Sherry Thomas - The Elemental 03 - The Immortal Heights

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Em uma busca que atravessou continentes, Iolanthe, Titus e seus amigos sempre conseguiram permanecer um passo à frente das forças de Atlantis. Mas agora, Bane, o tirano monstruoso que dominou todo o mundo mago, emitiu seu ultimato: Titus deve entregar Iolanthe, ou assistir seu reino inteiro ser destruído em uma fúria mortal. Sem tempo e opções, Iolanthe e Titus devem agir de forma decisiva para dar um golpe final em Bane, terminando seu reinado de terror para sempre. No entanto, chegar ao Bane significa realizar o impossível – encontrar uma maneira de se infiltrar em sua cripta, nos mais profundos recessos da fortaleza mais ferozmente guardada de Atlantis. E tudo se torna mais

difícil

quando

novas

profecias

aparecem,

anunciando um esforço sentenciado... Iolanthe e Titus colocam seu amor e suas vidas em risco. Mas será suficiente? 2

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Prólogo O menino caiu. Tudo abaixo dele estava incendiando. A fumaça negra subia contra o céu noturno, obscurecendo as estrelas. À distância, os wyverns mergulhavam e gritavam; suas silhuetas iluminadas por suas próprias chamas, luz incendia sobre escamas iridescentes. — Não! — Gritou alguém. — Não! Mas o menino não ouviu nada. Seu coração já tinha parado de bater.

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Capítulo 1 Em algum lugar no deserto mais imenso da Terra, a mil e quinhentos quilômetros ao sul do Mar Mediterrâneo e tão longe quanto ao oeste do Mar Vermelho, erguia-se uma linha de falésias de arenito. No alto céu noturno acima desta escarpada estava suspenso um enorme e flamejante sinal luminoso, a fênix de guerra, cuja luz lançava um brilho alaranjado por quilômetros nas dunas circundantes. Sob a fênix de guerra, o ar parecia ligeiramente distorcido, devido à presença de uma redoma, que, quando estendida na guerra, mantinha a força oposta firmemente dentro. A redoma foi criada por Atlantis, o império mais poderoso do mundo mago, liderado por Bane, o mago mais poderoso e temido atualmente. Preso sob a redoma estava um regimento de várias centenas de rebeldes que não tinham uniformes bonitos, nem corcéis cuspindo fogo, mas apenas vestes do deserto e tapetes voadores. Alguns rebeldes usavam turbantes e keffiyehs; outros que acordaram e se vestiram apressadamente estavam com a cabeça descoberta. Entre este grupo desorganizado de combatentes da resistência, parecendo um pouco deslocados, estavam as vítimas de Bane: Sua Alteza

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Sereníssima Príncipe Titus VII, Mestre do Domínio, e Senhorita Iolanthe Seabourne, a grande maga elementar de seu tempo. Desde o dia em que Iolanthe convocou seu primeiro relâmpago, ela foi perseguida pelos agentes de Atlantis. Mas não foi até recentemente que ela soube o motivo simples, porém grotesco, pelo qual Bane a queria: para poder fazer uma magia sacrificial que prolongaria sua vida e manteria sua força e poder. Agora cercada, ela estava lutando por sua vida. Mas nesse exato momento, ela não estava pensando em si mesma – não inteiramente, em qualquer caso. Seu olhar estava no garoto que compartilhava seu tapete voador, um que segurava a mão dela fortemente. Às vezes, ela se surpreendia por conhecê-lo um pouco mais de seis meses – parecia que eles haviam passado juntos a vida inteira, ambos fugindo e correndo para o perigo. Ela quase não conseguia se lembrar de um momento antes de ter sido varrida para este vórtice do destino, antes de ter decidido como ambição de sua vida, acabar com o reinado tirânico de Bane. Seus olhos se encontraram com os dela. Ele estava com medo – ela sabia disso porque ele não escondeu seu medo dela – mas além do medo, havia uma vontade inquebrável. Por toda a vida ele se preparou para a armadilha, o perigo e o sacrifício final. Ela apertou a mão dele. Vamos sobreviver a isso. Na outra mão, ela segurava Validus, a varinha espada que já pertenceu a Titus, o Grande, o unificador do Domínio. Ela ergueu a varinha. Imediatamente, arcos de eletricidade brancos brotaram no céu estrelado. Isso a deixou vacilante no começo, e atordoou-a ainda mais, que tal poder fosse concedido a um mero mortal. Um raio ameaçador mergulhou em direção ao deserto, quase como o tronco de uma árvore brilhante crescendo de cima para baixo. Enquanto atravessava a fênix de guerra, o sinal enorme brilhava e se expandia. Propósito surgiu em suas veias. O chiar de eletricidade era uma maré crescente em seu sangue. E uma batida turbulenta em seu coração

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– sem mais pretensões, nem mais corridas, apenas conduzir energia contra energia, poder contra poder. Com uma crepitação quase inaudível, seu raio caiu sobre um escudo colocado do lado de fora da redoma. Gritos de consternação surgiram ao redor dela, abafando seu próprio suspiro. Ela praguejou e alcançou os elementos novamente. Dezenas de raios atingiram o escudo, como se fossem agulhas brilhantes jogadas contra uma almofada, ou os fogos de artifício da celebração de ano novo que enlouqueceram. O escudo permaneceu. Um silêncio ressoante ecoou em sua cabeça. — Nada surpreende Atlantis duas vezes, — Titus disse, com uma calma muito maior do que sentia. Horas antes – tanto aconteceu desde então, parecia como se fossem semanas, talvez até muitos meses atrás – os dois foram encontrados fora do esconderijo e cercados por cavaleiros em wyvern. Iolanthe, com suas memórias ainda suprimidas, decidiu que não havia mal em tentar ver se a escrita escondida na alça de sua bolsa, especialmente a frase, No dia em que nos encontramos, um relâmpago caiu, era literal. Ela convocou um relâmpago que incapacitou os cavaleiros nos wyverns, permitindo que Titus e ela escapassem à segurança temporária. Mas desta vez Atlantis veio preparada. Desta vez, seu comando sobre o relâmpago não serviria para nada. Como para ressaltar a vantagem de Atlantis, o batalhão de wyverns rugiu em massa, um clamor que sacudiu os pulmões contra seu peito. Os wyverns entraram em uma formação apertada, mas agora duas pontas, com garras em forma de pinça, avançaram para a frente da massa negra réptil, grupos de wyverns avançando para enfrentar os rebeldes no meio. O ar deslocado pelas asas fez o tapete embaixo dela balançar, como uma jangada no mar, ficando mais rápido a cada minuto. O calor da respiração deles, mesmo a distância, picava contra sua pele. E embora

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não conseguisse cheirá-los através da máscara que usava por recomendação dos rebeldes, suas narinas pareciam queimar com cheiro de enxofre. Mohandas Kashkari, colega de Titus e Iolanthe no Colégio Eton, parou ao lado deles. — Precisamos entrar em formação. De repente, Iolanthe percebeu que os rebeldes manobraram em grupos de três. — Dois em ofensiva, um na defesa – eu estou nesse, — Kashkari explicou apressadamente enquanto ajudava Titus e Iolanthe a subirem em tapetes individuais. — Os tapetes que eu dei a vocês foram subordinados ao meu – vou dirigir o grupo. Certifiquem-se de me manter a vista. Os tapetes foram feitos em forma de L, com uma borda inferior para ficar em pé, uma vertical para segurar o condutor na posição vertical, e a extremidade superior rolada para baixo para criar um acolchoado confortável, mas firme, na altura da cintura. — Melhor lutar em pé, — Kashkari disse. Iolanthe beijou Titus em sua bochecha, logo antes de Kashkari colocar seus tapetes na distância correta. — Que o poder dos Anjos o leve a alturas inimagináveis, — disse o seu amado. Era uma bênção antiga, desde o momento em que os poderes dos magos elementais decidiram o destino dos reinos. Ela respirou fundo. A batalha era travada ao redor dela; seu resultado também dependia dela? — Que a Sorte proteja você contra todos os inimigos, — ela respondeu; sua voz tremendo um pouco. — Você também, Kashkari. — Que a Sorte proteja a todos nós. — A resposta de Kashkari foi sombria, mas firme. — E não me percam de vista. Seu tapete saltou para a esquerda. Seus dedos cavaram no apoio das mãos – ela não esperava o movimento. Agora ela entendeu as instruções repetidas de Kashkari: ela precisava mantê-lo a vista para que alguma parte de sua consciência ficasse atenta às sutis mudanças de

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peso, e assim prepará-la para qualquer mudança abrupta na direção ou na velocidade. — A base tem alguma estratégia para lidar com um cerco? — Titus perguntou a Kashkari, sua voz levantando acima do barulho geral enquanto os esquadrões de rebeldes ziguezagueavam sobre eles, chamando uns aos outros em uma variedade de línguas. — Não, — Kashkari respondeu, manobrando-os para o centro da multidão. — Nossa estratégia, em caso de descoberta, sempre foi evacuar pessoal e equipamentos o mais rápido possível – e não ficar e lutar. Mas com a redoma, a opção preferida desapareceu. Todos deveriam ficar e lutar. — Você está bem? — Titus perguntou. — Sonolenta? Menos de três dias atrás, eles apareceram no meio do Sahara, sem saber nada sobre como chegaram lá, sabendo apenas que não deveriam cair no alcance de Atlantis. Mas logo que começaram a escapar, eles descobriram que Iolanthe foi encurralada por um círculo de sangue feito especificamente para ela. Mesmo com Titus enfraquecendo o poder do círculo sangue e ajudando-a, tanto com uma dose tripla de panaceia quanto com um feitiço de congelamento, Iolanthe quase morreu ao atravessar o círculo sangue. A panaceia então a manteve sob uma sedação quase constante, para preservar sua vida. — Estou acordada. Ela realmente estava mais acordada, seus nervos vibrando. Os rebeldes avançaram, atravessando sua visão. Além deles, os wyverns, espalhados como uma rede de pescadores. E além deles... Com todo o caos, ela não havia percebido que, embora um grande número de cavaleiros com Wyvern entraram na redoma, ainda mais permaneceram lá fora. A chegada dos aliados era a maneira mais segura de quebrar um cerco – e ela e Titus tinham amigos por perto: as forças do Domínio estavam no Sahara, alertadas pela presença do príncipe por um sinal de fênix de guerra ativado duas noites atrás. Mas eles poderiam violar essa defesa?

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Alguém

está

trabalhando

nos

translocadores?



Ela

perguntou; seu peito apertado. Os translocadores fornecem transporte instantâneo para destinos distantes. A base rebelde tinha dois, mas nenhum estava funcionando. — Sim, — Kashkari respondeu. Ele não parecia inteiramente confiante. Sem mencionar que eles não sabiam se os translocadores dos rebeldes sofreram um simples colapso ou se foram comprometidos por Atlantis. Uma vez que um translocador foi comprometido, não havia como saber onde o mago acabaria. Sua incerteza deve ter aparecido em seu rosto. — Não se preocupe, — Kashkari disse. — Nós protegeremos você. Ele entendeu errado – ela desejava poder protegê-los. Ela sabia que os rebeldes se voluntariavam para a vida de perigo; mas se não fosse por ela, eles não estariam enfrentando o batalhão mortífero de wyverns neste momento. — Eu posso lutar. — E nós também podemos. Talvez não tenhamos um plano específico de contra-ataque em caso de cerco, mas treinamos contra wyverns que não eram fracos. Pode-se encontrar uma oportunidade para atacar o abdômen sensível do wyvern, caso alguém consiga passar por seu fogo e ferocidade. Ela teria a oportunidade: Bane a queria viva e em boa forma; um mago elementar morto era inútil na magia sacrificial. O príncipe também tinha uma chance: a satisfação de se livrar dele provavelmente não valia a pena uma guerra total com o Domínio, que, embora estivesse bem longe de seus dias de glória, ainda tinha força suficiente e o poder de mago para ser um espinho na lateral de Atlantis. Para não mencionar que uma guerra tornaria Atlantis vulnerável a ataques em outras frentes. Os wyverns cuspiram fogo, uma efetiva bola de fogo colidindo com os rebeldes. Um coro de feitiços de escudos foi criado. A maior parte do fogo do dragão foi parada por uma parede de escudos, mas aqui e ali as bordas e as franjas de um tapete pegaram fogo. Iolanthe tinha se acostumado com os tapetes mais modernos, que se assemelhavam a

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toalhas de mesa e cortinas mais do que a tapetes de verdade. Mas os tapetes usados na batalha eram de uma aparência mais tradicional, bem mais grossos e resistentes que aqueles destinados ao disfarce e facilidade de transporte. Ela ordenou que os fogos nos tapetes se extinguissem. Já os rebeldes na linha da frente estavam no contra-ataque, mergulhando, de modo que pudessem apontar para os wyverns por baixo. Iolanthe esperava que pelo menos um par de wyverns recuasse, com as asas batendo selvagemente. Nenhuma reação. Era como se os rebeldes estivessem jogando pétalas de rosa e soprando dentes de leão, em vez de feitiços que teriam abatido elefantes e rinocerontes. Exclamações entraram em erupção em línguas que Iolanthe não conseguiu identificar, e muito menos entender. — Os wyverns estão blindados, — Kashkari interpretou. — Não metal, mas armaduras de couro de dragão escondem seus ventres. Wyverns toleravam armaduras de metal – armaduras de couro de dragão, nem tanto. Se eles entendiam claramente que estavam amarrados em aparelhos que antes eram partes dos corpos de sua própria espécie, ninguém sabia. Mas os wyverns eram inteligentes o suficiente para que tudo feito de couro de dragão os repelisse. O que significava que eles foram subjugados há muito tempo, então não lutariam contra a colocação das armaduras. A domesticação antes de uma batalha retardava os reflexos normalmente rápidos de um wyvern. Atlantis deve ter decidido que a proteção das armaduras compensava as desvantagens da domesticação. — Eles estão preparados para você, — Titus disse. Claro. Placas de metal contra as partes mais suscetíveis dos wyverns os colocariam em perigo quando confrontados com um mago que comandava o fogo. O couro de dragão, por outro lado, era imune ao fogo comum. Mas não era imune ao fogo do dragão.

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Ela apontou sua varinha e encaminhou um fluxo de fogo do dragão ao wyvern que o havia cuspido. O cavaleiro do wyvern virou-o bruscamente para o lado para evitar o jato de chamas. Iolanthe juntou as chamas de dois wyverns próximos em duas bolas de fogo e as atirou no mesmo wyvern, perdendo por pouco o cume de uma asa. Um ruído como mil garras afiadas arranhando mil janelas ressoaram contra seus tímpanos. Instantaneamente, a noite ficou mais escura. Ela prendeu a respiração por vários batimentos cardíacos antes de perceber que não era um novo e espantosamente poderoso ato de feitiçaria da parte de Atlantis. Era apenas que simplesmente todos os wyverns pararam de lançar fogo. Para que ela não pudesse usar o próprio fogo deles contra eles. Você não pode surpreender Atlantis duas vezes. Os wyverns, sem o fogo deles, eram um pouco menos mortíferos. Suas garras pontiagudas e a resistência de suas asas eram compatíveis apenas com sua inteligência feroz. Eles vieram para os rebeldes, com os dentes e as garras prontas. — Eu não gosto disso, — Titus disse com voz sombria. — Você nunca gostou de nada, querido. — Mas ela não gostou disso mais do que ele. Os wyverns avançaram de todas as direções. Os rebeldes recuaram para o centro da formação. Os wyverns empurraram mais. Os rebeldes ficaram mais próximos. De uma só vez, os wyverns na linha de frente atacaram. Os rebeldes se espalharam como um cardume de peixe atacados por corvosmarinhos. Kashkari desviou Titus e Iolanthe do caminho de um par de wyverns voando em alta velocidade. Iolanthe, que já havia se esquecido de manter Kashkari na sua vista, segurou seu tapete, o movimento rápido sacudindo seu pescoço. Mais wyverns investiam contra os rebeldes, forçando cada esquadrão de três magos a se defender. Kashkari desviou-se para a direita, para evitar ser atingido por uma asa de wyvern. Iolanthe criou uma bola de fogo de dez metros e a atirou no cavaleiro do wyvern mais

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próximo – wyverns não poderiam ser prejudicados pelo fogo comum; já cavaleiros não são tão invencíveis. O wyvern derrubou a bola de fogo com a asa. Iolanthe convocou uma bola de fogo duas vezes maior de diâmetro e a enviou sobre o cavaleiro no wyvern. A poucos metros da cabeça do cavaleiro no wyvern, seu fogo apagou como uma chama de vela em um vendaval. Ela praguejou – havia outros magos elementares nas proximidades interferindo. Pelo menos ela esperava que fossem outros magos elementares, e não o próprio Bane, um mago elementar tão poderoso como nunca se viu. Um trio de wyverns mergulhou na direção deles. Kashkari desviou. Iolanthe pendia em seu tapete, uma serie de feitiços saindo de seus lábios enquanto passava por um wyvern – tudo, infelizmente, foi desviado pelas asas do wyvern. — Libere meu tapete, Kashkari! — Titus gritou. — Leve Fairfax de volta à base. Seu amado nunca temia nada sem motivo. Mas tudo o que Iolanthe podia ver eram cavaleiros em Wyverns e rebeldes em tapetes. Uma fração de segundo depois, porém, ficou claro que os três foram separados do resto dos rebeldes e estavam cercados por wyverns. Sem pensar, ela ordenou que uma massa de areia subisse do chão do deserto. Os cavaleiros usavam óculos de proteção e os wyverns tinham pálpebras internas resistentes, mas transparentes, que tornavam sua visão insensível às partículas durante o voo. Ainda assim, areia dificultaria e obscureceria. Se nada mais, um tornado de areia os deixariam menos visíveis e expostos. Mas o chão do deserto parecia ter derretido em um mar de vidro. Nenhum grão de areia saltou no ar ao seu comando. Os wyverns avançaram. Ela pediu correntes de ar para afastá-los. No momento em que o fez, no entanto, ela sentiu a pressão das contracorrentes – os magos elementares de Atlantis a neutralizavam em todas as frentes. Ela não estava sozinha em seu fracasso. Titus e Kashkari estavam tentando todos os tipos de feitiços. Ela não sabia sobre Kashkari, mas o

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príncipe era um veterano em batalhas de dragões – pelo menos no Crucible, um livro de folclore e contos de fadas que ele e Iolanthe usavam como forma de treinamento para situações perigosas. Mas geralmente nessas histórias os dragões eram poucos em números. E se eles deveriam ser numerosos, como em A Princesa Dragão, pelo menos o protagonista tinha uma posição firme e defensiva, como um forte em ruínas, mas ainda poderoso, ao invés de voar em tapetes que não fornecem proteção nenhuma. — Eu posso desmaterializá-la até a base, ou isso é uma zona sem desmaterialização? — Titus gritou a pergunta para Kashkari. — É uma zona sem desmaterialização! Titus praguejou. Mais cedo, nessa noite, ele fez os dois saltarem para o chão de uma altura de mil metros, sem nada para parar sua queda, além dos seus poderes sobre o ar, porque não queria arriscar-se desmaterializá-la: a desmaterialização tão logo depois de uma lesão potencialmente fatal poderia matá-la. Eles estavam realmente sem opções? Uma ideia instigante começou a tomar forma. Ela sempre convocou o relâmpago de cima. Mas na natureza, o relâmpago não se originava necessariamente do céu. Às vezes, bolas de eletricidade flutuavam de qualquer maneira. Às vezes, o raio viajava do chão para as nuvens. Ela poderia? Ela apontou a varinha para baixo, sentindo-se tão tola como da primeira vez que tentou convocar o relâmpago de cima. — Relâmpago. Nada aconteceu. Um wyvern particularmente grande avançou e estendeu uma garra – ela se estirou no tapete. O tapete abaixou e a garra perdeu a sua cabeça por questão de centímetros. Mais dois wyverns seguiram o exemplo do primeiro, atacando-a de diferentes altitudes, então se ela caísse ou se levantasse, ela não seria capaz de evadir ambos. Ela convocou novamente o relâmpago. Nada.

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Novamente, Kashkari os puxou de lado, com as garras do wyvern cortando logo acima do ombro do príncipe. — Você quer que eu desmaterialize você para o chão? — Titus gritou. Ele e Kashkari a protegiam de ambos os lados. Do outro lado dos wyverns, os rebeldes estavam tentando romper esse cerco, a luz da fênix de guerra iluminando a ansiedade e o pânico em seus rostos. Os wyverns avançavam cada vez mais. A força do bater de suas asas a golpeando de todos os lados. Ela podia ver o brilho de cada escama individual no wyvern mais próximo – e a ânsia de seu cavaleiro, os ombros para frente, os dedos tocando levemente as rédeas. Ela havia dado a resposta errada à bênção do príncipe mais cedo. Ela exalou e recitou a resposta correta: — Porque eu devo testemunhar o poder dos anjos. Pois eu sou o poder, sou o controle, e sou o martelo da imortalidade. Titus pegou as duas cordas de caça restantes de sua bolsa de emergência. — Enquanto o mundo sofrer. — Ele completou a oração quando a primeira corda de caça deixou sua mão. — A esperança permanece frente ao Vazio. A corda de caça pegou a garra estendida de um wyvern e a retorceu. — Dirija-se para baixo! — Kashkari gritou quando os afastou do alcance de outro wyvern. Sua última corda de caça disparou e perdeu o wyvern completamente – a besta puxou as patas e desviou a corda de caça com a asa. Você não pode surpreender Atlantis duas vezes. Mas a corda de caça não visava o wyvern, mas sim seu cavaleiro, prendendo-se em torno dos pulsos do último e forçando o cavaleiro a mexer nas rédeas. — Atrás de você, Fairfax! — Kashkari exclamou. Ela olhou para trás, esperando ver um par de garras se abaixarem. Elas estavam, mas Kashkari estava entre o wyvern e ela, de frente para a besta. Ele virou para trás, chutou o tapete para o wyvern

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enquanto fazia isso, e com um impulso no ar, pousou atrás de Iolanthe, agarrando-a pela cintura para que ele não caísse da borda estreita em que se encontrava. — Venha, — Titus gritou. — Traga para baixo aquele martelo da imortalidade, ok? Desde que era criança, amigos e vizinhos lhe perguntavam como ela se sentia por exercer força direta sobre os elementos, sem a necessidade de palavras e encantamentos. Ela achou difícil explicar até que visitou o Museu de Artefatos Não Mágicos de Delamer em uma viagem escolar, e segurou uma bússola na mão, alinhando a pequena agulha com o norte magnético. Era isso que ela sentia quando estava no controle dos elementos, o alinhamento de sua pessoa com um poder invisível. Suas tentativas anteriores oscilaram daquela calibração perfeita. Mas desta vez ela sentiu, a diferença entre aproximação e exatidão. Ela tocou Validus duas vezes. Luz irradiou das coroas de diamantes ao longo da varinha espada. Ela apontou para baixo e olhou para Titus. — Por você. Um movimento de seu pulso e uma explosão de eletricidade branca se elevou do chão do deserto.

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Capítulo 2 Por você. O tempo diminuiu. As sílabas esticadas nos ouvidos de Titus à medida que o relâmpago produzia faísca atrás de faísca das areias escuras abaixo, uma desova de esplendor que liberou uma criatura com garras, garras que atacaram os wyverns mais próximos. Os wyverns estremeceram e caíram, suas asas relaxadas e abertas, caindo pelo ar como dragões de papel descartados de uma sacada. O silêncio pontuado pelas batidas de meia dúzia de wyverns caindo no chão. E outra eternidade de silêncio – que provavelmente era apenas uma fração de segundo – antes do rugido entrar em erupção, o guinchar de wyverns misturado com o clamor assombrado dos rebeldes. — O que foi isso? — Kashkari perguntou, com a mão esquerda levantada perto da orelha em um gesto involuntário de estupefação. Isso abalou Titus de sua própria surpresa. Ele executou um feitiço que deu à sua voz a amplitude para ecoar por quilômetros. — Contemplem. Aqui está aquele que exerce a centelha divina, amada pelos Anjos.

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Havia poucos seguidores do Anfitrião Angélico no Sahara. Ele não falava para os rebeldes, mas sim para os atlantes, que levavam sua fé a sério. — Lembre-se, — respondeu uma voz alta e clara que Titus reconheceu como pertencente à mulher General, que estivera em seus calcanhares desde o momento em que ele e Fairfax chegaram ao deserto, — Os usurpadores muitas vezes afirmam ser amados pelos Anjos. — E seu Senhor Comandante Supremo não reivindica ser favorecido de cima? — Ele retrucou. A resposta de Atlantis foi um soar de trombeta. Os cavalheiros dos Wyverns se reagruparam. Mas em vez de retomar o ataque, eles e seus corcéis deixaram a redoma. — Que a Sorte favoreça os corajosos! — Gritou um rebelde. Os mais próximos a ela gritaram: — E os corajosos fazem sua própria sorte! — Que a Sorte favoreça os corajosos! — Ela gritou de novo. Desta vez, quase todos gritaram: — E os corajosos fazem sua própria sorte! Era ruidoso e jubiloso. Os rebeldes começaram a rir; de admiração, de excitação e de drenagem da tensão. Eles tiravam sarro dos seus amigos por quão assustados eles pareciam e se vangloriavam de seu próprio destemor, apenas para serem ridicularizados, por sua vez, por mãos trêmulas e feitiços mal direcionados. No entanto, no meio desta camaradagem comemorativa, o sangue de Titus estava esfriando. Atlantis não desistia tão facilmente – ou não governaria o mundo mago. — Deixe-me adivinhar, você gosta ainda menos disso, — Fairfax disse. Ele se voltou para a garota em cuja força e caráter ele confiou seu destino. — Eu sou um livro aberto diante de você. — Se você é um livro aberto, — ela respondeu, com uma pitada de malícia em sua voz, — Então você não se parece em nada com o diário

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de sua mãe – centenas de páginas em branco, seguidas de algumas linhas que mudam a vida. Ele não pôde deixar de sorrir um pouco. — Por sinal, você nunca deixa de me surpreender. Ela aproximou seu tapete e pegou a mão dele. — Eu admito estar surpreendendo a mim mesma. Mas a parte de mim que é sua protegida – você sabe, a pessimista eterna – se pergunta se não criei ainda mais problemas para todos. — Tudo bem, — Kashkari disse. — Estamos todos aqui por problemas. Os rebeldes se acalmaram quando surgiu um rufar de tambores, seguido pela agradável voz feminina que a base usava para anúncios públicos. — Carros blindados avistados. Carros blindados, que eram impermeáveis ao poder de um raio. Titus implantou um feitiço de longa distância: cinco esquadrões, nos limites da sua visão aprimorada. Três minutos, possivelmente cinco, no máximo, antes que estivessem no topo da redoma. Amara, a comandante da base rebelde, se aproximou e entregou um novo tapete a Kashkari, que ainda estava atrás de Fairfax, segurandoa. — Algo estranho está acontecendo, — Amara disse. — Eu lembro distintamente, enquanto ainda estávamos dentro da base, de um aviso sobre lindworms chegando. Onde eles estão? Levou um momento de Titus – o aviso veio antes de todas as suas memórias suprimidas terem surgido em massa, o que produziu um curioso efeito de distância nos eventos precedentes imediatos. Mas agora que pensou nisso, lembrou-se de ouvir a mesma voz feminina anunciando ter visto carros blindados, wyverns e lindworms quando ele e Fairfax ainda acreditavam que poderiam se afastar de Atlantis. — Vamos pensar nisso, — Kashkari disse, — Quando os wyverns entraram na redoma, lá estavam os lindworms na parte de trás – e circundados por um estranho tipo de carros blindados, muito menores do que qualquer um que eu já vi.

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Lindworms tinham uma visão terrível. Na natureza, eles formavam relações simbióticas com imitações de harpias, que os guiavam para a pilhagem. Talvez os carros blindados muito menores tenham desempenhado o papel de simbióticos, reunindo os carros blindados para os propósitos de Atlantis. — Você acha que os lindworms e os pequenos carros blindados poderiam ter sido despachados para interceptar nossos aliados? — Fairfax perguntou. — Esse não seria um bom uso dos lindworms, — Amara disse. — Eu esperava que tivessem sido trazidos porque Atlantis queria fazer um ataque direto à própria base – de perto, lindworms são aterrorizantes. Mas para perseguições e tal, eles são tão lentos que dificilmente são úteis. — Os carros blindados que veem para nós agora, eles são os mesmos que você viu anteriormente? — Fairfax perguntou a Kashkari. — Não. Eles são do tipo habitual. Titus trocou um olhar com Fairfax. Atlantis nunca fazia nada sem uma boa razão. Qual era então a razão pela qual os lindworms e os pequenos carros que acompanhavam não estarem mais no campo de batalha? — Deveríamos... Fairfax parou. Ele também prestou atenção: centenas de objetos atravessavam o ar. Seu rosto se iluminou. — Lanças enfeitiçadas! Cinco ou seis horas atrás, os cavaleiros dos Wyvern chegaram bem perto de Titus e Fairfax – e foram afugentados por uma emboscada de antigas lanças enfeitiçadas. Titus ficara confuso sobre a identidade dos magos que usaram essas armas, até que recuperou a memória e percebeu que eram forças do Domínio, e as lanças eram guardadas no Museu Memorial de Titus, o Grande, para a reconstituição de batalhas históricas. Do lado sul da redoma, surgiram as lanças enfeitiçadas, sibilando como uma tempestade de flechas, esbelta e letal. Titus fechou os dedos com mais força sobre os de Fairfax e prendeu a respiração.

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Uma enorme rede surgiu e pegou as armas enfeitiçadas, como se pescassem um cardume de peixes, nadando diretamente em uma armadilha. Amara grunhiu de frustração – era uma lembrança de que o que parecia bom demais para ser verdade geralmente era. — As lanças teriam levantado o cerco, mesmo que alcançassem a redoma? — Fairfax perguntou com uma careta. — Pensei que objetos inanimados não tinham efeitos em tal magia. — Não em circunstâncias normais, — Titus disse, — Mas há maneiras de contornar isso. Se houvesse alguma hábil magia de sangue envolvida. E se a gota de sangue na ponta da lança fosse de um mago ligado por sangue a alguém embaixo da redoma. — De um jeito ou de outro, esse cerco vai terminar, — Amara disse. — Mohandas viu o futuro, e as visões nunca deram errado. Quando descobriram que estavam presos sob uma redoma, Amara havia insinuado que os rebeldes tomariam as medidas necessárias para manter Fairfax longe das mãos de Atlantis – inclusive matando-a eles mesmo, se fosse necessário. E Kashkari, no que equivalia a uma explosão, disse a Amara, em termos inequívocos, que um sonho profético o avisou que Fairfax não apenas sobreviveria nesta noite, mas se aventuraria até a própria Atlantis, a fim de derrotar Bane em seu covil. Exceto que Kashkari estava mentindo, já que posteriormente ele admitiu isso a Titus e Fairfax, fora do alcance de Amara. Kashkari, o melhor mentiroso que Titus já conheceu – e Titus era um de classe mundial – assentiu com tênue gravidade. — Obrigado, Durga Devi. Durga Devi era o nome de guerra de Amara. Titus também se dirigiu a ela assim, mas para ele era menos um termo de respeito, senão de distância: a mulher estava disposta a matar Fairfax para mantê-la fora do alcance de Bane; ele nunca a respeitaria sem vários níveis de suspeita.

