de Atlantis. *** O príncipe era capaz de ter muito sangue-frio – sentando-se com aparente indiferença na parte de trás de sua cadeira em sua própria

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Inquisição, mantendo-se completamente imóvel e parecendo entediado, embora pensasse que Iolanthe estava prestes a ser arrastada para longe – mas durante o treino ele se sentou e levantou pelo menos três vezes. Era o equivalente a alguém como Cooper correndo pela rua, gritando e rasgando suas roupas. Ele não se aproximou dela imediatamente após o fim do treino. Na verdade, ele não estava em nenhum lugar para ser visto. — Então a Sua Alteza vem para assistir o treino de vez em quando, — West disse a Iolanthe enquanto recolhia suas coisas. — Sua Alteza, como sempre, faz o que quer. Wintervale estava desapontado por Titus ter ido embora sem dizer nada a ninguém. Kashkari se ofereceu como muleta para Wintervale no caminho de volta, uma oferta que Wintervale aceitou sem grande entusiasmo. Normalmente, quando Iolanthe encontrava-se compartilhando uma calçada com Wintervale, ela desacelerava para caminhar ao lado dele. Mas hoje ela precisava falar com Titus para descobrir o que o havia perturbado. Usando sua sede como desculpa, ela passou por Kashkari e Wintervale, caminhando tão rápido que o pobre Cooper dificilmente conseguiu acompanhar. Na porta de Titus, antes que pudesse bater, uma mão pousou no ombro dela. Ela saltou. Mas era apenas Titus. — Estive atrás de você todo esse tempo, — ele disse calmamente. Ele a conduziu para dentro. E uma vez que a porta estava fechada, ele estabeleceu um círculo de som e aplicou o tipo de feitiço de intrusão que mataria um bando de rinoceronte, fazendo com que as sobrancelhas de Iolanthe subissem quase até seu cabelo. Apertando-a, ele beijou sua bochecha, sua orelha e seus lábios. — Tome uma dose de auxiliar de desmaterialização. Vou levar você para Paris agora mesmo. Não precisa arrumar nada. Tudo o que precisar você pode comprar novo lá.

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— O quê? — Ela exclamou. — O que está acontecendo? Você está tremendo como uma folha no vento. Um exagero de sua parte, mas a ponta dos dedos tremia. — West poderia ser o Bane. Ela olhou para ele. — Você não está fazendo nenhum sentido. Você disse que West poderia ser o Bane? — Eu vi o Bane de perto, lembra? Acredite em mim quando eu lhe digo que West se assemelha exatamente ao Bane, se você subtrair os efeitos do envelhecimento. — Mas West não saiu do nada. Ele esteve na Eton durante o tempo que você esteve. Você não pode esperar que eu acredite que, durante quatro anos, Bane andou entre os alunos de uma escola não maga. — Não sei como explicar isso. Tudo o que sei é que você não pode ficar aqui nem mais um minuto. — Mas eu fiquei ao lado dele por duas horas e nada aconteceu comigo. — Ainda assim. Qualquer coisa poderia acontecer a qualquer momento. Disso ela não duvidou, embora não estivesse convencida de que ele estava certo sobre o West. — Eu não me oponho a errar pelo lado da cautela. Mas desaparecer sem uma palavra para ninguém, deixando todos os meus pertences para trás – pareceria suspeito, não seria? Ele franziu a testa, mas não respondeu. — Além disso, se ficou muito perigoso para eu permanecer na escola, então também é muito perigoso para você e Wintervale. E, provavelmente, Kashkari também. Ele esfregou as têmporas. — O que você sugere que façamos? — Nós devemos falar com Kashkari e Wintervale. — Não, não Wintervale, ainda não. — Você não acha que está sendo excessivamente cauteloso? — Não mais do que a mãe dele. Iolanthe não podia argumentar contra isso. — Tudo bem então. Conversamos com Kashkari. Ele se sobressai em guardar segredos. E

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aposto uma libra que ele já tem planos para sair da escola rapidamente, em caso de emergência. Kashkari, no entanto, não foi encontrado em lugar nenhum. Ele sequer apareceu no jantar – foi Sutherland quem ajudou Wintervale vir para a sala de jantar. — Onde está Kashkari? — Iolanthe perguntou a Sutherland. — Ele está em jejum. E há alguns rituais que ele deveria seguir enquanto está jejuando. Ele tem permissão para ficar no quarto dele esta noite. Iolanthe trocou um olhar com Titus. O reino nativo de Kashkari não era um que caiu sob as bandeiras do Anfitrião Angélico. Mas ainda assim, era raro o mago que acreditava no jejum como um meio de ficar mais próximo do divino. Sra. Hancock também não veio ao jantar, o que causou uma agitação maior do que a ausência de Kashkari – Sra. Hancock nunca faltava à ceia. — Eu sei que é incomum, mas a Sra. Hancock está se sentindo um pouco indisposta esta noite, — a Sra. Dawlish explicou. Iolanthe não ficara particularmente nervosa anteriormente, quando Titus esteve quase desfeito por sua convicção de que West era Bane. Mas a ausência inesperada e simultânea dos dois magos a deixou tensa. Ela falou pouco e ouviu apenas pela metade do que Cooper dizia. Depois do jantar, como costumava fazer, Cooper voltou com Iolanthe para o quarto dela, por um pouco de ajuda no trabalho escolar. Ele abriu um caderno e folheou as páginas. — Ah, aqui está. É esta a palavra que significa rápido em grego? Iolanthe deu uma olhada. — Okeia? Sim. — Mas quando Afrodite já foi descrita como rápida? Levou dois segundos para entender o que ele estava falando – a maior parte de sua atenção estava nos passos no corredor, ouvindo o retorno de Titus. Ele foi procurar Kashkari novamente e ela estava começando a se preocupar.

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— Espere um minuto. Deixe-me olhar minhas notas. — Ela abriu um de seus próprios cadernos. — Eu acho que você escreveu isso errado. A palavra, na verdade, é okeanis, do oceano, a qual é Afrodite. Os dois pareciam o mesmo em grego, o que era um erro compreensível. — Ah, isso é muito melhor. — Cooper fechou seu caderno. — Você tem certeza que precisa ir ao Território de Wyoming? — Infelizmente sim. E mais cedo do que o esperado, eu temo. O príncipe entrou então. Ele olhou para Cooper e disse: — Deixenos. Como sempre, Cooper estava encantado por servir Sua Alteza, que olhou para a porta por um momento depois de fechada. — Algum dia eu posso sentir falta desse idiota. — Você encontrou Kashkari? — Não. Eu não pude... Batidas soaram na porta – não à sua porta, mas na do príncipe – seguido por: — Você está aí, príncipe? Kashkari. Titus foi instantaneamente à porta. — Sim? — Uma palavra com você, Sua Alteza. — Entre aqui. Kashkari entrou no quarto de Iolanthe. Titus fechou a porta. — Minhas desculpas Fairfax, — Kashkari disse, olhando para Titus. — Mas posso falar com você em particular? — Eu sou o guarda-costas pessoal de Sua Alteza, — Iolanthe disse. A partir do momento em que soube que Kashkari percebeu há muito tempo que não havia nada certo sobre Archer Fairfax, ela pensou no que dizer a ele que explicasse tudo, mas ainda manteria seu segredo intacto. — Há outros nesta casa e ao redor desta escola dedicados à minha proteção, mas foi decidido no início deste ano, devido ao aumento do perigo para Sua Alteza, que eu entraria na identidade que foi criada há muito tempo, caso alguém precisasse defendê-lo de um lugar ainda mais próximo.

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— Entendo, — Kashkari disse lentamente. — Eu entendo agora. Titus jogou junto. — Eu não estaria vivo hoje, se não fosse por Fairfax. Tudo o que gostaria de dizer, você pode dizer isso diante dele. Ele já sabe quem você é e quais são suas ambições, por sinal. Kashkari estudou Iolanthe por um momento, tirou um caderno do bolso e escreveu algo. Apenas um segundo depois, a Sra. Hancock se materializou na sala. Iolanthe começou a dar um passo atrás, batendo na borda da mesa. Titus parou diante de Iolanthe. — Qual é o significado disso, Kashkari? — Deixe-me definir um círculo de som, — Kashkari respondeu. Quando terminou, ele se virou para a Sra. Hancock. — Fairfax é o guardacostas pessoal de Sua Alteza. Podemos falar livremente diante dele. — Ah, isso faz sentido, — a Sra. Hancock disse. — Eu sempre pensei que havia algo inexplicável sobre você, Fairfax. — O que você está fazendo, Kashkari, — Titus exigiu, — Com a enviada especial do Departamento de Administração de Atlantis? — Venho esta noite como eu realmente sou: uma inimiga jurada do Bane, — a Sra. Hancock disse. Titus bufou. — Tenho as minhas dúvidas de que esta residência, que contém principalmente não magos que nunca ouviram falar da Atlantis, exceto como boatos antigos, poderia abrigar tantos inimigos jurados do Bane. É estatisticamente improvável. — Mas não estamos aqui por acaso, — a Sra. Hancock disse. — Kashkari viu seu próprio futuro. A mãe de Wintervale enviou-o por sua causa, Sua Alteza. E você e eu, Sua Alteza, ambos estamos aqui por causa de um homem chamado Icarus Khalkedon. —

Iolanthe

nunca

ouviu

esse

nome

antes,

mas

Titus

aparentemente sim. — Você fala do velho vidente do Bane? — O antigo Oráculo do Bane, — a Sra. Hancock respondeu. Titus e Iolanthe trocaram um olhar de espanto. Videntes eram considerados possuidores de um talento raro, mas os videntes eram receptores, limitados pelo que o universo considerava adequado revelar a

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eles. Os oráculos, por outro lado, eram capazes de responder a perguntas específicas. A maioria dos oráculos no mundo dos magos eram objetos inanimados, guardados com ciúmes por devotos, e os peregrinos podiam viajar milhares de quilômetros e ainda ser negada a chance de fazerem sua única pergunta urgente. Era quase desconhecido que uma pessoa fosse um oráculo. — Onde Bane o encontrou? — Iolanthe perguntou. — Eu não sei e nem Icarus – embora meu palpite fosse o reino Kalahari. Os magos de todo o mundo se instalaram lá e se casaram. Isso às vezes produz uma perfeição surpreendente nos filhos, diferente de qualquer outra coisa que alguém esteja acostumado a ver. A Sra. Hancock suspirou. — Eu o conheci quando fui honrada com um aprendizado de verão na Royalis27. Hoje, Bane raramente deixa o Palácio do Comandante nas terras altas, mas naquele verão ele tentou ficar na capital. E, claro, onde quer que Bane fosse, Icarus nunca estava longe. Bane lhe fazia uma pergunta por mês. Icarus levava duas semanas para se recuperar de uma pergunta, e Bane costumava deixá-lo com mais duas semanas de normalidade, eu suponho. Por estar tão exausto, ele mal conseguia mover uma pálpebra. Nos dias em que estava forte o suficiente para se levantar e caminhar, ele entrava na biblioteca onde eu trabalhava. Nós nos tornamos amigos – muito bons amigos. E foi tudo o que nos foi permitido tornarmos. Ele não podia fazer mais do que falar com uma garota, pois acreditava que os contatos carnais manchariam seu dom. Parte de mim desejava que nossa história fosse apenas a de um par de amantes cruzados pela estrela – minha vida teria sido mais simples. Mas não, nós dois estávamos no meio de uma crise de fé, em relação à nossa devoção ao Bane. E nesse sentido, eu era a melhor e a

É frequentemente dito que a construção de Royalis derrubou o último rei de Atlantis. Essa afirmação é apenas parcialmente verdadeira. Foi seu pai quem começou – e completou – a construção de um novo palácio, enquanto a fome afligia a capital, a cidade de Lucidias. Assim, enquanto o último rei de Atlantis não podia ser criticado por erigir um complexo grande e generoso com tanto sofrimento de seus súditos, ele poderia ser amplamente culpado por ter decidido derrubar e reconstruir metade de Royalis, porque não gostava de como parecia. – Do Império: o surgimento da nova Atlantis 27

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pior amiga possível que ele poderia ter – e vice-versa. Fiquei horrorizada ao saber que Bane não fazia perguntas sobre a melhor direção para o reino ou a pessoa mais qualificada para liderar determinada iniciativa. Em vez disso, muitas de suas perguntas ocorriam nas linhas de Quem será a minha maior ameaça no próximo ano? Mas a minha desgraça só estava começando. Quando Icarus era uma criança, muitas vezes ele ficava inconsciente no final de uma sessão oracular e não lembrava nem da pergunta nem da resposta. Conforme envelhecia e obtinha maior controle sobre seu dom, no entanto, ele começou a recordar o que acontecia durante suas sessões com Bane. À noite, em sua cama, ele silenciosamente dizia os nomes que havia dado como respostas ao longo dos anos. Ele repetia uma série de nomes para mim, aqueles pesos pesados em sua consciência. E, quando chegou a um nome particular, eu... A Sra. Hancock fechou os olhos momentaneamente. — Eu ouvi o nome da minha irmã. Minha irmã tinha dezessete anos quando desapareceu em uma viagem de acampamento com seus amigos. Ela foi vista entrando na tenda de noite, mas na parte da manhã ela não estava lá. Seus amigos procuraram e procuraram. Meus pais e eu – e todos que nós conhecíamos, além de muitos magos que nunca conhecemos, vasculhamos o lugar de cima a baixo, mas não havia vestígios dela. A área era conhecida por ter serpentes gigantes no passado, e ninguém na família poderia suportar mencionar isso, mas cada um se convenceu de que minha irmã se tornou o jantar de feras terríveis, pois não poderia haver outras explicações. Mas quando o nome dela surgiu, perguntei a Icarus se ele se lembrava da pergunta. Ele lembrava. A pergunta foi: quem é o mago elementar mais poderoso que ainda não atingiu a idade adulta? Minha irmã era uma maga elementar. E minha mãe costumava dizer que minha irmã era a maga elementar mais poderosa que já havia encontrado. Ela deveria saber – ela foi uma diretora por muitos anos. Icarus e eu nos encaramos, atordoados, paralisados quase, pelas possíveis implicações de nossa descoberta. Mas, como poderíamos saber se foi uma coincidência, o nome dela passou por seus lábios, seguido por