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Do lado de fora da redoma, outra rede surgiu para pegar um monte de... Titus havia pensado que fossem somente lanças enfeitiçadas, mas agora parecia que havia longas cordas de caça misturadas. Por quê? Para que as lanças enfeitiçadas parecessem mais numerosas? Ou havia algum outro propósito? A expressão de Amara mudou. Ela colocou a mão um bolso, tirou um caderno e abriu. — É o meu irmão? — Kashkari perguntou imediatamente. — Você sabe que aqueles que vão para ataques não têm permissão para levar cadernos de duas vias. — Ela se virou para Titus. — São seus aliados, Sua Alteza, solicitando que a senhorita Seabourne esteja pronta para convocar duas dúzias de relâmpagos para o próximo esquadrão de carros blindados que se aproxima. — Por que meus aliados estão contatando você? — Mas os carros blindados são à prova de relâmpagos, — Fairfax disse na mesma hora. — Eles disseram para lhe dizer, certus amicus temporibus incertis, — Amara disse. Para a pergunta de Fairfax, ela encolheu os ombros – não havia resposta para isso. Certus amicus in temporibus incertis – certo amigo em tempos incertos – era uma das frases do código que Titus e Dalbert, seu valete e espião pessoal, combinaram. Uma forma de comunicação com essa frase sinalizava que se originou de alguém que Dalbert considerava confiável. A preferência de Titus era confiar no menor número possível de pessoas.

E

nunca realizar

nenhuma

ação

sem

ter investigado

minuciosamente as possíveis consequências. Mas, no momento, ele não podia se dar ao luxo disso. — Você consegue, — ele disse à Fairfax. Eles criaram feitiços ainda mais poderosos. Os carros blindados, ainda a vários quilômetros, cortaram rapidamente durante a noite, quase invisíveis, exceto pelo suave brilho das armaduras, um reflexo iluminado pela fênix de guerra. — Quando? — Fairfax perguntou.

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— Agora, — Amara disse. — O lote inteiro, se quiser. Fairfax apontou a varinha para os carros blindados. O céu se contorceu com riscos azuis esbranquiçados, os raios caindo como se os deuses estivessem ébrios. Vinte e quatro raios em dois segundos, seguidos por um longo momento durante o qual ninguém falou ou respirou. Então todos os carros blindados caíram, como se fossem pedregulhos se rendendo ao poder da gravidade. Um silêncio ensurdecedor: medo e admiração eram semelhantes na sua capacidade para produzir um discurso. Até Amara, que deveria saber que houve truques envolvidos, olhou com admiração para Fairfax. Esta última foi a única a parecer mais confusa do que deslumbrada. — Mas isso não deveria ter sido possível. Eles são à prova de raios. Titus sinalizou que ela segurasse suas perguntas. Ele levantou a voz para voltar a falar com o feitiço amplificador. — Alguém mais duvida do poder da centelha divina? Não fiquem mais no caminho da amada pelos Anjos, e vocês não precisarão ter medo de sua ira. Então, no volume normal, apenas para os ouvidos dela, — Eu não poderia deixar passar um momento tão perfeito para propaganda. — Claro que não. Mas você sabe o que está acontecendo? — Talvez. A chegada de mais um conjunto de lanças enfeitiçadas e cordas de caça, chiando e sibilando, despertou os atlantes do seu estupor. Outra rede surgiu quando cavaleiros nos wyvern perseguiram os poucos objetos soltos que não foram capturados. — Eu te digo o que está acontecendo mais tarde. Agora, eu preciso que você crie a maior distração possível. Mantenha os olhos de todos bem alto, se puder. Eu farei o mesmo. — Ele apontou sua varinha para o céu. — Meum insigne esto praesidium meum1!

1 Meu sinal seja minha salvaguarda.

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A fênix de guerra havia sido até então um sinal estático. Agora, devagar, majestosamente, ela bateu suas enormes asas e desceu para uma formação de cavaleiros que se encontrava do lado de fora da redoma. Os wyverns lançaram fogo na fênix de guerra; mas as chamas, como o relâmpago, simplesmente passaram por ela. — Confie no Mestre do Domínio para sempre ter algo na manga, — Kashkari disse, sacudindo a cabeça. Diante da abordagem inflexível da fênix de guerra, os wyverns se dispersaram. Um cavaleiro do Wyvern, que se afastou muito lentamente do caminho, gritou quando a ponta da asa esquerda da fênix de guerra escovou seu ombro. A fênix de guerra não causava danos reais, mas os inimigos que entraram em contato com ela disseram ter experimentado uma crise de dor breve e intensa. — Aqui está a minha distração, — Fairfax disse. Uma misteriosa bola de relâmpagos azuis se lançou sobre um esquadrão de wyverns, fazendo com que dispersassem. — Envie um desses na fênix de guerra, — Titus disse. Ela enviou. A fênix de guerra brilhava com o dobro da intensidade e emitia um clamor que era selvagem e cru, porém estranhamente vivo. — Excelente. Continue fazendo isso. A fênix de guerra continuou seu progresso majestoso, enquanto meia dúzia de esferas de energia elétrica a adornava, mantendo as forças de Atlantis espalhadas e desordenadas. À medida que mais um grupo de lanças enfeitiçadas e cordas de caça chegaram, Titus dirigiu a fênix de guerra para o leste. — Eu acho seguro dizer que nossos aliados têm um pouco de experiência com Atlantis, — ele explicou. — Eles sabiam que Atlantis não poderia ser surpreendida uma segunda vez, e estaria pronta para as lanças enfeitiçadas. — Então enviaram as lanças enfeitiçadas em lotes, para ver com que tipo de defesa eles estariam lidando, — Kashkari disse.

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— Exatamente. Eu não ficaria surpreso ao saber que os aglomerados chegaram exatamente noventa graus de alcance, para prender a rede no chão com todas as cordas de caça. Kashkari bateu um dedo contra o queixo. — Será que devemos esperar que as lanças e as cordas venham em grupos menores – dois e três, para testar se a rede está bem e verdadeiramente presa? Como se fosse uma sugestão, um par de lanças enfeitiçadas chegou. Os atlantes gritaram ao perceberem que a rede não podia mais subir para pegar as lanças, pois estava se contorcendo na areia, seguradas pelas cordas de caça. Eles evitaram as lanças por pouco, graças aos dois wyverns particularmente ágeis. Os wyverns, com as lanças nas garras, estavam sendo direcionados para se afastar da redoma. Mas o impulso das lanças ainda era forte, e os wyverns batiam suas asas como se voassem contra um ciclone. — Diga aos seus soldados com a visão mais aguçada para olhar no chão, — Titus disse a Amara. — Era assim que eu enviaria a única lança enfeitiçada que conta. E diga que fiquem calados quando a virem. — Entendido. — Ela voou. — Quando avistarmos a lança que estamos procurando, aquela que carrega o feitiço de sangue que atuaria como um representante para o toque humano, — ele disse. Para Kashkari, — Eu posicionarei Fairfax para garantir mais efetividade. Você pode arranjar alguma distração adicional por parte dos rebeldes? Kashkari assentiu. — Deixe isso comigo. Titus pegou a mão de Fairfax. — E você abaterá qualquer coisa entre a lança e a redoma. — Seu desejo é uma ordem, senhor, — ela disse com astúcia. Ele a puxou para um rápido beijo. — Bom. Diga isso a tudo o que eu quiser. Ela riu. Mesmo no meio do caos, o som ainda fazia o seu coração levantar.

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Amara voltou. — Um dos nossos escoteiros viu algo que se aproxima pelo Nordeste. Titus enviou imediatamente a fênix de guerra para o sudoeste da redoma, para que o mínimo de luz possível caísse sobre aquele algo. Ele e Fairfax entraram em um conjunto de rebeldes e saíram da outra extremidade com as cabeças cobertas por keffiyehs. Atrás deles, Kashkari montou um espetáculo: uma dúzia de tapetes flutuava de ponta a ponta no ar, e vários rebeldes passavam por toda a extensão deste palco improvisado. — Estou tentada a negligenciar minha tarefa e assistir isso em vez disso, — Fairfax disse. — E minha vida está na linha aqui. Ela e Titus assumiram o lugar do par de soldados originalmente estacionados no ponto noroeste da redoma, e cada um aplicou um feitiço de visão de ângulo, de modo que, apesar de seus rostos estarem inclinados, eles assistissem o chão do deserto. Por cima de uma duna, a cerca de um quilômetro de distância, uma lança enfeitiçada deslizava em direção à redoma. Não prosseguia lentamente, precisamente, mas também não se movia em nada perto da velocidade máxima. Titus estava com esse ritmo relativamente tranquilo até que um soldado gritou: — Mais carros blindados a caminho! Mas eles também tinham problemas em locais mais próximos: vários esquadrões de cavaleiros em wyvern suspensos em seu voo baixo, o olhar no chão. Titus praguejou. Ele ergueu a voz. — Meus estimados amigos da Atlantis, especialmente aqueles que conheceram pessoalmente seu Senhor Comandante Supremo, vocês já se perguntaram por que ele não parece envelhecer? Por que, na verdade, ele às vezes parece ficar dez anos mais jovem durante a noite? Mesmo na melhor das estimativas, ele deveria ser um homem bem dentro de seus setenta anos. Como ele não parece ter um dia a mais que quarenta? Os cavaleiros do Wyvern, esquecendo-se de sua tarefa, viraram bruscamente para a redoma.

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— É porque ele está usando o corpo de um jovem, que tem uma semelhança impressionante com seu corpo original, antes de se atirar nas horríveis profundezas da magia sacrificial. Esse corpo original nunca pode ser visto em público, pois faltam os principais membros, talvez os olhos e as orelhas; tal é o custo da magia sacrificial. Em todos os longos anos de seu reinado, ele fez questão de não divulgar publicamente sua imagem. A razão oficial é que ele nunca desejou incentivar um culto da personalidade. Mas, em particular, se a maior parte do mundo mago não sabe como ele é, então não se perguntariam por que homens que se parecem com ele continuam desaparecendo. Pensem nisso na próxima vez em que forem convidados a arriscar suas vidas por ele. Pensem nisso agora. Por que ele quer a minha amiga, a jovem maga elementar? É porque magos elementares poderosos são os sacrifícios mais eficazes e revigoram sua força vital. É isso que vocês querem fazer? Lutar ao máximo de suas capacidades para que ele possa cometer atos desprezados pelos Anjos? Infelizmente, nem todos os cavaleiros wyvern foram arrebatados por seu discurso. Um gritou alto soou para alertar seus colegas de que uma lança enfeitiçada estava no chão, e apenas a quinze minutos da redoma. Em vez de atacar aqueles que descobriram a lança enfeitiçada e agora mergulhavam em direção a ela, Fairfax criou uma defesa muito mais elegante. Com base no relâmpago convocado, ela construiu um túnel de eletricidade através do qual a lança passou sem ser atacada. Duzentos metros. Cem metros. A quarenta e cinco metros. A lança chegou cada vez mais perto. O coração de Titus subiu na garganta. A ponta da lança atingiu a redoma; a redoma inteira estremeceu. O par de soldados mais próximos gritou em júbilo e avançou, apenas para serem parados por uma barreira que ainda estava no lugar.

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Capítulo 3 — A redoma não deveria ter desintegrado? — Fairfax gritou. Deveria, se Titus estivesse certo sobre a magia do sangue ter sido aplicada na lança. Claro. — Sangue. Devo colocar uma gota de sangue na redoma! — Ele pegou a navalha do bolso enquanto direcionava o tapete para frente. Ela alcançou a redoma ao mesmo tempo em que ele e colocou a mão sobre ela também. Ele sentiu uma vibração na palma da mão, e depois nada além de ar. Imediatamente, ele jogou um escudo para ela. Ela fez o mesmo por ele – e não muito tempo depois, os cavalheiros wyvern apontaram uma enxurrada de feitiços para eles. — Você deveria colocar escudos em você, — ele a admoestou enquanto voavam mais alto. — Quantas vezes eu disse para não se incomodar comigo? — O quê? E assumir que os escudos que você colocou em mim não são fortes o suficiente? Além disso... — ela se inclinou e golpeou na cabeça dele com os nódulos, — Você esqueceu que não há um Escolhido? Você não é menos importante do que eu nisto – ou qualquer outra coisa.

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— Eu não me esqueci disso. — Ele pegou o pulso e beijou o dorso da mão dela. — Eu não falo pela missão, mas por mim. Ela suspirou. — E o que eu faria sem você? Por uma fração de segundo, sua morte profetizada pendia entre eles, uma mortalha que marcava o fim de tudo. No momento seguinte, ela se virou e soltou uma parede de fogo. O fogo comum não podia machucar os dragões. Os cavaleiros nos wyverns, no entanto, ainda esquivaram instintivamente. Este foi um bom movimento tático de sua parte, mas pouco sólido estrategicamente: agora os atlantes novamente conheciam sua localização exata. Mas, se alguma coisa, os cavaleiros nos Wyverns recuaram, as lembranças de sua proeza com o relâmpago ainda muito frescas. — Não deixem ninguém escapar! — Veio a clara voz da General. — O reforço está quase aqui! Os últimos esquadrões de carros blindados eram agora visíveis a olho nu. Kashkari parou silenciosamente ao lado deles. — Os carros blindados estão muito altos – geralmente costumam usar a altura deles para dispensar a chuva da morte. — Os nossos aliados podem derrubá-los? — Fairfax perguntou. — Ficarei feliz em fornecer ataques de relâmpagos novamente. Kashkari balançou a cabeça. — Amara já perguntou. Eles disseram que um esquadrão de carros blindados era o máximo que eles poderiam derrubar em um curto período de tempo. É melhor recuarmos até a base. — Nós devemos ficar bem com nossas máscaras faciais, não deveríamos? — Fairfax perguntou enquanto se dirigiam para a grande escarpa no Leste. O campo rebelde foi esculpido dentro da escarpa, e o único acesso – que Titus conhecia, pelo menos – era uma fissura vertical que corria pela frente da cordilheira. — As máscaras faciais seriam suficientes contra a chuva de morte da primeira geração. Mas ultimamente ouvimos relatos que versões muito mais nocivas foram desenvolvidas.

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Fairfax olhou por cima do ombro. — Olhe para os cavaleiros wyvern. Por que não estão nos perseguindo? À medida que os rebeldes fluíam em direção às falésias, os cavaleiros nos wyverns, que se reorganizaram em uma ilusão de ordem e formação, pareciam se contentar em observar. — De fato, por quê? — Kashkari murmurou, franzindo a testa. — É possível não irmos tão fundo na base? — Titus perguntou a Kashkari. — Obviamente, não podemos fugir agora, mas se entrarmos e formos cercados, pode ser difícil conseguir sair novamente. Kashkari assentiu. Ele mais uma vez subordinou seus tapetes ao dele. Dentro da fissura, eles não continuaram torcendo e virando pela abertura estreita como fizeram na primeira vez, mas em vez disso, tomaram um túnel lateral que Titus teria passado sem ver – todo o caminho era escuro – e voaram para cima, para o que Kashkari chamou de um posto observacional, entrando através de um alçapão na parte inferior. Assim que desceram de seus tapetes, Titus agarrou Fairfax para um forte abraço. Ela ainda estava segura. Todos estavam seguros. Todo esse momento deveria ser saboreado, sua gratidão fervorosa oferecida para os Anjos. — Você está bem? Segurando-se? Ela recuou e o examinou. — Estou bem. Você, por outro lado, está apenas costelas. Você estava comendo alguma coisa? — O suficiente, — ele disse. Na maioria das vezes, ele provavelmente comeu um pouco menos do que deveria: a comida era uma dessas coisas que ele se ressentia por tirar tempo de tudo o que precisava fazer. Era mais difícil julgar quando toda a sua dieta consistia em barras de comida que tinham sabor de ar solidificado. Quanto disso foi suficiente? Ela suspirou, balançando a cabeça. Então se virou para Kashkari. — E você, meu velho? Pareceu a Titus que Kashkari os observava com uma expressão melancólica no rosto. Provavelmente havia muito pouco que Kashkari

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não daria para estar em sua posição, amar abertamente e sem complicações. Titus não conseguia imaginar o tipo de dilema em que Kashkari se encontrava; estar apaixonado por uma mulher a vida inteira, e encontrá-la muito, muito tarde, quando já era noiva de seu irmão. — Estou bem, — Kashkari disse, se virando. — Deixe-me mostrar como abrir as portas de observação. Eles ficaram apertados perto das longas portas de observação retangulares enquanto os carros blindados, escuros e silenciosos, passavam acima. Os cavaleiros dos wyverns levantaram as mãos em saudação. Titus entrecerrou os olhos, mas não conseguiu ver se alguma coisa foi dispensada. — É isso? — Fairfax perguntou depois de um minuto ou mais de silêncio. — Isso era tudo o que precisavam fazer, — Titus disse. — Pelo que lembro, a chuva da morte é altamente concentrada. É inofensiva quando está em forma líquida, mas uma vez que atinge o solo e evapora... — Por que os cavaleiros dos wyvern não evacuaram? — Os próprios Wyverns não são suscetíveis à chuva da morte. E os Atlantes geralmente recebem antídotos antes de entrarem na batalha. Fairfax virou para Kashkari. — Este posto de observação é hermético? — Toda a base é, uma vez que todas as entradas foram seladas. — Como saberemos quando será seguro o suficiente para se aventurar a sair de novo? — Meus colegas em outros postos de observação tomarão amostras de ar a cada meia hora para testar toxicidade. — Então podemos ficar aqui por algum tempo. — Nós poderíamos. — Então por que vocês não descansam? Você provavelmente está com sono, já que viajou tanto até agora. E você... — sua mão se instalou por um momento no cotovelo de Titus, — Eu sei que você quase não dormiu desde que chegamos ao deserto.

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Titus não queria dormir – ele iria para o seu eterno descanso cedo demais, e não queria perder nenhum momento permanecendo em estado de inconsciência. Ele preferiria passar suas horas e dias com os braços ao redor dela, bem acordado, acumulando memórias para o Além. Essa deveria ser uma opção. — Estive dormindo por dias e acordei não muito tempo antes de você ter vindo até nós, Kashkari. Então, deixe-me fazer o primeiro turno. Na verdade, deixe-me também convocar um pouco de água. Vocês parecem desidratados – terminem o que resta de seus odres de água e eu vou recarregá-los. Enquanto uma esfera de água girava e crescia no meio do posto de observação, ela limpou e colocou bandagens nas costas de Titus, que se feriram quando passaram pelo Crucible da última vez. Estava melhorando, mas ela era generosa com o analgésico atual, e ele era igualmente abundante com as pílulas para alívio da dor. Ela resmungou enquanto trabalhava, murmurando críticas suaves sobre o pouco que ele cuidava de si mesmo. Seu toque era eficiente, quase impessoal, enquanto cuidava da ferida. Mas quando terminou, ela apertou a mão contra o braço dele. E ele realmente desejou que estivessem sozinhos. Kashkari estava protegendo-os contra perigos conhecidos e desconhecidos, mas ele daria ao homem o seu castelo nas Montanhas Labyrinthine se ele fosse a base por quinze minutos. Se ele ficasse longe por meia hora, Titus abriria o cofre da Coroa e Kashkari poderia ficar com algum dos tesouros dele. Como se ouvisse os pensamentos de Titus, Kashkari, que já havia se esticado em seu tapete, se levantou novamente para olhar de um ponto de observação, de costas para Titus e Fairfax. Quase imediatamente seus dedos subiram o braço até os ombros. Aí a mão dela se abriu, como se quisesse tocar o máximo possível dele. Suas respirações vinham mais rapidamente.

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Com a outra mão, ela rastreou sua espinha, vértebra por vértebra. Seus dedos afundaram na pilha do tapete, tentando segurar algo. E então ela se moveu – um som abafado no tapete – e beijou-o na base do pescoço. Se ela o tivesse atingido com um de seus relâmpagos, a sensação não poderia ter sido mais elétrica. Ele mal conseguiu conter um suspiro. E certamente ela deve ter sentido o tremor sob sua pele. Faça isso novamente. Por favor, faça novamente. — Eu não sei o que está acontecendo, — Kashkari disse. — Mas vocês precisam vir dar uma olhada nisso. Se Titus fosse capaz de convocar relâmpagos, ele iria ferir todos os Atlantes em um raio de cento e cinquenta quilômetros nesse instante. E Bane, ele prazerosamente estrangularia com as próprias mãos, pois seus agentes estúpidos nunca sabiam quando deixar Titus sozinho. Ela teve que puxá-lo para um lado, então ele não entraria na esfera da água. Ele meio que a fulminou pelo riso nos seus olhos, por não sofrer fisicamente do desejo como ele. Ela jogou um braço sobre os ombros dele e o beijou na bochecha. Ele suspirou, sua frustração derrotada pela doçura e o simples prazer da companhia dela. Foi com muita relutância que ele afastou os olhos dela para olhar pelo posto de observação. Imediatamente a leveza em seu coração se dissipou. Os wyverns estavam voando desorientados, quase batendo um no outro. Os cavaleiros, que há um minuto estavam retos e alertas em suas selas de montar, agora estavam caindo. Fairfax olhou para Kashkari. — Seus magos fizeram isso? Kashkari balançou a cabeça. — Nossos magos estão muito ocupados selando as entradas e assumindo posições defensivas. Fairfax virou para Titus. — Nossos aliados? Titus só poderia encolher os ombros. Ele não tinha ideia do que estava acontecendo. Kashkari tirou seu caderno de duas vias e escreveu algumas palavras com a caneta. Ele olhou para cima depois de esperar alguns segundos. — Amara diz que não, ela já perguntou para eles.

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— Que a Sorte me proteja, — Fairfax exclamou. — Você vê o que eu vejo? Titus virou seu rosto para o posto de observação novamente e respirou fundo. Os wyverns estavam derrubando os cavaleiros e deixando-os cair. Uma pequena informação sobre os dragões, lida há muito tempo e praticamente esquecida, surgiu em sua mente. — Os cavaleiros estão mortos. Wyverns não podem suportar cadáveres – é por isso que estão ajudando uns aos outros a se livrar dos cavaleiros. O alçapão se abriu. Todos pularam. Mas era só Amara, com os olhos arregalados, a mão apertada em torno de sua varinha. — Alguém poderia me dizer o que está acontecendo? A pergunta era para todos os três, mas seus olhos estavam na convocadora de relâmpagos, ela, dos poderes extraordinários. — Acho que posso arriscar um palpite, — disse a convocadora de relâmpagos, sua voz baixa e cansada, o riso em seus olhos desaparecido. No momento em que ela falou, Titus entendeu a conclusão que ela havia chegado – e isso o arrepiou da cabeça aos pés. Kashkari colocou uma mão contra a parede, como se também estivesse inseguro. — Bane fez isso, — foi a explicação inexorável de Fairfax. Amara recuou. — Por quê? Por que ele mataria suas próprias tropas leais? — Porque eles ouviram Sua Alteza acusá-lo de magia sacrificial. Não sei qual tipo de reputação o príncipe tem entre os atlantes, mas ele ainda é o Mestre do Domínio, e fez acusações na cara de Bane, por assim dizer. A outra mão de Amara também se apertou. — Mas um cavaleiro de wyvern experiente é muito valioso – treinar um leva anos. — Você já ouviu falar que Bane pode ressuscitar? — Fairfax perguntou. — Há alguns rumores. — A mulher Atlante em minha residência nunca ouviu falar, e ela viveu longe de Atlantis por vários anos. Admito que ela provavelmente

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tenha sempre precisado se preocupar em não se misturar com as pessoas erradas e perder sua tarefa, mas mesmo assim isso não diz nada sobre o tipo de controle de informação que Bane exerce sobre suas próprias pessoas?

E

não

é

necessário

que

eles

acreditem

no

príncipe

completamente. Uma afirmação melodramática como essa seria repetida, por mais veladamente, para familiares, amigos, colegas em outros regimentos, e talvez para estranhos quando alguém beber um pouco demais. Agora multiplique essa disseminação por centenas. E note que são apenas os cavaleiros dos wyverns que foram eliminados – eles ouviram o que o príncipe disse. Os pilotos dentro dos pequenos carros blindados puxados pelos lindworms teriam usado capacetes especiais que só os deixariam ouvir instruções de seus comandantes de batalha – eles foram separados e poupados. Amara esfregou uma mão em seu rosto. — Se o que você deduziu é verdadeiro – eu fiz parte da resistência desde que eu era criança, e esta é a primeira vez que já tive medo. — Meu tutor me disse uma vez: Às vezes, o medo é a única resposta apropriada, — Fairfax disse gentilmente. Amara balançou a cabeça e parecia prestes a dizer algo quando parou e sentiu o bolso. — Com licença. Ela tirou o caderno de duas vias. — É uma mensagem de uma patrulha – ela foi pega a cerca de quinze quilômetros da base quando a redoma caiu. Quando o segundo lote de carros blindados passou por agora, ela decidiu segui-los o mais que pôde. E ela escreve que eles acabaram de cair no deserto. O posto de observação ficou totalmente silencioso enquanto ela escrevia uma resposta. Titus podia ouvi-la respirar e olhou para a página, esperando a resposta. Ela exalou com cuidado enquanto levantava os olhos. — Seus aliados dizem que não têm nada a ver com isso. Bane novamente. Amara voltou-se para Fairfax. — Por que eles também?

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— Porque se soubessem que seus compatriotas morreram na sequência da sua fuga, eles também teriam suspeitas. — Fairfax agarrou Titus pelo braço. — E sabe de uma coisa? Bane vai querer colocar a culpa das mortes em outra coisa. Alguém. Então ele enviará outros para vir e testemunhar o massacre. Eles precisavam sair o mais rápido possível. — O ar está sendo analisado agora. Se for seguro viajar com nossas máscaras de respiração, eu pedirei uma evacuação geral, — Amara disse. — Sua Alteza, Senhorita Seabourne, vocês virão conosco ou preferirão buscar seu próprio caminho? Fairfax olhou para Titus. — Vamos buscar o nosso próprio caminho. Como sempre fizeram. — Além disso, você estará mais segura sem nós, Durga Devi, — Fairfax acrescentou. — Eu irei com eles, — Kashkari disse. — Você sonhou com isso? — Amara perguntou solenemente. Kashkari havia dito à Fairfax uma vez que seu povo não considerava visões do futuro como definitivas. Amara, por outro lado, parecia levar seus sonhos proféticos com extrema seriedade. — Não, — Kashkari respondeu. — Mas não preciso de sonhos para me dizer qual é o meu destino. Peça a Vasudev desculpas por não termos nos encontrado. — Sim. E cuidarei dele para você – e confio que nos encontraremos de novo algum dia. — Cuide-se também. A voz de Kashkari estava estranhamente rachada. Com um pouco de choque, Titus percebeu que Kashkari mal se segurava – havia todas as chances de ele não ver nem seu irmão, nem a mulher amada de novo. Nunca. Amara tomou seu rosto nas mãos e beijou-o com ternura na testa. — Fique seguro e volte para nós, meu irmão.

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Capítulo 4 Voaram silenciosos e rápidos, dirigindo-se para um horizonte oriental que começava a ser iluminado por uma suave faixa de luz dourada, desvanecendo para um céu ainda estrelado e escuro. Iolanthe levou algum tempo para perceber que estava tremendo. Eles se apressaram, selecionando tapetes descansados e outras ferramentas e suprimentos que eles poderiam precisar. E então veio a ansiedade, olhando para trás – e em toda parte – a cada poucos segundos para ter certeza que não foram vistos. Por toda parte, no entanto, a imagem dos wyverns derrubando os cavaleiros mortos uns dos outros piscou repetidamente em sua mente. Ela esteve calma o suficiente enquanto descrevia os motivos loucos de Bane, mas agora, com os perigos imediatos desaparecendo, a raiva mantida em baixa fermentação ameaçava ferver. Sua experiência com Atlantis, embora angustiante, estava em um nível extremamente pessoal: o aprisionamento do Mestre Haywood, a Inquisição de Titus, a morte de Wintervale, a implacável busca de Atlantis por ela no Sahara – para não mencionar o conhecimento horripilante de que sua captura a levaria a ser usada em uma magia sacrificial para

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prolongar a vida de Bane. Tudo isso às vezes a fazia sentir como se ela, sua família, seus amigos e Bane fossem os únicos envolvidos nessa luta. Embora soubesse o contrário. Contudo, a visão de todos os atlantes mortos provocou o ponto. Centenas de soldados que serviram a Bane com lealdade e valentia foram mortos porque ele não podia permitir que nenhum fragmento da verdade manchasse sua reputação em casa. Porque se eles soubessem a verdade sobre ele, eles – ou pelo menos alguns deles – arriscariam suas próprias vidas para acabar com a farsa que era seu domínio. Titus trouxe o seu tapete para mais perto. — Você está bem? — Sempre foi sobre ele, não é, esse império que ele construiu? — Ela disse, ainda fervendo. — Ele queria controlar o mundo mago, não para a maior glória de Atlantis ou a honra dos Atlantes, mas apenas para que ele pudesse colocar as mãos imediatamente no próximo grande mago elementar. — Oh, eu não duvido que ele também aproveite tremendamente o poder, — Titus disse. — Mas eu concordo que no final ele foi impulsionado pelo medo, por sua falta de vontade de deixar este mundo por causa do que poderia esperá-lo no próximo. Ela olhou para ele. Ele também foi conduzido pelo medo de morrer. E ele também às vezes sacrificou sua integridade pessoal a fim de alcançar seu objetivo. No início da parceria deles, um relacionamento até então repleto de desconfiança, ela havia exigido com raiva saber qual era a diferença entre Atlantis e ele, quando ambos queriam segurá-la contra sua vontade. Mas sob o Mestre do Domínio, às vezes de uma polidez sarcástica, e com um vestígio de crueldade, havia um menino de consciência ativa e decência fundamental. Um menino que, de certa forma, julgava-se também severamente por suas imperfeições. Ao estudá-lo, seu desespero começou a desaparecer. Eles não eram espectadores impotentes. Eles enfrentariam esse tirano e, se a Sorte sorrisse para eles, o tirariam do poder.