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seu desaparecimento uma semana depois, ou se houve forças sinistras no trabalho? A ideia foi de Icarus. Ele estava perto do final de seu mês e Bane logo faria uso dele. Mas em duas semanas, quando recuperou sua força, ele queria que eu lhe fizesse uma pergunta: na próxima vez que Bane perguntar sobre o mago elementar mais poderoso que ainda não atingiu a idade adulta, o que aconteceria com aquele mago elementar? Nós fizemos o que planejamos. Eu fiz a pergunta, tremendo completamente, e ele afundou em um transe profundo. Após quase quinze minutos, ele falou em uma voz profunda e estranha: Esse mago elementar será usado em magia sacrificial. Iolanthe sentiu como se tivesse sido perfurada no peito. — Mas magia sacrificial – Isso é tabu. — Não, — Kashkari murmurou; como se fosse para ele mesmo. — Não. Não. Não. — Você já pensa o pior do Bane, — a Sra. Hancock disse. — Você pode imaginar a força do golpe, sobre dois jovens que ainda não se tornaram inteiramente desiludidos? Parecia como um terremoto, o fundamento de uma vida inteira se quebrando. No mês seguinte, perguntei a Icarus o que Bane esperaria alcançar na próxima vez que ele realizasse a magia sacrificial. Prolongar a vida dele foi a resposta que recebemos. Isso não fazia sentido. Se Bane estava no final da vida, talvez alguém pudesse entender o desespero sórdido que o levou a uma magia sacrificial. Mas ele era um homem em seu auge. Então, no próximo mês, perguntamos quantos anos ele teria no seu próximo aniversário. Cento e setenta e sete foi a resposta. Lembro de quão enjoada eu me senti, quão entorpecida. A própria ideia era repugnante e horrível – que ele se entregou a essa vida anormalmente longa, sacrificando jovens magos elementais como a minha irmã. Foi a última pergunta que eu pude fazer a Icarus, antes de ele ser levado de volta ao Palácio do Comandante no final do verão. Mas me ofereceram uma posição permanente na biblioteca e fizemos um pacto para descobrir o máximo que pudéssemos e nos encontrar novamente no próximo verão. Quando Icarus não estava no modo oráculo, as pessoas tendiam a considerá-lo como alguém infantil

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demais, porque ele era deliberadamente mantido em estado de ignorância, permitindo ler livros de natureza e contos de fadas, mas não permitindo qualquer acesso a notícias, pois o conhecimento do medo do mundo real polui suas respostas. Icarus sempre jogou com isso. Assim, durante esses dez meses, ele conseguiu usar essa percepção – e o fato de que ele era um dos bens mais valiosos de Bane – em sua vantagem. E descobriu que, de fato, durante os anos de seu mandato como oráculo de Bane, três jovens elementais tiveram audiências particulares com Bane. Os guardas com quem ele falava eram de baixa segurança e eram quase tão ignorantes como ele – apenas muito menos curiosos. Eles simplesmente assumiram que, depois da audiência, os jovens magos elementais foram levados de volta para a capital através de algum portal, razão pela qual ninguém os viu novamente. Ele também descobriu os níveis mais baixos do Palácio do Comandante. Ele pensou que o palácio tinha três níveis subterrâneos, mas na verdade tinha cinco. Somente o próprio Bane e, ocasionalmente um de seus tenentes mais confiáveis, era permitido nos níveis secretos. Procurei informações sobre os outros nomes que Icarus deu ao Bane ao longo dos anos, aqueles que eram ameaças para Bane. A maioria eram nomes dos quais eu nunca ouvi falar. Alguns eu encontrei em arquivos de jornais estrangeiros que tínhamos na biblioteca, magos de vários outros reinos que foram presos rapidamente depois que seus nomes foram dados, e que muitas vezes foram posteriormente executados por acusações de corrupção, ou mesmo indecências grosseiras. Nós tivemos dez meses para nos habituarmos à monstruosidade de Bane. Mas ainda assim, quando finalmente nos encontramos novamente e trocamos tudo o que descobrimos, nenhum de nós conseguia parar de tremer. Foi quando Icarus disse que não podia mais viver assim. Que desde o verão passado, ele pensava em tirar a própria vida. Eu implorei para que ele não pensasse mais nisso. A ideia de que, no futuro, sua alma bela não seria capaz de voar com os Anjos – não consegui suportar. Mas sua mente estava decidida. Era o único jeito, ele disse. Mas antes disso, ainda deveríamos fazer-lhe algumas perguntas. A pergunta que ele queria que eu fizesse me assustou tanto

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que quase não consegui falar em voz alta. Como Bane será morto? A resposta: Ao se aventurar no nível mais profundo do Palácio do Comandante e abrindo sua cripta. Não foi uma boa resposta para nós. Além de seus poderes oraculares, Icarus não teve nenhum outro treinamento em nenhum tipo de mágica. E eu era uma simples bibliotecária muito distante da capital. O desespero de Icarus quase ameaçou levar nós dois, mas eu disse que ele deveria permanecer forte e parecer normal, pois eu poderia fazer uma pergunta diferente no próximo mês. Minha pergunta foi: Como posso fazer a minha parte para ajudar a matar Bane? Era a primeira vez que eu me colocava em uma pergunta; lágrimas de terror caíam do meu rosto, mesmo quando falei. Eu me lembro da responda dele, palavra por palavra. Quando o grande cometa vier e ter ido, Bane entrará na casa da Sra. Dawlish no Colégio Eton. — O grande cometa já veio e foi, — Kashkari disse; sua voz instável. Os magos astrônomos descobriram o cometa em agosto do ano anterior. No seu mais brilhante, o cometa quase rivalizava com o brilho da coroa do sol, um sinal bonito, mesmo que ligeiramente ameaçador, que dominava o céu noturno e poderia até ser visto durante o dia. Eu tive que procurar o Colégio Eton e a casa da Sra. Dawlish. Encontrei o primeiro, mas não o último, e Icarus e eu ficamos perplexos com o motivo pelo qual Bane se dignaria a visitar esta incrivelmente insignificante escola não maga. Então decidimos que não importava. Eu estaria lá na casa da Sra. Dawlish, no Colégio Eton, pronta e esperando o Bane entrar, seja quando fosse. O Domínio ainda era um reino rico com um governante relativamente vigoroso e uma estrutura de poder centralizado – Bane sempre o viu como uma fonte potencial de problemas. A princesa da coroa do Domínio estava esperando um filho e as duas perguntas mais recentes que Bane fez a Icarus diziam respeito ao gênero da criança, e se a criança algum dia subiria ao trono. Então nós sabíamos que o futuro herdeiro da casa de Elberon certamente estava na mente de Bane. De tempos em tempos, ele perguntava a Icarus o que deveria fazer como medidas cautelares. Icarus resolveu que na próxima vez que lhe fizesse a

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pergunta, ele apenas fingiria mergulhar em um transe – ele foi tão confiável por tanto tempo que Bane já não verificava se seus transes eram verdadeiros, e diria ao Bane que o herdeiro da Casa de Elberon deveria ser enviado para esta escola não maga e que eu deveria ser implantada como uma enviada especial do Departamento de Administração para manter um olho nele. Icarus planejava continuar como o oráculo de Bane por mais meio ano – então suas palavras sobre Eton e eu não se destacariam. E então ele se mataria, de maneira a parecer ter morrido de causas naturais. A Sra. Hancock exalou lentamente. — Essa foi a última vez que vi ou falei com ele. Ele voltou para o Palácio do Comandante três dias depois, e na próxima primavera ele estava morto. Sua morte não despertou suspeitas – todos sempre assumiram que ele não viveria por muito tempo; esses poderes pareciam simplesmente milagrosos demais para continuar a existir. Pedi uma transferência para o Departamento de Administração. Com o tempo, fui enviada para reconhecer Eton. A Sra. Dawlish tinha acabado de iniciar sua própria residência para os meninos. Solicitei uma posição. Ela contratou outra pessoa primeiro, mas a mulher acabou por ser inadequada. Eu consegui entrar poucas semanas antes de Sua Alteza chegar. Agora era apenas uma questão de esperar. O cometa veio no ano passado. Os não magos estavam tão entusiasmados com isso quanto os magos. O jornal divulgou notícias dele até fevereiro deste ano. Eu pensei que estava pronta, mas ainda assim, quando Fairfax veio em abril, na primeira noite eu estava tão nervosa que mal consegui fazer a oração antes do jantar. Iolanthe ficou surpresa. — Você pensou que eu era Bane? — Eu pensei que talvez você fosse um agente. Então esta tarde, West veio. Titus enviou a Iolanthe um olhar que dizia o que-eu-lhe-disse. — Eu vi Bane algumas vezes na minha vida. Quando West entrou no meu escritório para assinar o registro de visitantes, pensei que meus joelhos – e meu coração – também falhariam. Era exatamente como

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Icarus havia dito: Quando o grande cometa vier e ter ido, Bane entrará na casa da Sra. Dawlish, no Colégio Eton. — Eu o assisti no treino de cricket – para me certificar de que não havia

deixado

uma

impressão

inicial

equivocada

superar

meu

julgamento. Quanto mais eu olhava para ele, mais tinha certeza de que deveria ser ele. Decidi que não havia como esperar mais. Eu procederia imediatamente. Imagine minha surpresa e consternação quando cheguei na casa dele e descobri que ele havia saído apenas alguns minutos antes – o pai dele o chamou porque a mãe se sentia indisposta, de acordo com o mordomo da casa. Desmaterializei nas três estações ferroviárias mais próximas. Ele não apareceu em lugar nenhum. Não sabendo o que mais fazer, eu fui ao quarto dele e procurei por suas posses. A próxima coisa que eu sabia, Kashkari estava no quarto comigo, uma varinha na mão. — Se o príncipe te contou o que eu disse a ele, — Kashkari disse para Iolanthe, — Então você já sabe que eu vim para Eton por causa do que alguém disse sobre Wintervale em um dos meus sonhos. Mas eu não sabia, até muito recentemente, que a pessoa que falava era a Sra. Hancock. O príncipe estava convencido de que a Sra. Hancock era uma fiel agente da Atlantis. Eu esperava que fosse outra coisa, mas não tinha provas. Então hoje a Sra. Hancock foi assistir o treino de cricket, o que eu achei estranho, já que ela quase nunca saía da casa... — Eu não queria estar aqui quando Bane entrasse, — a Sra. Hancock disse. — Então eu a vi pela janela, saindo novamente. Eu a segui, o que me levou à residência do West. Quando ela entrou no quarto de West, eu decidi que também poderia enfrentá-la lá. — Kashkari disse: Eu sou um inimigo do Bane. Se você for também, diga agora. Após me recuperar tanto do meu choque quanto do susto, eu pedi um pacto de verdade28. Com o pacto de verdade no lugar,

Magos desenvolveram muitos meios diferentes de atrair ou verificar a verdade, muitos dos quais com legalidade questionável. O pacto da verdade é um dos poucos métodos considerados acima de reprovação, porque requer participantes dispostos no início e não possui castigos na detecção de mentiras: o halo que envolve as partes no pacto 28

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procedemos com rapidez. E quando dissolvemos o pacto quinze minutos depois, recomendamos que procurássemos os escritórios da escola pelo registro de West. O pai dele é professor da Universidade de Oxford. Nenhum de nós esteve em Oxford para que pudéssemos desmaterializar. Kashkari ofereceu seu tapete voador. Nós demos algumas desculpas, saímos do jantar e voamos para Oxford. A família estava sentada para jantar. Nós nos escondemos na próxima sala, mas era bem óbvio que a Sra. West não estava bem de saúde. Então uma garota perguntou se o irmão viria para seu aniversário. E o Professor West respondeu que ele havia recebido uma carta de West hoje, e que, na verdade, ele estaria em casa no próximo sábado. Nada fez sentido. Por que West desapareceu? Alguém o abduziu com promessas falsas? E se ele não é Bane, então, o que Icarus quis dizer exatamente quando disse que Bane entraria na casa da Sra. Dawlish? — Eu senti que devíamos falar com você, príncipe, — Kashkari disse. — A Sra. Hancock concordou, porque ela ouviu dizer que sua mãe era uma vidente. Se a Alteza deixou visões que podem nos ajudar, por favor, nos informe. Iolanthe poderia ter previsto palavra por palavra do que Titus diria, e ele não se desviou. — Antes de ajudá-los, vou precisar de um juramento de vocês dois, jurando que estão falando a verdade e que não procuram prejudicar Fairfax ou a mim em nenhum sentido, agora ou sempre. Kashkari assentiu. A Sra. Hancock engoliu em seco antes de dar um rápido assentimento. Titus invocou a chama verde da veracidade e administrou o juramento. — Vamos nos dispersar por enquanto e nos encontraremos aqui quinze minutos depois das luzes serem apagadas. ***

dissolve no momento em que alguém mente – sem dor, nem sofrimento, nada além de cortesia e civilidade. – Da Arte e da Ciência da Magia: Uma cartilha

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Quinze minutos depois das luzes serem apagadas, quando a Sra. Hancock e Kashkari desmaterializaram de volta ao quarto de Fairfax, Titus colocou o Crucible na mesa. — O diário da minha mãe, que contém o registro de todas as suas visões, não me mostrou nada sobre West ou Bane. Mas posso levá-los para ver o Oráculo das Águas Paradas. O jardim do Oráculo estava muito diferente de quando Titus o viu pela última vez, no auge da primavera. Naquela vez também foi à noite, mas estava perfumado com o aroma de flores desabrochando e animado com o som de insetos apaixonados. Agora, a luz das lanternas brilhava sobre ramos nus e folhas caídas sob seus pés. — Você só pode fazer uma pergunta que ajudará outra pessoa, — ele disse a Kashkari e a Sra. Hancock. — Podemos cada um fazer uma pergunta? — Kashkari perguntou. — Não. Ela responderá uma pergunta por semana, se for uma boa pergunta. E você só pode ter uma pergunta respondida por ela em sua vida. Embora às vezes ela possa ceder um pouco mais, se gostar de você. — Eu gostaria de fazer uma pergunta, — a Sra. Hancock disse. Ela subiu os degraus e olhou para o lago, mas depois voltou para os outros. — Não tenho ideia do que perguntar que seria compatível com os requisitos do Oráculo. Todas as noites eu penso nos mortos, todos os mortos – minha irmã, Icarus, e todos os outros assassinados e torturados por Bane ao longo do caminho. A necessidade de justiça me conduziu todos esses anos. Não sei se posso dizer que honestamente estou tentando ajudar alguém a viver. Antes que qualquer dos magos presentes pudesse dizer alguma coisa, o Oráculo riu suavemente com sua voz prateada. — Gaia Archimedes, também conhecida como a Sra. Hancock, seja bem-vinda. Não encontrei uma grande quantidade de honestidade como a sua. Pelo menos você entende que seu motivo é vingança pelos mortos. — Obrigada, Oráculo. Mas não me ajuda com uma pergunta, não é?

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— O que você procura entender? — Eu quero saber se Icarus estava correto. Se Bane veio à casa da Sra. Dawlish. E como eu poderia aproveitar a oportunidade para fazer a diferença. Dediquei a maior parte da minha vida adulta nesse esforço, e não quero falhar comigo mesma ou com os mortos que estão contando comigo. — Eu sei de pelo menos uma alma viva que se beneficiaria com isso, — o Oráculo disse gentilmente. — Eu acho que todo o mundo dos magos se beneficiaria com isso. Mas não tenho um nome para uma pessoa em particular. — E quanto ao West? — Fairfax perguntou. — Se descobrirmos quem está por trás de seu sequestro, isso poderia ajudá-lo. O rosto da Sra. Hancock resistiu com indecisão agonizante. Titus entendeu sua relutância – se ela só tinha uma pergunta, West parecia ser um participante muito periférico nesses eventos para ser presenteado com um papel central. — Aqui está outra opção, — ele disse a Sra. Hancock. — Pergunte ao Oráculo como você pode ajudar aquele que mais precisa de sua ajuda. Esta foi a pergunta de Fairfax na primavera passada. Ele pensou então que ela havia perguntado sobre seu guardião; só depois ela lhe contou qual foi a pergunta. Ajude-me a ajudar quem mais precisa. E a resposta dada o salvou. A Sra. Hancock hesitou mais um minuto. Finalmente, apertando sua mandíbula, ela disse ao Oráculo: — Tem que ser alguém que eu possa ajudar em particular, mesmo que eu não possa nomeá-lo. Diga-me como posso ajudar. A água da lagoa ficou brilhante. Quando o Oráculo falou novamente, era como se as sílabas saíssem do solo sob os pés, fortes e ressonantes. — Destrua o que resta do Bane se você deseja salvar as peças sobressalentes. A Sra. Hancock olhou para trás, incompreensão escrita por todo o rosto.

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Agradeça a ela, Titus falou. A Sra. Hancock fez isso, seu tom subjugado. A água sibilou e vaporizou antes de se acalmar para a de um lago plácido novamente. Então o Oráculo disse: — Adeus, Gaia Arquimedes. E sim, você já viu isso antes. *** — O que o Oráculo quis dizer com você já viu isso antes? — Iolanthe perguntou, após voltarem para o quarto dela. — Este livro, eu acho, — a Sra. Hancock respondeu. — Mas é claro que eu já vi muitas vezes; o príncipe manteve-o no quarto dele por anos, e eu devo verificar o quarto dele periodicamente, tanto como parte dos meus deveres na casa da Sra. Dawlish, quanto como parte do meu papel como os olhos de Atlantis. — O que resta de Bane, — Kashkari pensou. — O que resta de Bane. O que falta no Bane? — Sua alma, — a Sra. Hancock respondeu, não uma pergunta, mas uma declaração. — Uma pessoa que se envolve com a magia sacrificial não tem mais alma. — Bane não parece se importar muito com a alma dele, não é? — Iolanthe disse. — Ou talvez ele se importe. Talvez ele tenha começado a se preocupar com sua alma quando já era tarde demais, — Titus disse. — Talvez seja por isso que ele esteja tentando prolongar sua vida por qualquer meio possível, para que ele não precise descobrir o que acontece depois da morte de alguém sem alma. Às vezes, Iolanthe esquecia que ele pensava muito sobre a vida e a morte. — E o que você acha que ela quis dizer com peças sobressalentes? — A Sra. Hancock perguntou. — E por que queremos salvá-las? — Não sei por que, — Kashkari disse, — Mas estou pensando naquele livro sobre o Dr. Frankenstein – vocês o leram?

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Todos os outros sacudiram a cabeça. Iolanthe se lembrou de que Kashkari tinha o livro com ele no dia em que Wintervale criou o redemoinho. — É sobre um cientista que criou um monstro a partir de partes de humanos, — Kashkari continuou. Iolanthe sentiu como se uma engrenagem no cérebro de repente funcionasse. — West será canibalizado por causa de peças? Titus olhou para ela. — Você acha que peças sobressalentes se referem ao West? — Faz sentido, não é? Se você quisesse peças sobressalentes, não quereria peças de reposição que pareçam com você, ao invés de alguém... — ela ficou impressionada com a admiração e o terror, e teve que se segurar na cornija antes de poder falar novamente. — Peças sobressalentes. Peças sobressalentes. Que a Sorte me proteja, você acha que é assim que ele... Como ele... Titus parecia igualmente sobrecarregado. — Sim, deve ser. — Deve ser o quê? — A Sra. Hancock perguntou, seu tom apenas acima de um sussurro. — Deve ser assim que ele ressuscita. Kashkari caiu em uma cadeira. — Nós ouvimos rumores, mas nunca acreditei. — Eu nunca ouvi esses rumores, — a Sra. Hancock disse aturdida. — Por que nunca ouvi falar de tais rumores? — Imagino que Bane se esforce para garantir que seu próprio povo nunca ouça falar dos rumores... Qualquer coisa remotamente conectada com a magia de sacrifício prejudicaria a legitimidade de seu governo. Iolanthe voltou a encontrar sua voz. — É por isso que West foi sequestrado. Não para ser canibalizado por partes, mas para ser usado como um todo. — Ela se virou para Titus. — Você se lembra do que eles disseram na Cidadela quando Bane ressuscitou no verão passado? Eles disseram que ele voltou parecendo mais jovem e mais robusto do que antes.

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— Porque ele voltou em um corpo diferente, mas de aparência semelhante, — Titus concedeu. — E foi assim que, apesar de ter explodido o cérebro no Cáucaso, ele ainda foi capaz de voltar no dia seguinte, sem parecer nem um pouco afetado. — Assumir outro corpo inteiramente – é um poder espantoso. Vocês já ouviram falar de outro caso assim? — A Sra. Hancock perguntou, com a voz fraca. Kashkari sacudiu a cabeça. — Somente em histórias. — Então não é com a primeira vez que West entrou na casa da Sra. Dawlish que devemos nos preocupar. É com a próxima vez, — Iolanthe disse. — O que você quer dizer? — A Sra. Hancock perguntou. — Na próxima vez que o virmos, pode ser que Bane esteja usando o corpo de West. O silêncio caiu. — Eu me pergunto quanto tempo demora para Bane preparar um corpo para uso, — Kashkari murmurou. — Algo assim deve precisar de contato, — Iolanthe disse. — Noventa e duas horas pelo menos. — Vamos assumir o pior, — Titus disse. — Vamos assumir que ele voltará amanhã. Sra. Hancock fez um som como o gemido de um animal ferido. — O que podemos fazer? Nós o atacamos diretamente? Titus balançou a cabeça. — Não. Todos nós sabemos agora que Bane não pode ser morto, exceto em seu próprio covil, onde seu corpo original é mantido. Pelo que eu me lembro, para a magia sacrificial funcionar completamente, quando ele sacrifica outro mago, Bane também deve sacrificar algo de si mesmo. É por isso que ele sempre quer que o mago elementar mais poderoso esteja disponível – já que ele deve sacrificar uma parte de si mesmo, não importa o que, ele iria querer tirar o máximo possível de cada sacrifício. E eu acho que o que ele obtém do sacrifício de um mago elementar verdadeiramente fenomenal deve ser

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uma ordem de magnitude maior do que o que ele poderia alcançar com um mais comum. — Como Bane saberá disso com certeza? — Kashkari perguntou. — Meu tio foi morto antes que Bane pudesse chegar até ele. A menina que convocou o relâmpago ainda está longe do alcance dele, pelo que eu sei. Além deles, não há grandes magos elementares há séculos. — Houve um dentro da vida de Bane – deve ter havido, e na própria Atlantis, não menos, — Iolanthe disse. — Recentemente, encontrei um diário de viagem. Alguns viajantes a caminho de Atlantis, quando alguém poderia visitar o reino, descreveu o grande redemoinho de Atlantis, que acabou acontecendo pouco antes deles chegarem. Essa é uma estupenda magia elementar, criar um redemoinho que ainda existe por quase dois séculos. Mas nunca ouvi falar de tal mago. Alguém quer apostar que talvez esse pobre mago elementar tenha sido o primeiro que o Bane sacrificou? — E talvez, quando o fez, não precisasse de mais sacrifícios por muito tempo, porque foi um sacrifício poderoso, — Kashkari disse. — E então, quando o efeito finalmente começou a diminuir... Titus assentiu. — Em qualquer caso, Bane está aqui porque precisa desesperadamente do próximo mago elementar poderoso – há várias partes do corpo que ele pode desistir antes que não haja nada dele. É nossa tarefa garantir que ele nunca se aproxime desse mago elementar. — Mas nem sabemos onde está a garota. — Não é a garota, — Titus disse. — É Wintervale. — O quê? — Kashkari e a Sra. Hancock gritaram em uníssono. Titus descreveu brevemente a visão de sua mãe e, em seguida, o cumprimento dessa visão na casa do tio de Sutherland. Uma luz quase beatífica iluminou o rosto de Kashkari. — Finalmente! Perguntei por anos o propósito exato para o qual estou protegendo Wintervale. Devemos pegar Wintervale e ir embora. Agora mesmo. — Você pode fazer isso, — Titus disse, — Mas eu não posso, infelizmente. Devo informar meu paradeiro a cada vinte e quatro horas.

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Se eu desaparecer por setenta e duas horas, então outro corpo quente deve ser colocado no trono. Então não posso sair até absolutamente o último minuto. — Eu também não posso, — a Sra. Hancock disse, — Sem que meus supervisores imediatamente saibam que alguma coisa está errada. — Mas eu tenho dito aos meninos que vou para a América, — Iolanthe disse. — Ninguém ficaria surpreso com a minha partida. Então, se você precisar de mim, eu posso levar Wintervale para um esconderijo. — Eu tenho um tapete sobressalente que você pode usar, caso não queira viajar por meios não magos, — Kashkari ofereceu. — Pode transportar cento e oitenta quilos, cruzar a uma distância de duzentos quilômetros por hora, e ir a cinco mil quilômetros sem tocar o solo. — Espere um minuto, — a Sra. Hancock disse. — Por que Wintervale não está envolvido em nenhuma das nossas discussões? Kashkari olhou para Titus. — Não sei qual é a razão do príncipe, mas eu contarei a minha. Três semanas depois de nos conhecermos, Wintervale me mostrou um truque. Ele colocou as palmas das mãos juntas e, quando as abriu, havia uma pequena chama suspensa no ar. Eu não fui o único a quem ele mostrou o truque – estou certo de que a metade dos meninos neste andar o viram, pelo menos todos os que jogam cricket, eu creio. Eu tive uma pequena crise depois disso. Vim de doze mil quilômetros, deixando minha família para trás, para manter esse garoto seguro? Este menino que não conseguia se impedir de se mostrar para não magos, porque precisava tanto de aprovação e admiração. Não me entenda mal. Gosto muito de Wintervale, mas não acho que ele tenha mudado tanto em todos os anos em que eu o conheço e não me atrevo a confiar nele com segredos que devem permanecer em segredo. — Então você planeja apenas pegar Wintervale no último segundo possível, sem lhe dizer nada antes? — A Sra. Hancock perguntou, parecendo duvidosa. — A mãe dele está aqui, mas não quer que ele saiba que está aqui, — Titus disse. — Nós deveríamos exercer cautela semelhante. E a sua foi a última palavra sobre o assunto.

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*** Depois que a Sra. Hancock e Kashkari partiram, Titus levou Iolanthe para dentro de seus braços. Ela o segurou firmemente. — Assustado? — Petrificado. — Eu também, — ela admitiu. As revelações da noite eram um redemoinho louco em sua cabeça. Ela queria ir para a cama e esquecer tudo por algum tempo, mas tinha medo de que se ela realmente adormecesse, então seria apanhada desprevenida se algo acontecesse no meio da noite. — E pensar que a Sra. Hancock é a responsável por você ser educado fora do Domínio, nesta escola não maga, — continuou. — É verdade o que eles dizem, os fios do destino tecem misteriosamente. — Você estava certa sobre mim – que minha vida nunca mais estaria completamente desentrelaçada com a de Bane. — Ele exalou. — Mas e se nós falharmos? — Nós provavelmente iremos. Você sabe disso. Assim como eu – e todos os outros magos que já levantaram suas varinhas contra Atlantis. — Ela o beijou na bochecha. — Então esqueça isso e vamos nos concentrar no que precisamos fazer. Ele assentiu lentamente. — Você está certa – novamente. Ela colocou uma chaleira na grelha. Eles não iriam dormir muito esta noite, então bem que poderiam tomar um pouco de chá. — Da última vez, Atlantis colocou uma zona sem desmaterialização na escola. Eles poderiam muito bem fazer a mesma coisa novamente – e desta vez não teríamos o guarda-roupa de Wintervale para um portal. — Mas temos uma série de tapetes – Kashkari tem dois e eu tenho um, que juntos devem ser suficientes para transportar todos nós. Eu tenho o Crucible, que podemos usar como um portal de emergência. Para não mencionar que você tem um quase-desmaterializador.