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Além disso, era quase impossível não se encher de esperança quando olhava para o seu amado. Eles ainda estavam vivos, ainda livres, e ainda juntos. Ele se inclinou contra o lado direito do tapete, seus ombros caíram para frente – ele deveria estar insuportavelmente cansado, tendo fugido desde a chegada ao deserto, transportando-a na maior parte do tempo inconsciente ao seu lado, sem mesmo saber quem ela era. Mas ela sabia que se sugerisse que ele precisava descansar, ele descartaria. Felizmente para ele, ela não estava acima de bancar a donzela em perigo. — Odeio admitir isso, mas estou ficando um pouco cansada. Podemos parar por um minuto? — Claro, — ele disse imediatamente. — Deixe-me encontrar um bom lugar. *** Um

lugar

adequado,

no

entanto,

não

foi

imediatamente

encontrado. Havia quase luz suficiente para ver, e a parte do deserto que atravessavam era plana e uniforme. Enquanto examinavam cuidadosamente, Iolanthe perguntou a Kashkari: — Por que nossos aliados se contataram com Durga Devi durante a batalha? Todos se conhecem? — Você tirou a pergunta da minha língua, — Titus disse. — Ela conheceu após invadir algumas festas, com boas negociações com poderosos do Domínio, — Kashkari respondeu. — Lembra quando me atrasei para voltar à escola no início do semestre? As temporadas no Colégio Eton eram referidas como semestres. Por razões que só faziam sentido aos não magos, havia três semestres a cada ano: semestre da Páscoa, que começava em janeiro e terminava antes da Páscoa; semestre de verão, a época entre a Páscoa e as férias de verão; e semestre de São Miguel, cobrindo quase todo o outono. O príncipe trouxe Iolanthe à Eton no começo do semestre de verão. Eles tornaram a se separar durante as férias de verão, mas conseguiram se reunir na escola no início do semestre de São Miguel. Foi

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quando eles foram informados de que o navio a vapor de Kashkari havia enfrentado mares agitados na rota e sua chegada foi adiada. Titus e Iolanthe aceitaram a notícia normalmente, e nem suspeitaram que Kashkari pudesse não ser o menino indiano não mago que ele aparentava ser. — Eu lembro, — ela disse. Ele não voltou até a fatídica festa na casa na costa do Mar do Norte. — Posteriormente, você disse a Titus que estava atrasado porque você e seu irmão estavam ocupados informando a tantos magos quanto possível que Madame Pierredure estava morta há muito tempo, e que qualquer notícia sobre sua saída da aposentadoria para liderar um novo movimento de resistência era Atlantis usando-a para capturar aqueles que faziam parte da rebelião. — E, enquanto fazíamos isso, — Kashkari disse, — Amara estava pensando em um nível mais estratégico. Não somos páreo para Atlantis, nem no tamanho de nossa força, nem na sofisticação de nosso equipamento. O plano foi o intercâmbio de treinamento e conhecimento com outras bases rebeldes, mas com as armadilhas de Atlantis capturando tantos rebeldes, ela decidiu investigar uma oferta de ajuda que recebeu de fonte misteriosa, a qual afirmou ser capaz de ter acesso aos recursos do maior reino mago. Era um grande risco, mas Amara nunca teve medo de riscos. Uma reunião foi organizada com um contato em Casablanca. Ela então pediu ao contato que provasse que ele realmente tinha acesso a todos os equipamentos e munições que afirmou ter. Ela foi levada em uma viagem que durou quase doze horas, e percebeu que uma grande parte dela envolveu uma viagem marítima em um navio lançado a partir de uma doca seca – mesmo com os olhos vendados e com as orelhas tampadas, ela ainda podia sentir o cheiro do oceano e sentir o bater das ondas. Quando foi autorizada a ver novamente, ela se encontrou em uma enorme caverna lotada com várias máquinas de guerra. Amara é uma cínica, então perguntou como podia ter certeza de que ela não estava olhando para o estoque de Atlantis. Nesse ponto ela teve os olhos vendados novamente. Mas desta vez, ela só foi conduzida ao redor por cerca de trinta minutos. Quando a venda dos

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olhos foi retirada, ela ficou de pé em uma encosta fortemente arborizada. E através das árvores, ela vislumbrou a Mão Direita de Titus à distância. A Mão Direita de Titus era um conjunto de cinco penínsulas mágicas que se erguiam no Atlântico a partir da costa de Delamer, a capital do Domínio. A Cidadela, a residência oficial do Mestre do Domínio, estava localizada no dedo anelar da mão direita de Titus. — Ela foi levada as instalações sob as colinas da Serpentina? — Titus perguntou, com um olhar especulativo. — Sim – ela olhou bem ao seu entorno para se certificar de que não foi enganada. Então ela perguntou como poderia ter certeza de que realmente estava lidando com alguém com o poder de comandar as máquinas de guerra, e não apenas um guarda humilde que tinha a senha para as instalações de armazenamento. Foi quando ela foi informada de uma recepção diplomática na Cidadela. Foi-lhe dito para caminhar atrás de um grupo de hóspedes que chegavam tarde, e que ela teria uma janela de cinco minutos antes de ser descoberta. Na verdade, sua instrução era se virar e sair assim que entrasse, para evitar ser descoberta. Mas a questão do novo grande mago elementar pesava na mente dela – era um desconhecido que poderia mudar tudo, e ela resolveu falar com o príncipe sobre isso. Foi assim que Titus conheceu Amara naquela recepção. Ela perguntou sobre o mago elementar e escapou muito elegantemente quando os guardas do palácio perceberam que havia um intruso entre os convidados. Kashkari suspirou. — Ela é mais corajosa do que qualquer um de nós, mas às vezes pode ser bastante impulsiva. Ela lamentou sua ação imediatamente, mas era tarde demais. Ela irritou seu contato, que viu sua transgressão como uma violação de sua fé. Essa aliança potencial não foi mais longe. Ela voltou algumas horas depois para a base antes de eu partir para Eton. Discutimos tudo o que viu – e o último fracasso. Foi quando eu decidi tomar o assunto em minhas mãos. Naquele tempo, pensávamos que talvez fosse o próprio Mestre do Domínio que estava por trás da proposta.

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Não era Titus – ele sempre foi inflexível contra alguém saber sobre o trabalho dele. Nem as máquinas de guerra eram seu modus operandi. — Em qualquer caso, — Kashkari prosseguiu, — Parece que Amara foi perdoada. Devem ter sido os mesmos magos que entraram em contato com ela agora em seu caderno de duas vias – era assim que eles sempre fizeram contato com ela, embora ela nunca tivesse correspondido seu caderno com os deles. — Você acha que pode ser Dalbert? — Iolanthe perguntou a Titus. — Não o próprio Dalbert – ele é muito cuidadoso para se misturar em algo assim. Mas podem ter sido magos que ele considerava confiáveis. — É bom saber, — Kashkari disse. — É verdade, não estamos completamente sozinhos, — Titus respondeu. Mas seu rosto estava preocupado, mesmo enquanto pronunciava suas palavras aparentemente esperançosas. *** Eles se estabeleceram em uma curva profunda de uma duna que ondulava por quilômetros. Logo que descobriram que os suprimentos de batalha que pegaram da base rebelde continham sachês de chá, ela limpou um pequeno espaço para eles dentro da duna, onde poderia invocar um fogo sem ser visto. Sobre a objeção de Titus, é claro. — Você vai se sobrecarregar, — ele disse, balançando a cabeça. — Por favor, Sua Alteza, mostre algum respeito pela grande maga elementar do seu tempo. Eles não tinham nenhuma vasilha para cozinhar, então ela aqueceu a esfera de água que convocou, girando-a a poucos centímetros acima do fogo. Quando julgou a água suficientemente quente, ela acrescentou alguns sachês de chá na infusão. As provisões de batalha também vieram com pastéis que tinham recheios salgados de ervilhas, batatas e especiarias.

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— Isso é maravilhoso, — ela disse de todo o coração. — Nós não tivemos nada além de barras de nutrição desde que acordamos no deserto. O que eu não daria agora para um daqueles enormes cafés da manhã na casa da Sra. Dawlish. Kashkari mastigou meditativamente. — Quando estava na casa da Sra. Dawlish, eu sempre esperava um futuro dramático e agitado. Mas agora que tudo está acontecendo, eu gostaria de ter apreciado melhor os dias chatos, quando o mais excitante que eu fiz foi ocasionalmente desmaterializar para Londres, ou para a costa oeste de Sussex para passear pelo mar. Titus já havia terminado um pastel e estava no próximo – isso pode ser o mais rápido que ela já o viu comer. — Sinto falta de remar, — ele disse. — Cricket era incompreensível, então escolhi o remo. No começo eu pensei que era apenas um pouco menos estúpido como um esporte. E então, descobri que quando remava eu prestava atenção apenas no ritmo das minhas respirações e no ritmo dos meus remos – não pensava em nada. O que deve ter sido um adorável descanso da tirania de seu destino. No meio do verão, às vezes os jogadores de cricket caminhavam até o rio e observavam os remadores. Em sua mente, ela viu quatro homens remando descendo o Tâmisa, os remadores de costas para os espectadores, as lâminas de seus remos cortando a água em um alinhamento uníssono e exato. Ela ficou tão entusiasmada como qualquer jogador de cricket, desprezando a forma, a velocidade e a masculinidade geral dos remadores. Titus geralmente ignorava os jogadores de cricket, como era digno de sua personalidade elevada, mas, uma vez – apenas uma vez – ele ergueu a mão do remo e fez um gesto obsceno para os jogadores. Os jogadores de cricket concordaram que era o melhor encontro em sua memória coletiva.

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— Eu sinto falta de Cooper, — ela disse. — Sinto falta de todos eles. Sinto falta das fotos de Bechuanaland do meu quarto – eles me deixavam nostálgica, embora nunca estivesse sequer perto de Kalahari. No caloroso esconderijo, um silêncio caiu. Titus olhou para o fogo. Kashkari olhou para a areia a seus pés. A esfera da água quente tornarase clara; ela colocou o chá nos odres de água de todos. Então exalou e reconheceu a ausência intensamente sentida. — E eu realmente sinto falta de Wintervale. Ele adoraria estar aqui conosco – ele teria tido o melhor dia da vida dele. Kashkari ergueu a cabeça. — Você foi a última a vê-lo, não foi? E por ele, Kashkari falava do verdadeiro Wintervale, antes de ser transformado em um recipiente de Bane. — Sim, no dia do primeiro treino de cricket para os vinte e dois. Ele foi chamado pela mãe dele, e só então se lembrou de que o portal no guarda-roupa em seu quarto já não funcionava. E estava preocupado com o tempo que demoraria para chegar em casa através de transportes não magos. — Ela soprou no vapor subindo de seu odre quente. — Uma despedida tão comum. Nunca pensei nisso. — Eu o vi pela última vez no jantar naquele dia, — Titus disse. A refeição do meio-dia na Sra. Dawlish era referida como o jantar, a ceia era a refeição da noite. — Ele estava conversando com Sutherland sobre a viagem a Norfolk. Onde havia chegado até eles – mas até então ele já não estava mais no controle de seu próprio corpo. — Já faz muito tempo para mim, — Kashkari disse. — Eu o vi pela última vez antes de deixar a Inglaterra no final do semestre de verão. Apertamos a mão no alto da escada na senhora Dawlish, e ele me disse que o próximo semestre seria melhor ainda. Titus suspirou e levantou o odre quente. — Para Wintervale, um excelente amigo e um bom homem. Ele sempre, sempre será lembrado com carinho. Iolanthe e Kashkari se juntaram a ele no brinde. — Para Wintervale.

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Os meninos piscaram e olharam para cima. Iolanthe não se incomodou em segurar as lágrimas; ela apenas enxugou os cantos dos olhos. Em silêncio, eles comeram o resto dos doces. E então, Kashkari perguntou: — Então, para onde vamos? *** O fogo vacilou, soltando algumas faíscas. Não havia desenhos neste recinto de areia. Nem o fogo foi alimentado por qualquer coisa que pudesse mudar e dar movimento às chamas. A cintilação foi causada pela maga elementar que exercia o fogo, um pequeno lapso de concentração, talvez. Titus olhou para ela. Havia círculos escuros sob seus olhos e um novo afundar nas bochechas. Ela sempre protestou firmemente que estava bem e que tivera todo o sono que precisava nestes últimos dias, dormindo abundantemente sob a influência da panaceia – escolhendo ignorar o fato de que ela quase morreu ao atravessar o círculo de sangue, e que o sono não foi uma indulgência preguiçosa, mas seu corpo lutando por sua própria sobrevivência. Ela se virou para Kashkari. — Nós vamos a Atlantis. Era exatamente o que eles iriam fazer, desde o início. Ainda assim, as palavras dela deram calafrios em Titus. A mão de Kashkari apertou o gargalo do odre de água. — Eu pensei que seria assim. — Você não precisa vir conosco, a menos que queira, — ela disse. — Seus amigos aqui estarão satisfeitos com sua ajuda também. Kashkari olhou para o oeste, embora não visse nada além da luz do fogo e a sombra de Titus na parede da areia. — Eu desejo ir com vocês, — ele respondeu calmamente. — Pode ser delirante de minha parte esperar que as minhas ações sejam importantes, mas é melhor do que acreditar que não serão. Não tentar é a maneira mais segura de jamais fazer a diferença.

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— Estamos muito gratos por ter você, — Titus respondeu, para sua própria surpresa. Uma vez sua mãe tivera a visão de dois meninos, vistos de trás, aproximando-se do Palácio do Comandante. Anteriormente, ele havia assumido que os meninos fosse ele mesmo e Wintervale, já que um dos meninos tinha problemas para andar; e Wintervale nunca andara corretamente após sua exibição de poder extraordinário na costa de Norfolk. Titus ainda assumiu que a visão cimentou a escolha que ele havia feito de terminar sua participação com Fairfax, porque ela provou não ser a Escolhida. Agora ele sabia melhor do que fazer mais suposições. Agora ele conhecia as possíveis armadilhas de seguir as visões de sua mãe até o último detalhe. Ele não mais rejeitaria a ajuda simplesmente porque não parecia se encaixar com um futuro visto através de uma lente pequena em um ângulo muito limitado. Por tudo o que sabia, os dois meninos poderiam ser Kashkari e Fairfax aproximando-se do Palácio do Comandante depois que Titus não estivesse mais. E rezou para que ela tivesse a ajuda de alguém tão calmo e competente como Kashkari, ao invés de ficar sozinha no final. — Sim, muito agradecidos, — Fairfax ecoou, oferecendo a Kashkari a mão para agitar. Todos apertaram as mãos, selando um pacto que duraria a vida inteira – e mais – em construção. — Então, — Kashkari disse, ainda parecendo um pouco atordoado com o que ele havia se metido, — Como exatamente vamos para Atlantis? — Tenha em mente que todas as opções serão terríveis. Minha solução mais viável agora é um disruptor de destino para um translocador ao leste de Delamer, — Titus respondeu. — Não sei se ouvi falar de tal coisa, — Kashkari disse. — Um disruptor de destino. Eu sei que o Leste de Delamer é um grande centro inter-regional do Domínio.

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— Um disruptor de destino faz mais ou menos o que você acha que faz. Ele provoca estragos na rota de um translocador. O translocador do meu disruptor é adaptado para lidar com pouca carga no transatlântico. Foi-me dito que se conseguir fazer com que o disruptor funcione corretamente, podemos nos materializar a menos de cem quilômetros de Atlantis. Era uma vez, os reinos magos só podiam ser encontrados por aqueles que os viram com seus próprios olhos. Em outras palavras, nenhum estranho, mago ou não mago, poderia localizar um reino sem a ajuda de um guia que já havia estado lá. Mas, à medida que o comércio e a viagem entre os reinos magos aumentavam, o sistema antigo ficou cada vez mais difícil de manejar. Assim, um novo sistema foi posto em prática. Sob o novo sistema, alguém só precisava saber a localização exata de um reino e seu próprio nome para poder se dirigir para lá. A era dos reinos escondidos estava no fim; a época da comunidade mundial de magos havia começado. Então, com o desenvolvimento e o crescimento expansivos de viagens instantâneas, os magos esqueceram completamente que um acordo global existia para facilitar o rastreamento de lugares distantes – por que precisariam saber como localizar um reino distante quando alguém poderia simplesmente entrar em um translocador e ser transportado até lá em segundos? Ninguém se preocupou em atualizar o protocolo – nem mesmo Atlantis – e isso significava que Titus, Fairfax e Kashkari podiam caminhar até as margens da fortaleza de Bane, caso tivessem coragem de fazê-lo. Kashkari soprou uma respiração. — Então nós caímos no oceano em algum lugar da Atlantis – esperamos – e depois simplesmente – nos aproximamos? A costa de Atlantis era fortemente protegida – Titus ouviu rumores de fortalezas flutuantes que fariam simples carros blindados parecerem mosquitos. Para simplesmente se aproximar eles teriam que ter um

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sucesso quase igual ao de um não mago entrando no meio de um tiroteio e saindo sem arranhões do outro lado. Ele encolheu os ombros. — É o melhor plano que consegui formular. Kashkari olhou para Fairfax, com algo que era quase um medo absoluto em seu rosto. Ela encontrou seu olhar diretamente. — Se eu aprendi qualquer coisa desde que convoquei meu primeiro relâmpago, é que você nunca precisa de uma quantidade fabulosa de coragem – apenas o suficiente para passar o dia. E estou completamente segura de que hoje não vamos acabar na costa da Atlantis. Ela se virou para Titus. — Se nós quisermos implementar este seu plano, precisamos voltar para o Domínio. Suponho que você não possa pedir a seu valete para vir buscá-lo. Na parte superior do castelo que era a casa de Titus, havia um translocador, construído para se assemelhar a um trem ferroviário privado não mago. Foi assim que ele sempre viajou do castelo para a escola e vice-versa. — Não. — Então como? A rota do mar? No verão anterior, quando foram separados e Fairfax ficou presa no Domínio, ela usou o método antiquado de navegar em um barco a vela até chegar à ilha mais próxima não maga, onde poderia pegar um navio a vapor e continuar sua jornada. — Nós podemos, se for o caso, mas a rota do mar leva muito tempo. Kashkari pegou um pouco de areia. — Eu me lembro de você dizer uma vez que você deve avisar seus movimentos a cada 24 horas? — Eu preciso, em circunstâncias normais. Mas quando a fênix de guerra foi ativada, as regras mudaram: eu tenho sete dias antes de precisar tornar minha localização conhecida novamente. Convoquei a fênix de guerra na nossa primeira noite no deserto, há três dias. Então tenho quatro dias antes de precisar informar.

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— Atlantis saberá onde você está então? — Alectus, o regente, saberá onde estou. E lamentavelmente, como ele é o fantoche de Atlantis, quando souber do meu paradeiro, não demorará a Atlantis saber também. — E se você não informar? — O regente assume a coroa. Eu não sou terrivelmente apaixonado pela coroa, mas há muitas vantagens de ser o Mestre do Domínio para completar nossa tarefa. Para não mencionar que Alectus transferiria as rédeas do governo para Atlantis – e levaria muitos anos e muitas vidas para lutar contra eles. Então, por ambas as razões, eu não quero desistir do trono, a menos que eu deva. — Isso significa que temos que ter sucesso em matar Bane antes que seus quatro dias terminem? — Kashkari perguntou. Titus hesitou mais do que queria antes de dizer: — Mais como sete dias, quatro dias até que minha localização seja conhecida, mais o período de carência de setenta e duas horas antes de Alectus se tornar o Mestre do Domínio. O fogo vacilou novamente, um movimento mais agitado desta vez. Kashkari pode não ter compreendido ainda, mas Fairfax sabia o que Atlantis presumiria: a morte de Titus. — Não há exigência absoluta de que seja feita em sete dias, — ela disse. — E se a coroa deve ir para Alectus porque você não pode revelar o seu paradeiro por um tempo, bem, isso não pode ser evitado. Houve um silêncio. — Em qualquer caso, devo descobrir mais sobre o que está acontecendo. Se puder voltar ao meu laboratório, eu poderei ter acesso aos relatórios do meu espião e ter uma melhor compreensão da situação. Preocupava-o que seus aliados tivessem revelado sua capacidade de derrubar carros blindados no chão. No momento, é claro, parecia que não tinham escolha senão fazê-lo. Mas agora, a decisão pareceu ter sido prematura. No calor da batalha, os Atlantes podem acreditar que Iolanthe Seabourne havia convocado o ataque de relâmpagos que os carros

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blindados não poderiam suportar. Mas, em retrospecto, eles se perguntariam se os ataques de relâmpagos não foram uma distração para um tipo diferente de arma. Você não pode surpreender Atlantis duas vezes. Se os rebeldes perderam esse elemento surpresa, eles seriam privados de uma grande vantagem. Agora, mais do que nunca, Titus precisava de Dalbert como seus olhos e ouvidos. Talvez seus lábios e a língua, também, para direcionar aqueles ainda leais à coroa quando ele não podia. — Onde está o seu laboratório? — Kashkari perguntou. — É um espaço dobrado. Existem dois pontos de acesso – um perto de Eton, um em Cape Wrath. Kashkari deixou a areia em sua mão deslizar, formando um padrão aparentemente aleatório no chão. — No Cairo, há um portal unidirecional criado por meu irmão que vai diretamente para a casa da Sra. Dawlish. Mas isso pode não funcionar se ainda houver uma zona sem desmaterialização em Eton. Titus balançou a cabeça. — É óbvio que Atlantis não espera que voltemos, mas não me surpreenderia se eles ainda tiverem pessoas vigiando o lugar. — E teriam estabelecido uma lacuna para isso na zona sem desmaterialização, — Fairfax disse. — Se realmente deseja encontrar alguém, você não elimina a possibilidade de que eles simplesmente possam cair em suas mãos. — Então como? — Não precisamos ir à Grã-Bretanha. — Titus tirou o mapa da bolsa de emergência e o colocou na areia. A localização deles apareceu como um ponto no Saara Oriental. — Se procedermos a partir daqui a setenta graus na bússola, chegaremos a Luxor antes do meio dia. Você e Fairfax poderão encontrar um lugar para ficar durante o dia e eu irei ao meu laboratório. — A Escócia fica a pelo menos cinco mil quilômetros de distância, — Kashkari assinalou; incrédulo.

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— Eu posso desmaterializar essa quantidade em vinte e quatro horas sem me matar. No dia em que ele descobriu que o Escolhido nas visões de sua mãe

se

referira

a

Wintervale,

em

vez

de

Iolanthe,

ele

havia

desmaterializado quatro vezes de Norfolk para Cape Wrath e de volta, e então mais uma vez de volta para Eton, o que aumentou até cerca de setecentos quilômetros. — Não significa que você deveria, — Fairfax disse. A voz dela era baixa e controlada, mas as chamas diante dela aumentaram várias polegadas. — Vou sair e me certificar de que é seguro irmos embora, — Kashkari disse, com sua sensibilidade requintada. — Vocês podem discutir nossa rota um pouco mais. — Não vá, — ela disse assim que Kashkari se afastou. — Não vá a nenhum lugar onde não consigo ficar de olho em você. — Você sabe que eu faria qualquer coisa para não sair do seu lado, mas devo saber o que está acontecendo. E mesmo que estivesse em perfeita saúde, você ainda não poderia desmaterializar essa distância em tão pouco tempo. — Você não precisa ter tanta pressa. E daí se demorarmos em chegar ao laboratório? Ela raramente se opunha às suas decisões tão veementemente – na maioria do tempo ela confiava nele para cuidar de si mesmo. — Qual é o problema? Ela virou o rosto para longe, mas não antes dele ver a careta que ela não conseguia suprimir. Ele a pegou pelo queixo e inclinou seu rosto até o olhar dela encontrar o seu novamente. — Diga-me qual é o problema, por favor. — Se tivermos apenas sete dias, então não quero que você esteja fora da minha visão por um segundo. — Não sabemos se temos apenas sete dias. Além disso, você não me disse que está convencida de que vou sobreviver a tudo o que está a caminho?

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— Eu disse e estou. Mas... Ele sabia o que ela não conseguia dizer. E se ela estivesse errada e sua mãe completamente certa? E sua mãe sempre foi perfeitamente precisa no que previu – os únicos erros cometidos foram na interpretação de suas visões. Mas quantas maneiras havia para interpretar a morte? Fairfax fechou os olhos por um momento. Quando os abriu novamente, ela voltou a ter controle de si mesma. — Eu sinto muito. Você está certo. Você precisa ir e precisamos de toda a informação que você pode conseguir se quisermos ter alguma chance de sucesso. — Não se desculpe. Estou lisonjeado: ninguém mais quer passar o tempo comigo. — Isso não é verdade: Cooper quer. Desesperadamente. Ele não podia deixar de rir. Então a beijou. — Eu terei muito cuidado, porque eu quero ver você de novo, com um desespero que Cooper mal pode exprimir.

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Capítulo 5 Titus e Fairfax entram em outro pequeno desacordo sobre onde se encontrar novamente. Ele queria que ela se escondesse em Luxor e ficasse fora da vista; ela queria voar para a costa sul da Turquia, encurtando sua viagem de volta o máximo possível. — E o Cairo? — Kashkari sugeriu. — Eu fiz a rota de Luxor-Cairo algumas vezes. Não é difícil permanecer invisível, mesmo em plena luz do dia, desde que fiquemos a alguns quilômetros do Nilo. Titus fez uma careta. Quanto mais ela voasse, maiores as chances de ser encontrada por agentes de Atlantis. Mas, assim como ela reprimiu seu desejo de tê-lo ao seu lado o tempo todo, ele também deveria manter controlada sua necessidade de nunca deixá-la ser vista novamente por ninguém, exceto ele. Havia seu irresistível desejo de manter sua garota segura; mas também havia seu inabalável respeito pela convocadora de relâmpago. — Tudo bem, — ele disse. — Tudo bem, — ela também disse, — Mas com a condição de você dormir

entre

aqui

e

Luxor



desmaterializar

é

mais

difícil

e

potencialmente mais prejudicial se você estiver severamente cansado. Você também descansará, Kashkari. Eu vou nos conduzir.

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Eles não discutiram com ela. Kashkari já havia guardado os tapetes de batalha que voaram até agora, e trouxe os tapetes de viagem, que eram mais adequados para longas distâncias. Ele subordinou o seu e o tapete de Titus ao dela, e ela os levou a alguns metros do chão e começou a acelerar. A condução em altitudes tão baixas requer mais habilidade e exigia maior concentração. Mas mantendo-se baixo, a ondulação das dunas tornava difícil para eles serem vistos a distância – e com o sol logo em ascensão, era uma maneira muito mais segura de chegar onde precisavam ir. — Acorde-nos se você precisar de alguma coisa, — Titus disse. — Sim. Bons sonhos, vocês dois. Apenas um minuto depois – ou assim pareceu – uma mão o sacudiu gentilmente no ombro. — Titus. Titus, — ela o chamou; primeiro suavemente, então com maior urgência. — Titus! Ele se virou e se sentou tão abruptamente que quase bateu a cabeça. — O que... O que está acontecendo? Ele estava prestes a perguntar, quando percebeu que não estavam mais no ar. Ele ainda estava no tapete, mas o tapete estava no chão duro de uma caverna escura e abafada. E Kashkari, não muito longe dele, dormia profundamente. — Estamos em Luxor – na Necrópole de Theban, — Fairfax disse; como se tivesse ouvido suas perguntas. —

Você

e

Kashkari

permaneceram

adormecidos

quando

chegamos. Eu não queria acordá-los para perguntar onde devemos ficar, então acabei de chegar aqui. Titus, ainda meio grogue, esfregou os olhos e fez uma careta. — O hotel da múmia? Nenhuma comunidade de mago que se respeitasse tolerava o enterro como uma prática funerária após a Guerra Necromante. E a própria ideia de corpos preservados para durar para sempre, perfeitos para servirem como soldados da próxima vez que um arquimago maluco

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decidir reanimar cadáveres por seus próprios propósitos nefastos – ele fez uma careta novamente. Ela riu suavemente. — Há pilhas de cerâmica no interior da caverna. Talvez eles contenham órgãos embalsamados. Ele se esticou – o chão duro deixou suas costas rígidas. — Como você encontrou este lugar? — Eu lembrei que Birmingham falava sempre sobre isso – ele planejava escavar aqui algum dia. Espere! Você estava lá naquele dia. Levei um momento para me lembrar de Birmingham – o antigo capitão da casa da Sra. Dawlish – e os adoráveis e fascinantes dias da última parte do semestre de verão, com a Inquisidora morta e Bane ponderando suas opções, ainda não pronto para atacar novamente. A vida durante aquelas semanas miraculosamente seguras parecia consistir inteiramente em esportes, sol e diversão. Ela nunca esteve em um corredor, conversando com grupos de meninos, prestes a definir e fazer algo divertido ou recém-chegado de tal excursão. E naquele dia em particular, um domingo, após o serviço da manhã, quando ele foi ao seu laboratório por alguma coisa ou outra; ela, Cooper, Wintervale e Kashkari voltavam de uma caminhada pelo campo com, de todas as coisas, um pote de sorvete. Quando Titus pôs o pé na casa da Sra. Dawlish de novo, a casa estava um alvoroço, com meninos sendo enviados para pegar itens de qualquer maneira: uma banheira da lavanderia, gelo do poço de gelo mais próximo, e o livro de receitas do cozinheiro da cozinha. O Mestre do Domínio foi despachado para encontrar um galão de creme fresco uma hora depois que o leite da manhã havia sido entregue. De alguma forma, ele realizou essa tarefa hercúlea, e naquela tarde, os meninos haviam soltado pipas e jogado tênis enquanto se revezavam mexendo o creme até começar a congelar. Um galão de sorvete era uma gota no oceano onde havia dezenas de meninos. No momento que ela terminou de servir a todos não havia colheres para os dois. Certamente não foi o melhor sorvete que já provou, apenas o mais maravilhoso.

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E foi quando Birmingham declarou que ele se certificaria de levar um pote de sorvete com ele quando começasse sua futura escavação no Alto Egito. Birmingham passou a descrever o que seria este lugar exatamente. Ela ouviu atentamente, curiosa como costumava ser sobre o que os não magos faziam com suas vidas, mas Titus apenas a olhou, enquanto termos como Templo de Hatshepsut2 e Vale das Rainhas3 entravam e saíam pelo seu ouvido. Ele estendeu a mão e tocou seus cabelos, sentindo a suavidade entre os dedos. — Pensando no sorvete? — Ela murmurou. — Claro, — ele disse. Toda memória esplêndida e linda sempre estava associada a ela. Até que ela chegou, ele não havia entendido o conceito de infância, daqueles anos na vida de um homem que deveria estar cheio de diversão e riso. Agora ele só desejava tê-la conhecido mais cedo – que tivessem passado mais tempo juntos. Ele envolveu a mão na parte de trás da cabeça dela e a aproximou. Ela olhou para ele, passando o polegar por seus lábios rachados. Kashkari gritou. Eles se separaram, com suas cabeças girando em uníssono com seu

amigo.

Ele

parecia

ainda

estar

dormindo.

Um

pesadelo,

provavelmente. Eles esperaram alguns segundos, olhando um para o outro, segurando o riso de frustração e alegria. Ela estendeu a mão para ele novamente. Kashkari

disparou

na

posição

vertical,

respirando

com

dificuldade.

2 Hatchepsut ou Hatshepsut foi uma grande esposa real, regente e rainhafaraó do Antigo Egito. Viveu no começo do século XV a.c, pertencendo à XVIII Dinastia do Império Novo. O seu reinado, de cerca de vinte e dois anos, corresponde a uma era de prosperidade econômica e relativo clima de paz. 3 O Vale das Rainhas é uma necrópole do Antigo Egito localizada na margem ocidental do rio Nilo, em frente da cidade de Luxor (antiga Tebas), no Alto Egito. Neste local foram sepultadas rainhas, príncipes e princesas do tempo da Império Novo, sobretudo das XIX e XX dinastias.

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Titus e Fairfax se levantaram. — Você está bem? — Ela perguntou. Kashkari olhou para eles, piscou e arfou. Ambos imediatamente olharam para trás. Mas nenhum inimigo se aproximava do exterior. Mesmo assim, Titus gesticulou para Fairfax ir até Kashkari enquanto ele assumia uma posição defensiva na entrada da caverna. — Tem algo errado? — Ela perguntou, ajoelhada ao lado de seu amigo. Kashkari esfregou o rosto. — Não, eu estou bem. Provavelmente fiquei assustado com um sonho, só isso. Onde estamos? E que horas são? Por quanto tempo eu dormi? — Estamos nas colinas a oeste de Luxor, perto do Nilo. E é... — ela hesitou. — Um pouco depois do meio dia. — O quê? — Titus exclamou. — Quanto tempo você me deixou dormir? Eu deveria ter saído horas atrás. — Você precisava do seu descanso. Algumas horas não farão nenhuma diferença de um jeito ou de outro. — Elas podem muito bem fazer, — ele revidou. — Deixe-me... Deixe-me sair por um momento, — Kashkari disse. Titus já havia começado a aplicar feitiços de limpeza sobre si mesmo conforme Kashkari se levantava lentamente. À medida que o último se dirigia para a entrada da caverna, ele foi mais para dentro, para uma câmara diferente, e trocou para um novo conjunto de roupas que fazia parte dos estoques de combate dos rebeldes. Quando ressurgiu, Fairfax estava esperando. Ela ergueu sua túnica por trás e cuidou de suas costas. Então abriu um pequeno frasco, que também fazia parte do kit dos rebeldes, e aplicou um pouco de bálsamo em seus lábios. — Você nunca cuida de você, — ela disse. Seu toque era gentil e quente. Suas palavras ficaram em algum lugar entre uma acusação e um lamento. — Eu vou aprender. Ela balançou a cabeça. — Esse será o dia. Ele pegou a mão dela quando saíram. A caverna ficava perto do topo de uma colina completamente estéril, pontos rochosos que

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cozinhavam no sol quente da tarde. A terra inclinava à distância, o chão castanho

e

árido

abruptamente

se

transformando

em

campos

surpreendentemente verdes ao aproximar-se do Nilo, o sangue vital do Egito. E do outro lado do rio espalhava-se Luxor, com suas ruínas antigas e edifícios de tijolos modernos, ambos quase da mesma cor que o deserto além. A cerca de cinquenta metros de distância, Kashkari sentou em um pequeno afloramento, a cabeça entre as mãos. Um pensamento veio para Titus. — Você acha que ele sonhou com a minha morte? — Ele perguntou em voz baixa. A mão dela apertou a dele. — É melhor que não. A visão de sua mãe sobre sua morte prematura era mais fácil negar por conta própria. Corroborada por Kashkari, seria muito mais difícil fingir que havia algum escape de um destino já escrito. Kashkari levantou e caminhou na direção deles. — Você encontrará o meu guardião em Paris, se você puder? — Fairfax perguntou a Titus. — Isso já está no meu itinerário, — ele disse. — E você descansará um pouco? Você ficou acordada por muito tempo. Ela assentiu. Quando eles se encontraram com Kashkari, Titus perguntou: — Você tem algum sonho profético do qual eu deveria saber antes de ir? Algo passou pelo rosto de Kashkari, mas sua resposta foi suave e uniforme. — Eu te avisarei quando eu tiver. Enquanto isso, que a Sorte caminhe com você. Eles apertaram as mãos. Titus abraçou Fairfax. Então respirou fundo e desmaterializou. *** Iolanthe olhou para o lugar vazio onde ele esteve. Todo adeus poderia ser o último.

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— Ele ama você, — Kashkari disse calmamente, — De uma maneira que está além de mim. Ela se virou para ele. — Obrigada – e é estranho admitir que eu não tenho a mínima ideia do que você quer dizer? Kashkari sorriu um pouco. Ele voltou ao seu antigo eu. — O que quero dizer é que você é tudo para ele. Quando ele vê você, ele vê aquela com quem ele esteve no inferno e voltou – aquela que o acompanharia novamente para o inferno, sem perguntas. Enquanto que ele e Amara não tinham essa história de luta compartilhada. Que tanto quanto a amava, ele era como um espectador, olhando de fora. — Titus e eu tivemos sorte um com o outro, — ela disse. E como ela sentia falta dele. Não era com a ausência dele que ela se importava – o Mestre do Domínio estava sempre fora em algum lugar, fazendo algo; foi assim desde que eles se conheceram. Era esse medo que ela não podia afastar, agora que estavam próximos – e se aproximando cada vez mais – do momento da verdade. Ela poderia salvá-lo – ou seria apenas um pensamento de arrogância e desejo? E se ela não pudesse... — Por que você não descansa um pouco? — Kashkari disse. — Você parece cansada. Ela preferiria começar a ir para o Cairo imediatamente, mas prometeu a Titus que descansaria, e ela estava começando a se sentir drenada. — Não me deixe dormir por muito tempo. — Nós estaremos no Cairo antes do final do dia, — Kashkari assegurou. Não, ela pensou, ele não estava de volta ao seu antigo eu. Ela conhecia o velho Kashkari, conhecia sua determinação, sua coragem e sua mágoa secreta. Nada disso desapareceu, mas havia algo diferente nele.

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Ele estava – triste. Ele escondeu bem, mas o pesar estava sobre ele, de uma maneira que não estava antes de despertar na caverna, respirando exageradamente. Com o que exatamente ele havia sonhado? *** Seu próprio sono felizmente foi sem sonhos, mas quando acordou, sua cabeça estava cheia de lembranças que foram suprimidas por anos e anos. Memórias de si mesma como bebê, inalando o sutil perfume de narcisos do corpo quente que embalava o seu, adormecendo em uma nuvem de contentamento. Memórias de si mesma como uma criança, passando os dedos sobre o rico veludo de seda do manto desta mulher incrivelmente bela que era sua mãe. Sua mãe. Memórias de si mesma como uma pequena menina, desejando que o dia a cada dois anos em que ela podia passar com sua maravilhosa mãe nunca, nunca terminasse, que o relógio parasse um minuto antes da noite terminar e não se movesse novamente. Memórias de si mesma como uma garota ligeiramente mais velha, seus olhos arregalados ao saber que seu pai não era outro senão o herói da Revolta de Janeiro. E dois anos depois, ela e sua mãe chorando juntas durante a repentina morte do Barão de Wintervale. Esse seria o último ano bom antes que os problemas do Mestre Haywood começassem. Antes de começar a implorar à sua mãe para ajudar o homem que cuidava dela, a quem ela amava como um pai. Antes de receber a resposta que a gelou até o osso: Ele é apenas a ajuda, minha querida; você não precisa se preocupar com ele. Antes que não tivesse escolha senão entender que este homem que dedicou a vida a sua mãe não significava nada para ela. Ele não era mais que uma engrenagem na

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máquina que ela havia construído para manter a si mesma e sua filha seguras4. Ela nunca mais poderia amar sua mãe com a pureza e a admiração daqueles dias mais inocentes. A relação delas começou a ser testada. Lady Callista não estava satisfeita com uma filha que não era mais adoradora e submissa; Iolanthe ficou cada vez mais frustrada e desconfiada. O último encontro foi totalmente antagônico. Mestre Haywood tinha acabado de perder sua posição na academia inferior de terceiro nível por receber subornos de estudantes para melhorar suas notas, obrigando-o a aceitar a posição de professor em uma das aldeias mais remotas do Domínio. Iolanthe estava furiosa com ele, mas quando as memórias de sua vida secreta voltaram, toda fúria foi transferida para Lady Callista. Quando Lady Callista veio visitá-la alguns minutos depois da meia-noite, Iolanthe gritou e explodiu. Ela iria ao Mestre Haywood naquele instante e lhe contaria tudo. Não queria guardar uma informação por ameaçar a posição de Lady Callista ou sua própria segurança. Havia áreas cinzentas na vida, mas esta não era uma delas. O que foi feito com o Mestre Haywood era hediondo, e ela não permitiria que passasse mais um momento sem isso ser corrigido. Lady Callista escutara calmamente, parecendo prestar atenção, mas então, quando Iolanthe estava no meio de uma sentença, ela levantou sua varinha. Esse foi o fim daquela reunião. As lembranças de Lady Callista, antigas e novas, voltaram a desaparecer de sua mente, e Iolanthe acordou

Redhull, Bernard AD 967-1014. Vidente. Conhecido mais pela proliferação do que pelo significado. Alegou nunca ter tido uma visão sobre ele mesmo, mas sempre sobre completos estranhos. Enviava cartas todos os meses para quem era vislumbrado em suas visões, quando conseguia descobrir a identidade dos mesmos. Melhor lembrado como aquele cuja visão de uma conversa entre Lady Callista Tiberius e um amigo a estimularam a ação, a duplicar todas as medidas enumeradas naquele intercâmbio previsto. Veja Lady Callista Tiberius, Horatio Haywood, Iolanthe Seabourne, Aramia Tiberius, Príncipe Titus VII. – Do Dicionário Biográfico do Domínio 4

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na manhã seguinte, magoada e triste, e pensou que era só por causa de seu desespero com o Mestre Haywood e sua crescente angústia sobre o seu próprio futuro. — Você está bem? — Veio a voz suave de Kashkari. Ela percebeu que estava olhando para o teto da caverna. Algo sobre a situação com Lady Callista a incomodou – algo além do tratamento insensível de sua mãe com o Mestre Haywood. Mas não conseguiu identificar exatamente o que era. Ela se sentou. — Estou bem. Por quanto tempo eu dormi? — Cerca de três horas. A caverna, que estava de frente para o oeste, agora estava cheia de luz dourada. Ela notou o caderno de duas vias no colo de Kashkari. — Você já ouviu falar da Amara e do seu irmão, por sinal? — Sim, de ambos – estão seguros e reagrupando, — ele respondeu, mas não encontrou seu olhar. Era porque ele não queria revelar seus pensamentos internos como quando falou sobre aquela que ele amava e a pessoa que ela amava? Ou era outra coisa? — E a Sra. Hancock? Alguma coisa dela? — A Sra. Hancock, enviada especial do Departamento de Administração de Atlantis, infiltrada na casa da Sra. Dawlish, acabou por ser inimiga convicta de Bane e aliada secreta deles. — Nada dela. Espero que ela esteja bem. — Eu me pergunto se West já foi dado como desaparecido, — ela disse lentamente. West, um veterano que tinha uma estranha semelhança com Bane, foi sequestrado da sua casa de residentes, desencadeando a cadeia de eventos que levaram à partida abrupta de Titus e Iolanthe da escola. — Não precisamos nos preocupar com isso por enquanto. A Sra. Hancock criou uma série de feitiços. As pessoas na escola acreditam que ele está de licença prolongada. Sua família acha que ele não pode sair da escola por vários motivos.

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Kashkari ainda não a olhava nos olhos. Qual era o problema com ele? Ele fechou o caderno. — Você sabe alguma coisa sobre o Palácio do Comandante? Ela supôs que era natural o suficiente para ele estar pensando na fortaleza de Bane, já que era seu destino final. — Sim, algumas coisas que Titus me contou. Ela relatou o que sabia – a localização da fortaleza nas terras altas da Atlantis, os anéis de defesa que o cercavam, os wyverns e os carros blindados – carregando cockatrices colossais que voavam pelo céu, sempre vigilantes em nome da segurança de Bane. — E como Titus aprendeu tudo isso? Ela falou sobre a visão que resultou da interrupção da Inquisição de Titus, e do espião que o príncipe Gaius, o avô de Titus, enviou a Atlantis há muitos anos. — Isso é notável, — Kashkari meditou. — Atlantis não recebe nenhuma delegação diplomática em sua própria terra e não emite visto de visitantes. E ouvi dizer que as fortalezas flutuantes guardam todo o litoral, observando os intrusos que se aproximam. Como esse espião entrou? — Eu não sei. Suponho que ele se esgueirou de alguma forma. Como eles fariam. Kashkari assentiu, aparentemente pensando profundamente. Então se levantou. — Vamos prosseguir?

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Capítulo 6 Titus possuía a capacidade de desmaterializar por cinco mil quilômetros, um presente raro. Mas tal presente não era realmente útil, a menos que o mundo fosse uma rede de nós que ele visitou pessoalmente, cada nó menor do que quinhentos quilômetros para além do ponto de conexão mais próximo – a desmaterialização era apenas precisa quando o destino podia ser visualizado a partir de uma memória pessoal. Depois que ele chegou a Eton, aos treze anos, ele começou a criar uma rede para ele. Isto começou com um passeio de domingo à tarde para uma estação ferroviária em Windsor, e um bilhete comprado para Londres. Quando chegou a Londres, ele caminhou pela Estação de Paddington e algumas das ruas circundantes, depois subiu ao metrô e foi até a Euston Station e King's Cross, outros dois terminais ferroviários. Considerando que ele conhecia todas as principais estações ferroviárias de Londres de cor, ele desmaterializaria em uma após escurecer e embarcar em um trem noturno em algum lugar, tendo o cuidado de não ir acidentalmente além do alcance da desmaterialização. Logo ele poderia se materializar diretamente em estações ferroviárias em Bristol, Manchester e Exeter – e pegar o trem para mais longe. Não

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demorou muito para que desmaterializasse com facilidade para qualquer centro populacional importante da Grã-Bretanha, além de uma série de lugares remotos e pitorescos. Com a Grã-Bretanha sob controle, ele colocou suas vistas na França, começando com um cruzamento noturno de Dover. Assim que chegou a Paris, o maior centro ferroviário da França e alcançável em uma única desmaterialização da casa da Sra. Dawlish, o resto da França se abriu para ele. Ao longo dos anos, ele expandiu essa rede para muitos cantos da Europa que eram facilmente acessíveis por via férrea, e alguns que não eram. Ele, porém, nunca foi para o leste dos Balcãs. Mas foi aí que Alectus lhe fez um favor. Normalmente, ele era deixado sozinho em suas férias escolares aos cuidados de Dalbert – Titus poderia ser uma companhia muito desagradável. Mas a cada verão, Alectus, Lady Callista e Aramia passavam as férias no exterior, e em relação a isso, Alectus sempre insistiu que ele também fosse – para aparentar uma família unida, e nada mais. Dois verões atrás, eles embarcaram no Mediterrâneo oriental no iate da coroa. Alectus ficou encantado em entrar nos portos não magos, fingindo ser a família dominante do principado inexistente de SaxeLimburg. Eles visitaram as grandes pirâmides de Giza – não as que os não magos se reuniam para ver, mas uma série de seis estruturas enterradas de cabeça para baixo nas proximidades que incluíam um antigo translocador, que segundo diziam tinha o poder de enviar um mago para qualquer lugar da Terra. Eles até levaram uma embarcação menor e velejaram do Cairo, por cento e cinquenta quilômetros até o Nilo. Graças a essa viagem, Titus conseguiu desmaterializar em dois segmentos, de Luxor para a vizinhança de Giza, depois do noroeste para Alexandria. Mais duas desmaterializações e estava em Tobruk, que ficava diretamente ao sul da Ilha de Creta.

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De Creta ele saltou para Zakynthos, uma ilha no Mar Jônico, a oeste da Grécia continental. Mais uma desmaterialização e estava no ponto mais oriental da Itália continental. Sua nuca começava a latejar dolorosamente; ele não teve escolha senão parar por um tempo. O sol brilhava calorosamente no rosto dele; gaivotas rodaram e mergulharam; as escamas de peixe brilharam em padrões de escala na superfície do mar azul claro. Ele sentou na costa rochosa e bebeu o último gole do chá que Fairfax fez de manhã. Como acontecia com frequência, quando permitia que sua mente vagasse um pouco, ele pensou em seu futuro. Ela nunca disse a ele, mas ele sabia, a partir das informações que Dalbert coletou sobre ela a algum tempo, que ela gostaria de frequentar o Conservatório de Artes e Ciências Mágicas. O Conservatório tinha um campus encantador na borda das Montanhas Serpentine, com vista para a mão direita de Titus e o Atlântico incessante além. Ele podia vê-la caminhando pelos caminhos de laje entre edifícios, conversando com seus amigos, talvez fazendo planos para mais tarde tomar sorvetes na loja de doces de Sra. Hinderstone, a qual ela frequentemente visitava quando era uma garotinha. No verão anterior, ele enviou Dalbert à loja da Sra. Hinderstone para obter uma seleção dos sabores e texturas que ela adorava durante os seus anos em Delamer. Dalbert, que sempre ia além do seu dever, trouxe não apenas cestas de alimentos e bebidas, mas também cartões postais que capturavam a loja de todos os ângulos: as mesinhas redondas na calçada sob um toldo branco e azul; a própria Sra. Hinderstone ao lado de grandes vitrines cheias de bombons e chocolates; o menu do almoço na parede, feito na varinha iridescente, com um aviso no final que orgulhosamente declarava: Ficamos felizes em embalar cestas de piquenique para dois ou duzentos – e nossos famosos sorvetes são feitos para não derreter por pelo menos oito horas. Titus raramente entrava nesses devaneios. Mas agora ele se viu caminhando até a Sra. Hinderstone e pedindo uma dessas cestas de piquenique. Ele podia ver o rosto redondo e sorridente da Sra.

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Hinderstone enquanto anotava os detalhes do seu pedido. Ele podia sentir o peso e a frieza das moedas que ele entregou. E podia sentir os olhares curiosos dos outros clientes na presença do Mestre do Domínio. Mas onde ele levaria Fairfax para o seu piquenique? Nas Montanhas Labyrinthine, com vista para uma encosta de radiantes papoulas vermelhas, no convés de um veleiro ancorado em uma baía protegida ao sul de Delamer, ou no grande gramado do Conservatório de Artes e Ciências Mágicas, à sombra de uma árvore, enquanto os sinos soavam pela passagem de horas de lazer? Sua mente, tão habilidosa para processar o perigo e tomar decisões imediatas, foi incapacitada diante dessa cornucópia de opções prazerosas. Ele não queria escolher. Queria apenas revirar as infinitas possibilidades de tal futuro. Ele não precisava morrer, sussurrou uma pequena voz dentro dele. Era muito cedo, também desnecessário. A grande visão de sua mãe provou ser, se não totalmente falsa, então muito mal interpretada. Não havia um Escolhido, nenhum caminho certo. Não havia mais obrigação de fazer isso – não da sua parte pelo menos, ele, que já havia sacrificado toda a sua infância. Enquanto outros meninos brincavam, ele trabalhava. Quando não estava aprendendo lições de seus antepassados nos campos de ensino, ele estava lutando contra todas as criaturas com dentes e garras nos contos de fadas. Em vez de luz e ar fresco, os aromas de sua juventude eram livros antigos e a fumaça do fogo de dragão. Ele viveu tão pouco. Quando foi a última vez que deu um passeio nas Montanhas Labyrinthine por prazer? Não, quando teve tempo de sobra, em vez disso, ele correu sobre essas encostas implacáveis, para garantir que seria rápido e ágil quando chegasse o momento. Ele já tirou um dia somente para ele? Ele arrastou sua mente de volta, ofegante com esforço. Havia uma razão pela qual ele só pensava nela no futuro mítico: quando ele se incluía, essa avareza monstruosa para a vida explodia, disposta a

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destruir tudo em seu caminho por mais um dia, mais uma hora, mais uma respiração. Mas era muito tarde para se afastar agora, tarde demais para abraçar a covardia. Ele engoliu uma dose de auxílio de desmaterialização, fechou os olhos e retratou Nápoles. *** Nápoles. Roma. Florença. Quando se materializou em Florença, experimentou uma dor aguda atrás de seus olhos. Entretanto, em vez de sentar em algum lugar e aguardar o desconforto passar, ele usou o tempo de recuperação para adquirir algumas roupas que não eram mais adequadas para a Europa do que o Deserto do Saara: essencialmente comprando tudo de um manequim em exibição. Mas, novamente, ele era ágil com feitiços de alfaiataria, tendo tido centenas de horas de prática para que pudesse certificar-se de que as roupas que ele preparou caberiam no mago elementar que assumiria a identidade de Archer Fairfax. Fairfax. Quando pensou no futuro desta vez, havia apenas ela no cobertor de piquenique no grande gramado do Conservatório, um livro em seus joelhos, um sanduíche meio comido ao lado. Mas ela não estava sozinha. Um amigo viria e sentava-se, depois outro. Logo, um grupo considerável se reuniu em torno do cobertor de piquenique, e ela estava cercada de riso e alegria de viver. Ele fechou os olhos novamente. Gênova. Turim. Genebra. Dijon. Auxerre. Quando chegou a torre do campanário da maior catedral de Auxerre, se curvou, com seus ouvidos zumbindo, ele sabia que havia feito muitas desmaterializações. Esta parte da França era muito densamente povoada para voar em um tapete, então comprou um casaco na ensolarada Itália - ele havia subestimado a quantidade de roupas que

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precisaria – e entrou em um trem e se deixou transportar pela tecnologia não maga, o repetitivo som do trem nos trilhos se afastando de Paris sob um céu cinza e chuvoso. Duas horas depois, ele saiu da Gare de l'Est em Paris e contratou um carro de aluguel para levá-lo ao décimo oitavo arrondissement5. As luzes das ruas ganhavam vida ao longo das principais avenidas da cidade. Ele ficou no carro de aluguel até o tráfego parar em um bloqueio que não se movia em nenhuma direção, depois caminhou o resto do caminho, tremendo apesar do casaco. A concierge no prédio de apartamentos onde o guardião de Fairfax morava sorriu ao vê-lo. — Bonsoir, monsieur. Ele usou o apartamento anteriormente como um laboratório no local e lhe deu a impressão de que era amigo da família. Ele assentiu. — Bonsoir, madame. O monsier Franklin está em casa? — Sim, monsieur. Um cavalheiro tão adorável. Ele ficará feliz em vê-lo, monsieur. Horatio Haywood estava muito feliz quando abriu a porta. Mas seu sorriso vacilou ao perceber que Titus viera sozinho. — Ela está bem, — Titus disse rapidamente. — Posso entrar? — Sim, claro. Por favor, perdoe-me, Sua Alteza. Ele indicou a sala de estar, com suas enormes pinturas de não magos brincando no campo. Haywood correu para a cozinha e voltou com um serviço de chá e pratos de massa folhada com recheios salgados. O homem provavelmente teria ido à cozinha novamente para buscar mais coisas, mas Titus pediu que ele se sentasse e contou tudo o que aconteceu desde a última vez em que estiveram juntos nesta sala: a verdadeira história por trás da exibição espetacular do poder elementar de Wintervale, sua partida apressada de Eton, e seus poucos dias agitados no deserto do Saara. — Quando a deixei mais cedo, ela estava segura e bem, ou pelo menos tão bem quanto poderia estar sob as circunstâncias. E confio que

5 Uma divisão administrativa de Paris.

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nosso amigo esteja cuidando dela ao máximo de sua capacidade notável – embora, em qualquer momento, ela possa estar cuidando dele, por tudo o que sabemos. Ela é muito boa em manter seus amigos vivos e inteiros. — Que a Sorte me proteja, — Haywood murmurou. — Eu estava preocupado – pensei que ela viria me ver de novo, mas nunca pensei que tanto poderia ter acontecido. Eles ficaram calados por algum tempo. — Então você se lembra de tudo agora? — Titus perguntou. O homem mais velho assentiu lentamente. — Sim, senhor. Ele podia ter adivinhado a traição de Lady Callista, a julgar pelo que descobriram no dia em que o encontraram no Hotel Claridge's em Londres. Mas ser engolfado por uma onda de lembranças, reconhecer o fervor do amor que o levou a mentir, enganar e roubar, somente para ser abandonado por ela completamente – Titus não podia imaginar a angústia dele. O arrependimento dele. — Eu gostaria de lhe fazer uma pergunta, se eu puder. — Certamente, senhor. — Posso entender a maior parte da história, mesmo que os detalhes sejam um pouco imprecisos. Mas uma parte eu não entendo. Qual é o papel da Comandante Rainstone em tudo isso? A Comandante Rainstone era a principal assessora de segurança da coroa. Ela também havia servido, em um ponto, a falecida princesa Ariadne, a mãe de Titus. — Você disse que ela lhe apresentou a Lady Callista, — Titus continuou. — Entendo que a Comandante Rainstone vem de uma origem humilde. Como ela e Lady Callista se tornaram amigas? — Oh, — Haywood disse; surpreso. — Você não sabia, senhor? A Comandante Rainstone e Lady Callista são meias-irmãs. ***

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Iolanthe e Kashkari não se arriscaram a voar para o Cairo, que tinha sua parcela de magos exilados. E onde havia uma reunião substancial de magos exilados, havia informantes e agentes de Atlantis. Tampouco Kashkari queria que eles caminhassem carregando um tapete. Eles cobriram a distância de Luxor até o Cairo em tapetes de viagem, mas ainda tinham seus tapetes de batalha, que tinham uma espessura muito substancial e não podiam ser dobrados em pequenos quadrados e empurrados nos bolsos. Ele temia que, até mesmo enrolados, esses tapetes ainda poderiam sinalizar suas origens magas. Em vez disso, ele comprou um burro nos arredores da cidade e colocou os tapetes de batalha nas costas dele. Ele ofereceu o burro a Iolanthe, mas ela declinou firmemente: ela preferiria caminhar a lutar com uma besta desconhecida. Assim, Kashkari cavalgou e Iolanthe caminhou atrás dele, seu rosto escondido por completo em seu keffiyeh. Os edifícios que passaram eram como nenhum que ela tivesse visto antes, com cada andar projetado mais longe do que o imediatamente abaixo. Dois moradores do último andar, em lados opostos de uma rua estreita, podiam quase se abraçar pela pequena distância que permanecia entre eles. Seu destino era uma casa de hóspedes limpa e hospitaleira. O proprietário abraçou Kashkari e o saudou pelo nome. Doces e xícaras de café apareceram assim que entraram no quarto, seguidas de tigelas de uma deliciosa sopa verde e de pratos cheios de dolmas, que eram folhas de uva enroladas em torno de um enchimento de arroz saboroso. — Você já esteve aqui? — Ela perguntou a Kashkari enquanto eles comiam. Ele assentiu, alcançando um dolma. — Meu irmão ficou no Saara por um tempo. Eu gostava de visitá-lo em todas as férias, e sempre era um aborrecimento me levar de volta à escola no final. Alguém em algum lugar poderia ter uma doca seca móvel, mas nem sempre havia uma embarcação disponível – e não podíamos necessariamente pedir emprestado o barco de emergência. Então, às vezes eles poderiam me lançar no Mediterrâneo e me levar para a costa da França. Outras vezes

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eu precisei voar o trajeto todo. Um dia, Vasudev teve o suficiente da incerteza – ele também não gostava que eu voasse tão longe sozinho. Ele decidiu criar para mim um portal unidirecional aqui no Cairo, já que a maioria das bases rebeldes tinha um translocador que poderia chegar ao Cairo ou a Trípoli. Então viemos aqui e ficamos alguns dias. E então fomos para a escola, para que ele pudesse terminar o outro fim do portal. — Ele visitou Eton? — Conheceu a Sra. Dawlish, a Sra. Hancock – e Wintervale também. Wintervale e eu o levamos para conhecer ao redor da escola, andamos nos campos de jogo, remamos um pouco no rio. — Ele não conheceu o príncipe? — Não, ele partiu antes que Titus chegasse naquele semestre. E é uma pena que você não tenha tido chance de conhecê-lo também enquanto ainda estávamos no deserto. O timbre de sua voz mudou? E foi tristeza que mais uma vez escureceu seus olhos? A chama de uma lanterna iluminou seu rosto e jogou sombras na parede contra um painel de padrão de arabesco. Ela deixou de lado o prato. — Que tipo de homem ele é, seu irmão? Kashkari soltou uma respiração. — Ele é um pouco tímido – nossa irmã, gêmea dele, sempre foi vivaz e assertiva. Quando Amara falou na festa de noivado, ela disse que durante seus primeiros seis meses na base, ele nunca disse nada a ela que não estivesse relacionado à produção e manutenção do equipamento. — É disso que ele é responsável? — Ele é um prodígio, um verdadeiro feiticeiro; para quando você precisa de dispositivos construídos, aprimorados ou inventados a partir do zero. Mas não deixe isso enganá-la para pensar que ele é apenas apto para uma oficina. Ele também é um lançador de feitiços de destruição mortal – ele ensinou tudo o que eu sei. E Kashkari era um ótimo atirador. — Você acha que ele e Durga Devi são uma boa combinação? — Eles não são um par óbvio, mas sim, eu acho que eles são bons um para o outro. Ele precisa de alguém cheio de vida para tirá-lo de seu

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banco de trabalho de vez em quando. E ele é uma influência constante sobre ela, já que ela pode ser precipitada às vezes. Antes que pudesse responder, ele enfiou a mão no bolso. — Você me dá licença? Ele se afastou do divã no qual comiam para ler seu caderno de duas vias. Sua expressão mudou. Iolanthe se levantou. — Está tudo bem? Ele olhou para ela, seu rosto agora em branco. — Vasudev escreve que eles estão casados. Desde cinco minutos atrás. Iolanthe ficou atordoada e nem sequer estava apaixonada por uma das partes. — Achei que o casamento não estava agendado para hoje. — Não, eles nunca marcaram a data. Mas ela e Titus trouxeram Atlantis à porta dos rebeldes. Qual era o ponto de esperar, quando talvez não haja um amanhã, e muito menos uma semana que vem? — É melhor eu dar meus parabéns, — ele disse. Impulsivamente, ela deu um passo à frente e o abraçou. — Sinto muito, não deveria ser assim. Sinto muito por toda a dor que isso trouxe para você. E sinto muito, isso vai doer ainda mais antes de melhorar. Ele ficou quieto e imóvel em seu abraço. Ela o soltou, sentindo-se um pouco consciente de si mesma, talvez tivesse ultrapassado os limites de sua amizade, o que tornava ainda mais surpreendente o brilho de lágrimas nos seus olhos. — Obrigado, — ele disse. — Você sempre foi uma amiga amável. Algo na resposta a desconcertou. Ela colocou uma mão em seu ombro. — Você envia sua resposta. Eu vou colocar alguns feitiços antiintrusos. Os feitiços anti-intrusos eram irrelevantes na situação deles: mesmo aqueles que pudessem impedir um arrombador indeterminado não serviriam de nada contra o poder de Atlantis. Mas ela queria dar a Kashkari espaço para se afligir, sem que ela estivesse ao lado dele.