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— Dê os vértices do quase-desmaterializador para Wintervale. — Eles precisariam ficar por três dias em sua pessoa antes que pudessem funcionar com ele. — Ele será o mais difícil de mover de todos nós – será melhor se ele puder usar o quase-desmaterializador. Ele abriu seu armário e tirou a lata de folhas de chá. — Eu farei isso. Estou certo de que posso pensar em algo para lhe dizer sem contar tudo. Novamente essa falta de confiança em Wintervale. — É possível que seu julgamento esteja nublado por ter conhecido Wintervale por tanto tempo? Eu sinto que ele tem estado muito mais sério e muito menos indiscreto após o redemoinho. — É bem possível que eu tenha preconceitos contra o Wintervale antigo e não o novo. Mas lembre-se, ninguém está à procura de Wintervale, mas todo agente de Atlantis ainda está procurando por você. Ele havia dito isso várias vezes, e ela sempre aceitou sem perguntas. Mas agora ela não estava tão certa. — Você tem certeza de que ninguém está procurando Wintervale? Ele afundou um navio Atlante. Mesmo se ninguém a bordo conseguiu enviar um sinal de socorro, ou sobreviveu para contar, não poderia ser investigado o desaparecimento de um navio? — Dalbert tem um olho na situação. Ele não ouviu nada sobre o Lobo do mar. A conversa dela com Cooper na noite anterior veio à mente. Cooper escreveu uma palavra, e se Iolanthe tivesse interpretado mal o nome do navio? Afinal, o grego sempre lhe foi difícil. — Talvez eu estivesse errada sobre o nome do navio. Você pode perguntar a Dalbert se há alguma notícia para um navio chamado Ferocious? Escrito em letras maiúsculas, ΛΑΒΡΑΞ – Lobo do mar – e ΛΑΒΡΟΣ – Ferocious – teria sido o suficiente para causar confusão. — Eu farei isso hoje à noite, — ele disse. — Tome um pouco de chá antes de ir. Ela adicionou mais fogo à grade, então a água ferveria mais rápido. Titus a abraçou por trás. Ela se recostou contra ele.

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— Por que eu tenho a sensação de que a situação está prestes a ficar fora de controle? — Provavelmente porque irá. Ele a beijou na têmpora. — Parte de mim gostaria que você ficasse distante, longe do perigo e da loucura. Mas o resto de mim não poderia estar mais agradecido de que você ainda estará aqui, comigo, quando todo o inferno se soltar.

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Capítulo 31 O deserto do Saara

Um escarpado surgiu bruscamente do chão do deserto. Parecia que Titus e Iolanthe foram direcionados diretamente para o penhasco, quando o tapete diante deles desapareceu. Iolanthe segurou forte na frente do tapete enquanto se afundava em uma fissura estreita. A fissura torceu e mudou – ou pelo menos ela achava que fosse o caso, pois estava escuro, e o tapete ziguezagueava a um ritmo vertiginoso. — Como você está conduzindo? Você pode ver alguma coisa? — Não estou conduzindo, — Titus respondeu. — O tapete conhece o leito da terra. De repente, a fissura se abriu para um espaço cavernoso, iluminado com uma luz quente e brilhante. Ao longo das paredes interiores desta câmara, centenas de pequenas cavernas e nichos foram esculpidos na rocha, mas Iolanthe não podia ver escadas ou degraus para acessá-las – até que se lembrasse de que, é claro, todos os que moravam na base rebelde provavelmente tinham um tapete.

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A metade do chão da caverna estava ocupada com horticultura: ramos e copas verdes, colocadas para que recebessem luz máxima e não lançassem sombras uma na outra, subiam quase até a altura do teto. A outra metade foi dedicada à fabricação e manutenção de tapetes voadores. E, apesar de ser tarde, pelo menos uma centena de magos estavam no trabalho, colhendo frutas e vegetais, operando os teares que faziam novos tapetes, ou reparando tapetes antigos de aparência desgastada. Eles pousaram em uma grande borda, a uns seis metros da entrada da caverna. Uma mulher de tirar o fôlego os aguardava na plataforma, vestida com uma túnica simples e colorida e com um par de calças. Ela abraçou o menino que trouxe Titus e Iolanthe. — É bom te ver seguro. Receio que seu irmão não esteja aqui. Mas não se preocupe, ele está bem – ele era um membro da facção que invadiu a base Atlante e eles não poderão retornar por pelo menos mais cinco dias, caso Atlantis esteja atrás deles. O menino virou para Titus e Iolanthe. — Deixe-me apresentar Amara, comandante da base e minha futura cunhada. Iolanthe pegou algo estranhamente sombrio no tom de sua voz. Ela olhou dele para Amara. — Por aí, ela também é conhecida como Durga Devi – é nossa tradição assumir um nome de guerra em tempos de guerra, — o menino continuou. — Você pode ouvir as pessoas se referirem a mim como Vrischika, mas sinta-se livre para me chamar de Kashkari. Então esse era o nome dele. Titus assentiu solenemente para a garota. — Prazer em conhecêla. — Estamos honrados pela sua presença, Sua Alteza. E a sua, Senhorita Seabourne. — Amara sorriu e Iolanthe ficou quase cega pela beleza dela. — Sua Alteza, você finalmente trouxe a Senhorita Seabourne para nossa custódia?

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— Não, — Titus disse de forma decisiva. — Vamos nos intrometer em sua hospitalidade apenas brevemente – Atlantis está perto demais para o conforto. Se você tiver um translocador na premissa, gostaríamos de usá-lo, especialmente se nos levasse perto ou em uma grande cidade não maga. Iolanthe concordou completamente. Uma cidade lotada era um esconderijo muito melhor para eles. Cairo era sua primeira escolha. Mas mesmo Khartoum, com sua instabilidade política, seria bom. —

Temos

dois

translocadores,

mas,

infelizmente,

não

funcionaram nos últimos três dias. Kashkari ficou alarmado. — Você tem certeza que Atlantis não encontrou vocês? Uma sombra cruzou o rosto de Amara. — Nós nos perguntamos o mesmo, mas todo o resto tem sido normal. — Você tem um tapete rápido e de longo alcance que podemos pedir emprestado? — Titus disse. — Nós devemos sair imediatamente: o próprio Bane está no Saara. Isso produziu uma onda de choque tanto em Amara quanto em Kashkari. — Por que você não me disse mais cedo? — Kashkari exigiu. — Eu queria te dizer, — Iolanthe disse. — Nós não temos a menor ideia de quem... — Durga Devi! — Ishana apareceu em um tapete voador, quase batendo em Iolanthe. — Durga Devi, a equipe de manutenção encontrou um rastreador no Oasis III. — O quê? — Amara exclamou. — Como isso é possível? Pensei que você havia dito que não encontrou ninguém quando estava fora. — Isso é verdade. Ninguém veio ao oásis, exceto Sua Alteza e a Senhorita Seabourne. Titus amaldiçoou. — O wyvern de areia. Não sabíamos que ainda carregava rastreadores. É mais provável que um deles caiu quando o wyvern de areia escovou contra as palmeiras de tâmaras. Iolanthe agarrou seu braço. — Então Atlantis vai pensar que estamos aqui – e nós estamos.

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— Vamos pegar alguns tapetes descansados e eu os levarei até Luxor, — Kashkari disse. — Se sairmos agora, podemos estar lá antes do meio-dia. Ishana os levou até onde os novos tapetes estavam guardados. Iolanthe não viu nada que parecesse um tapete tradicional – grosso e de lã. Em vez disso, os tapetes, pendurados em barras de aço, se assemelhavam a cobertores de piquenique, toalhas e cortinas – até mesmo capas. Ishana parou diante de uma grade de tapetes que tinham a aparência de lençóis. — Estes são os melhores que temos. Eles têm uma faixa de cerca de mil e quinhentos quilômetros, e podem cruzar em uma hora cento e oitenta quilômetros, com uma carga de até duzentos e vinte e cinco quilos. — Eu preciso de tapetes que não possam ser convocados – no caso da base ser invadida, — Kashkari disse. Ishana exalou; claramente enervada pelo pensamento de algo tão errado. — Certo. Então você deve pegar esse – com alcance de mil e duzentos quilômetros, duzentos quilômetros por hora, peso de carga de noventa quilos. — Você consegue lidar com um tapete sozinho? — Titus perguntou a Iolanthe. — Eu controlo o ar – eu consigo conduzi-lo. O rugido de bestas encheu o ar, seguido de uma voz feminina de som agradável. — Todos os pilotos de batalha reportem-se aos líderes do esquadrão. Carros blindados avistados. Wyverns avistados. Lindworms avistados. Lindworms eram os maiores dragões voadores, não terrivelmente rápidos, mas brutais. Iolanthe tivera a impressão de que eram impossíveis de domesticar, mas, aparentemente, Atlantis gostava de abrir novos caminhos na criação de animais. Um tapete listrado desceu e parou atrás deles. Era Shulini, parecendo frenética. — Sua Alteza, Durga Devi pede que você venha comigo... E todos os outros também. Há algo que todos vocês devem ver.

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Eles a seguiram até o teto da caverna e se precipitaram para uma abertura, que conduzia para um túnel que se abria acima. O ar ficou mais frio e frio, e de repente eles estavam sob as estrelas. — Olha! Olha! — Shulini gritou. Iolanthe

não

conseguiu

discernir

nada

fora

do

comum.

Brevemente, ela se perguntou se deveria usar o feitiço de longa distância, e então um movimento perto da borda do céu chamou sua atenção – uma distorção do ar que fez as estrelas além se esticar e piscar. Ao segui-la, ela percebeu que a distorção era como um anel enorme e um tanto desigual, indo por toda parte – e caindo rapidamente em direção ao chão. — Que a Sorte me proteja, — Titus disse, — Uma redoma. Uma redoma era uma arma de cerco, quase tão antiga quanto as lanças enfeitiçadas. Mas uma vez no lugar, seria praticamente impossível para aqueles que estavam dentro a romper. — Depressa! — Kashkari gritou. — Nós ainda podemos tirar Fairfax daqui. Como se o ouvisse, a redoma caiu com força. — Muito tarde, — Titus disse; como se estivesse com os dentes cerrados. Uma voz de homem, imponente e poderosa, soou. — O Senhor Comandante Supremo do Grande Reino de Atlantis procura a fugitiva Iolanthe Seabourne. Entregue-se, e todas as outras vidas serão poupadas. Titus imediatamente pegou a mão de Iolanthe. — Ninguém vai te machucar. Ela apertou a mão dele. — E eu não sou tão fácil de machucar. Mas, mesmo assim, ela ficou tolamente assustada. Ishana pousou o tapete. Eles estavam no topo de uma duna que se erguia do chão do deserto. Em pé, examinando a redoma, estava Amara. — Parece que temos um dilema em nossas mãos, — ela disse calmamente.

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— Não, de modo algum, — Kashkari contrariou, quando Iolanthe esperava que Titus fosse o primeiro a se opor. — Não vamos entregá-la para Bane, nem mesmo se o custo for dez vezes a vida de todos nessa base. — Claro que não. — Amara disse. — Deixar Bane tê-la seria desastroso. Mas a verdade é que nós somos poucos e a força de Atlantis é excelente. Talvez não possamos evitar que Bane a leve, ainda que façamos o nosso melhor. Surpreendendo Iolanthe ainda mais, Kashkari pisou diante dela. — Não, você sequer pensará nisso. — Estamos em guerra, meu amigo. Devo pensar em todas as possibilidades. — Então pense e descarte. Finalmente, Iolanthe começou a entender de que maneira eles estavam pensando de impossibilitar Bane de tê-la: matando-a eles mesmos. A julgar pela forma como a mão de Titus se apertou sobre a dela, ele também entendeu. — Eu sei o que aconteceu com seu tio, Mohandas, — Amara disse. — E embora fosse uma tragédia, isso impediu Bane de tornar-se inimaginavelmente forte. Kashkari tinha a varinha na mão. — E como isso nos ajudou? Incrivelmente forte ou não, Bane ainda está no poder todos esses anos depois. — Mas, se a família do seu tio não tivesse feito o que fizeram... — Então, talvez nós vivêssemos em um mundo muito diferente. A ajuda chegou a eles logo após matarem meu tio... Eu vejo que você não sabia disso, não é? Até o meu irmão não sabe. Se ao menos todos não se desesperassem prematuramente, meu tio poderia ter sido capaz de crescer na plenitude de seu poder e poderia ter feito toda a diferença nas batalhas mais cruéis de dez anos atrás. Kashkari respirou fundo. — Além disso, eu já sonhei com o futuro: minha amiga se aproximará do Palácio do Comandante com o seu próprio poder e por sua própria vontade – para derrotar o Bane, e para não ser a

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próxima vítima em seus rituais de sacrifício. Isso significa que ela supera Bane neste dia e consegue não apenas manter sua vida, mas sua liberdade. A mandíbula de Iolanthe afrouxou. Ela, perto do Palácio do Comandante voluntariamente? E por que Kashkari apresentou um mero sonho como se tivesse algum significado? Mas certamente fez Amara pensar. — Você tem certeza de que é o que você sonhou? — Sem dúvida. E acredite em mim, nossa resistência contra Bane seria de pouca utilidade se não pudermos entrar no covil dele. — Muito bem então, Mohandas. — Amara apertou o ombro de Kashkari. — É hora de eu descer e reunir os cavaleiros. Cuide dos meus convidados para mim. Ishana e Shulini partiram com ela, deixando Kashkari, Titus e Iolanthe sozinhos em cima da montanha. — É verdade, o que você disse sobre Fairfax? E sobre o seu tio? — Titus perguntou, soando duvidoso. — Não, eu inventei tudo. — Oh, — Iolanthe disse. Ela não acreditou completamente em Kashkari, mas ele parecia tão apaixonado, tão certo de si mesmo, que ela queria muito acreditar que o que ele havia dito fosse verdade. — Pelo menos você está segura por enquanto. — Kashkari colocou uma mão sobre seu peito. — Meu coração não sofreu tanto desde aquele negócio com o Wintervale. Iolanthe e Titus trocaram um olhar. — Estou mais do que um pouco envergonhada de lhe dizer... — Iolanthe disse, — Mas Sua Alteza e eu estamos sob um feitiço de memória e não recordamos nada de antes do deserto. — O quê! — Kashkari exclamou. Ele olhou de Iolanthe para Titus e voltou. — Vocês não se lembram de Wintervale? Ambos encolheram os ombros.

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Kashkari ficou boquiaberto. — Eu não acredito nisso. Vocês realmente esqueceram tudo?