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Ela entrou na sala adjacente e tirou a varinha da bota. Nenhuma lâmpada foi acesa nessa sala, mas assim que seus dedos se fecharam sobre a varinha, ela lembrou que ainda tinha a Validus. Titus havia entregado a ela antes da batalha no deserto, esperando que a varinha lâmina fosse um magnífico amplificador de seus poderes. E foi. Ela hesitou em criar um pouco de fogo, decidiu contra isso, e murmurou alguns feitiços com Validus apontada para a janela. As coroas com incrustações de diamantes ao longo da varinha lâmina eram quase visíveis na luz fraca enquanto se afastava da outra sala. As facetas das pedras pareciam... Ela arregalou os olhos. As coroas ficaram mais brilhantes e, então, mais fracas? A segunda mais abaixo agora estava perceptivamente mais brilhante do que o resto, agora o terceiro mais baixo, subindo em uma procissão ordenada, e depois caindo de novo. — Kashkari. — Sim? — Ele respondeu imediatamente, sua voz refletindo a tensão da dela. — Apague a lanterna e venha aqui. A sala externa caiu na escuridão. Kashkari chegou em silêncio. — Qual é o problema? — Eu preciso que você dê uma olhada na Validus. Ele tirou a varinha dela. Ela esperou, com um pavor inominável passando por sua coluna vertebral. — É sempre assim? — Ele perguntou, depois de um minuto. — Não sei. A varinha pertence à Titus. Ele me entregou na noite passada porque achou que eu poderia usá-la melhor. — Poderia ser um sinal dele? — Se for, ele nunca me falou sobre esse uso para esta varinha. — Você já verificou o seu rastreador? Titus tinha um pingente que se separava em um par de rastreadores. No momento, ele usava um, e Iolanthe o outro.

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— Já, e não posso distinguir a diferença. — Titus estava tão longe que o rastreador estava gelado por horas. Kashkari ficou em silêncio por algum tempo. — O que seu instinto diz? Ela demorou a responder, não querendo falar em voz alta as palavras que lhe remexiam os nervos. — Que não pode ser bom. Kashkari não discordou, mas se aproximou da janela. Ela se juntou a ele lá. A janela se abria para um pátio escuro e silencioso, iluminado apenas pela luz dos quartos vizinhos. Ele abriu a janela e murmurou algo em uma língua que ela não entendeu, em sânscrito, provavelmente. Ela poderia ver apenas algo escuro tomando forma em suas palmas. E então bateu as asas e apareceu – um pássaro feito das sombras da noite, ao que parecia. — Nosso canário, por assim dizer, — Kashkari explicou. Ela já foi um canário uma vez, uma das experiências mais angustiantes da vida dela. — De quais perigos isso nos avisaria? — Qualquer coisa que possa pôr em perigo uma entidade voadora, ou assim eu espero. — Ele lançou vários outros pássaros. Na frente dele, surgiram alguns pontos de luz. Iolanthe ficou confusa por um momento até perceber que eles não eram faíscas de fogo, as quais ela não se lembrava de convocar, mas pequenas representações dos pássaros. — Belo feitiço, — ela sussurrou. — Meu irmão está trabalhando em uma versão muito mais ambiciosa, se ele tiver sucesso, poderemos ver o que o pássaro estiver vendo, uma representação tridimensional de seus arredores. Um dos pássaros desapareceu em um banho microscópico de faíscas. — Não voou para algo? — Não, eles evitam obstáculos mundanos como casas e pedestres – até gatos. Ele se inclinou, de modo a estar nivelado com as partículas de luzes que representavam os canários de sombra restantes.

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Um segundo pássaro explodiu, seguido por um terceiro. Ela ficou fria: o perigo não estava atrás de Titus, mas deles. — Eles são destruídos quando voam muito alto, — Kashkari disse, com a voz cerrada. — Por quê? — Não sei. Mas é bastante certo que também não podemos voar alto, pelo menos não nas proximidades. — Por que existe tal coisa indireta? Você acha que a Atlantis sabe que estamos aqui? — Pode ser, se a varinha estiver transmitindo sua localização. Suas palavras ficaram entre eles. Sua garganta queimou com a própria ideia de tal traição. Como a varinha de Titus, de todas as coisas, poderia denunciá-los? Ela ficou chocada ao se ouvir falar em um tom uniforme e calmo. — Se esse for o caso, então teremos maior chance se estivermos em movimento. Há quanto tempo eles estavam no Cairo? Na hospedaria? Já era o suficiente para Atlantis identificar a localização deles? — Deixe a varinha para trás, — Kashkari disse. — Mas pertenceu a Titus, o Grande. — Uma herança inestimável, não apenas para a Casa de Elberon, mas para todo o Domínio. — Será o fim se você continuar segurando isso. Ela mordeu o interior de sua bochecha. Então segurou a varinha no alto com um feitiço de levitação e enviou um relâmpago em direção a ela. Por um momento, tudo dentro da sala foi iluminado: a varinha, o olhar assustado de Kashkari, a linha onde a parede se encontrava no teto. Quando pegou novamente a varinha, estava quente ao toque e soltando um pouco de fumaça, mas tanto quanto ela poderia dizer, as coroas com diamantes já não estavam mudando de luminosidade, por mais sutil que fossem. — Vamos, — ela disse.

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*** Eles viajaram em um único tapete – as habilidades de Kashkari eram uma melhor combinação para os limites próximos de um distrito urbano. Iolanthe segurou-o por trás e manteve seu olhar elevado, mas não conseguia ver nada além de uma estreita faixa de céu escuro, que aparecia entre as casas próximas em ambos os lados. O ar cheirava a carvão, pão, e uma fraca nota de fezes de burro. A noite estava ficando mais fresca, uma brisa do mar levando o calor residual do dia. Kashkari dirigiu cuidadosamente, empurrando-os para frente. Um movimento passou pelo canto do seu olho. Mas quando olhou para o lado, ela não viu nada. O que foi isso? Um reflexo sobre uma janela ainda aberta, o que significava que o objeto era... — Vamos! Tão rápido quanto você puder, — ela sibilou. O que estava atrás deles era um carro blindado em miniatura, um pouco maior do que a mesa em seu quarto na casa da Sra. Dawlish e quase exatamente da mesma cor sombria que a noite. Um par de garras, atadas por cabos longos, saíram da frente do carro, apontando diretamente para ela. O tapete acelerou com um salto e fez uma curva acentuada à direita, quase inclinada para a rua, apenas para acabar de frente a outro par de grandes garras. Kashkari grunhiu e conduziu o tapete ainda mais baixo, aplainando-o completamente. Eles passaram por uma entrada com apenas uma polegada restante acima de suas cabeças. Iolanthe enviou um raio para o céu – a localização deles já havia sido descoberta, talvez pudesse descobrir o que exatamente se aproximava sobre a cabeça deles. Uma rede de malha metálica brilhou brevemente, uma tela fina e perfeitamente entrelaçada que se esticava tanto quanto ela podia ver. Que Sorte a proteja. Cobriram todo o Cairo?

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Adiante, mais três veículos bloquearam o caminho. Dois perseguiram por trás, e o caminho para cima foi fechado. Ela jogou uma série de feitiços de abertura na casa mais próxima. Kashkari fez uma curva inclinada. Eles atravessaram a porta da frente em uma passagem escura e estreita e viram as escadas apenas a tempo de puxar o tapete. No final do topo da escada, Kashkari fez um guincho girando o tapete completamente de lado. Eles se encaixaram através de uma janela estreita e quase ficaram presos em um emaranhado de varais de roupa do lado de fora. Uma manga meio molhada – ou era uma perna de calça? – caiu do seu do ombro quando mergulharam em um beco, não mais largo do que um braço. — E se eles fecharem a cidade inteira? — O medo soou em sua pergunta. E se tudo o que eles conseguissem, evadindo os carros blindados, fosse entrar naquela rede mortal em algum lugar do caminho? Mais roupas. Aquilo era um burro que eles evitaram? Outra garra se dirigiu para eles. Kashkari empurrou o tapete em uma porta que Iolanthe abriu para ele. Cheiros estranhos assaltaram suas narinas – eles entraram em uma reunião de fumantes de haxixe? Os rostos que se voltaram para eles nos divãs baixos que se alinhavam nas paredes tinham expressões de surpresa vaga, em vez de espanto. Então eles saíram por outra porta para um jardim murado. Kashkari manteve o tapete o mais baixo possível conforme eles escalavam as paredes – ela podia sentir os pedaços de vidro irregulares encravados no topo do muro raspando no fundo do tapete. Graças a Deus, eles estavam em um tapete de batalha e ele era grosso. — Você se arriscaria a voltar para Eton? — Veio a pergunta de Kashkari, entre um mergulho repentino e outra curva apertada. Uma corda caiu do nada. Suas garras se precipitaram para Iolanthe com uma velocidade aterradora. Ela gritou enquanto enviava a água de um poço próximo para as garras – transformando-a em gelo, congelando-as para que não pudessem se fechar ao redor dela. — Apenas nos tire daqui!

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Mais uma curva, becos estreitos, casas mais humildes passavam por eles. As ruas tornaram-se mais largas, mais retas, iluminadas por lâmpadas de gás; as casas de ambos os lados tinham sacadas e as janelas de treliça elegantes que não teriam parecido fora do lugar ao longo de uma grande Avenida em Paris. Kashkari parece conhecer bem o bairro: ela podia ouvir a agitação e a multidão em uma rua próxima, mas naquela que eles voavam estava inteiramente vazia de pedestres, seus residentes ou sentaram para jantar ou foram para a rua movimentada, para o seu entretenimento noturno. — Vê esse edifício? Essa é a casa da ópera. Não acho que a temporada tenha começado, então deve estar vazio. Abra todas as janelas e portas como você fez antes. Você tem algo que pode parecer um pouco como nós, para atuar como dublês falsos? Ela pensou descontroladamente. — Tenho uma barraca. Ela pode assumir várias formas. — Prepare-a. Ela puxou a tenda da bolsa – a barraca que serviu como abrigo para ela e Titus durante os dias no deserto. Eles entraram por uma porta lateral e pararam tão de repente que quase caíram. Kashkari saltou do tapete e fez um gesto para que ela fizesse o mesmo. Ela abriu a barraca e a moldou grosseiramente, de modo a parecer dois cilindros esguios e unidos. Eles amarraram a tenda no tapete. Kashkari enfeitiçou-o para voar por um longo corredor e em direção à porta aberta na outra extremidade. — Venha comigo. Ele a conduziu até o nível abaixo do palco, por vários corredores. Eles viraram e viraram, parecendo dar voltas em círculos, antes que Kashkari abrisse uma porta para um quarto escuro e apertado e pedisse luz mágica. Ele praguejou. — Eu não o encontro. — Estamos no lugar certo? — Sim. Quando fui à Inglaterra no início de semestre de São Miguel, estava aqui. Sempre esteve aqui. — O que é, exatamente?

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— Um guarda-roupa de porta dupla. Enorme. Com arabescos e prateleiras em todos os lugares. Você não pode perder isso. Eles se depararam com prateleiras, cabideiros e baús, mas nenhum guarda-roupa, armários ou cômodas, grandes ou pequenos. Ela o agarrou pelo braço. — Você ouviu isso? Eles não estavam mais sozinhos no porão. Eles demoraram muito – os atlantes descobriram o ardil deles. Ela controlou o pânico. — Espere! Você disse que a temporada teatral ainda não começou? Quando começa? Ele olhou para ela um segundo. — Nesta direção! Eles correram até o nível do auditório. A peça teatral estava prestes a começar, o que significava que os ensaios devem ter começado. Nenhum deles participou das produções dramáticas de Eton, mas Sutherland sim, e às vezes ele falava sobre essa experiência. Os ensaios anteriores eram sempre realizados com os adereços do palco, de modo que os atores sabiam onde estariam os adereços e como caminhar pelo cenário até eles. Mas não havia nada no palco, exceto uma cama, coberta de sedas e veludos muitos escuros. Eles encararam um ao outro, arrasados. Então, com um lamento suave, Kashkari correu para o palco. Ele arrancou os acessórios vermelho e dourado e levantou várias camadas de estofamento. Agora ficou claro que debaixo dos cobertores não havia um estrado de cama, mas um enorme armário deitado. Iolanthe o ergueu com um feitiço de levitação e o colocou em pé. Eles entraram e fecharam as portas. — Fora da frigideira, pelo menos, — ela disse. Kashkari exalou. — Aqui está para entrar no fogo.

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Capítulo 7 — Repita novamente, — Titus pediu. — Lady Callista e a Comandante Rainstone são meias-irmãs. Uma era a amante do regente, o poder por trás do trono, e a outra a cargo de defender o Domínio de ameaças externas. E ainda assim Titus, o Mestre do Domínio, não sabia nada disso. — Quem mais sabe? — Eu não sei, senhor. Posso te dizer que nunca fui informado, mas ouvi uma discussão entre as duas. A Comandante Rainstone estava criticando Lady Callista por não ter compreendido o conceito de lealdade. Por não entender por que a Comandante Rainstone estava tão perturbada por ter sido demitida do serviço de Sua Alteza. Para você, o valor de todos é apenas no que eles podem fazer por você, ela disse a Lady Callista. E então acrescentou: Eu gostaria de nunca ter descoberto que somos irmãs. A Comandante Rainstone foi transferida de posto pela princesa Ariadne, a mãe de Titus, depois que ela viu a Comandante Rainstone bisbilhotando o seu diário pessoal, no qual ela escrevia todas as suas visões proféticas. Nem Titus nem sua mãe conseguiram entender essa transgressão da parte da Comandante Rainstone. Mas agora Titus começava a ver como a Comandante Rainstone poderia ter sido forçada

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para isso, por uma irmã que queria desesperadamente saber se havia profecias dentro desse diário sobre a filha dela. — Nunca mencionei a nenhuma delas o que eu ouvi, — Haywood continuou. — Mas tenho certeza que elas deixaram de passar tempo juntas depois disso – a questão com Sua Alteza foi provavelmente o peso que quebrou um vínculo já desgastado. Titus pensou. Ele já viu Lady Callista e a Comandante Rainstone no mesmo lugar? Sim, ele viu, na festa do jardim na Cidadela, a qual foi invadida por Amara. Mas as duas mulheres estavam separadas pela multidão, e a Comandante Rainstone era bem conhecida por sua falta de intenção de participar de funções sociais na Cidadela. — Mas se elas se reconciliaram nos anos depois que desisti da minha memória, não posso dizer. Eu nunca precisei lidar com Lady Callista depois disso. E mesmo com a Comandante Rainstone, gradualmente nos separamos, dado os meus próprios problemas. Um silêncio caiu. Titus estudou o homem que sofreu tanto por sua devoção a Lady Callista. Ele poderia culpar Haywood por não ter se dedicado a Iolanthe como deveria nesses últimos anos de seus problemas – e uma versão mais nova de si mesmo poderia muito bem ter feito isso. Mas como poderia, quando ele a machucou tanto? Talvez mais. — Ela te admira tanto, sua protegida, — ele disse ao homem mais velho. Haywood sorriu; o sorriso de um homem tentando reter emoções maiores. — Eu não mereço isso, mas estou muito agradecido de que seja assim. — E acredito que ela prefere ter crescido com você a Lady Cal... Ele carregava a metade do pingente no bolso da calça, embrulhado em um lenço. Mesmo através do tecido, a sensação de frio era inconfundível. Mas de uma só vez a temperatura do pingente mudou o suficiente para ele notar. Ele o tirou do bolso, desenrolando o lenço impacientemente.

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O metal meio oval no interior estava apenas mais frio do que a temperatura ambiente. A localização dela mudou milhares de quilômetros. O que aconteceu? A perseguição de Atlantis continuava? Ela estava a caminho do Palácio do Comandante? — Senhor? — Haywood perguntou hesitantemente. Titus se levantou. Havia um mapa na parede do apartamento, um mapa não mago. Mapas não magos eram imprecisos por sua própria natureza, mas ele ainda deveria ter uma ideia aproximada da localização dela. Ele pressionou o pendente contra o mapa e recitou uma longa série de feitiços. Um ponto apareceu na costa da Córsega. — Que diabos. — Se eu puder, senhor, — Haywood disse. — Não estive muito ocupado recentemente, então tentei converter este mapa em um mapa mago. Embora eu tema, minha precisão deixa muito a desejar. Revela omnia. As linhas no mapa se torceram e se contorceram quando os reinos do continente mago se espremeram e áreas terrestres que nunca foram vistas por olhos não magos apareceram nos oceanos. Agora o ponto caiu no meio do Canal da Mancha. Que diabos. Então ele se lembrou do que Kashkari havia dito: No Cairo, há um portal unidirecional criado por meu irmão que vai diretamente para a casa da Sra. Dawlish. *** O odor agrediu as narinas de Iolanthe no momento em que ela e Kashkari se materializaram no escuro e lotado armário de vassouras. Ela tentou desmaterializar, com a mão de Kashkari em seu cotovelo. Eles não foram a lugar algum – a zona sem desmaterialização ainda estava no lugar.

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Passos vinham na direção deles, rápidos e ameaçadores. Iolanthe e Kashkari saíram do armário, ela pediu iluminação, ele abriu um tapete reserva. O quarto estava lotado com banheiras de imersão, prensas de tecido e cabides de secagem. Ela não se incomodou em tentar a porta ou a janela plana colocada no alto da parede. A lavanderia foi uma adição posterior a casa, presa em uma extremidade. Ela ergueu a mão, e um relâmpago disparou e explodiu um buraco no teto. Eles subiram no tapete e aceleraram em uma noite chuvosa e fria. Nevoa cobriu-os, os vapores vagamente laranja à luz das lamparinas. As janelas abriram-se nas casas próximas. Uma voz que soava bem como a de Cooper falou. — O que está acontecendo? Fomos atingidos pelo raio? Iolanthe fechou a mão. Toda a iluminação com fogo dentro de um raio de sessenta metros sumiu. A noite ficou escura. — Dirija para o oeste, — ela disse a Kashkari. O tapete cortou a noite, saindo da cidade em segundos – Eton era muito mais longa do que ampla, e as residências já acabavam perto do seu limite ocidental. Iolanthe deixou que o fogo voltasse para as lâmpadas e os candeeiros – não era bom mexer com dispositivos que queimavam a gás. — Para onde no oeste? — Kashkari perguntou. A pergunta deixou Iolanthe perplexa. Ela desmaterializou muitas vezes na cervejaria abandonada que abrigava a entrada para o laboratório de Titus, mas nunca viajara por meios convencionais. Ela, de fato, não tinha ideia exatamente o quão longe era ou se poderia sequer reconhecer o lugar do lado de fora em plena luz do dia. Então sentiu a metade do pingente que carregava se aquecendo abruptamente. — Titus está aqui! Ela pressionou o pingente na mão de Kashkari. — Continue na direção certa e ele continuará a ficar mais quente. A noite ficou brilhante como um dia – chegou um esquadrão de carros blindados, cintilando sua luz áspera e implacável sobre o campo.

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De suas barrigas metálicas, caíram as varas do tamanho de mesas que perseguiram Kashkari e Iolanthe por todo o Cairo. No Cairo eles tinham a vantagem da paisagem urbana. Aqui estavam a céu aberto, sem lugares para se esconder, e nem a escuridão para ajudá-los a desaparecer. Apesar do vento de cauda que ela aplicava ao tapete, as varas se aproximavam. Ela desejou que o solo sob um grupo de árvores se afrouxasse, içou as árvores com feitiços de levitação e as enviou para as varas. As varas esquivaram seus mísseis. Ela convocou a água do Tâmisa e ergueu uma parede de gelo. Um carro bateu na parede, mas os outros pararam a tempo. Em vez de erguer outra parede de gelo, ela quebrou a existente e jogou os blocos do tamanho de pedra em seus perseguidores. Dois dos carros foram atingidos e desviaram sua trajetória. Mas o resto estendeu os braços mecânicos e pegou os pedaços de gelo ou os afastou. E havia tantos deles, um enxame inteiro. Onde estava a cervejaria? Se não a encontrassem agora, eles nunca conseguiriam. Ainda mais varas caíram do céu, uma tempestade de granizo particularmente perniciosa. Seus longos braços mecânicos foram esticados para Iolanthe de todas as direções, e Kashkari já estava voando o mais baixo possível sem raspar o chão. — Faça alguma coisa! — Kashkari gritou. Mas o que mais ela poderia fazer? Ela olhou violentamente e não viu nada além de garras e armaduras de metal. — Desmaterialize! — A voz de Titus soou clara como um sino da igreja. — Você está fora da zona sem desmaterialização agora! A mão de Kashkari já agarrava seu braço. Ela fechou os olhos e pensou no interior da cervejaria. No instante seguinte, ela e Kashkari caíam no chão da cervejaria, jogados contra uma pilha de barris velhos pela velocidade residual do tapete. Antes de pararem completamente, eles já estavam de pé. Titus – e Mestre Haywood!

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— Vamos lá. Apressem-se! A porta do laboratório estava aberta, a luz se espalhava do interior familiar, com sua longa mesa de trabalho e paredes cheias de prateleiras e armários. Eles correram para dentro. Titus entrou por último, fechou a porta e gritou: — Extinguatur ostium6! *** Iolanthe se agarrou a Titus, seu corpo inteiro tremendo, sua respiração acelerada e sibilante. Ele quase a esmagou em seus braços. — Que a Sorte me proteja, — ele disse com a voz rouca. — Por um momento eu pensei que eles capturariam você. Agora ela abraçava o Mestre Haywood. Ele beijou seu rosto e acariciou seus cabelos. — Eu pensei que deveria haver alguma magia de arquivamento que eu poderia exercer. Mas fiquei como um espaço totalmente em branco. Eu estava com medo, como um completo idiota. — Estamos bem, — ela respondeu; ofegante. — Não se preocupe. Estamos bem. Ela também abraçou Kashkari, que, como ela, ainda estava ofegante. — Aquelas foram manobras de voo excelentes, velho amigo. Você nos salvou. — Eu pensei que estávamos acabados. Pensei que seria assim... Ele parou de falar abruptamente. Um desconforto que se tornava muito familiar enrolou em torno de seu coração, mas ele apenas ergueu a mão para a têmpora e tocou com cautela o corte que deveria ser resultado de bater a cabeça em um barril de sidra. Titus já havia umedecido um pano com alguma poção. Ele ordenou que Kashkari se sentasse. — E você está bem? — Ele perguntou a Iolanthe enquanto limpava a ferida de Kashkari. — Alguma dor de cabeça, náusea ou fraqueza?

6 Extinguir entrada.

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— Estou bem. Você tem certeza de que todas as conexões entre a cervejaria e o laboratório foram cortadas? — Sim. — Despois que ele colocou uma atadura na têmpora de Kashkari, ele extraiu alguns frascos de várias gavetas e entregou-os a Iolanthe.



Tome

estes

para

se

prevenir.

Você

não

deveria

desmaterializar dentro de sete dias depois de qualquer trauma grave o suficiente para exigir panaceia. Ela havia se esquecido disso. Após tomar os remédios, Mestre Haywood mais uma vez a abraçou, o coração dele batendo rapidamente contra seu peito. — Que a Sorte me proteja. Acho que ainda estou como um idiota assustado. — Estou segura agora. Estamos todos seguros agora. Dentro do espaço dobrado que o laboratório ocupava, eles não poderiam ser rastreados ou encontrados. Finalmente, ela soltou Mestre Haywood e lhe apresentou Kashkari. Os dois apertaram s mãos. — O que aconteceu? — Titus perguntou. — Como a Atlantis encontrou vocês? Iolanthe tirou a varinha Validus, entregou-a para Titus e relatou a anomalia envolvendo as coroas com incrustações ao longo da varinha lâmina. A expressão de Titus ficou triste. — A menos que eu esteja muito enganado, Atlantis agora tem acesso à varinha filha de Validus. — O que é isso? — Todos os outros disseram em uníssono. — A maioria das varinhas de lâmina vem em pares, varinha mãe e varinha filha. A varinha filha não é particularmente notável: não amplifica o poder de um mago mais do que uma varinha comum, mas herda as propriedades da varinha mãe se a última for destruída. Quando Hesperia, a Magnífica criou Validus, ela fez modificações em sua varinha filha, que poderia ser usada para rastrear a varinha mãe. Por isso, a varinha filha de Validus é mantida em um local secreto, para não ser usada a menos que aquele que maneja a Validus seja considerado morto ou capturado.

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— Mas você também não está, — Iolanthe disse. — Tente dizer isso ao regente. — Ele franziu a testa. — Pensando nisso, não sei se Alectus saiba disso. Alguém como a Comandante Rainstone é mais provável que esteja em posse de tais conhecimentos. — Você pode pedir a Dalbert para descobrir? — Foi por isso que ele os deixou em primeiro lugar, para conseguir as informações que Dalbert poderia ter reunido. — Você faz isso, — Titus disse. — Vou pegar um pouco de água para o chá. — Certamente eu posso buscar água para você, senhor, — Mestre Haywood disse. — Está escuro. Você não conseguiria encontrar a bomba. Até Iolanthe não sabia onde a bomba estava – sempre que ela chegava ao laboratório, a chaleira estava sempre cheia. E então, com o olhar confuso no rosto do Mestre Haywood, ela explicou: — O príncipe não vai voltar de onde viemos. O laboratório também está conectado com um farol na ponta norte da Escócia. Ela escreveu uma mensagem na bola de digitação que Titus costumava usar para se comunicar com Dalbert. Então, introduziu uma folha de papel por baixo, para receber as mensagens que ele poderia ter enviado durante o tempo no deserto. As chaves começaram a clicar. Quando estava recolocando o papel, Titus voltou. — Há uma tremenda neblina lá fora. Passei pela bomba duas vezes antes de encontrá-la. Ele colocou a água no fogo, leu as mensagens com ela e transmitiu o que descobriram a Kashkari e o Mestre Haywood. — Houve uma reunião do regente e seus conselheiros mais próximos na noite em que Fairfax e eu chegamos ao deserto – na noite em que convoquei a fênix da guerra. Tem havido frequentes reuniões desde então, entre o regente e seus conselheiros, e entre o regente e o Inquisidor atual. E Lady Callista ainda está sendo mantida no Inquisitório. O Mestre Haywood juntou as mãos na mesa. Iolanthe reconheceu isso como um sinal de nervosismo da parte dele – depois de todo esse

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tempo, ele ainda se importava com Lady Callista. — Se eles ameaçam a segurança dela, o regente certamente dará a eles o que querem. Havia um traço de piedade nos olhos de Titus enquanto olhava para o Mestre Haywood? — Essa é uma visão romântica. Receio que o regente lhes tenha dado o que eles queriam, mesmo que Lady Callista esteja perfeitamente segura – por natureza, Alectus anseia pela imagem de seu poder. Ele não tem coragem de negar qualquer pedido feito por Atlantis. Kashkari franziu a testa. — Isso é tudo o que seu espião tem para contar? — Há um pouco mais. Ainda não foi dito ao público. E meus súditos não têm suspeitas particulares no momento, já que geralmente não faço aparições na capital. Eles ainda acreditam que estou na fortaleza da minha montanha, estudando como um bom príncipe. Titus olhou para Kashkari. — Mas você está certo. Eu esperava muito mais. Agora me pergunto se meu espião está sob vigilância. — Então, o que devemos fazer agora? — Kashkari perguntou. A chaleira apitou. Titus fez chá e distribuiu biscoitos de uma lata. — Nós providenciamos para que todos tenham um lugar para dormir. O farol tem um par de quartos para comissários visitantes e viajantes distanciados pelo mau tempo. Parece que um dos quartos já está sendo usado. Uma vez que a senhorita Seabourne ainda deveria abster-se de desmaterializar tanto quanto possível, eu recomendo que a deixemos ter um quarto. Os senhores podem ficar na pousada em Durness, a vinte quilômetros de distância. Os cavalheiros murmuraram o consentimento. Eles beberam o chá. Kashkari e Titus discutiram as varas blindadas enquanto Iolanthe perguntava ao Mestre Haywood sobre a vida dele em Paris. — Eu gosto bastante da padaria ao virar da esquina. O mil-folhas me lembra daquele que costumávamos comprar na loja da Sra. Hinderstone. Você se lembra da loja da Sra. Hinderstone? — Claro, — ela disse. — Era um dos meus lugares favoritos em Delamer.

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— Há uma placa lá que você adorava, foi deixado para trás de quando o lugar era uma livraria. — Livros de Artes Obscuras podem ser encontrados no porão, gratuitamente. E se você localizar o porão, gentilmente alimente o fantasma gigante lá dentro. Saudações, E. Constantinos. — Sim, essa. Você sempre ria disso. Sempre entendeu que era uma piada. Ele sorriu com a lembrança da menina que ela havia sido. Seu peito apertou. — Você gostava de ir lá porque foi onde você conheceu Lady Callista? — Não, eu ia porque adorava a forma como seu rosto se iluminava sempre que cruzava o limiar. Havia outros lugares que vendiam alimentos semelhantes, mas a Sra. Hinderstone era a única para você. E você sempre gostou de sentar na mesma mesa, junto à janela, e observar todos na University Avenue. — Algum dia nós iremos lá, — ela disse impulsivamente. — Algum dia, quando tudo isso estiver acabado, nós pediremos a Sua Alteza um favor especial, para lhe devolver seu antigo cargo de professor. Então você poderá ensinar novamente, e talvez eu dê algumas das suas aulas, se eu conseguir ser admitida. — Vamos pedir um favor especial para isso também, — Mestre Haywood disse, entrando no espírito das coisas. Ela riu. — E também teremos nossa velha casa. E será como se... Até parecerá... Ela percebeu quão boba deveria soar. Como se eles pudessem fingir que nada havia mudado quando ambos agora sabiam que o arranjo que ela achou tão maravilhoso foi a fonte de uma grande dor e confusão para ele? Seu guardião colocou a mão em seu ombro. — Sim, vamos fazer, se possível. Esses foram alguns dos dias mais felizes da minha vida. Eu ficaria encantado de voltar ao Conservatório, voltar para a casa antiga, exceto que desta vez você estará crescida e frequentará minhas aulas.

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Ela pegou a mão dele, dominada pela alegria e tristeza. — Obrigada. Eu adoraria isso. Eles não disseram mais nada por um tempo. Parecia que o laboratório tinha ficado em silêncio, tanto Titus quanto Kashkari olhavam para eles, o primeiro com melancolia, enquanto o último... Kashkari a olhou com tristeza. Ele rapidamente se virou para Titus. — Faz um longo período de vinte e quatro horas e estou desgastado. É possível ir para a pousada logo? — Claro. Vou te desmaterializar até lá. Mestre Haywood, você pode ficar aqui durante o tempo que quiser. Posso voltar por você mais tarde. Mestre

Haywood

se

levantou.



Não,

senhor.

Você



desmaterializou demais neste dia. Eu também irei. Ele abraçou Iolanthe novamente. — Estou tão feliz por você estar segura. Ela o beijou em ambas as bochechas. — Da mesma forma. Até amanhã. Com o Mestre Haywood e Kashkari esperando lá fora, Titus beijou Iolanthe na testa. — Eu trarei uma refeição para você, — ele prometeu. — Eu já comi, — ela lembrou. — Eu sei, — ele murmurou. E beijou-a novamente antes de sair. *** A pousada era simples, quase rústica, mas era quente dentro e a comida decente – Titus poderia atestar a qualidade da cozinha, pois comprava a sopa e o sanduíche ocasional do lugar. Estava ficando tarde. O proprietário informou seus novos convidados de que eles deveriam se apressar se quisessem comer alguma coisa. Haywood se curvou para Titus e encaminhou-se para a taberna.

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— Você poderia colocar alguma comida em uma cesta para mim? Eu não estou com fome agora, mas posso sentir mais tarde, — Titus disse ao proprietário. — Isso pode ser feito, — disse o homem com seu sotaque escocês acentuado. — Você vai querer em seu quarto, senhor, ou vai esperar? — Eu espero. — Alguma coisa para você, jovem? — O proprietário perguntou a Kashkari. — Não, obrigado. Eu estou bem. — Kashkari se virou para Titus. — Posso ter uma palavra com você? Algo na solenidade do tom de Kashkari fez o estômago de Titus afundar. — Sim, é claro. Eles saíram da pousada, que estava envolta em névoa. Kashkari definiu um círculo de som. Titus colocou as mãos nos bolsos e desejou não tremer – o que eram roupas suficientes para Paris pareciam como folhas de papel no frio ártico próximo da ponta noroeste da Escócia. Kashkari trocou para um conjunto de roupas sobressalentes que havia no laboratório de Titus. Ele deveria estar congelando também, mas parecia não sentir os dentes batendo. — Antes de deixar Luxor hoje, você me perguntou se eu tive algum sonho profético do qual você deveria saber. — E você disse que me avisaria quando tivesse. Na fraca luz lançada por uma lanterna pendurada na porta, as feições de Kashkari entravam e saíam do nevoeiro. — Eu tive um sonho esta manhã. Os vapores penetraram através de todas as camadas das roupas de Titus para encerrá-lo em seu amargo abraço. — Eu imaginei. — Não foi um sonho feliz, e acordei esperando que isso desaparecesse da memória – ocasionalmente eu tenho pesadelos, como todos os outros. Um sonho comum desaparece com o tempo, mas um sonho profético só aumenta em clareza e detalhe. Kashkari raspou o fundo de sua bota contra o relvado curto debaixo de seus pés. — Este não desapareceu.

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Tão frio – e cada vez mais frio por segundo. — Você sonhou com a morte de alguém, não é? — Titus se ouviu perguntar. Kashkari ficou surpreso. — Como você adivinhou? Em vez da névoa, Titus viu o campus do Conservatório de Artes e Ciências Mágicas. Estudantes na University Avenue. As torres de sino. A extensão aberta do grande gramado. Ele viu Fairfax sentada em um cobertor debaixo da árvore de starflower7. A árvore estava florida, cheia de pétalas do mais claro rosa. Sempre que uma brisa soprava, pequenas flores caíam em seu cobertor, seus ombros, seus cabelos. Ele nunca se sentaria lá com ela. Nunca compartilhariam uma cesta de piquenique da Sra. Hinderstone. E ele nunca saberia como seria em dez, vinte e trinta anos. — Essa morte tem sido profetizada há muito tempo, — ele disse. — E a pessoa em questão soube disso antes. Kashkari parecia incrédulo e aliviado. — Mas você tem certeza? — Eu tenho. — Mas... mas eu ouvi Fairfax falando com seu guardião agora mesmo, e ela não pareceu ter a menor ideia. Por algum tempo, as palavras de Kashkari flutuaram entre eles, não fazendo sentido. Então, de repente, Titus tinha as mãos nas lapelas de Kashkari, quase levantando-o do chão. — O que você disse? O que você quer dizer com Fairfax não ter a menor ideia? O que tem ela com sonhos proféticos sobre a morte? Kashkari olhou para ele. — Eu pensei que você havia dito que ela sabia. Titus tropeçou um passo. Então outro. — Você viu Fairfax? Fairfax? A voz de Kashkari quebrou. — Temo que sim. Desculpe. — Onde? Onde ela estava? — Titus estava gritando, mas só assim ele podia se ouvir sobre o tumulto em sua cabeça.

7

Planta com flores particularmente estreladas.

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— Ela estava deitada em um chão de mármore com incrustações do símbolo do redemoinho Atlante. — Como você sabe que ela estava morta? Ela poderia estar inconsciente. — Você também estava no meu sonho. Você sacudia a cabeça, com lágrimas nos olhos. Titus não conseguia respirar. Em sua mente, ele viu o Conservatório novamente. Os alunos, as torres de sino, o grande gramado, a linda árvore florida. Mas agora o cobertor debaixo da árvore estava vazio. Kashkari ainda falava – ou pelo menos seus lábios estavam se movendo. Mas Titus não ouviu nada. Tudo o que ele queria era que ela passasse por tudo isso incólume – tivesse uma vida maravilhosa, rodeada de amor e risos. Tudo o que ele queria era uma única esperança para iluminar seu caminho, quando toda ambição e coragem falharam. Ele levantou a mão. Os lábios de Kashkari pararam de se mexer. Ele olhou para Titus, com os olhos escuros com tristeza. Mas ele estava apenas perdendo uma amiga. Titus estava perdendo tudo. A pesada porta da pousada se abriu. O proprietário se inclinou, uma cesta na mão. — Eu vou para a cama agora. Mais alguma coisa que vocês precisem, senhores? Titus pegou a cesta e balançou a cabeça. O

proprietário

desapareceu

no

interior

quente

de

seu

estabelecimento, à sua pacífica e ordenada existência. — Existe alguma coisa que eu possa fazer? — Kashkari perguntou; sua voz mal audível. Além de se encolher, o que alguém poderia fazer quando o calcanhar do destino descia? Titus desmaterializou sem outra palavra. ***

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Ele se materializou em Cape Wrath e ficou no nevoeiro, tremendo. O cheiro do mar queimava seus pulmões com cada respiração. O Atlântico invisível batia contra os promontórios, ondulando de forma incessante. No alto, as luzes do farol cortavam trilhas fantasmagóricas através do vapor espesso, um aviso severo para os navios marítimos se manterem longe dos penhascos traiçoeiros. Durante toda a sua vida, ele dirigiu-se para penhascos tão traiçoeiros. Mas, de alguma forma, ele havia conseguido se iludir de que ela evitaria esse acidente fatal, espalharia as asas a tempo de salvar-se e desapareceria. Ele a dotou de toda a imortalidade que ele desejava possuir. Mas ela era apenas carne e sangue. Ela poderia tropeçar facilmente e cair, os olhos vazios, os membros sem vida. E ela iria. Ele queria desesperadamente segurá-la nos braços, sentir a batida de seu coração e o calor de seu peito. Mas não conseguiu mover os pés, mesmo que estivesse gelado até os ossos, dificilmente conseguia sentir os dedos apertados em torno da alça da cesta. Ele ainda estava atordoado, ainda entorpecido de choque e descrença. No momento em que a visse, ele se despedaçaria. Uma porta se abriu na base retangular do farol, onde os quartos estavam localizados. As luzes se espalharam, deixando uma figura iluminada na entrada, observando. Era ela, verificando o retorno dele, preocupada por ele estar demorando demais. Ele não podia encará-la. Não podia enfrentar a raiva e o sofrimento que começariam a pulsar em suas veias. Ele não podia enfrentar um futuro em que ele vivia apenas para o dever, não após saber o que era viver com cada respiração e cada pensamento. Ele ergueu a varinha e apontou para a cabeça dele. Era a mais covarde das escolhas. Mas ele se permitiria: poucas horas livres do conhecimento da morte iminente dela.

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Algumas horas dele, dela e um futuro que incluía dias ensolarados debaixo de uma árvore invernal, com amigos prestes a chegar a qualquer momento.

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Capítulo 8 Iolanthe estava debatendo se deveria limpar o nevoeiro para que pudesse ver mais longe, quando Titus emergiu dos vapores rodopiantes. Ela correu para ele. — Por que demorou tanto? Que a Sorte me proteja, suas mãos estão congeladas. Onde você esteve? Seus lábios também estavam gelados enquanto pressionavam contra a bochecha dela. — Desculpa. Eu estava lá fora. Ela o puxou para dentro e fechou a porta com força – seus dentes estavam batendo. — Por quê? O que Kashkari te contou? Ele se recostou contra a porta, os olhos meio fechados. — Ele me contou o que viu nesta manhã em seu sonho profético. O coração dela parou. — O que ele disse? Titus exalou lentamente, com cuidado. — Eu suprimi essa memória por enquanto. Vai voltar amanhã, mas no momento não tenho ideia do que ele disse. A única outra lembrança que ele já havia suprimido dizia respeito aos detalhes da profecia sobre a morte dele. Ela sentiu a cabeça clara, como se estivesse à beira de um abismo, e suas profundidades sem fundo estavam atraindo-a para frente. Os dedos dela apertaram os dele, a mão dele estava tão fria. Ela ignorou o clamor terrível em sua cabeça e puxou-o pelo corredor em

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direção ao banho. — Há uma tina de banho lá dentro. Eu já preenchi com água quente. Entre e se aqueça. — Você provavelmente a encheu para você. Não quero tirar o seu banho. Ela indicou o pijama que usava – desde que eles começaram a se preparar para deixar a escola rapidamente, o laboratório ficou muito melhor equipado com materiais como alimentos, roupas de cama e roupas de reserva. — Eu já tomei banho – você precisa se aquecer. O interior do banheiro estava cheio de vapor, um eco das condições externas, exceto que estava quente e cheirava do pouco musgo de prata seco que ela encontrou no laboratório e jogou na água. — Me desculpe, — ele disse enquanto eles ficavam um de cada lado da entrada. — Me desculpe por trazer notícias terríveis sem ser corajoso o suficiente para dizer o que é. O estrago do deserto ainda estava sobre ele. Seus olhos estavam vazios, suas bochechas igualmente. O coração dela quebrou. — Não pensemos nisso. — Como? Como você não pensa em um desastre iminente? De fato, como. Ela colocou a mão na lapela dele, a lã ainda estava úmida do nevoeiro. — Você lembra por que convoquei meu primeiro relâmpago, em Little Grind-on-Woe? — Você disse que estava tentando corrigir um lote de elixir de luz que foi arruinado. — Eu me ofereci para fazer o elixir de luz para um casamento – não foi pela bondade do meu coração, eu menti para você. Os aldeões estavam reclamando do Mestre Haywood, porque ele não era muito bom professor para seus filhos. E eu esperava que fazendo o que pudesse pelo casamento de Rosie Oakbluff, sua mãe, que tinha o poder de demitir o Mestre Haywood, deixaria que ele permanecesse no local até depois dos meus exames de qualificação para as academias superiores. Exceto que eu não fui devidamente educada desde que chegamos a Little Grind. Com sorte, eu poderia passar nos exames de qualificação, mas a chance de ficar em uma posição boa o suficiente para receber uma bolsa era quase

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nula. Nossas finanças estavam bastante esgotadas nesse ponto; sem uma subvenção considerável, uma educação superior da academia estava além dos nossos meios. E nenhuma universidade olharia para um candidato que não passara pelo rigoroso programa preparatório de uma boa academia superior. — Mas todos os dias, depois de terminar de ensinar os alunos do Mestre Haywood, após corrigir as lições de casa, marcar os testes e me preparar para o próximo dia de treino, eu sentava na minha mesa e olhava para um antigo calendário cheio de fotos do Conservatório. E então eu estudava durante as horas restantes do dia. Eu ofereci meu serviço a Sra. Oakbluff como um favor, e até fui convocar um relâmpago para reviver o elixir de luz prateada para o casamento da filha dela, tudo por algo que era essencialmente impossível desde o começo. — Ela sorriu. — Soa familiar? Ele olhou para ela, seus olhos solenes e lindos. — Um pouco. — É o mesmo aqui. As profecias provavelmente acontecerão, mas não vou conceder nada até então. Não vou me desesperar agora porque uma sombra poderá cair amanhã. — Ela tocou seu cabelo, também úmido do nevoeiro. — Ou talvez eu já tenha me desesperado – e decidi que enquanto o desespero é bom como uma indulgência ocasional, ele não pode ser servido três vezes por dia. Ele pegou sua mão e pressionou a ponta dos dedos nos lábios. — É tão simples assim? — O quê? Uma grande ajuda da teimosia, mais uma gentil pitada de loucura? Claro. Se você precisar de algo mais, tenho certeza de que podemos encontrar no laboratório. — Ela o beijou na bochecha. — Agora entre naquela banheira antes que a água fique gelada. *** Ela carregou a cesta de alimentos de volta ao laboratório. Nela continha sopa, sanduíches e um pudim. Alimentos típicos dos ingleses –

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e exceto a sopa, tudo estava frio. Ela aqueceu tudo da melhor maneira possível, observando suas chamas cuidadosamente para ter certeza de que não queimaria o pudim ou os sanduíches. No segundo seguinte, ela estava soluçando, prostrada sobre a mesa de trabalho, o sofrimento inundando-a como uma onda de tempestade, cada onda mais impiedosa que a anterior. Quão louca ela era por acreditar que poderia fazer a diferença. Que ela sozinha poderia salvá-lo de uma desgraça certa. E cada vez que enganavam a morte, cada vez que emergiram incólumes de uma situação impossível, sua crença ficava mais forte. Por que ela deveria ter recebido o controle da centelha divina, se não fosse possível desafiar todo esse destino mal escrito? O que a princesa Ariadne previu? Que detalhe terrível o sonho de Kashkari adicionou a esse futuro viável? Eles a viram de joelhos perto do seu corpo sem vida, gritando de fúria e inutilidade? Será que mencionaram que ela destruiria tudo em seu caminho depois, deixando apenas o fogo e a ruína? Uma mão pousou no ombro dela. — Eu tenho teimosia e loucura lado a lado nesta prateleira aqui. Qual você não conseguiu encontrar? Ao som da voz dele, seus soluços ficaram ainda

mais

incontroláveis. — Você também possui um jarro de ilusão? O meu se esgotou. Ele a levantou da mesa de trabalho. — Não, eu sou contra ilusão extra. Mas eu tenho um pouco de sentido, se você quiser. — O que é isso? Ele enxugou o seu rosto com um lenço macio. — Você não deve se desesperar agora porque uma sombra pode cair amanhã. Mais lágrimas escorreram pelo rosto dela. — Que a Sorte me proteja. Onde ouvi esse antigo ditado antes? — Uma maga excêntrica me disse antes de eu entrar no meu banho. Talvez você a conheça: garota linda, mas assustadora – irá eletrocutá-lo se você não for cuidadoso.

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Sem querer, ela sentiu seus lábios se curvar no início de um sorriso. — E o que você faz para que ela não o eletrocute? — Eu a distraio com alqueires de pétalas de rosa. Ela ama esse tipo de lixo sentimental. Ela bufou. As pétalas de rosa eram uma piada entre eles desde o início do semestre de São Miguel, exceto que foi ela quem o ridicularizou por usá-las como forma de romance. — Você quer ver algumas das distrações que eu havia preparado para que ela não fosse me ferir? — Deixe-me adivinhar: a lua e as estrelas? — Perto o suficiente. — Ele caminhou até um armário trancado, abriu e extraiu uma esfera do tamanho do globo do mundo que Cooper mantinha em seu quarto na casa da Sra. Dawlish. Escurecendo a luz do lugar, ele disse: — Astra castra8. A esfera explodiu. Inúmeras estrelas pequenas surgiram e flutuaram no ar, como uma superabundância de pó de duende. Gradualmente, as minúsculas estrelas se organizaram na forma familiar e no brilho da Via Láctea. Ela prendeu a respiração: a galáxia em miniatura era fascinante. Mas, muito cedo, as estrelas desapareceram. Em seguida, ele criou fogos de artifícios, chamas diminutas e intrincadas. Depois disso, uma semente pequena e brilhante se transformou em um broto, um rebento, e então, em uma árvore grande e maravilhosa, o sussurro de suas folhas verdes soando como música suave, o balanço de seus ramos liberando uma chuva suave de pequenas pétalas prateadas. — Eu sempre imaginei você sentada sob uma árvore em um dia quente, no grande gramado do Conservatório, com um pote de sorvete de pinemelon da Sra. Hinderstone ao seu lado. Ela balançou a cabeça. — Não há árvores no grande gramado.

8 Ajuntamento de estrelas.

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— Agora que você me conta. Bem, então, é melhor eu ordenar que uma seja plantada, então ela estará lá para você quando for estudante no Conservatório. — Será que se parece com essa árvore? — Ela inclinou o rosto para um último vislumbre do dossel verde, que já estava desaparecendo. — Sim, é claro. Ela olhou para ele novamente. Até esse momento, ela não havia notado o pijama que ele usava. Ela o viu meio vestido algumas vezes, mas nunca o viu casualmente vestido. Não importava quão cedo ela aparecesse no quarto dele para as sessões de treino matinais no Crucible, ele já estava sempre de uniforme escolar. Ele fez com que a luz no laboratório voltasse ao seu brilho normal, e ela viu que o pijama era de flanela azul escuro, com o botão superior aberto. Seu coração acelerou: ela não podia deixar de notar a pele que um botão aberto estava expondo. E ela não queria. — Beije-me. Ele pegou uma bonita jarra de vidro do armário. O frasco estava cheio de doces. Ele abriu o frasco e estendeu para ela. — Experimente um. Ela colocou um bombom listrado de verde na boca. E quando ele a beijou, o bombom derreteu com uma explosão de frescor: hortelã, manjericão, e uma pitada de musgo prateado. Mas foi ele quem fez seu pulso acelerar: as mãos no cabelo, o músculo dos braços sob a ponta dos dedos, o cheiro de sabão de peras que ainda se agarrava ao cabelo e a pele dele. — O que você acha? — Ele perguntou suavemente, seus olhos escuros. Seus dedos tocaram o segundo botão da camisa de pijama. — Você fez tudo isso sozinho? — Roubei tudo de Lady Callista no verão passado. Quer outro? Ela colocou uma pastilha iridescente, quase de vidro, na língua. Era como mármore frio e tinha gosto disso também. Ela abriu o segundo

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botão da camisa de pijama e pressionou a ponta do dedo contra a pele dele. Ele inalou – e a beijou tão completamente que sua cabeça girou e o som de carrilhões ao vento ecoou em seus ouvidos. — Abra seus olhos, — ele murmurou. Ela abriu com relutância, e viu que eles estavam sob um arco-íris. E a sensação suave dos carrilhões de vento ainda vibrava no ar, ficando cada vez mais fraca enquanto o arco-íris desaparecia. Eles estavam pressionados de ombros a joelhos. Ele tocou os lábios em sua orelha, provocando calafrios nela. — Ainda acha que as pétalas de rosa são uma ideia terrível? Ela segurou seu pulso – seu pulso era tão errático quanto o dela. — Você, Sua Alteza, é feito de clichês. — Hmm. Eu acho que você não quer que eu faça chover corações e coelhos? — Claro que eu quero ver algo ridículo! Ele cavou mais fundo no armário e extraiu mais uma esfera. — Delectatio amoris similisprimo diei verno. O deleite do amor é como o primeiro dia de primavera. A esfera se abriu. Não surgiram corações ou coelhos, mas centenas de borboletas cintilantes, que voaram pelo laboratório, aterrissando em copos e puxadores de gaveta antes de desvanecer, deixando um resplendor no ar e uma fragrância quase imperceptível, como a das flores do prado encharcadas pela luz do sol. Ela quase riu, presa entre a natureza absurdamente sentimental da cena e sua sinceridade inata e absurda. Ela riu novamente, apenas para encontrar seus olhos se enchendo mais uma vez com lágrimas. Ela segurou o rosto dele. — Você não fez chover corações e coelhos. — Da próxima vez, — ele murmurou. — Posso ficar aqui esta noite – com você? Seu coração rolou. — Eu pensei que você nunca pediria.

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*** — Por sinal, Sua Alteza, você mentiu, — ela disse, muito depois, com a cabeça no ombro dele. Ele uniu seus dedos. — Hmm, chocante. Sobre o que eu menti dessa vez? — Sobre a existência de ocupantes em um dos quartos do farol. Não há ninguém aqui, exceto nós. — Um resultado muito desejável. — Ele ergueu a mão dela e beijou o dorso. — Você tem certeza de que não há árvores no grande gramado do Conservatório? — Nenhuma, quando eu vivi lá. — Precisarei fingir que algumas foram plantadas nos anos desde que você saiu. Ela se virou para ele e passou os dedos ao longo do braço dele. — Você já visitou o Conservatório? — Não, eu só o vi em fotos. No geral, passei muito pouco tempo em Delamer. Na maior parte da minha infância eu estava nas montanhas. — Como era, morar nas montanhas? — Eu estava em casa. Por muito tempo, não percebi que nem todos viviam em um castelo – e que nem todos os castelos ficavam em uma cordilheira que se movia. Você já vislumbrou o terraço superior do castelo? A primeira vez que ela visitou o castelo, estava na forma de um canário. Geralmente, os magos não recordavam o tempo que passavam na forma de um animal, sob um feitiço de transmogrificação. Mas ela lembrava dessa ocasião em particular, porque naquela época eles estavam ligados por um juramento de sangue. — Sim, eu vi quando você caminhou por um corredor com arcos abertos que levavam ao terraço. Ele tinha um lindo jardim. — Ele está a várias centenas de metros acima do nível do pátio do castelo. Minha mãe e eu costumávamos ficar em pé na balaustrada e fingir que o jardim estava no céu, a caminho da estrada, porque nós

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poderíamos ver o movimento das montanhas. Ela adorava aquele jardim, e muitas vezes eu a encontrava sentada sob uma pérgola coberta de videiras. Essa videira deu pequenos cachos de flores douradas e costumávamos fazer círculos delas para usar como coroas. Nos campos de ensino do Crucible, cada Príncipe ou princesa governante desde Titus III tinha uma sala própria. O interior de Titus VII era um jardim, com videiras aninhadas em padrões intrincados, subindo pelas paredes, e espalhando-se em uma linda copa. — Seu campo de ensino no Crucible, você fez com que parecesse o lugar favorito da sua mãe no terraço. — Sim. Passamos algumas horas maravilhosas lá. — Ele passou os dedos pelos cabelos. — Você teve um jardim próprio? — O Conservatório providenciava uma habitação para os professores. Elas eram pequenas casas na cidade construídas em fileiras. Na parte da frente, havia pouco espaço para um pedaço de grama e duas roseiras. Na parte traseira, o visual era bom, mas a terra era muito dura para jardinagem. Mas, atrás da biblioteca da faculdade, havia um jardim aberto apenas para professores e suas famílias. E neste jardim, havia uma fonte. Quando o Mestre Haywood precisava fazer algum trabalho na biblioteca, eu lia em um canto do jardim. E às vezes eu brincava com a água da fonte, e para quem estava dentro da biblioteca parecia ter começado a chover. — Eu sempre soube que você era má. — Oh, até o núcleo. Eles ficaram em silêncio por um minuto. Ele a virou para ele e a beijou gentilmente. — Eu queria que esta noite durasse para sempre. — Um momento de graça ecoa na eternidade, — ela citou o Cânone Angélico. Ele segurou o rosto dela. — Você tem todos meus momentos de graça. Seu coração apertou. — Por que você está falando como se esta já fosse nossa última hora juntos?

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— Por que na nossa última hora juntos, eu não estaria em condições de dizer que você é a melhor coisa que já aconteceu comigo. Ela não queria que a realidade entrasse, mas a realidade estava sempre do lado de fora da janela, batendo. — Tudo bem então. Aqui está o que eu tenho guardado para o amargo final: eu não tenho nenhum arrependimento. Ele olhou para ela. — Sério? — Bem, exceto a parte dos corações e os coelhos chovendo abundantemente. Eu teria gostado de ver isso. Ele pensou por um momento, depois se levantou com um lençol enrolado em torno dele, e saiu. Quando voltou, ele tinha mais duas esferas do tamanho de globos de neve. E quando os ativou, choveu corações e coelhos. Ela riu até que mal conseguia respirar. Até as lágrimas mais uma vez ameaçarem cair. Ela puxou-o em seus braços e o segurou forte. — Agora eu realmente não tenho arrependimentos. Nenhum. *** A memória retornou como sempre acontecia, um ataque à mente. Titus não gritou. Ele não esmagou os móveis. Ele não se amontoou no chão, soluçando. Ele apenas ficou perfeitamente imóvel, ouvindo as respirações suaves do sono calmo dela, e chorou em completo silêncio. Eu amo você. Eu vou te amar até o fim do mundo.

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Capítulo 9 Titus bateu na porta com uma faixa de luz na sua borda inferior. Passos suaves e rápidos moveram-se pelas tábuas do chão. A porta se abriu. Kashkari não pareceu surpreso ao ver Titus, embora tenha apertado o maxilar – não era todo o dia que o Mestre do Domínio chegava diante de seu amigo com olhos vermelhos. Ele ficou de lado para deixar Titus passar, então fechou a porta e definiu um círculo de som. Os móveis do quarto eram rudimentares. Kashkari ofereceu a Titus a única cadeira e sentou na beira da cama. — Você conseguiu descansar? — Titus perguntou. Sua voz parecia estranha para seus próprios ouvidos, como se suas cordas vocais estivessem arranhadas. Kashkari balançou a cabeça. Ele parecia cansado – o corpo precisava de um sono que o resto de sua mente não podia sucumbir. — Eu tentei dormir, mas não pude. Então eu escrevi cartas. Havia uma carta acabada sobre a mesa, já no envelope. — Para ser enviada por correio? — O correio britânico é muito confiável. O alcance e a eficácia do serviço postal de um reino geralmente eram o equivalente bruto do alcance e eficácia de seu poder.

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Kashkari levantou e adicionou mais carvão à grelha. — E você? Eu suponho que você não contou a Fairfax – ou ela estaria aqui para me ver. Em vez disso, ela estava dormindo profundamente, ainda felizmente ignorante. — Não, — Titus admitiu. — Eu não poderia dizer a ela. Eu sou tão covarde quanto você. Kashkari deu uma risada suave e amarga. — Eu odeio essa habilidade. Odeio. Titus fechou a mão ao redor da gola de seu casaco – ele ficou frio novamente, apesar do calor do quartinho. — Minha mãe era vidente e odiava isso também. Kashkari pegou o atiçador para mexer na grelha. Com as palavras de Titus, ele se acalmou – então se virou lentamente. — Quando falamos anteriormente, você mencionou uma morte profetizada há muito tempo. Pela sua mãe? — Sim. Os olhos de Kashkari estavam arregalados de consternação. — Que a Sorte me proteja. De quem é a morte? Sua? Titus assentiu com cansaço, sem se importar mais. Kashkari agarrou a borda da lareira. — Eu sinto muito. Sinto muito, sinto muito. Titus suspirou. — Minha mãe também não podia me contar cara a cara – deixou isso em seu diário para decidir quando deveria ser revelado. — Foi por isso que você me disse que a pessoa sobre a qual eu sonhei já conhecia a profecia de sua morte? — Tanto Fairfax quanto eu, suspeitamos que você tivesse sonhado comigo, confirmando a visão da minha mãe. Nunca, em um milhão de anos, eu teria adivinhado isso... — Titus ainda não conseguia falar essas palavras em voz alta. — Após minha morte, Alectus assume as rédeas do poder e isso será um desenvolvimento desfavorável, mas só piora gradualmente a situação atual. Enquanto que... As repercussões do que

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aconteceria com Fairfax era o que você estava tentando me avisar, não era, quando eu saí com você há algumas horas? Se ela caísse nas mãos de Bane, as consequências seriam impensáveis. Kashkari levantou o atiçador novamente e redistribuiu o carvão na lareira. — É a visão dominante entre os reinos magos ocidentais, que nunca deve se mexer com o que já foi previsto. Mas como eu disse a Fairfax há algum tempo, nós da herança oriental não temos uma posição tão draconiana sobre o fluxo de Tempo. Para nós, o que eu sonhei ontem de manhã seria considerado um tiro no arco, um aviso, acima de tudo. — Contra o quê? — Contra essa eventualidade. Fairfax não deve entrar em Atlantis. Titus colocou o cotovelo na mesa e deixou a testa cair na mão. — Você acha que temos alguma chance sem ela? Aquela profecia de sua mãe, a de dois jovens que se aproximavam do Palácio do Comandante, será que ela falava de Titus e Kashkari? Que a Sorte o proteja, ele encontrou essa visão logo após Kashkari revelar-se como não apenas um mago, mas um mago focado na queda de Bane. E quando abriu o diário naquele dia, ele queria saber especificamente se ela tinha visto alguma coisa sobre Kashkari. — Não temos os poderes de Fairfax, obviamente. Mas também não possuímos a mesma responsabilidade. Se falharmos, somos apenas mais dois magos mortos. Na visão da mãe de Titus, esses dois jovens, quem quer que fossem, chegaram ao anel mais externo do Palácio do Comandante. Eles ainda estavam tão longe da cripta de Bane como um caracol na Islândia estava da cúpula do Monte Everest – mas estavam mais próximos do que alguém havia estado em pelo menos uma geração. — Talvez a visão da sua mãe também seja um aviso, — Kashkari disse. — O quê? Eu também não deveria ir para Atlantis? Era errado o quanto ele queria que Kashkari estivesse certo? — Talvez não agora. Talvez em um momento diferente.