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Capítulo 32 Inglaterra

No dia seguinte era domingo e o serviço matinal era obrigatório para todos os meninos. A capela de Eton, apesar de impressionante, tornou-se muito pequena para a população estudantil. Normalmente, os veteranos sentavam nos bancos, e os calouros precisavam ficar de pé nos corredores, apoiados de costas, e até nas portas do santuário. Hoje, Titus e Fairfax se certificaram de estar de pé na parte traseira da multidão, e quando ninguém notou, eles escaparam. Fairfax foi ver Lady Wintervale – ela achou que ela deveria saber que seu filho não estaria na escola por muito mais tempo. Titus voltou ao laboratório para realizar uma última varredura nos itens que ele poderia querer colocar na bolsa de emergência. Ele encontrou uma bolsa em uma gaveta que sempre ficava vazia – os remédios que ele tirou do laboratório para dar a Wintervale, quando a condição dele piorou repentinamente naquele dia, na casa do tio de Sutherland com vista para o Mar do Norte. Infelizmente, todos os

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remédios que Titus administrou haviam piorado a situação, o último fez Wintervale ter convulsões, o que exigiu uma dose dupla de panaceia para subjugar. Normalmente, Titus nunca deixava os remédios fora do lugar. Mas quando voltou ao laboratório naquela noite, ele estava profundamente desesperado. Em vez de colocar os remédios onde ficavam, ele afastara a bolsa para que não precisasse olhar para ela novamente. Mas agora que ele e Fairfax repararam suas desavenças, não havia mais razões para evitar. Ele abriu a gaveta que guardava os remédios para o estômago e colocou os frascos da bolsa de volta em seus lugares, um após o outro. Vertigem. Apendicite. Queixa biliosa. Refluxo relacionado à infecção. Inflamação do revestimento do estômago. A última, expulsão estrangeira, foi a que fez Wintervale ter uma convulsão. Titus virou-o em seus dedos, balançando a cabeça contra o caos que causara. Ele se tranquilizou. Ele escolheu o remédio porque julgou que isso expulsaria as substâncias nocivas do corpo, pois essa era a competência de um remédio com o nome expulsão estrangeira. A expulsão estrangeira, por outro lado, era para se livrar de parasitas e tal. Ou era isso? Ele tirou um espesso volume de referência farmacológica e procurou o remédio. A expulsão estrangeira. Um remédio muito antigo, agora não mais comum. Bom para a remoção de parasitas. Também pode ser usado para expulsar objetos engolidos e objetos presos em vários orifícios corporais. Pode ajudar na remoção de possessão intangível. O que no mundo era possessão intangível? Ele queria procurar isso. Mas um rápido olhar em seu relógio de bolso lembrou-lhe que o serviço matinal estava quase terminando. Kashkari levaria Wintervale à casa da Sra. Dawlish, e Titus daria a Wintervale os vértices da quase-desmaterialização para ele guardar com

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ele, com um relatório adequadamente medonho dos perigos crescentes sobre eles, sem mencionar nada específico. Ele fez uma nota mental para procurar a possessão intangível mais tarde e deixou o laboratório. *** — As coisas estão se movendo tão rápido, não sabemos o que acontecerá na próxima hora. Ou mesmo no próximo minuto, — Iolanthe disse; sentada no salão do Castelo de Windsor do qual Lady Wintervale se apropriou para seu próprio uso. — Provavelmente teremos que afastar seu filho da escola – e provavelmente em breve – para a segurança dele. Pensei que você gostaria de saber disso. Lady Wintervale olhou pela janela em direção a Eton, em frente ao rio Tâmisa. A voz dela tinha um tom distante. — Você quer dizer que depois disso, eu talvez não o veja por algum tempo, talvez nunca? — É bem possível. Iolanthe esperou que Lady Wintervale exercesse seu direito de mãe, dizendo que se eles tirassem Wintervale da escola, então ele ficaria sob a proteção de sua mãe. Mas Lady Wintervale continuou olhando pela janela. — Você gostaria de vê-lo antes de partir? Podemos garantir que ninguém rastreie os movimentos dele até você. E eu lembro que ele não falaria do seu paradeiro para ninguém. Ele se tornou mais perspicaz afinal – certamente ele conseguiu manter o fato de que é agora um grande mago elementar para ele mesmo. Lady Wintervale apertou a mão e novamente não respondeu. Iolanthe estava contando as horas até que ela e Titus tivessem todas as precauções no lugar, então ela poderia fazer com que ele a desmaterializasse para Paris para ver o Mestre Haywood, que deveria estar preocupado sem notícias dela. Depois disso, não sabiam quando se encontrariam de novo. Ou se.

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A distância que Lady Wintervale insistia em manter de seu filho não fazia sentido. — Posso perguntar, milady, por que você não quer ver seu filho? Lady Wintervale foi para uma janela diferente. Sua mandíbula apertou, mas permaneceu em silêncio. Contra as cortinas avermelhadas, ela estava pálida como um fantasma e quase insubstancial. A confusão de Iolanthe se transformou em desconforto – por que agora ela podia sentir o medo irradiando de Lady Wintervale. — Por favor, milady, eu imploro. Se há algo importante, não esconda. Há vidas em jogo aqui, muitas vidas. — Você acha que não sei disso? — Lady Wintervale rosnou. Mas nada seguiu. Depois de um intervalo tenso e interminável, Iolanthe teve que aceitar que não teria mais nada de Lady Wintervale. — Obrigada por me ver, milady. Que por muito tempo a Sorte caminhe com você. Ao se levantar, Lady Wintervale disse: — Espere. Iolanthe sentou novamente, tensa com antecipação – e um pouquinho de medo. Outro minuto passou antes que Lady Wintervale dissesse: — Perdi Lee em nossa última viagem. Iolanthe piscou. — Não entendi direito. — Entre as comunidades dos Exilados, construímos nossa própria rede de translocadores. Mas desde a primavera, Atlantis interferiu ativamente no funcionamento desses translocadores. No início de setembro, quando Lee e eu partimos, todos os translocadores que os Exilados em Londres dependiam há anos estavam fora de serviço. Tivemos que escolher entre usar tapetes ou pegar um navio a vapor no Canal da Mancha. Lee estava ansioso. Mas atualmente existem excelentes remédios para enjoo, então ele decidiu ir de navio a vapor. Uma vez que o vi se acomodar no beliche – o remédio permitiu que ele dormisse durante o cruzamento – eu fui para cima para tomar um pouco de ar fresco, pois eu gosto da viagem no oceano. Quando o navio a vapor entrou em Calais, fui acordá-lo. Ele não estava mais no beliche, e a mala

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dele também tinha desaparecido. Pensei que tínhamos nos perdido, que agora ele estava no deck procurando por mim. Mas não, ele também não estava no convés. E não estava no cais, esperando. Recrutei a ajuda da equipe do navio de vapor e da equipe do mestre do porto, mas ninguém conseguiu encontrá-lo. Eu escrevi freneticamente no meu caderno de duas vias, mas ele não respondeu. Finalmente fui para a estação ferroviária, e lá alguém se lembrou de um jovem com a descrição dele comprando um bilhete para Grenoble. Comecei imediatamente a ir para Grenoble, perguntando em todas as estações ao longo do caminho. E quando cheguei a Grenoble, perguntei em todos os locais de hospedagem prováveis e improváveis, sem sucesso. Sem saber o que mais fazer, eu voltei para casa. Só para receber um telegrama, de todas as coisas, de Lee, de Grenoble, perguntando onde eu estava. Então eu me apressei a voltar, e lá estava ele, seguro e saudável. Ele disse que quando não conseguiu me encontrar no vapor, ele pensou que eu estava com pressa para pegar o trem, e então ele partiu para a estação ferroviária. Mas em Paris, onde mudaria de trem, ele percebeu seu erro e voltou para Calais, apenas para descobrir que, na verdade, eu havia pegado um trem para Grenoble. Então ele voltou para Grenoble, e provavelmente chegou à cidade logo após eu ir para casa. Eu estava terrivelmente aliviada por vêlo. Os eventos subsequentes você já conhece. Acabamos em um navio no Mar do Norte, perseguidos por Atlantis. Ele não tinha o tapete dele com ele – assim como não tinha o caderno de duas vias. Então eu tive que colocá-lo em um barco salva-vidas. Eu queria ir no barco salva-vidas com ele, mas fomos atacados e não consegui me afastar imediatamente. Quando consegui, no meu tapete, fui perseguida por todo o caminho de volta para a França. E teria sido pega se não fosse por uma tremenda neblina que entrou no Canal. Levou vários dias para voltar à Inglaterra. Se ele tivesse conseguido, ele teria ido para casa ou para Eton. Eu não ousei ir para casa, então tentei Eton. E encontrei a casa da Sra. Dawlish vigiada o tempo todo. — Os Atlantes estão observando o príncipe, — Iolanthe disse.

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— Eu também pensei isso. Mas então lembrei que Lee esteve longe de mim por setenta e duas horas naquela viagem. Lady Wintervale olhou para Iolanthe, como se Iolanthe devesse chegar a uma dedução significativa do que acabara de dizer. Iolanthe ficou inexpressiva. — Não sei se entendi o significado de suas palavras, milady. — Eu não sei se eu entendo o que estou dizendo também. Não sei se quero. — Lady Wintervale cruzou a sala para ficar diante da lareira, como se os peitoris das janelas tivessem esfriado. — Mas você está certa. Eu deveria ir e ver Lee. Pode ser a minha última chance. Iolanthe a esperou dizer mais, mas Lady Wintervale apenas acenou com a mão. — Por favor, deixe-me. *** Iolanthe correu para o laboratório. A conversa com Lady Wintervale a havia perturbado profundamente, e ela precisava falar com Titus. Ele não estava lá, mas sua bola de digitação estava clamando. Quando parou, ela puxou a folha. Sua Alteza Sereníssima, No que diz respeito à sua consulta sobre o navio de Atlante, o Ferocious – ΛΑΒΡΟΣ no grego original – um navio pertencente à Defesa Costeira Atlante já possuiu esse nome. A partir dos registros que eu pude desenterrar, ele foi desarmado há três anos e recentemente descartado. Seu servo fiel, Dalbert Iolanthe leu novamente a mensagem e, pela terceira vez, sua confusão aumentando com cada linha adicional. Ela não ouviu nada

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sobre Atlantis construindo navios em condições navegáveis. Por que o navio foi enviado quando havia muitos navios em serviço ativo? Ela enviou uma mensagem para Dalbert. Você pode confirmar novamente que não há um navio Atlante chamado Lobo do mar? A resposta de Dalbert veio prontamente. Sua Alteza Sereníssima, Posso confirmar que não há navio Atlante, naval ou civil, com o nome de Lobo do mar (ou ΛΑΒΡΑΞ, para usar o grego original). Seu servo fiel, Dalbert Algo agitou em sua memória. O que ela havia lido naquele livro de viagem pela primeira vez? Ela entrou na sala de leitura e correu para a mesa de referência. O diário de viagem estava em sua mão um segundo depois. Ela virou as páginas com dedos repentinamente desajeitados. Os turistas de quase dois séculos atrás navegaram para Atlantis para ver a demolição de um hotel flutuante que foi condenado. O método de condenação não era outro que o lançamento do hotel flutuante no redemoinho de Atlantis. Tão espetacular quanto era a destruição em si, deixando Atlantis, chegamos a uma visão tão bonita dos destroços do hotel em nosso caminho, uma corrente de lixo. Mas, pelo menos, ao contrário de um verdadeiro desastre marítimo, não haveria cadáveres carregados ao lado de pedaços de casco e de convés. Uma veia palpitava em sua têmpora. Quando ela olhou o mar depois que o redemoinho veio e se passou, ela também viu destroços, mas não corpos.

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Se o navio que havia perseguido Wintervale estava desarmado e vazio, então deveria haver conluio entre ambas as partes envolvidas. Isso significaria que enviaram uma embarcação antiga e inútil atrás de Wintervale para não desperdiçar pessoal, ou enviaram um serviço inativo porque sabiam que em algum momento ele seria destruído. Quem poderia saber que o navio seria destruído? Wintervale era, de acordo com o príncipe e Kashkari, o mais fraco dos magos elementais, mal conseguindo fazer uma chama na grelha. Quem poderia ter previsto antes disso que ele afundaria um navio atlante sozinho? Ela mordeu os lábios e pegou a bolsa de emergência. *** Ninguém havia retornado do serviço de domingo ainda – não era incomum que o sermão fosse longo. Titus estava no quarto de Fairfax e olhou em volta. Ele havia decorado o quarto anos antes que ela chegasse, com uma foto da rainha na parede, cartões postais de oceano e imagens que representavam Bechuanaland, sua suposta casa. Ela substituiu a fotografia da rainha Victoria por uma beleza da sociedade, e colocou novas cortinas, mas, de todo modo, deixou o quarto mais ou menos como estava. Seu olhar caiu sobre a fotografia dela que não se parecia com ela. Ela mostrou a fotografia no dia em que Sutherland emitiu seu convite para que todos fossem à casa de seu tio, que parecia ter sido há muito tempo. Ela se materializou ao lado dele, a bolsa de emergência amarrada nos ombros. Alarme pulsou através dele. — Por que você está com a bolsa? Qual é o problema? — O que você acha da minha visão? — Ela perguntou; seu tom tenso. Essa não era a pergunta que ele esperava. — Perfeitamente boa. Agora me diga por que você já está carregando a bolsa de emergência.

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Ela ignorou sua pergunta. — O que você acha do meu entendimento do grego? Ele poderia gritar a plenos pulmões para que primeiro ela respondesse a pergunta, mas essa era Fairfax, que não fazia nada sem uma boa razão. Ele respondeu. — Não é ruim. — Você acha que é provável que eu tenha errado completamente o nome do navio que Wintervale afundou? — Mas você acabou de me dizer na noite passada que você provavelmente errou. — Eu o confundi por uma palavra semelhante – ou assim eu pensei. É possível que o nome real não seja nada como o que pensei ser na hora? — Tudo é possível. — Ele lembrou do skimmer, girando em torno da borda exterior do redemoinho antes de ser puxado para baixo. — Mas, se você já estivesse prestando atenção, não havia razão para ter errado tanto. Ela agarrou seu braço com força. — Se eu estiver correta sobre o nome do navio, então deve ser Lobo do mar ou Ferocious. Dalbert confirmou para você – e para mim novamente hoje – que não há um navio atlante chamado Lobo do mar. Mas havia um chamado Ferocious, e foi desarmado há três anos. Não vi corpos quando olhei o mar naquele dia. Embarcações, mas sem corpos. Você acha que é impossível que o navio estivesse vazio? Aquilo... — ela engoliu, — Era tudo um show? Ele olhou para ela, começando a sentir como se também tivesse sido pego em uma enorme armadilha, com um poder muito forte para escapar. — O que você quer dizer? — Não sei o quero dizer, e não sei se quero saber. — A mão dela foi até a garganta. — Que a Sorte me proteja, isso é quase exatamente o que Lady Wintervale disse. — O que? Quando? — Quando visitei Lady Wintervale agora mesmo, ela me contou que ela e Wintervale se separaram a caminho para Grenoble por mais de setenta e duas horas.

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Com a discussão sobre Bane ainda fresca em sua memória, um gongo alto soou na cabeça de Titus: setenta e duas horas era o limite para os feitiços de contato mais poderosos. — Você precisa estar em contato físico direto com alguém por esse tempo, a fim de... Para... Um desaparecimento de setenta e duas horas. E quando ele voltou, o menino que mal iluminava uma vela com seus poderes elementais se tornara poderoso o suficiente para criar um redemoinho espetacular. Que a Sorte o proteja. — O remédio que eu dei a Wintervale, aquele que o fez entrar em uma convulsão, sabe o que significa possessão intangível? Um som sufocado saiu da garganta dela. — Eu já ouvi falar disso. O Mestre Haywood tinha uma colega no Conservatório que pesquisava o oculto. Dizer que alguém está sob uma posse intangível não é apenas uma maneira mais clara de dizer que essa pessoa está possuída? Possuído. — Que a Sorte proteja a todos nós. — A voz dela estava rouca. — Você deu a Wintervale um auxílio de exorcismo? Será que deu? — O que acontece se você der a alguém o auxiliar de exorcismo por acidente? — Nada. Era assim que eles costumavam saber se alguém estava realmente possuído ou apenas fingindo. Você desliza um auxílio de exorcismo em seus alimentos e se eles não mostram reação, é apenas um ato. Mas se eles começassem... Eles se olharam horrorizados. Foi exatamente o que aconteceu com Wintervale. E então, em pânico, Titus forçou uma quantidade considerável de panaceia pela garganta de Wintervale. O único objetivo da panaceia era a estabilização de todo o sistema. Parou o exorcismo e impediu qualquer outra guerra que o corpo de Wintervale pudesse ter lançado para se livrar de qualquer coisa que tivesse posse dele. Titus se lembrou do sinal de socorro náutico que recebeu, alertando-o para a presença de Wintervale. Ele também lembrou o que Fairfax havia dito a ele: Se eu fosse Lady Wintervale, eu teria desligado o

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sinal de socorro no barco salva-vidas. Isso provavelmente foi o que permitiu que Atlantis o rastreasse. E se o sinal de socorro tivesse sido deliberadamente habilitado, garantindo que Titus visse tudo? Eles já deduziram que Bane era capaz de dirigir outros corpos que pareciam seus. Quem poderia dizer que ele não podia assumir o comando de alguém que não se parecia com o seu eu original? — A instabilidade mental detectada pelo medidor sabe tudo em Wintervale, — ele se ouviu dizer, sua voz quase plana. — E se estivesse certo? — E a incapacidade de Wintervale de caminhar sem ajuda – isso deve ser porque ele não se parece com a pessoa que ele está possuindo, — Fairfax disse. — Existe um motivo pelo qual, até agora, Bane só usava pessoas semelhantes – a mente provavelmente não pode se enganar o suficiente para controlar completamente tudo se o rosto parecer diferente. — E os guardas da casa da Sra. Dawlish – eles não estavam lá no início do semestre. Eles só vieram depois do redemoinho de Wintervale. Eles não foram designados para observar Titus como ele havia assumido, mas provavelmente para garantir a segurança de alguém. Fairfax puxou seu colarinho, como se tivesse ficado muito apertado. — Eu sempre pensei que era um milagre Atlantis deixar você voltar para a escola este semestre. Eu não teria deixado. Icarus Khalkedon estava certo. Depois que o grande cometa veio e foi, Bane entrou na casa da Sra. Dawlish, e ele fez isso no corpo de Wintervale. E West desapareceu porque, infelizmente, se parecia com Bane – e Bane sempre poderia usar outra peça de reposição. — O que eu ainda não entendo é para o que é tudo isso, — Fairfax continuou. — O que Bane está tentando conseguir com tudo isso? Titus a agarrou. — É tudo por você, você não vê? Ele não conseguiu encontrá-la antes, então todo esse processo de entrar na minha mente, porque se ele pudesse fazer isso, todos os meus segredos estariam abertos a ele. Depois do que aconteceu da última vez, não havia

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como ele me colocar novamente sob Inquisição sem provocar uma guerra – ele nem tem em qualquer lugar um poderoso mago mental à sua disposição, depois da morte da Inquisidora. E os feitiços comuns de memória ou de controle da mente não funcionam, porque os herdeiros da Casa

de

Elberon

estão

protegidos

desde

o

nascimento

contra

manipulações. A única forma de entrar na minha mente era através de feitiços que necessitam de contato. Ela estremeceu. — É por isso que ele sempre queria que você o apoiasse quando ele andava pelos lugares. E é por isso que ele atacou Kashkari com o livro e as telhas, porque Kashkari impediu seus esforços para acumular horas suficientes de contato direto com você. — Mas ele ainda não tem essas horas. Então eu ainda estou seguro. E você ainda está segura. E... A porta se abriu. Titus quase explodiu um buraco na casa antes de perceber que era apenas Kashkari. — Eu sei quem você é, — Kashkari disse para Fairfax. Ela titubeou, mas se recuperou rapidamente. — Eu já lhe disse quem eu sou. Eu sou o guarda-costas do príncipe. Kashkari fechou a porta. — Você é a garota que convocou o relâmpago. Titus entrou na frente dela, varinha tirada. — Se você... — Claro que não. Eu estava apenas em estado de choque e precisava confirmar isso. — Você acabou de adivinhar de repente? — Titus exigiu bruscamente. — E onde está Wintervale? Ele está aqui? — Não, ele ainda está passeando do lado de fora da capela – a Sra. Hancock está cuidando dele. E eu adivinhei porque Roberts estava passando as fotografias tiradas há várias semanas. — Quem é Roberts, e que fotografias? — Titus exigiu. — Jogador de cricket. Ele nunca fez parte dos onze. Queria ter evidências fotográficas para mostrar posteriormente que ele fazia parte da equipe da escola. Eu estava presente em algumas das fotografias na periferia e, ao meu lado estava alguém com... — Kashkari olhou ao redor

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do quarto e pegou a foto de Fairfax, a que não era nada parecida com ela, — Esse rosto. Não entendi o que estava vendo no início. Sim, era Fairfax sentado ao meu lado naquele dia. Não havia nenhuma razão para ele parecer tão diferente – até que eu me lembrei da fotografia em seu quarto. Então lembrei que Atlantis tem dificuldade em encontrar a garota que convocou o relâmpago porque a imagem não pode ser pintada ou capturada. E foi também quando eu lembrei que o dia em que Fairfax chegou pela primeira vez a esta escola foi o dia em que a menina manifestou seus poderes. Fairfax ofegou. Titus imediatamente tinha o braço em volta de seus ombros. — O que foi? — Wintervale. Alguém vai passar essas fotos para ele, mais cedo ou mais tarde. — E? — Kashkari disse. — Wintervale é o Bane, ou era ele desde o dia em que chegou na casa do tio de Sutherland. Kashkari estremeceu. — Não. Por favor, não. A Sra. Hancock materializou-se entre eles. Antes que alguém pudesse exigir por que ela não estava assistindo Wintervale, ela disse: — Algo está errado com Wintervale. Ele estava olhando umas fotos, então de repente começou a rir – e não parou. — Wintervale é o Bane. E eu sou aquela que convocou o relâmpago. Ele tentou alcançar um limite de contato com o príncipe para que pudesse descobrir onde estou, — Fairfax disse. — Mas aquelas fotografias que ele estava olhando o deixaram saber que ele já me encontrou, e que estive sob o nariz dele o tempo todo. A Sra. Hancock tropeçou um passo. — Agora eu finalmente entendi. — Ela se virou para Kashkari. — Ao ficar perto de Wintervale, você salvou ele – Sua Alteza, e não Wintervale. Kashkari a observou, aturdida. — Devemos ir, — Titus disse a Fairfax. — Agora mesmo.

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Ela agarrou a bolsa de emergência já amarrada em seus ombros. — Vamos. Mas eles não podiam desmaterializar. Bane deve ter chegado à mesma conclusão que Kashkari. E se ele estivesse em Eton por muito tempo, a zona de não desmaterialização deveria estar pronta por quase tanto tempo quanto, esperando que seu comando fosse dado. Kashkari correu para a janela. — Você também não pode usar um tapete voador. Há carros blindados no exterior. Os carros blindados estavam acima, circulando como um bando de pássaros. Eles desceriam em um instante, se Titus e Iolanthe se atrevessem a escapar no tapete de reposição de Kashkari. Na verdade, a velocidade máxima de um carro blindado era muito maior do que os duzentos quilômetros por hora do tapete. — O quase-desmaterializador, então, — Fairfax disse. — Nós guardaremos isso até que não tenhamos outra escolha. Por enquanto, ainda temos isso. — Titus colocou o Crucible sobre a mesa. — Vocês deveriam deixar este quarto, — Fairfax disse a Kashkari e a Sra. Hancock. — Vocês ainda não foram comprometidos. Bane não sabe que vocês estão envolvidos, então façam o que puderem para ficar em segurança. — Vamos nos encontrar de novo? — Kashkari perguntou. Titus tirou a metade de seu pingente e entregou a Kashkari. — Nós podemos esperar. Kashkari e a Sra. Hancock saíram. Titus e Fairfax colocaram uma mão sobre o Crucible, a dela sobre a dele. Titus começou a senha. *** — Quão longe está a Ilha Proibida? — Iolanthe gritou no ar, voando com um tapete a duzentos quilômetros por hora. — Cento e quarenta quilômetros, — Titus gritou.

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Quarenta e cinco minutos, então. Eles estavam apertados no tapete, que não tinha mais de três metros e meio de largura e um metro e meio de comprimento. A essa velocidade, havia apenas uma maneira de voar: deitados de bruços, as mãos apertadas na frente do tapete, um arnês de segurança preso no torso. Abaixo, o terreno se precipitava. Ela reconheceu a Planície dos Gigantes. E, em algum lugar ao norte, o abismo de Briga, tornado visível pelo vapor de miasma saindo das profundezas de sua profundidade, um vapor que se contorceu e se deslocou, quase como um nevoeiro, sob a luz do sol. Havia também um portal no abismo de Briga, mas aquele conduzia à cópia do Crucible que foi perdida, e sem saber onde estava tal cópia do Crucible, Titus não estava disposto a assumir o risco. Então eles foram para a Ilha Proibida, para acessar a cópia do Crucible no mosteiro, que ainda era um lugar seguro para o Mestre do Domínio, caso pudesse chegar a ele. — Gostaria que eles tivessem escolhido histórias mais fáceis para serem usadas como portais, — ela disse, sabendo muito bem que a vantagem de selecionar locais difíceis era diminuir a probabilidade de ser seguido de um Crucible para outro. — Posso transformar o Grande Lobo Mau em uma polpa em qualquer dia. — E eu diria que os sete anões não são compatíveis com minhas proezas, — Titus disse, virando para olhar atrás deles. — Alguém nos perseguindo? — Ainda não. — Eu acho que não podemos voltar à escola novamente. — Não. Era provavelmente a última vez que ela veria os meninos. Ela esperava que Cooper ainda se lembrasse dela quando fosse um advogado corpulento de meia idade, voltando à escola todos os anos no dia quatro de junho para celebrar as lembranças de sua juventude.

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E o Mestre Haywood. Ela tinha um de seus cartões de visita do Território de Wyoming no bolso – no caso de não poder ir a Paris pessoalmente, ela o enviaria para ele, para avisá-lo para não esperar por algum tempo. Ela se perguntou se ainda poderia postá-lo em algum lugar, então ele se preocuparia menos. Ela se virou para Titus. — Espero que Kashkari e a Sra... O tapete girou selvagemente ao longo de seu eixo, o mundo um caleidoscópio de terra e céu. Ela gritou. Ele praguejou e alcançou um canto do tapete. Com uma súbita arrancada, o tapete se estabilizou – de cabeça para baixo. Mas não parou, ainda cruzava a velocidade máxima de cabeça para baixo. Sua visão do céu foi obstruída, mas quando ela inclinou a cabeça para trás, o chão abaixo se aproximava, fazendo-a sentir-se tonta. — Na contagem de três, — Titus gritou, — Levante os pés e jogue todo seu peso em direção a sua cabeça. Um, dois, três. O movimento combinado virou o tapete. Eles não estavam mais de cabeça para baixo, mas o tapete parou, já que agora enfrentavam a direção oposta. E, se aproximando deles, no corpo de Wintervale, estava o Bane, montando um tapete dele. Infelizmente, Bane já sabia como entrar no Crucible quando estava no meio de ser usado como um portal, e não havia ninguém na escola com a capacidade de detê-lo. O tapete de Titus e Iolanthe começou a virar sozinho. Eles se inclinaram para um lado. O tapete estava inclinado, girando. Uma rajada de ar rugia em direção a eles e o tapete rodou várias vezes – eles teriam caído se não fossem os arneses de segurança segurando-os no lugar. — Não deixe Bane brincar conosco, — Titus gritou. Ela convocou um relâmpago, destinado a Bane. Mas o relâmpago só atingiu um escudo, e Bane saiu ileso. Ela continuou convocando mais relâmpagos, que piscavam e chiavam como se estivessem no meio de uma tempestade.

330

Sem nenhuma dificuldade, Bane entrou entre as correntes de eletricidade, evitando os ataques de Iolanthe. E ele era muito rápido. Eles não chegariam à Ilha Proibida antes dele alcançá-los. Ela jogou várias grandes bolas de fogo, colocando a paisagem embaixo em chamas. — O que você está fazendo? — Titus gritou. — Fazendo com que ele tenha que passar pela fumaça, pelo menos. Se apenas Wintervale sofresse de asma. Logo que ela terminou de falar, o tapete desviou para o norte. — Para onde vamos? — Ela perguntou assustada. — Asma, — Titus disse firmemente. — Ou talvez algo ainda melhor. *** A estação dentro do Crucible quase sempre refletia o lado de fora: não havia flores nas árvores do pomar, que também foram despojadas de seus frutos. À distância, um casarão de cascalho como uma pequena colmeia de vime embaixo, abaulando no meio, e depois diminuindo novamente para cima. Titus trouxera Iolanthe aqui nos primeiros dias de seu treinamento, antes que ela pudesse controlar o ar. Naquela casa, ele tentou forçá-la, e ela quase se afogou de mel. Ou melhor, as sensações foram próximas aquelas de um afogamento, mas ela nunca esteve em perigo real: na maior do tempo eles usavam o Crucible como um campo de prova, e as lesões – ou mesmo a morte – dentro do Crucible não tinham qualquer influência no mundo real. Mas agora eles estavam usando o Crucible como um portal, e todas as regras mudaram: as lesões causadas eram reais e a morte era irreversível.