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— Você esquece que não posso simplesmente ficar escondido – não sem ceder o trono ao regente. — Mas você mesmo disse que o prejuízo de tal curso de ação é progressivo. Titus suspirou. — Em comparação com a catástrofe de Fairfax caindo nas mãos de Bane, eu suponho que o dano de tudo isso é progressivo. — Então pense nisso. Titus

pressionou

dois

dedos

contra

o

espaço

entre

as

sobrancelhas, sua cabeça latejando. — Minha mãe viu dois jovens magos chegando até o anel mais externo do Palácio do Comandante. Nós também estamos desistindo disso? Foi a vez de Kashkari descansar a testa contra a borda da lareira. — Maldito se nós fizermos, e condenados se não o fizermos. Titus levantou, cansado. — Debattuimur omni modo. — Você pode dizer isso novamente. Ele tirou um frasco do bolso. — Eu trouxe alguns remédios de sono. Duas pílulas são calibradas para me dar quatro horas de sono ininterrupto. O efeito pode variar para você. — Elas afetarão meus sonhos? — Não deveriam. — Então, com prazer, as aceito. Obrigado. Vinte minutos depois, Titus estava de volta ao farol, depois de cobrir a distância em seu tapete voador. Fairfax ainda estava dormindo. Ele engoliu uma dose do remédio de sono, deitou e a envolveu. Ela suspirou suavemente em seu sono. Ele deitou a cabeça entre seu pescoço e ombro. Enquanto Kashkari falava, foi fácil aceitar que os sonhos proféticos deveriam ser apenas avisos. Mas na escuridão silenciosa, uma vida de ardente credo na supremacia das profecias reafirmou-se. Os verdadeiros videntes nunca estavam errados no que viram. Às vezes, como sua mãe havia feito, eles interpretavam mal o significado das visões. Mas ele ainda precisava encontrar um caso onde sua mãe errou

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a gravação de eventos. Nem tinha nenhum motivo para supor que Kashkari era mais propenso a tais erros. Para ter um resultado inequívoco já especificado e em seguida tentar evitar apenas esse resultado – sua mente transbordou com todos os tipos de maneiras espetaculares para que tudo dê errado – e Fairfax acabaria morrendo de qualquer maneira. Ele ficou agradecido quando o remédio do sono finalmente manifestou seus poderes e o puxou para baixo. *** Um dia de verão. Um céu azul claro pontilhado por nuvens tão brancas e macias quanto cordeiros de primavera. Multidões, tanto quanto os olhos podiam ver, homens com brilhantes chapéus altos, mulheres com chapéus de palha com fitas em tons pastel esvoaçantes. Na margem do rio, os meninos estavam prontos para lançar seus barcos, meninos vestindo casacos preto e branco e chapéus aparados como cestas de vendedor de flores. Quatro de junho. — Que a Sorte me proteja, — Titus murmurou. — Não este circo novamente. — Oh, venha, — Fairfax respondeu alegremente, puxando-o pelo braço. — No fundo, você adora isso passivamente. E você não pode esperar para voltar a cada ano. — Isso não é verdade. No fundo, eu o tolero apaixonadamente e dou graças que ele acontece somente uma vez por ano. — Em ambos os casos, você sempre se diverte. Então me poupe... Espere, aqui vem Cooper. Nesse caso, continue com seus gemidos melodramáticos, mas coloque alguma majestade neles. Você sabe que ele vive para ouvir você julgar tudo como indigno. — Na verdade, Cooper continuava o mesmo, com os mesmos olhos redondos e rosto ansioso, exceto que ele havia adquirido uma pança considerável. Suas calças, que não foram adaptadas para acomodar esse peso extra, agora pendiam um pouquinho demais.

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Titus abriu os olhos abruptamente e encarou, desorientado, o teto vazio e desconhecido. Todo o lugar estava nu, quase monótono: paredes pintadas de branco, uma mesa, um lavatório e uma cama com uma mesa de cabeceira. Foi apenas quando seus olhos caíram no outro ocupante da

cama

que

todos

os

eventos

da

noite

anterior

voltaram

apressadamente. — Bom dia, — Fairfax disse, sorrindo um pouco. Era apenas quinze minutos depois das cinco, mas ela já estava vestida. Ela sentou contra um par de travesseiros, um livro aberto nos joelhos. — Como você se sente, Sua Alteza, depois da noite mais maravilhosa de sua vida? Pela primeira vez em sua vida, ele desejou ter o dom de Kashkari. Para que seu sonho se tornasse realidade, um sonho em que suas vidas não terminavam em Atlantis, mas se estendiam o suficiente para o futuro em que Cooper, que atualmente era tão magro quanto Titus, teria ganhado uma barriga grande devido a boa comida e a vida confortável. Ele sentou; seu coração tão pesado quanto a base do farol. — Há algo que devo te contar. Ela virou uma página do livro em seus joelhos – tardiamente, ele reconheceu como o diário de sua mãe, em branco, como de costume. — Eu pensei que sim. Vamos ouvir. Ele passou os dedos pelos cabelos. — Você me dá um momento? Ele não estava acostumado a enfrentar o dia, muito menos esse tipo de dia, usando apenas um pijama de flanela. Beijando-a na bochecha, ele saiu e voltou totalmente vestido, com gravata, mangas de camisa e botões de punho perfeitamente abotoados. — Isso é ruim, eh? — Ela disse, depois de olhar para ele. A cama foi arrumada durante sua ausência. Ela agora estava sentada no topo da poltrona, o diário vazio de sua mãe ainda estava aberto diante dela. Ele tentou se recompor. Mas como ele encontrava as palavras certas para algo assim, mesmo que tivesse cem anos e pilhas de dicionários tão grandes quanto as pirâmides? Ela esperou – e continuou virando o diário em branco, página após página.

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— Sobre o sonho de Kashkari – lembre-se que ele não aceita o futuro como algo escrito em pedra. Ela olhou para ele e virou outra página. Mas desta vez, havia algo escrito na página, a letra familiar e elegante de sua mãe. — O diário! Ela olhou para baixo, surpresa. — Deixe-nos ler isso primeiro. — Por favor. Ele assentiu. Ele sentou ao lado dela, colocou o braço em torno de seus ombros e beijou sua têmpora. 31 de agosto, AD 1013, Um dia mais fantástico. Saí de uma performance de comando de Titus III, evitei minhas damas de companhia, e me precipitei até o Empório de Bom Conhecimento e Curiosidades, a loja de Constantinos. Ao entrar na loja, a visão se repetiu uma sétima vez sem precedentes. Desta vez, eu vi claramente o anel distintivo na mão empunhando a caneta. Quando a visão desapareceu, levantei minha mão em estado de choque. No meu dedo indicador direito havia um anel identico ao que foi forjado para Hesperia, a Magnífica. Não há outro desse em todos os reinos mágicos. A mulher sou eu. Eu ri. Bem, então. — Nós lemos isso antes, não é? — Ela perguntou. Ele também reconheceu a entrada do diário, um elemento fundamental que eles leram na noite da sua Inquisição seis meses atrás. Ele não sabia o porquê, mas o cabelo na sua nuca se levantou. Uma vez eu tive uma visão de mim mesma dizendo ao meu pai que uma garota Atlante seria a pessoa mais poderosa do Domínio. Então, quando eu vi a garota realmente, eu disse a ele que eu me vira dizendo-lhe

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que não se pode mudar deliberadamente o que foi visto. Ele estava terrivelmente desagradado por enfrentar a possibilidade de ele, um descendente direto de Titus, o Grande, um dia não ser mais o mestre absoluto desse reino. Mas desta vez eu não ofendi ninguém. Achei o livro, arrastei-o até a mesa, tirei a caneta do seu apoio e escrevi no livro como eu havia feito na visão. Nas margens do livro, sua mãe escreveu: Não há elixir de luz, por mais estragado, que não possa ser revivido por um relâmpago. Quase dezessete anos depois, aquela mesma frase estimularia Fairfax a convocar seu primeiro relâmpago. O que mudou tudo. Logo quando terminei, lembrei do calendário da mesa. Na visão é sempre 25 de agosto. Mas hoje é 31 de agosto. Olhei para o calendário na mesa. 25 de agosto! O dispositivo parou de funcionar a uma semana. Na maioria das vezes, eu não fico animada por quão certa eu estou: a capacidade de ter vislumbres do futuro é frustrante e horripilante. Mas naquele momento, fiquei muito emocionada. Por impulso, abri o livro novamente, voltei à seção para esclarecer rascunhos e rasguei as últimas três páginas. As receitas fornecidas nessas páginas estão cheias de erros. Eu não queria deixar que algum outro pobre aluno sofresse com elas. O fim da página. E também o final do registro desta visão particular, assim como da outra vez. Mas agora, quando eles viraram a página, a escrita continuou. — Livro abominável, não é? — Disse alguém. Saltei. Era um jovem da minha idade, muito bonito, com olhos gentis e sorridentes.

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— Eu vou... Vou comprar esse livro, — murmurei; completamente mortificada. Por que não o vi chegando? — Isso será um crime muito maior, — ele disse. — Não posso permitir que você faça isso. Não pude deixar de sorrir. — Eles te ensinaram usando este livro? — Precisávamos nos curvar diante dele também, como se fosse as Epifanias. Meus olhos devem ter se arregalado. Ele riu. — Eu estava brincando. Não se tornou tão absurdo, mas o livro está terrivelmente superestimado e só é bom para apoiar um banco. — Mas ainda assim, eu o danifiquei. E deveria pagar por isso. — Compre alguns bons livros então, para compensar o livreiro. Impulsionada pela inspiração divina, eu perguntei: — Você tem alguma recomendação? Ele tinha. Passamos uma feliz meia hora navegando pelos corredores. Muito cedo, meu relógio de bolso começou a apitar, me lembrando que era hora de voltar ao teatro. Ele me ajudou a levar meus livros até o balcão. Só então percebi que, claro, eu não carregava nenhuma moeda. Tais coisas estavam abaixo da herdeira do trono. — Não se preocupe, — ele disse. — Vou comprar os livros para você, se você comprar uma xícara de chá e uma fatia de bolo de maçã para mim amanhã, na Varinha e o Salgueiro. Amanhã eu devo me sentar o dia todo com o meu pai e seus conselheiros. Nós combinamos para o dia seguinte, depois de amanhã, às três horas da tarde – e mudamos o local para um prédio público ocupado por um trecho pitoresco, mas bastante vazio, da costa sul de Delamer. Não consigo acreditar no que concordei e mal posso esperar para as horas passarem. 2 de setembro, AD 1013

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Eu estava quase meia hora atrasada para o encontro. Mas ele me esperou. Ele até mesmo trouxe bolo de maçã da Varinha e o Salgueiro. Eu tive um tempo adorável e fascinante. 4 de setembro, AD 1013 Ele me perguntou se o meu pai aprovaria o meu encontro com alguém como ele. Papai, é claro, teria uma apoplexia. Mas eu já estava apaixonada. — Está tudo bem, — eu disse a ele. — Nós encontraremos um caminho. 9 de dezembro, AD 1013. Estamos tão felizes. Tenho medo de escrever sobre isso. 10 de dezembro, AD 1013 Eu deveria ter ouvido meu próprio conselho. Por que mencionei a nossa felicidade? 17 de dezembro, AD 1013 Faz uma semana. Eu não conseguiria gravar a visão nem dizer nada a ele. Eu o amo tão ferozmente. Eu temo o futuro quase tanto. 29 de janeiro, AD 1014 A visão se tornou realidade. Estou entorpecida com choque e tristeza. Eu não esperava que isso acontecesse tão cedo. 22 de fevereiro, AD 1014

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Estou grávida. Oprimida de alegria, congelada de medo, não sei o que fazer. Titus estremeceu. Seja o que for que ele esperava que o diário revelasse, não era isso. — Seu pai, — Fairfax disse suavemente. — Meu pai, — ele ecoou, com seu peito apertado. Uma batida alta veio da porta da frente do farol. Ambos saltaram. Ainda estava escuro, por isso não poderia ser o guarda do farol tentando entrar, desligar a máquina e registrar o nível de óleo no tanque de combustível. — É Kashkari. Abra a porta. — Deixe-me verificar, — ele disse a ela. Ele desmaterializou para um nível mais alto do farol e olhou pela janela. Na verdade, era Kashkari, e ele não estava sozinho. Com ele estavam Horatio Haywood e... Titus teve que se inclinar para ter certeza de que não estava vendo coisas. Mas, ao lado de Kashkari, envolvida em um casaco grosso, não era outra senão a mulher dos sonhos de Kashkari. Amara.

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Capítulo 10 — Durga Devi, isto é inesperado, — Titus disse com frieza. Quase friamente. Ele podia sentir o olhar exasperado de Fairfax. Amara já havia pensado na possibilidade de matar Fairfax em vez de deixá-la ser capturada por Bane – ele sempre carregaria um rancor? Sim, carregaria. Ele não perdoaria Amara por ter tido o pensamento, e ele sempre suspeitaria que ela quisesse se livrar daquela que ele amava. — É inesperado para mim também, Sua Alteza, — Amara respondeu. — Por favor, entre, todos vocês, — Fairfax disse. E fitou a Titus para se afastar do caminho, o que ele fez relutantemente. Eles ficariam muito apertados no laboratório, então ela levou os visitantes para o salão do farol. Titus ficou para trás para executar um feitiço de afastamento na porta; ele não queria ser incomodado pelo guarda do farol que chegaria para seus deveres matutinos. Quando entrou no salão, Fairfax já havia convocado uma chama na grelha, colocado a chaleira para ferver, e preparado um prato com

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biscoitos. Com sua entrada, Haywood levantou e se curvou. Titus fez um gesto para que ele continuasse sentado, enrubescendo ligeiramente enquanto o fazia. Se não fosse a inesperada chegada de Amara, ele voltaria para a pousada em algum momento, a fim de manter a aparência de que ele dormiu lá. Mas agora Haywood deve ter percebido que Titus havia passado a noite aqui. E ninguém perguntou se eles deveriam se preocupar com os outros viajantes fictícios que ficaram no farol. Fairfax sentou ao lado de seu guardião e pegou a mão dele. — Permita-nos felicitá-la por seu casamento, Durga Devi. A surpresa de Titus deve ter se mostrado. Fairfax virou para ele e acrescentou: — Me desculpe por ter me esquecido de dizer a você, Sua Alteza, o que aconteceu com todo o resto. — Felicitações, — ele disse secamente. — Obrigada, — Amara disse. — Nós pensamos que haveria muito tempo para casamentos e celebrações depois de derrotar Bane. Mas então percebemos que não vale a pena esperar. Fairfax

passou

o

prato

de

biscoitos.



Suponho

que

provavelmente não foi sua escolha passar sua lua de mel aqui com a gente. E como você chegou tão rápido? — Mohandas provavelmente lhe disse que uma das nossas bases de satélite tem uma doca seca que pode lançar um barco no Mediterrâneo. Fui levada para a costa da Andaluzia e voei o resto do caminho. Os tapetes voadores, por todos os seus maravilhosos usos, não podiam viajar por longas distâncias sobre a água. A partir da Espanha para a Grã-Bretanha, o único grande corpo de água que ela deveria atravessar teria sido o Canal da Mancha, que era suficientemente estreito entre Calais e Dover para um tapete bem feito conseguir atravessar antes de começar a perder altitude. — E quanto ao por que não estou curtindo a companhia do meu marido... — Amara respirou fundo. — Meus pais deixaram o reino de

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Kalahari há muitos anos antes, pelo que eu me lembro. Na noite passada, carros blindados visitaram o assentamento onde vivemos uma vez. Titus apertou a mão – nenhum bem já veio de carros blindados visitando qualquer pessoa. — A população do assentamento é de cerca de vinte mil. Disseram-me que pelo menos metade dos habitantes foram confirmados como mortos. Não se espera que vinte e cinco por cento do restante dure mais do que poucos dias. E daqueles que sobreviverão, muitos sofrerão: cegueira, lesões nos órgãos internos, acumulação de fluido nos pulmões, de modo que existirão em um estado constante de quase afogamento. O único som na sala era o do fogo na grelha, pulando e crepitando. E depois a água, começando a ferver dentro da chaleira. — Você acredita que o ataque foi uma retaliação direta contra você, pessoalmente, pela assistência que nos deu? — Titus perguntou. Amara balançou a cabeça. — Antes fosse isso. Os anciãos do assentamento receberam uma mensagem depois, a qual dizia: Isso será Delamer em sete dias, a menos que... — A menos que o quê? — Fairfax perguntou; sua voz não mais do que um sussurro. — Isso foi tudo o que disseram, a menos que... A menos que ela fosse entregue ao Bane. A chaleira sibilou. A sala parecia ficar mais escura, uma sombra tão grande quanto o próprio mundo rastejando sobre eles. — Você acredita que a ameaça é credível? — Titus se ouviu falar com Amara, seu tom completamente uniforme. — Atlantis nunca fez ultimatos inúteis. E o fato de especificarem uma semana dá credibilidade a ameaça – até Atlantis precisa de alguns dias para armazenar a quantidade de chuva da morte necessária para cobrir toda a Delamer. — O que... O que devemos fazer? — Veio a pergunta hesitante de Haywood. Titus não conseguia pensar. Ele era responsável pelo bem-estar de seus súditos – ele não poderia possivelmente permitir que centenas de

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milhares

morressem.

Por

outro

lado,

ele

nunca

desistiria

voluntariamente de Fairfax, nunca permitiria que ela fosse entregue para Bane. Que a Sorte o proteja. Foi isso que Kashkari viu em seu sonho profético? Como se o pensamento lhe tivesse ocorrido no exato momento, Kashkari disse: — Isso poderia ser o meu sonho? Eles se olharam, horrorizados. Fairfax levantou e tirou a chaleira do fogo. A sala já estava mortalmente em silêncio, tanto que ele ouvia todas as ondas quebrando contra os penhascos. E então ela fez a pergunta que ele temia. — O que você realmente sonhou, Kashkari? ** * Kashkari não conseguiu encontrar os olhos de Iolanthe; em vez disso, ele se virou para Titus. Sua espinha tingiu com alarme. Seu rosto estava cinza, Titus estático no lugar, uma estátua de pedra de um menino. — Responda, — ela exigiu. Outro momento sem fim passou. Titus segurou o topo de uma cadeira e, finalmente, olhou para ela. — Ele sonhou com sua morte. — Não! — Alguém gritou. — Não! Mas não era ela. Era o Mestre Haywood, de pé, pálido e tremendo. Ela olhou para a chaleira na mão. Parecia que não fazia sentido fazer nada, exceto derramar a água fervente. Então ela serviu do bule de chá – e só então se lembrou de que não colocara as folhas de chá. Ela recolocou a chaleira no gancho, a qual foi tirada da grelha, apoiou o pano que costumava proteger a mão do calor da alça da chaleira e pegou a lata de folhas de chá. — Você não ouviu o que Sua Alteza disse? — Veio a pergunta ansiosa e aguda do Mestre Haywood.

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— Eu ouvi. Mas ela não compreendeu nada – ainda. Ela contou cinco colheres de folhas de chá, uma para cada pessoa, tampou a lata, e então voltou a tampar o bule. — Eu sempre me esqueço de primeiro aquecer a panela, — ela disse. — Sua Alteza faz uma xícara de chá muito melhor. — Iola, — Mestre Haywood disse. Ela foi até ele, sentou-o de volta na longa e acolhedora espreguiçadeira e sentou ao lado dele. — Não é o fim do mundo – ainda não. E não seria até o choque dela desaparecer. — O que você viu exatamente, Kashkari? Quero ouvir tudo. Kashkari fechou os olhos por um momento. — Eu estava montando um wyvern e olhando atentamente para frente. Era difícil, exceto por um vislumbre de luz das estrelas, apenas o suficiente para dar a ideia de que eu voava acima de uma paisagem angular e desolada. E então, vi um flash de luz à frente, cada vez mais brilhante e cada vez mais próxima das asas do wyvern. Nesse ponto, meus sonhos, como às vezes acontecem com os sonhos, cortam para um local diferente. Eu estava no ar novamente, em um enorme terraço ou plataforma que flutuava para frente, e eu olhava para os vales iluminados por uma borda irregular. Havia anéis de defesas e dezenas de wyverns no céu. — O Palácio do Comandante, — Iolanthe murmurou. Ela lembrou agora de que Kashkari havia perguntado sobre o Palácio do Comandante. Ele havia tentado entender cada detalhe de seu sonho, para dar o contexto adequado. — Sim, eu acredito que sim, — Kashkari disse. — Neste ponto, meu sonho avançou no tempo novamente e eu estava atravessando um chão cheio de escombros. Mas mesmo com o dano, eu pude ver o padrão sob meus pés, um enorme mosaico do redemoinho Atlante. E... E havia seu corpo, ao lado de uma coluna. Sua Alteza já estava lá, ajoelhado ao seu lado, segurando seu pulso. Com a minha aproximação, ele ergueu os olhos e balançou a cabeça.

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Iolanthe ouviu com atenção – ou pelo menos parecia ouvir com atenção. Ela podia ver o que Kashkari descreveu, com mais detalhes do que queria. Mas ainda assim não parecia real. — Você viu meu rosto? Kashkari assentiu. — Tem certeza? Ele assentiu novamente. — E eu tinha a mesma aparência de agora? — Exatamente a mesma. Exceto... Seu coração apertou. — Exceto o quê? — Exceto que sua manga estava rasgada. E no seu braço esquerdo você usava um bracelete de filigrana dourada com rubis. — Mas eu não uso joias. E não tenho nenhuma. — Ela se virou para Titus. — Você tem essa peça em sua posse? Ela sabia que o Mestre Haywood não tinha. Titus sacudiu a cabeça. — Então não poderia ser eu. Eu não aceitaria joias fornecidas por ninguém, exceto meu guardião ou o príncipe. Assim que as palavras deixaram seus lábios, ela percebeu quão ingênua – até mesmo inocente – ela soou. Isso era exatamente como cada tolo tentava argumentar o seu caminho para sair de seu destino, agarrando alguns detalhes que poderiam ser negados vigorosamente. Eu nunca irei lá. Eu nunca comeria isso. Por que eu encontraria meu final em uma montanha quando sequer me importo em subir escadas? O futuro tinha sua maneira de torcer e girar, de modo que eventos que

pareciam

improváveis

e

perfeitamente

evitáveis

acabassem

inevitáveis, quando o tempo e as circunstâncias foram insuficientes. Haywood pegou a mão dela. Suas mãos apertadas tremiam, e ela não podia dizer quem tremia mais. Titus, do outro lado da sala, parecia precisar de toda a sua concentração para permanecer em posição vertical. Amara, ao lado de Kashkari, tinha a cabeça inclinada, como se estivesse fazendo uma oração. Apenas Kashkari inclinou-se em seu assento. Agora que a notícia foi dada à Iolanthe e seu sonho finalmente descrito, ele voltou para o seu

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eu composto e determinado. — Lembre-se do que eu lhe disse, Fairfax, que não é necessário ver o futuro que foi visto em uma visão como algo escrito em pedra, especialmente não esta. No entanto, tudo o que ele já havia previsto aconteceu. Às vezes, o verdadeiro significado de seus sonhos proféticos era incompreendido, mas o que ele sonhava se revelou exatamente como previsto. — Como devemos ver essa visão então? — Mestre Haywood perguntou, sua voz estava tensa, mas ainda não sem esperança. — Como eu disse ao príncipe mais cedo, devemos ver isso como um aviso: em vez de nos dirigir para Atlantis, devemos... — Você estava indo para Atlantis? — Mestre Haywood exclamou. Levou a Iolanthe um longo momento para lembrar que ele ainda não sabia sobre essa parte do plano. — Desculpe. Não houve tempo para te dizer. As linhas em sua testa nunca pareceram tão profundamente enrugadas, ou os olhos dele tão afundados. — Mas isto é loucura. — Sim, eu sei, — ela disse suavemente. — Nós vivemos em tempos desvairados. — O comentário veio de Amara, que ficou em silêncio por um tempo. — Muitas vezes exigem medidas extraordinárias. Uma declaração corajosa, mas uma entregue em um tom completamente uniforme, desprovido de qualquer emoção. — Sim, e nossa decisão era atacar o coração do domínio de Bane, na cripta onde ele mantém seu corpo original. — Kashkari estendeu a mão e derramou chá para todos – o chá que Iolanthe preparou estava esfriando no recipiente. — Na noite passada eu sugeri ao príncipe que devíamos aguardar o melhor momento para atacar. Mas a notícia que minha cunhada trouxe esta manhã muda as coisas. Titus puxou uma cadeira ao lado de Iolanthe, sentou e pressionou uma xícara de chá em suas mãos. Seus olhos não refletiam nada além de ruína – exatamente como ela lembrava quando o puxou para entrar da névoa na noite anterior. Ela deveria ter adivinhado então que o sonho de

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Kashkari se referia a ela, não a ele: ele há muito tempo encontrou a paz com sua própria morte; era só a dela que poderia devastá-lo a tal grau. Ela afastou o pano e colocou as mãos diretamente sobre o copo, precisando do calor escaldante contra sua pele. Ele fez o mesmo, suas mãos agarrando sua xícara de chá com tanta força que era uma maravilha que não ela não se quebrasse. — Devemos ir atrás do Bane, — Kashkari continuou. — Mas agora temos pouco tempo – e devemos fazê-lo sem Fairfax, se aprendemos algo da minha visão. Ninguém que vai para Atlantis espera voltar vivo. Mas, se Fairfax cair, tudo o que já fizemos seria em vão. A cabeça de Iolanthe latejava. — Então o que eu faço? E quem salvaria Titus? — Você se esconde. De preferência em algum lugar que nenhum de nós pode sequer adivinhar, caso sejamos capturados pelos Atlantes. Ela balançou a cabeça – isso ia contra tudo o que lhe foi ensinado sobre as profecias. — Estamos pedindo problemas. Você interfere com uma profecia e o resultado final será sempre pior do que se você tivesse deixado isso acontecer. — Mas o que pode ser pior do que ser levada para a cripta de Bane e sacrificada? E foi a cripta de Bane que vi; disso não poderia haver dúvida. Ao seu lado, Mestre Haywood ofegou suavemente, mas não disse nada. Ela olhou para ele, então para Titus, que estava sentado com o pescoço curvado, suas respirações trêmulas. Ela balançou a cabeça novamente. Ela não conseguia pensar muito bem, mas mesmo assim, algo na visão de Kashkari não fazia sentido. — Por que você ou a Sua Alteza não se asseguraria de que Atlantis não me capturasse viva? — Eu fiz um juramento de sangue que não me permite prejudicar você, nem a Sua Alteza. Não sei se a Sua Alteza seria capaz de atos letais contra você. Além disso, poderíamos nos separar enquanto caminhamos para Atlantis.

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Ela tomou um gole de chá. Era amargo, ela nunca fazia um chá muito bom. Titus provou o dele e fez uma careta. Ele se levantou, saiu da sala e voltou meio minuto depois com um pequeno prato de cubos de açúcar. Ela colocou dois cubos em seu copo; ele pegou o resto. — Mas talvez estivéssemos olhando para o caminho errado. Talvez minha morte, longe da pior coisa que poderia acontecer, era em vez disso o passo necessário que permitia que vocês fossem tão longe quanto poderiam. Vocês estavam na cripta do Bane. E ainda estavam vivos e bem. Não havia nada para impedir que vocês acabassem com Bane. Ninguém disse nada. Ela tomou seu chá novamente e ficou atônita com a diferença no sabor. Seja o que fosse que havia nos cubos de açúcar, deram ao chá não apenas doçura, mas sugestões sutis e desconcertantes de frutas cítricas. — Não posso acreditar que todos aqui tomem a questão de uma visão de forma tão desdenhosa, — ela continuou. — Eu sou a favor de tornar uma visão verdadeira, e até mesmo eu não discuto a validade desta. Enquanto que... Enquanto que todos vocês parecem tratá-la como algo ruim. Mais uma vez, o silêncio. — Minhas crenças do assunto diferem das de Mohandas, — Amara disse. — Eu entendo seu ponto de vista, que o futuro ainda não aconteceu – que cada decisão que tomamos agora tem um impacto sobre o que acontecerá na estrada. Crescendo, no entanto, eu fui muito influenciada por minha avó paterna, que emigrou para Kalahari de um reino nórdico, e ela acreditava firmemente que apenas os eventos que estão esculpidos em pedras são transmitidos em visões. A totalidade do futuro ainda não pode ser escrita, mas ninguém pode desmentir certas forças e desenvolvimentos tão poderosos, tentar detê-los seria como uma mosca no caminho de um carro blindado. Mas mesmo eu, que acredita firmemente que ninguém deve tentar alterar um futuro que tenha sido revelado, não pude encontrar nada de errado no que Mohandas sugere. Depois de nos encontrarmos novamente esta manhã, ele confessou que mentiu sobre ter visto você alcançar Atlantis por seu próprio poder e por

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sua própria vontade. Dado isso, há visões reais de você indo para Atlantis? — Não, — Iolanthe teve que admitir. — Então ninguém está tentando refutar um futuro que já foi visto. Iolanthe abaixou seu copo vazio. Algo não se encaixava – algo que um dos magos na sala disse ou apontou. Mas ela não conseguia pensar. Na verdade, ela estava caindo para a esquerda. Ela agarrou Titus e cambaleou. Mas seu braço se aproximou dela e a impediu de cair. — Qual é o problema? — Veio a voz de Kashkari, soando muito distante. — Iola? Você está bem, Iola? Sua visão encolheu. A última coisa que ela viu foi os olhos de Titus, dos quais toda luz e esperança haviam sumido. *** — Ela está bem, — Titus disse, deitando-a. — Mestre Haywood, você se importaria de obter um cobertor de um dos quartos? Haywood saiu e voltou em segundos. Titus colocou o cobertor cuidadosamente ao redor dela. — Ela acordará em duas ou três horas, se não antes. Ele não precisava mais explicar sua ação. Ele conhecia Fairfax. Ela era teimosa e leal – e não acreditava em nenhuma profecia. Ela nunca aceitaria que seus amigos enfrentassem os perigos de Atlantis sem ela. Então eles deveriam deixá-la para trás. — Você vai nos perdoar por não discutir nossos planos em sua audiência, senhor, — ele disse a Haywood. Haywood assentiu com a cabeça – ele sabia que no momento em que ela despertasse na sala, ela exigiria saber onde foram seus amigos. — Certifique-se de fazer um fogo e de mantê-la quente. Com Iolanthe inconsciente, o fogo que ela convocou se dissipou. A grelha, cujos tijolos ainda irradiavam calor, estava vazia.