331

Eles voavam baixo, entre fileiras de maçãs bem podadas. Iolanthe, com um longo ramo na mão, derrubou todas as colmeias que encontraram, liberando enxames de abelhas agitadas. Atrás do tapete, as abelhas ondulavam, ficavam juntas – e se afastavam de Titus e Iolanthe – por correntes de ar que as seguravam como peixes em uma rede. Bane estava se aproximando. Iolanthe dividiu as abelhas em dois grupos e, forçando-as perto do chão, despachou-as para a periferia do pomar. Ela enviou outro relâmpago no caminho de Bane. E, para distraílo ainda mais, ela arrancou mais ramos pequenos com ventos fortes, e colocando-os em chamas, os atirou contra ele. Durante todo o tempo, ela empurrou as abelhas mais longe da vista. Bane afugentou os ramos flamejantes como se fossem apenas palitos de dente. E retaliou, arrancando árvores inteiras em seu caminho, obrigando Titus a voar acima da linha da árvore, dando a Bane uma linha de visão clara. — Apenas um pouco mais, — Iolanthe implorou em voz baixa. Titus gritou e virou bruscamente à esquerda. Algo passou tão perto da cabeça de Iolanthe que levantou o seu cabelo. Uma tábua, sua ponta triangular mortal a alta velocidade. Uma tábua os atacou por trás, uma da direita, uma da esquerda, enquanto uma árvore, com aglomerado de terra ainda caindo de suas raízes, disparou no ar e veio na direção deles. Com um grito, Iolanthe convocou outro relâmpago, dividindo a árvore em duas, apenas a tempo de avançarem, quase se cegando no processo. — As abelhas estão prontas? — Titus exigiu. — Quase. O chão em si cresceu e quase os derrubou do tapete voador. Uma enorme bola de fogo apareceu ao redor deles. Iolanthe mal teve tempo de perfurar um buraco no fogo para que eles passassem. Sua própria jaqueta pegou fogo, mas ela apagou as chamas antes que pudessem machucá-la.

332

Era agora ou nunca. Ela olhou para trás. Sim, ela conseguiu elevar o enxame de abelhas até o alto no tapete de Bane. Com a corrente mais poderosa que poderia gerar, ela as enviou para o Bane. Ele riu e disparou, ondulado pelo ar que o rodeava. As abelhas caíram como pingos de chuva. Mas, entre todo o enxame, havia um número menor que Iolanthe havia protegido. Elas passaram o fogo e pousaram nele. Bane

parou

de

rir.

Ele

olhou

com

algo

parecido

com

incompreensão em sua mão, sobre qual não havia uma, nem duas, mas três abelhas. Sua mão inchou diante dos olhos de Iolanthe. Ele agarrou a garganta. O tapete perdeu a altitude, batendo nos ramos de uma árvore antes de cair no chão. A mente que controlava o corpo de Wintervale poderia ser inimaginável, mas o corpo de Wintervale tinha uma grande fragilidade: era alérgico ao veneno de abelha. Titus pousou o tapete e vasculhou a bolsa de emergência. Ele havia preparado antídotos para Wintervale, caso houvesse picadas de abelhas no futuro. Ele pegou um pequeno estojo, que continha alguns frascos. — Não! — Alguém gritou. — Não o ajude! Lady Wintervale. Ela se afastou de um tapete e se colocou entre Titus e Wintervale. — Não podemos vê-lo morrer! — Iolanthe gritou. — Você acredita por um instante que Bane sairia antes disso? Não, enquanto houver uma chance que ele possa fazer com que você acredite que ele é Leander Wintervale novamente, ele permanecerá e será a ruína de todos. No chão, Wintervale estremeceu e se contorceu. Iolanthe tremeu. Ela pressionou o rosto nas costas de Titus. Mas ainda ouviu Wintervale, gargarejando como um mudo tentando falar. Finalmente, silêncio.

333

— Não, não assuma que ele está morto, — Lady Wintervale advertiu. — Você tem algum instrumento? O príncipe encontrou o medidor sabe tudo. Com um feitiço de levitação, ele colocou-o em Wintervale. A ponta do medidor mostrou verde. Todos os três criaram escudos ao mesmo tempo, Titus para Iolanthe, Iolanthe para Titus e Lady Wintervale para ambos. Mesmo assim, Titus tropeçou para trás, agarrando seu peito. — Estou bem, — ele disse, já apontando a varinha para montar outro escudo. Bane se contraiu novamente. Sua mão caiu no topo do medidor. O verde lentamente se desvaneceu em um cinza escuro. O cinza escuro ficou vermelho. Wintervale estava morto. *** Lady Wintervale pegou a mão de seu filho. Seus lábios tremiam. — Ele tinha uma alma tão bonita, meu Lee. Ele se preocupava por não ser tão importante como seu pai, mas ele sempre foi um homem muito melhor. Ela olhou para o pomar. — Quando éramos pequenas, Ariadne às vezes me trazia aqui para brincar. Nunca pensei que fosse aqui que meu filho encontraria o fim dele. — Titus se ajoelhou e beijou Wintervale na testa. — Adeus, primo. Você salvou a todos nós. Ele

tinha

lágrimas

nos

olhos.

Lágrimas

escorriam

pelas

bochechas de Iolanthe. Wintervale, ao ser aberto, confiante e sincero por toda a sua vida, fez com que seus amigos mais cínicos guardassem seus segredos. E ao fazê-lo, eles se preservaram do Bane. O corpo de Wintervale desapareceu. O Crucible não mantém os mortos.

334

— Você quer vir conosco, milady? — Iolanthe perguntou a Lady Wintervale. Lady Wintervale sacudiu a cabeça. — Não, estou aqui apenas para o meu filho. Farei um memorial apropriado e oferecerei suas cinzas aos Anjos. Muito cedo sua alma se eleva. — Sobre as asas dos Anjos, — Iolanthe e Titus disseram juntos. — Quase me mata dizer isso — Lady Wintervale disse; suas próprias lágrimas finalmente caindo. — Mas... Eles viveram felizes para sempre. E ela também saiu do Crucible. *** Titus foi quem apontou que a roupa de Iolanthe estava em farrapos. Ela mudou para um par de túnicas da bolsa de emergência e eles se ergueram para o ar novamente. Mais perseguidores, em wyverns e pégasus, estavam perto – os atlantes devem ter invadido os estábulos em algumas histórias. — Não chegaremos a Ilha Proibida a tempo, — Titus disse severamente. O que deixava apenas o abismo de Briga. Eles caíram à beira do Abismo de Briga, com os Atlantes quase seiscentos metros atrás. A espessa névoa que enchia todo o abismo se contorcia e fluía, obscurecendo tudo abaixo. — Podemos colocar óculos de neblina e percorrer isso? — Ela perguntou enquanto corriam em direção à entrada dos túneis que levavam ao fundo do abismo. Ele dobrou o tapete e anexou-o à bolsa de emergência, como Kashkari os havia mostrado. O tapete, que era na verdade uma folha de lona com bolsos, mudou de cor para combinar com a da bolsa. — Eu tentei uma vez. Isso não é névoa e é totalmente impenetrável, mesmo com óculos de neblina.

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Ela estremeceu quando pisou no chão estranhamente esponjoso nos túneis. Uma luz doentia filtrou das rachaduras no teto da rocha acima. Todas as superfícies pareciam úmidas. Viscoso. — Certifique-se de não tocar em nada, — Titus disse, pressionando os vértices do quase-desmaterializador em sua mão. Ela nunca usou o local para treinar, mas havia lido a história do Abismo de Briga há muito tempo. Criaturas sujas viviam nos túneis, não tanto os protegendo como simplesmente atacando qualquer coisa ou quem entrasse. Alguém gritou. Eles pararam por um momento e ouviram. Provavelmente alguém que não sabia que nunca deveria tocar as paredes dos túneis, que segregavam uma substância corrosiva. Em frente, algo escorregou pelo chão. Poderia ter sido uma pequena cobra – ou um membro separável de um dos pulpwyrms sujos, enviado para escutar. Outro grito veio por trás deles. — Idiotas, — Iolanthe murmurou sob sua respiração, agudamente consciente de que as feridas e as mortes eram também reais aqui. Algumas famílias atlantes perderiam os filhos e as filhas queridos nos dias de festa este ano. Nenhum deles merecia morrer pela megalomania de um velho retorcido. Um pulpwyrm, com o diâmetro de um trem e quase tão longo quanto, passou por um túnel. Iolanthe agarrou o braço do príncipe e tentou não suspirar. — Algo está vindo atrás de nós, — ele disse. Mas o caminho ainda estava bloqueado pelo monstro se arrastando na frente deles. E por tudo o que sabiam, atrás deles poderia estar exatamente a mesma criatura. Eles se aproximaram tão perto do cruzamento do túnel quanto ousaram. Iolanthe não sabia o que era pior, olhar o enorme tubo de carne cabeludo e enrugado passando diante deles, ou observar a cabeça com seis pares de olhos multifacetados e reflexivos rapidamente aproximando-se por trás.

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A boca embaixo dos olhos se abriu. Não havia dentes. Tudo era terrível, revoltantemente macio e gotejando com o que parecia ser montes de saliva negra. Iolanthe olhou fixamente, petrificada. O príncipe a puxou para o cruzamento do túnel – a outra criatura, ou talvez a parte de trás desse último, finalmente passou. Mas aquele atrás deles, apesar de viajar a grande velocidade, conseguiu virar ao mesmo tempo em outro túnel. Eles correram, suas botas afundando no chão esponjoso. Só para ver outro conjunto de dúzia de olhos vindo para eles. Desta vez não havia túneis cruzados. — Quebre uma parede, — Titus disse. — Você consegue. Ela fez isso, embora o som da parede desmoronando fosse menos de pedra quebrando e mais próximo de esmagamento ósseo. Eles correram até um túnel adjacente. — O Bastião Negro parece como um resort de luxo em comparação, você não acha? — De alguma forma ela conseguiu dizer enquanto eles corriam. — Os ocupantes certamente são muito mais bonitos, eu admito, — ele respondeu. O túnel levou a uma espécie de clareira. Ele olhou para trás. — Eu não gosto disso. Todos os túneis levam a outros. Deve haver pelo menos um principal abaixo. Ela praguejou: de cada um dos cinco túneis que levaram à clareira veio uma coisinha se arrastando. — Espero que isso não signifique que cinco grandes estão seguindo atrás. Sua

esperança

foi

interrompida

quando

cinco

cabeças

monstruosas e enormes entraram na clareira quase o mesmo tempo. Ela deixou cair os vértices do quase-desmaterializador no chão. — Estamos saindo daqui. Agora. Titus não se opôs, apenas tirou a bolsa das costas e amarrou na dela. — No caso de nos separarmos.

337

De mãos dadas, eles entraram no quase-desmaterializador, bem quando a criatura mais próxima jogou um fluxo de saliva preta neles.

338

Capítulo 33 O deserto do Saara

A lua havia aumentado, uma enorme crescente baixa no céu. O primeiro grupo de defensores rebeldes levantou no ar, circulando acima, com dois pequenos esquadrões virando para investigar a redoma. — Então vocês não se lembram de mim também? — Kashkari perguntou ao aceitar uma barra de nutrição de Titus. — Todo esse tempo vocês não tinham ideia de quem eu sou? — Receio que sim, — Iolanthe disse, reabastecendo o odre de Kashkari. Ela tentou manter o medo longe, mas não tinha certeza se estava conseguindo. Era uma coisa ser caçada por Atlantis, outra bastante diferente era saber que até mesmo os magos que deveriam ser seus aliados poderiam ter planos para ela. — Seguidores de Durga Devi, — novamente veio a voz ressonante e imponente, — Desistam de Iolanthe Seabourne e vocês não devem sofrer danos esta noite. Ela engoliu em seco.

339

— Vá para o inferno, — Titus replicou com seu tom quase casual. — Na única vez que você a verá, seus olhos estarão frios e mortos. — Obrigada, Sua Alteza. — Ela sorriu para ele, um pouco fracamente. — Por você, meu destino, nada menos. Agora ela não podia deixar de sorrir, lembrando-se de sua confissão anterior para nunca chamá-la de meu destino. Agradecida por essa porção de humor, ela o beijou na bochecha. — É quase melhor do que um mau verso. Ele a segurou contra ele por um momento. — Nada acontecerá com você, não enquanto eu ainda puder erguer uma varinha. O odre de Kashkari estava cheio. Ela tapou e devolveu para ele. — Assim... — Kashkari disse. — Vocês não se lembram de mais nada, mas se lembram um do outro? —

Não,



Iolanthe

respondeu,



Mas

nada

constrói

camaradagem como fugir de... Sua cabeça parecia estranha, e não pela hora tardia. Ela se sacudiu, linhas brilhavam no interior de seu crânio, como meteoros cruzando o céu, queimando, ainda gelado no núcleo. Ela trincou os dentes e apertou as têmporas. Titus a segurou pelos ombros. — Você está bem? Ela balançou. No momento seguinte, ela estava de quatro, tremendo. — Devemos levá-la para baixo, Fairfax? — Kashkari perguntou urgentemente. — Temos vários médicos bons. Ela ergueu a mão. — Eu... Estou... Ela estava além da náusea pela imagem que piscava em sua mente, a de uma criatura enorme e rastejante, gotejando saliva negra, avançando contra ela. Lady Wintervale, lágrimas escorrendo por suas bochechas. Wintervale, deitado morto no chão. E então as memórias se precipitaram como a água depois de uma barragem desmoronada, em tais torrentes e inundações que ela estava

340

com medo de que transbordassem de seu crânio. Mas elas pareciam encaixar bem na cabeça dela, e o desconforto estava desaparecendo, deixando apenas uma fraca sensação de desorientação. Titus estava ao lado dela, o braço em volta de sua cintura. Kashkari também se agachou, olhando para ela ansiosamente. Ela se levantou para poder se sentar em seus calcanhares e pôs a mão por um momento na manga de Kashkari. — Eu me lembro de você. Virando para Titus, ela descansou a palma da mão na bochecha dele. — E eu me lembro de você. E temo que você não poderá escapar da vergonha de ter escrito aquelas palavras ardentes na alça da minha bolsa – nunca. Alívio cruzou o rosto dele. E então frustração. — Mas por que eu não lembro? — Vai voltar. As precauções que foram colocadas em nós garantem que nunca teremos que sofrer os efeitos de um feitiço de memória por muito tempo, mas o tempo exato provavelmente variará um pouco de pessoa para pessoa. Ishana voou para cima e entregou a todos uma máscara de respiração fina e flexível. — Durga Devi quer que vocês usem isso, no caso de Atlantis colocar algo ruim no ar. Iolanthe amarrou sua máscara, que era muito mais confortável do que parecia. — Então, o que aconteceu com Wintervale? — Kashkari perguntou, ajustando sua própria máscara. — Ele não conseguiu. — Ele teria dado um rebelde dedicado e traria alegria a todos que lutasse ao lado dele, ela piscou de lágrimas. — Eu sinto muito. Kashkari passou a mão na frente do rosto. — Eu estava com medo disso. Iolanthe limpou os cantos dos olhos. — Diga-me o que aconteceu depois que partimos. Todos estão na casa da Sra. Dawlish, estão todos bem?

341

— Esperei no banheiro até Bane entrar no quarto de Fairfax, — Kashkari respondeu. — Então falei com os outros meninos sobre um jogo de futebol de associação, veteranos contra calouros – não queria que eles estivessem na casa se ele fosse entrar em colapso, ou qualquer coisa desse tipo. Nós ainda tivemos que mudar de roupa antes de podermos jogar – eu estava muito nervoso para lembrar que todos estavam com a roupa do domingo. Foi quando Lady Wintervale veio. Eu sussurrei no ouvido dela que seu filho era o Bane e apontei para o seu quarto. Cerca de um minuto depois, uma equipe de agentes atlantes veio subindo as escadas. Vários deles

entraram,

pegaram o Crucible

e saíram

imediatamente. O resto começou a tirar tudo de ambos os seus quartos. — Na sua frente? — Na frente de todos. Cooper, o abençoado, imediatamente começou a falar sobre o que o príncipe disse durante nossa noite de fogueira na praia – que alguns bastardos traidores em Saxe-Limburg estavam procurando tirá-lo do trono. E já que você é conhecido por ser o mais próximo entre os meninos, por sua vez, seu quarto também teve que ser citado pela evidência dos crimes com os quais eles iriam destronar o príncipe. E quando começaram a tirar coisas do quarto de Wintervale, Cooper fez a conexão adicional, da qual Wintervale estava realmente próximo das mesmas partes que o príncipe, portanto, também deveria estar envolvido nessas intrigas do palácio – o que era exatamente por que a mãe dele tinha vindo de repente à casa da Sra. Dawlish, porque ela sabia que o perigo estava chegando e queria fazê-lo fugir. — Não posso dizer se este Cooper é um idiota ou um gênio, — o príncipe disse. — Em ambos os casos, ele estava bastante decidido a viajar para Saxe-Limburg algum dia para se certificar de que todos estão bem. Eu disse a ele que mesmo que estivesse com problemas, você não seria jogado na prisão, mas seria detido em prisão domiciliar, em uma mansão de luxo com jardins e um parque de tiro. Espero que ele acredite em mim, ou vai se frustrar muito ao tentar encontrar Saxe-Limburg. — E como você fugiu? — Iolanthe perguntou.

342

— Eu ia esperar alguns dias. Mas depois de seus quartos – e do de Wintervale – serem limpos, um homem veio à casa da Sra. Dawlish e disse que era o criado do príncipe. Ele pediu para falar com alguns dos seus amigos. Depois que ele se foi, encontrei um pedaço de papel dentro do bolso do meu colete. Pode ser uma mensagem para você, príncipe. Não consegui decifrar, mas fiquei nervoso por ele ter me escolhido. Os atlantes também examinaram os quartos dos outros meninos por itens suspeitos. Eles pegaram um tapete do meu quarto, um tapete não mago que não voa mais do que fala. Mas agora eu me pergunto se esse homem havia reconhecido que a minha cortina era, na verdade, um tapete voador – e se algum agente de Atlantis não percebeu o mesmo. Naquela noite, eu enfeiticei todas as almofadas de assento para voar pela janela da sala comum, criando uma distração. Enquanto os atlantes estavam preocupados com isso, escorreguei e peguei o último trem. Kashkari tirou um pedaço de papel do bolso interno e o deu a Titus. — E esta é a mensagem. Titus pediu uma pequena esfera de luz, olhou a mensagem e passou para Iolanthe. — Dá uma olhada? — A nota dizia: Lady Callista foi interrogada sob o efeito de um soro da verdade em um momento que coincidiu com o ressurgimento de certas lembranças. Aparentemente, ela entregou informações cruciais para a potencial captura da maga elementar que pode convocar o relâmpago. Então Lady Callista foi apanhada afinal de contas. Era possível que a memória dela fosse protegida, o que significava que o feitiço do Mestre Haywood para suprimir todas as lembranças de Iolanthe tinha apenas um efeito temporário – e expirou em um momento inconveniente, em uma entrevista com interrogadores atlantes. Também era possível que enquanto Lady Callista era questionada sob o efeito do soro da verdade, Iolanthe e Titus usaram o quasedesmaterializador, cuja operação serviu como uma disposição especial para desencadear o retorno das memórias suprimidas de Lady Callista. Isto implicava que Lady Callista era a pessoa que colocou o alvo do quase-desmaterializador no deserto do Saara – e anexou um feitiço de

343

memória à sua ativação: uma Iolanthe que não conhecia sua própria identidade seria mais fácil de enganar e controlar. O círculo teria sido uma medida de precaução, de modo que Iolanthe não saísse antes que Lady Callista pudesse encontrá-la; tão desagradável quanto fosse sua opinião de Lady Callista, Iolanthe não achava que ela quisesse realmente matá-la. Uma iluminação muito mais brilhante do que a luz mágica azul escorregou na mensagem. Iolanthe levantou a cabeça para ver um farol branco prateado expandindo. — Bom! — Kashkari disse. — Amara está chamando meu irmão e os outros que invadiram a base de Atlantis. Iolanthe sentiu um pulso de excitação. — E não é assim que você quebra uma redoma? Tendo aliados abordando do lado de fora? Mas o farol se dissipou quando tocou o topo da redoma. Kashkari gemeu. — Precisa subir muito mais alto. Ou eles não verão isso. Titus agarrou a mão dela. Mesmo com a máscara de respiração, ela podia ver que ele fazia uma careta. Ela suportou seu peso contra ela quando ele tropeçou. — Eu... Lembro de tudo agora, — ele disse, apoiando-se nela. — E eu decidi: Cooper é sem dúvida um idiota, mas inestimável. Ela sorriu de orelha a orelha. — Quando vê-lo novamente, eu vou dizer a ele que você disse que ele era inestimável. Ele riu calmamente e tocou sua testa com a dela. — Você, e você somente. Ela pegou as mãos dele. — Viva para sempre. Eles não precisavam dizer mais nada. Ele ergueu a varinha. Um farol de cor flamejante surgiu, bem acima da redoma. — O que é isso? — Kashkari perguntou. — A fênix de guerra, — Titus disse, — Lançada quando o próprio Mestre do Domínio está sob ataque. — Será útil? — Iolanthe perguntou. — Estamos a milhares de quilômetros do Domínio.

344

— É verdade, mas não estamos sem amigos nas proximidades. Na primeira noite, estávamos no deserto, os carros estavam chegando muito perto, então soltei duas luzes de fênix para distraí-los, sem saber exatamente o que fazia. E uma das luzes era uma fênix de guerra. Quando isso acontece, minha localização exata é conhecida pelo conselho de guerra em casa. Lembra-se que eu disse que na segunda noite havia pilotos em pégasus? As forças Atlantes não utilizam pégasus, mas nós sim. E lembra-se das lanças? Adivinha quem tem muitas lanças enfeitiçadas? Iolanthe ofegou. — Claro! Você mesmo disse que era como assistir a uma reconstituição histórica. O Museu Memorial Titus, o Grande tem milhares delas para esse fim. — Então, só temos que aguentar tempo suficiente até a ajuda chegar aqui. E então teremos que desaparecer nas multidões de uma cidade não maga até que o perigo tenha passado. — Quanto tempo você acha que leva para a ajuda chegar aqui? — Quanto mais cedo, melhor, — Kashkari disse, com a voz tensa. — Olhando para o que está por vir, não sei se nós poderemos durar muito. Dois outros grupos de defensores rebeldes levantaram no ar então, obscurecendo a visão de Iolanthe do céu. E então ela viu, entrando na redoma, um montanhoso enxame de bestas aladas, um ameaçador brilho inflamável refletindo nas escamas da fênix de guerra. — Que a Sorte me proteja, — ela murmurou. — Está todo o batalhão wyvern aqui? — Bane está no Saara – onde mais estaria o batalhão de wyvern? — Titus disse, desdobrando o tapete que os trouxe à base rebelde. — Agora, vamos? *** Os wyverns pairavam no ar, o agitar de suas asas como milhares de lençóis úmidos sendo sacudidos de uma só vez. Mesmo sem cuspir

345

fogo, a presença deles trouxe um odor sulfuroso ao ar, que foi felizmente silenciado pela máscara de respiração. Os tapetes dos rebeldes também pairaram. Iolanthe e Titus sentaram-se ombro a ombro no tapete, com a mão na nuca. Titus tocou sua varinha duas vezes contra a palma da mão. As sete coroas com incrustações de diamantes ao longo da varinha começaram a brilhar. — Pegue essa e me dê a sua. — Mas essa é a Validus. — Ela ficou nervosa com seu gesto: Validus já pertencera a Titus, o Grande. Para não mencionar que era uma das últimas varinhas de lâmina, um amplificador muito mais poderoso do poder de um mago do que uma varinha comum. — Sim, eu sei disso – também sei qual de nós pode derrubar o maior número de wyverns. — Ele apertou a varinha inestimável em sua mão. — Você fará melhor uso da Validus. — O Senhor Comandante Supremo do Grande Reino de Atlantis saúda Sua Alteza Sereníssima, o Mestre do Domínio, — voltou a voz sonora. — Atlantis e o Domínio atualmente desfrutam de uma associação pacífica e mutuamente benéfica. Entregue Iolanthe Seabourne ao cuidado da Atlantis e essa amizade continuará. — Você não gosta de como foi formulado? — Titus disse suavemente. — Eu gostaria. Mas toda vez que a voz fala, eu prefiro sufocar o medo. Mesmo o poder da Validus em sua mão não foi suficiente para expulsar esse medo. — E fico cada vez mais irritado com o fato de que alguém ainda pensa que eu vou desistir de você. — Ele murmurou um feitiço. Quando falou novamente, a voz dele, apesar de não ter sido levantada, ecoou por quilômetros. — O Mestre do Domínio considerará entregar um quilômetro e meio cúbico de excremento de elefante aos cuidados de Atlantis, mas nada mais. E ele oferece seus melhores cumprimentos ao Senhor Comandante Supremo. Em breve, o Senhor Comandante Supremo partirá para o Vazio, de onde ele está há muito atrasado.

346

Iolanthe estava atordoada: Titus acabara de dizer a Bane para ir para o inferno. Gritos irritados entraram em erupção dos cavaleiros nos wyvern. Os rebeldes, como Iolanthe, estavam atônitos. A voz sonora agora era mais sombria e mais fraca. — O Mestre do Domínio é uma criança impetuosa. Mas o Senhor Comandante Supremo está disposto a ignorar a loucura da juventude para o bem maior. Entregue Iolanthe Seabourne e você ainda poderá manter seu trono. — O Mestre do Domínio é sem dúvida o menino mais estúpido que já viveu, — Titus respondeu. — Mas ele se orgulha de não ser um velho vil que pratica magia sacrificial como o Senhor Comandante Supremo. Iolanthe poderia ter caído do tapete se não estivesse amarrada. Desta vez, os atlantes ficaram atordoados; os rebeldes gritaram em choque. — Cada palavra que o príncipe diz é verdade, — levantou a voz de Kashkari. — Eu atestarei isso com a minha vida. Como Iolanthe pensou, quando a voz de Atlantis falou novamente, era como se pedras fossem trituradas juntas. — Atlantis é sempre do lado da paz e da amizade. Mas você trouxe a guerra, Titus de Elberon. A mão de Titus deixou a de Iolanthe. Ele estava com medo – o medo dele pulsava dentro de seu sangue. Mas ela olhou para o perfil dele, lembrou-se do dia em que eles se conheceram, aquela conversa fatídica no rio Tâmisa. Ela pensou que ele era incrivelmente corajoso, então, como se tivesse nascido sob as asas dos Anjos – agora ela sabia que era assim. — Estou com você, — ela disse suavemente. — Sempre. A mão dele apertou a dela e ele disse ao Bane e a todos os seus agentes, — Então que seja. Mas ele ainda não acabou. Com sua voz ainda audível por quilômetros, ele acrescentou: — Que a Sorte favoreça os corajosos. Outro momento de absoluto silêncio. E então, Iolanthe encontrouse gritando a plenos pulmões, sua voz quase afogada pelo grito de todos os rebeldes presentes: — E os corajosos fazem sua própria sorte! O lema da Revolta de Janeiro foi retomado depois de todos esses anos.

347

Lágrimas escorriam sem controle das bochechas de Iolanthe. Ela puxou Titus para ela e o beijou com força. — Perdoe-me, — ele disse, entre beijos, — Por estar tão errado em tudo isso. — Não há nada para perdoar. E você não estava errado sobre o fato de eu não ser a Escolhida, pois não há um. — Ainda assim, quando penso quão perto eu cheguei de perder você... — Mas você não perdeu. Estou aqui – e eu amo você. Sempre amei você. Ele a beijou novamente. — E eu vou te amar até o fim do mundo. Com um rugido, um wyvern lançou uma chama brilhante. Mais cem wyverns seguiram o exemplo. Instantaneamente, o ar ficou quente. Os wyverns caíram sobre os rebeldes, cuspindo fogo. Iolanthe levantou a varinha que pertenceu a Titus, o Grande e convocou um relâmpago, um flash branco que iluminou o céu. A guerra contra Atlantis finalmente começou.

348
Sherry Thomas - The Elemental 02 - The Perilous Sea

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