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Titus olhou para sua amiga mais durona por um momento a mais antes de se dirigir ao laboratório, Kashkari e Amara a reboque. Amara inalou profundamente enquanto sentava diante da mesa de trabalho. — O que é essa adorável fragrância no ar? Era do quadro de borboletas da noite anterior, o aroma de um prado florido. Ele se lembrou de como Fairfax o olhara, com risos e lágrimas nos olhos. Seu coração parecia ter sido marcado, uma dor escaldante através da qual ele mal podia respirar. Esta tarefa sempre levaria tudo dele no final – mas ele sempre acordava todas as manhãs esperando ter pelo menos outro dia. Depois deste dia, não haveria mais um adiamento. — Eu tenho mais más notícias, — ele disse, ignorando a pergunta de Amara. Quando entrou no laboratório para buscar os cubos de açúcar, ele verificou uma nova mensagem de Dalbert. O primeiro parágrafo explicava que Dalbert teve alguns problemas para acessar seu dispositivo de transmissão, mas desde então conseguiu movê-lo para um lugar diferente – e essa foi a única boa notícia que a mensagem continha. O outro parágrafo relatava o massacre no Reino Kalahari e a ameaça feita para Titus, que era como Amara havia relatado. A última parte transmitia desenvolvimentos que eram quase como um ataque. — Houve uma incursão ontem à noite no arsenal embaixo das Colinas da Serpentina – aquele que Durga Devi foi levada para ver. Todos os motores de guerra foram destruídos, incluindo um grande número de aniquiladores – máquinas que podem derrubar carros blindados. Deixando o Domínio indefeso quando as forças de Atlantis chegassem em seis dias e meio. Era isso que Titus temia: que ao ajudar no deserto, seus aliados chamassem o desastre. Agora era cada vez mais imperativo que conseguissem derrubar Bane. Sem Fairfax.

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Na longa e sombria sombra de sua morte profetizada. — Sinto muito por ouvir isso, — Amara disse. Titus virou-se para a bola de digitação e tocou uma mensagem para Dalbert. Uma resposta veio de forma quase imediata. — Ainda tem mais notícias? — A voz de Kashkari estava tensa. Pela maneira como as coisas estavam acontecendo, qualquer novidade quase inevitavelmente seria uma má notícia. — Não pedi mais notícias. Perguntei se ele já havia preparado um meio para eu retornar ao Domínio, sem a ajuda do nosso translocador habitual. — E? Titus exalou. — Ele preparou. *** Haywood levantou quando Titus voltou a entrar no salão. — Senhor. — Nós estamos indo. — As palavras o dilaceraram, como se ele falasse com pedaços de vidro na língua. — E então viemos nos despedir. Haywood se inclinou. — Que a Sorte sorria para você, Senhor. — A Sorte já fez, quando sua pupila se tornou minha amiga. E agora tudo o que foi dado seria tirado. Enquanto Haywood desejava a bondade da Sorte para Kashkari e Amara, Titus se ajoelhou perto de Fairfax e pegou a mão dela. Ela parecia tranquila, despreocupada, como A Bela Adormecida em seu sono de cem anos. No entanto, a imagem que atravessava sua mente era uma de si mesmo prostrado diante de seu corpo sem vida. Agora ele não tinha esperança. Ele estava certo de que, não importava o que fizesse, o desastre a encontraria. Mas ele precisava fazer alguma coisa, precisava pelo menos tentar, por mais idiota que fosse, mantê-la segura. Mantê-la viva.

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Deixe que esta seja sua despedida final. Não deixe que ele a veja novamente, nunca. Ele poderia lidar com deixá-la para trás, se fosse preciso. Ele não podia suportar entrar em um futuro em que ela foi assassinada por Bane – o fim de tudo que valia a pena, o início de todos os seus pesadelos. — Viva para sempre, — ele disse suavemente. E então, para Haywood, — Que a Sorte caminhe ao lado de vocês. E quando ela acordar, diga que agora não me arrependo da minha decisão, apenas... Apenas que nunca compartilharemos uma cesta de piquenique da Sra. Hinderstone.

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Capítulo 11 O laboratório tinha mais saídas do que entradas, e essa saída levava a um celeiro dilapidado no sudeste da Inglaterra. De lá, Titus desmaterializou seus companheiros em Londres. Eles abriram caminho para o Museu Victoria e Albert. Entre as exposições do Renascimento na França, havia um guarda-roupa grande e elaborado com portas de marcheteria e guarnições de cobre. — É aqui, — Titus disse. Era o início do dia e o final do ano; o museu não estava lotado. Eles não tiveram problemas limpando essa galeria particular com alguns feitiços de retenção. O guarda-roupa era grande o suficiente para que os três – e o casaco volumoso de Amara – não tivessem problemas para entrar. Titus murmurou a senha e a contrassenha que Dalbert lhe dera. Quase instantaneamente, eles se encontraram em um espaço mais apertado, batendo contra pilhas de caixotes e baldes. Quando Titus abriu a porta em uma fenda, o cheiro do mar cumprimentou-o, bem como o som das ondas. Ele esperou um minuto para se certificar de que não havia emboscadas, antes de abrir a porta mais completamente.

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Eles estavam em uma grande caverna natural. A boca da caverna estava escondida atrás de um afloramento, mas a luz incidia de fora, brilhando nas pontas das ondas. Um

barco

de

seis

metros

de

comprimento,

balançando

ligeiramente, estava suspenso no teto da caverna. — Então nós navegamos? — Amara perguntou. — Navegamos, — Titus respondeu. Ele pediu luz mágica. Com a ajuda da iluminação azul, ele conseguiu encontrar onde Dalbert havia prendido a corrente que manteve o barco suspenso. Juntos, os três abaixaram o barco para dentro da água. Titus tirou o mapa da bolsa e o colocou contra a parede úmida da caverna. Um ponto vermelho apareceu no mapa sedoso, logo abaixo das fronteiras marítimas do Domínio. Como ele pensou. Dalbert, ao contrário de Lady Callista com a conexão com Atlantes, não poderia criar uma lacuna através das barreiras que Atlantis ergueu em torno do Domínio contra a entrada de pessoas não autorizadas e saídas por meios instantâneos. Então ele optou por colocá-los o mais próximo possível. Na pequena estrutura que serviu de portal, que se parecia mais com uma tina de banho não maga do que qualquer outra coisa – exceto que sem rodas – eles encontraram remos, redes e instrumentos de pesca, bem como barras de nutrição, água e mudas de roupa. O equipamento foi movido facilmente para o barco com feitiços de levitação. Eles conseguiram até embarcar sem cair na água. Como o plano de Titus era abordar Atlantis por meio da costa, ele treinou para navegar em uma série de histórias no Crucible que envolviam viagens marinhas. Mas uma coisa era dirigir uma embarcação no oceano aberto, outra bem diferente era sair da estreita e apertada caverna, com ondas correndo e criando correntes imprevisíveis que jogavam o barco de um lado ao outro. Eles remaram. Eles empurraram com remos e paus. Em

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um ponto, Titus e Kashkari pularam na água gelada para segurar o barco. O custo de deixar seu mago elementar para trás. Mas o custo muito maior era o vazio dentro de Titus. Era como se ele estivesse em algum lugar fora dele mesmo, observando a luta com o barco. Seus músculos funcionavam, diligentemente e incansavelmente, mas ele não se importava mais. Ele permaneceu em suas roupas geladas e molhadas por muito tempo depois, até ter certeza de que o barco estava longe o suficiente das falésias da ilha desabitada, que não precisava se preocupar com ser derrubado e arremessado sobre aquelas pedras implacáveis durante o tempo em que se trocava. Se apenas... Ele cortou a direção de seus pensamentos. O que ele fez, ele fez por si mesmo, porque não poderia viver em um mundo sem ela. Se isso fosse a punição do universo por sua arrogância e estupidez, então que assim seja. *** A sensação na cabeça de Iolanthe era como se alguém tivesse enchido com um pudim inglês cozido: uma massa bamboleante. Suas pálpebras estavam tão pesadas como tijolos, resistindo a todas as tentativas de levantá-las. Estranho: ela não era uma fanática e madrugadora como o príncipe, mas geralmente quando acordava, ela se sentia revigorada e pronta para enfrentar o dia, e não entorpecida, como se estivesse presa em um vórtice pouco nítido, incapaz de se livrar. Droga. Titus – a inutilidade em seus olhos. O chá com seus sabores maravilhosamente evocativos. Os cubos de açúcar. Titus, colocando todos os cubos de açúcar restantes em seu próprio chá e depois não tomando outro gole.

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Ela gemeu e se sentou; seus músculos tão moles quanto o macarrão servido na casa da Sra. Dawlish. — Iola! Você está bem? O rosto do Mestre Haywood lentamente entrou no foco diante dela, sua expressão tão culpada quanto ansiosa. Ela sequer se preocupou em perguntar se todos os outros foram embora. — Como eles chegarão ao Domínio? — Eles não discutiram isso na minha frente. Ela comprimiu o cume do nariz. — E você ficou contente com isso, não foi, quando o príncipe disse que manteria as discussões em outro lugar, para que você não pudesse transmitir nenhuma informação para mim? — Iola... Ela ergueu a mão. Ela não queria discutir com ele. O que ela queria era colocar as mãos em torno da garganta de Titus e estrangulálo até quase matá-lo. Como ele se atreve a tomar uma decisão dessa magnitude para ela? E como se atreve a fazer isso de maneira tão covarde? Ela poderia permitir o consenso do grupo, se eles sentissem absolutamente que não poderiam tê-la junto, mas não até depois que ela tivesse defendido a si mesma adequadamente. Ela se levantou e cambaleou para o laboratório. O lugar estava tão arrumado quanto sempre, nem um único item fora do lugar. Ela estava familiarizada o suficiente com seus conteúdos para ver o que levaram: auxiliares de desmaterialização, remédios para navegação, todos os tipos de outros remédios para trauma e lesões. Mas a habilidade de fazer inventário dos itens não lhe deu nenhuma ideia de como eles voltaram ao Domínio – ou de onde. Apenas quando se afastou das prateleiras e gabinetes, percebeu as poucas coisas que estavam na mesa de trabalho. Os cadernos de duas vias de Kashkari e Amara estavam lado a lado, com uma nota de Kashkari debaixo deles. Querida Fairfax,

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Estes cadernos contêm informações que afetam a segurança de muitos. Uma vez que as páginas não estão adequadamente protegidas, decidimos deixá-los para trás, ao invés de arriscar que caiam nas mãos erradas. Se você puder ser tão gentil, envie-os para os meus pais e peça que entreguem o da minha cunhada à guarda do meu irmão. Lamento não poder desejar um bom adeus. Foi um prazer e um privilégio conhecê-la. Que por um longo tempo, a sorte proteja seu caminho. Com carinho, M.K. No outro lado da mesa de trabalho, estava a propriedade mais prezada de Titus. E ele também lhe deixou uma nota. Amada, Discuti ferozmente se devia levar o diário da minha mãe comigo. No final, eu escolhi não levar, porque não quero que se perca ou se destrua, e porque o tempo para as profecias veio e foi. Mantenha-o seguro, pois também escreveu sua história. Nossa história. E por favor, me perdoe pela minha transgressão. Eu te amo com cada respiração, e eu sempre vou te amar. Titus. Era uma medida de seu amor por ele que ela não queimou sua nota ali mesmo. Mas ela exclamou cada nome que teria feito um buraco no papel, caso os colocasse por escrito. Quando estava rouca de gritar, Mestre Haywood, que a seguiu até o laboratório, disse tentativamente: — Querida, morar em uma escola de meninos certamente mudou sua linguagem.

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— Odeio destruir sua inocência, senhor, — ela respondeu bruscamente, — Mas não pronunciei nenhuma palavra que eu não sabia quando eu tinha doze anos. Ela apoiou os cotovelos na mesa de trabalho e enterrou o rosto nas mãos, tão exausta quanto furiosa. Era isso? Depois de tudo o que eles passaram ele esperava que ela se sentasse silenciosamente e esperasse pelo Observador Delamer lhe dizer quando a metade da população da cidade foi destruída pela chuva de morte? E quando o funeral real seria realizado, assumindo que Atlantis se incomodaria em devolver o corpo dele – ele esperava que ela soubesse isso pelos jornais também? — Iola, minha querida... — Por favor, deixe-me em paz. — Ela odiava ser rude com o Mestre Haywood. Mas ele estava feliz por ela não ter ido, e ela não poderia encarar essa alegria agora. — Eu ficarei feliz em lhe dar todo o espaço que desejar. Mas lembre-se de que devemos fugir em algum momento, talvez para a pousada. Você não pode ficar aqui para sempre. Ela podia, apenas para vencer Titus. — Compreendo. Você se importaria de me deixar por alguns minutos? Você pode pegar o jornal se quiser. O laboratório tinha uma cópia do Observador Delamer, cujo conteúdo era atualizado a cada poucas horas e, às vezes, com mais frequência. — Está tudo bem. Eu já li todos os artigos enquanto você estava dormindo. Alguns visitantes anteriores deixaram uma cópia do Times no salão... Vou dar uma olhada nele em vez disso. Silêncio. Vazio. O som de suas próprias respirações trêmulas. A sensação oca de não ser mais necessária. Sempre. A chuva de corações e coelhos. O deserto do Saara, a longa e solitária caminhada dele todas as noites, observando-a. O relâmpago entrou em erupção da terra firme, quente e mortal. Por você.

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Raiva, fervendo. A violência dentro dela, um caldeirão escuro. Com a mão ela o puxou para o farol, tão frio, muito, muito frio. Você e somente você. Viva para sempre. Eu amo você com cada respiração, eu sempre vou amar. Ela apertou a cabeça. Ela não suportava a agitação. Paz, calma, tranquilidade – ela precisava de alguma coisa. Se não, então pelo menos um entorpecimento abençoado, uma cessação desse tremor veemente de emoções e de memórias. O vazio que ela ansiava veio de repente. Mas não era paz, calma ou tranquilidade: era sua mente ponderando sobre algo, abandonando todos os outros pensamentos, a fim de puxar um fantasma de uma ideia do caos. Ela se sentou. Mas o que pode ser pior do que ser levada à cripta de Bane e ser sacrificada? Kashkari exigiu. E o mestre Haywood ofegou. Ela, naturalmente, interpretara o som como de consternação e angústia. E se estivesse errada? *** — Iola! — O Mestre Haywood deixou de lado o Times e levantou do assento. — Você está se sentindo melhor? Ela raramente se sentia pior. Com seu silêncio, ele se mexeu um pouco. Então tocou o jornal. — Você não vai acreditar no que eu acabei de ler: um anúncio do funeral do seu amigo, o jovem Wintervale. Isso, de fato, não era algo que ela esperaria encontrar em um jornal não mago. Ela ainda não disse nada. — Iola, você está bem? Ela não estava, mas sua mente agora trabalhava furiosamente. — Você se lembra da Professora Eventide? — Hippolyta Eventide? Claro.

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A Professora Eventide era uma personalidade inesquecível, uma mulher grande e loquaz com cabelos vermelho vivo, um guarda-roupa cheio de lantejoulas e bolinhas, e uma mente tão poderosa quanto uma varinha de lâmina. Sua especialidade de pesquisa eram as Artes das Trevas, enquanto as sociedades magas evitavam isso a todo custo. O entendimento profundo das Artes das Trevas, no entanto,

era

considerado uma necessidade infeliz, para que existissem aqueles que pudessem reconhecer e ajudar a se defender contra tais práticas. A maioria dos principais centros de aprendizagem tinha um especialista residente ou dois nas Artes das Trevas. Pelo que Iolanthe sabia, eles geralmente eram estranhos solitários que evitavam a companhia de seus colegas acadêmicos, assim como este último era indiferente. A professora Eventide, por força de sua cordialidade e convivência, era uma exceção. Ela era bem-vinda em todos os lugares, e nunca lhe faltava convites para reuniões sociais. Quando o Mestre Haywood trabalhou no Conservatório, a Professora Eventide adquiriu um interesse maternal por ele, e estava determinada a encontrar uma esposa para ele. Esse projeto nunca se concretizou, mas os dois se tornaram grandes amigos e, às vezes, jantavam juntos. Nessas ocasiões, Iolanthe adorava sentar-se no alto da escada, fora da vista e ouvir os adultos, pois eles discutiam sobre tudo depois de escurecer. Foi por essas discussões que ela obteve conhecimento suficiente para descobrir o que aconteceu com o pobre Wintervale. E foi outro desses fragmentos de conhecimento que agora a levou a reavaliar o que o Mestre Haywood entendeu das palavras de Kashkari. — Quando eu tinha sete anos, houve um jantar para celebrar sua promoção. — A última promoção que ele receberia do Conservatório – ou em qualquer outro lugar. — Durante a refeição, alguém perguntou a Professora Eventide sobre as fontes primárias que ela usou para sua pesquisa. Ela se recusou a discutir isso indefinidamente, dizendo que estava proibido. Mas depois que os convidados foram embora, vocês dois se sentaram e conversaram por algum tempo. E em um ponto você

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perguntou sobre essas fontes primárias, se era verdade que as memórias dos efetivos praticantes das Artes das Trevas tinham permissão para sobreviver. Master Haywood ficou muito quieto, quase como se tivesse parado de respirar. — Ela disse que sim, — Iolanthe continuou. — Ela advertiu você a manter tudo confidencial e, em seguida, começou a descrever o que lera nas fontes primárias. Continuei ouvindo e depois me arrependi do que ouvi. Depois, eu me esforcei para esquecer, porque o que ela disse me deu pesadelos. Mas algumas coisas você nunca esquece. Lembro agora do que ela lhe contou sobre a magia sacrificial, como os magos equivocadamente igualavam a magia do sangue com magia sacrificial, porque um rito da magia sacrificial começava com a extração de uma pequena quantidade de sangue da vítima, para verificar quão poderoso seria o sacrifício. Também me lembro dela dizendo quão grotesca era a magia sacrificial. E bagunçada, uma vez que todas as melhores partes do corpo – olhos, cérebro, órgãos e medula – deveriam ser extraídas enquanto o coração da vítima ainda batia. Suas respirações ficaram agitadas pelas lembranças horríveis – e pela acusação que ela estava prestes a fazer. — Meus amigos são conhecedores, mas poucos magos vivos sabem de alguma coisa concreta e extraordinária. Quando descobrimos que a magia sacrificial era o motivo da busca de Bane por um grande mago elementar, nenhum de nós teve tempo de ler qualquer coisa... Estávamos muito ocupados nos preparando para deixar Eton rapidamente. Hoje, por ignorância, meus amigos assumiram que o que o sonho profético de Kashkari revelava era que eu morreria de magia sacrificial, dando a Bane outro século de poder incomparável. Essa foi a razão pela qual eles me deixaram para trás, apesar de precisarem das minhas habilidades. Mas você sabia o tempo todo que eles estavam errados. Que eu não seria usada para magia sacrificial, pelo menos não com sucesso. E você guardou isso. Você os deixou ir. Você deixou... — sua voz falhou. — Você deixou aquele que eu amo entrar em certo destino sem mim.

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Ele não disse nada. — Eu estou certa? — Ela exigiu. — É isso que você fez? Ele ainda não disse nada. — Responda! A garganta dele se moveu. — Sim, você está certa. Eu deixei que eles pensassem que sua morte seria causada por magia sacrificial, ainda que a descrição do sonho de seu amigo sugerisse o contrário. Ela caiu em uma cadeira, suas pernas já não conseguiam sustentá-la. — Mas você não vê, Iola, que mesmo que não seja por magia sacrificial, se você for para Atlantis ainda morrerá? Com cuidado, ela ergueu a cabeça. — Eu sei disso. Eu sabia disso desde o dia em que o príncipe perguntou pela primeira vez se eu iria ajudá-lo nesse esforço. Foi por isso que eu fugi dele. Foi por isso que ele teve que me enganar com um juramento de sangue para que eu ficasse. Mas em algum lugar ao longo do caminho eu mudei de ideia. Eu entendi o que era aquilo. E percebi que, às vezes, a perda de uma vida, mesmo que essa vida seja a minha, não é um preço muito alto a se pagar. Ele sacudiu a cabeça, com os olhos arrasados. — Não posso deixar isso acontecer. Você ainda é uma criança. Você é jovem demais para tomar decisões irrevogáveis. — Eu ainda posso ser menor de idade, mas não sou criança há muito tempo. Você sabe disso. E tenho alguma ideia de quão devastador pode ser para você me deixar escolher o meu próprio caminho. Mas é o mesmo para mim, você não vê? Há uma profecia da morte do príncipe. Ele encontrará o fim dele em Atlantis. Você acha que nunca me ocorreu que talvez ele devesse parar de seguir esse curso de ação que o levaria à Atlantis? Mas eu não digo nada para dissuadi-lo, e não entro no caminho dele. Ele já escolheu, e devo respeitar a escolha dele. Uma lágrima rolou pelo rosto do Mestre Haywood. — Mas e o Conservatório? Se você colocar o pé em Atlantis, nunca mais retornará. E você nunca estudará no Conservatório.

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— Você realmente pensou que de amanhã ou na próxima semana eu mudaria de ideia e me contentaria em me aprofundar em meus estudos para que eu ainda pudesse ir bem nos exames de qualificação do próximo ano? E mesmo que eu fizesse isso, você esqueceu quem eu sou? Você esqueceu isso, que enquanto Bane existir, eu nunca estarei segura? Mestre Haywood cobriu o rosto com as mãos. Iolanthe se levantou. O que mais havia para dizer? Ela voltou ao laboratório, sentou em seu banquinho habitual, pressionou os dedos nas têmporas e tentou pensar. Havia sempre a rota do mar, é claro. Titus tinha uma conta no Banco da Inglaterra a qual ela tinha acesso, e havia dinheiro suficiente na conta para ela contratar uma embarcação – ou comprar uma completa – para cobrir mil e quinhentos quilômetros de oceano aberto. Mas o mais rápido navio a vapor ainda levaria pelo menos trinta horas para percorrer essa distância. E mesmo ela, com seus poderes, não conseguiria criar uma corrente oceânica que se movesse muito mais rápido. As páginas do caderno de duas vias de Kashkari se moveram, como se alguém tivesse pressionado as bordas e o folheado. Ela olhou para ele. Ela usou cadernos de duas vias quando era criança – a maioria dos alunos da escola comprava-os de vendedores ambulantes, pois nenhum dos pais ou figuras parentais fazia tais compras, dado que seu uso predominante era conversar com amigos durante a aula enquanto aparentemente estivesse tomando notas e prestando atenção. Mais tarde, os cadernos de duas vias foram adaptados para que pudessem receber mensagens de distâncias mais longas, em vez de apenas alguns metros de distância. Mas porque parte da construção subjacente

era

tão

frágil,

ninguém

jamais

conseguiu

torná-los

verdadeiramente seguros. Titus sempre se recusara a carregar um, por medo de que ele mostraria muito se sua pessoa fosse investigada. As páginas do caderno voltaram a farfalhar. Ainda que Iolanthe quisesse, ela não poderia ler a mensagem, a menos que soubesse a senha de Kashkari. A segurança era baixa, mas

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ainda o suficiente para impedir que uma pessoa bisbilhotasse casualmente. As notícias da primeira página do Observador Delamer, que estava ao lado do caderno, mudaram. Não muito poderia ser obtido das primeiras páginas de qualquer jornal nos dias de hoje – a informação valiosa era muito mais provável que fosse encontrada escondida entre os pequenos e numerosos anúncios nas páginas posteriores. Ela piscou e puxou o jornal para ela. Na parte inferior da página inicial, lia-se um pequeno título: Cargas pesadas enviadas para o Norte de Delamer visto que os translocadores do Leste de Delamer estão submetidos a manutenção. O artigo era curto. Vários dos translocadores de frete de longo prazo do Domínio foram demolidos nesta manhã. Os translocadores 1 a 4 funcionaram há muito tempo como os navios mais importantes da capital, de fato, para embarques transatlânticos de carga. Essa negligência foi agora retomada tanto por translocadores do Norte de Delamer quanto do Oeste de Riverton. Os translocadores do Leste de Delamer devem ser reconstruídos com os padrões atuais e retornar ao serviço no início do próximo ano. O Translocador 4 no Leste de Delamer era aquele para o qual Titus tinha um disruptor de destino! A mensagem foi escrita no caderno de Kashkari? Titus também descobriu esses infelizes eventos e tentava contatá-la? Mas por que ela? O que ela poderia fazer de um farol no norte do continente da GrãBretanha? Claro,

o

diário.

Diante

de

tal

desafio,

Titus

desejaria

imediatamente consultar o diário de sua mãe, para ver se alguma de suas visões poderia fornecer uma pista sobre como ele deveria prosseguir. Ela pegou o caderno e tentou pensar da perspectiva de Kashkari. Os cadernos de duas vias não funcionavam com contrassenhas, e não toleravam senhas longas e complexas. Então precisava ser algo

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relativamente simples. E Kashkari, que passou a maior parte do tempo na escola, usaria algo que seus colegas de classe não pudessem adivinhar, algo que pertencia à sua vida secreta como um jovem rebelde. — Amara, — ela disse. Não era isso. — Durga Devi. Não. — Vasudev. Ainda não está certo. Claro, Vasudev Kashkari viera a Eton e conheceu algumas pessoas na casa da Sra. Dawlish. Então não seria o nome dele. Era o nome de sua irmã, então? Ou o nome de seus pais? Ela não sabia como qualquer um deles era chamado. Espera. O que Kashkari disse ser seu nome de guerra? — Vrischika! Ela grunhiu em voz alta quando a marca permaneceu no lugar. Ela estava no caminho errado aqui. Kashkari passou parte de seu ano com os rebeldes, então ele quereria algo que os rebeldes não pudessem adivinhar, caso alguém curioso se deparasse com seu caderno. Ela caminhou várias vezes ao redor da mesa de trabalho. Kashkari foi à Eton para manter Wintervale a salvo, mas todas as variações do nome de Wintervale não funcionaram. Ela consultou o diário da princesa Ariadne, mas nenhuma visão nova foi revelada. Escondida na parte de trás do diário, ela encontrou uma carta de Lady Wintervale para Titus, escrita há anos, quando ele começou seus estudos em Eton. Mas não foi útil para o problema em questão. Você irá ajudá-lo, buscando auxílio dos fiéis e corajosos, veio o antigo conselho do Oráculo das Águas Paradas. Poderia ser? Fidus et audax9 foi a senha usada no guarda-roupa do quarto de Wintervale, era de fato – disse Titus depois – o lema da família Wintervale. Poderia Kashkari ter usado isso como sua senha, por causa do que ele acreditava ser sua conexão com Wintervale?

9 Leal e corajoso.

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— Fidus et audax, — ela disse. O caderno se abriu. E na página aberta estava escrito: Lembro agora onde eu vi o livro exatamente como o volume de contos de fadas do príncipe: nas prateleiras da grande biblioteca de Royalis, quando trabalhei lá pela última vez. Iolanthe quase deixou o caderno cair. Ela não precisava ver o pequeno símbolo de redemoinho atlante no canto da página para saber quem enviara a mensagem. Sra. Hancock. Onde você está? ela perguntou. Nenhuma resposta veio. Se ela fosse a Sra. Hancock, também teria cuidado, especialmente se recebesse uma resposta que não estava na caligrafia de Kashkari. Iolanthe quase se identificou para a Sra. Hancock, mas isso seria muito arriscado, caso o caderno caísse nas mãos erradas. Ou já estivesse nas mãos erradas. Sua cabeça latejava. O que realmente aconteceu? O que Titus, Kashkari e Amara fariam uma vez que não pudessem prosseguir como eles esperavam? E qual era o papel dela em tudo isso? Ela deveria simplesmente transmitir a informação para Dalbert e esperar o melhor ou... Ela se levantou e voltou para o salão. Mestre Haywood estava sentado em uma poltrona, com as mãos no colo, olhando fixamente para frente. Seu coração apertou, mas ela apenas disse: — Se você puder me mostrar onde está, eu gostaria de ver o aviso do funeral do Wintervale. *** Titus levara sua bolsa de emergência. Mas, felizmente para ela, sua preparação era de classe mundial, e no laboratório havia duplicatas de quase tudo – inclusive, felizmente, outra varinha de reposição, já que ela planejava deixar Validus para trás. Ela encontrou uma bolsa

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semelhante àquela que eles usaram e abasteceu com remédios, ferramentas e tudo o mais que ela poderia precisar. Mestre Haywood, com seu rosto sombrio, fez o mesmo, enchendo a bolsa que ele trouxera do apartamento em Paris. — Você não precisa vir, — ela disse. — Eu quero. — Você não quer. Você prefere ficar. — Assim como você, Iola. Não somos nós tão corajosos. — Pelo menos eu tomei minha decisão há muito tempo, depois de uma cuidadosa consideração. Você está apenas sendo precipitado. Ele parou e se virou para ela. — Minha querida menina, você pode me criticar em qualquer outra coisa... E Deus sabe que eu faltei em muitas frentes. Mas, por quase dezessete anos, minha vida não teve outro objetivo além de mantê-la segura. Quando destruí seu elixir de luz, foi uma tentativa de mantê-la segura. Quando eu não disse nada e deixei o príncipe e seus amigos irem, da mesma forma. E agora vou com você, porque nada importa mais do que sua segurança. Talvez eu esteja sendo precipitado, mas minha decisão foi feita muito, muito tempo atrás. Ela engoliu em seco. — Eu sinto muito. Por favor, me perdoe. Sua voz suavizou. — Somente se você também me perdoar por ultrapassar meus limites. Ela colocou sua bolsa, envolveu os braços ao redor dele e pousou a cabeça em seu ombro. — Eu quero tanto que você tenha anos e anos à frente. Bons anos... Muitos foram roubados de você. — Eu quero o mesmo, mas não porque eu tive algo roubado de mim. Eu mesmo joguei fora esses anos, nós poderíamos ter sido felizes juntos. Eu quero fazer tudo certo para você, devemos receber outra chance. Ela tocou o rosto dele. — Você sempre fez tudo certo comigo. Ele a abraçou ferozmente e depois a beijou na testa. Eles terminaram de embalar e verificaram as bolsas para garantir que nenhum item importante fosse deixado para trás.

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Quando não havia mais nada a fazer, Iolanthe fechou a porta do laboratório. Ela desejava ter tempo para um último passeio no promontório. Cape Wrath era um lugar austeramente bonito, e ela viu muito pouco, apesar do número de vezes que ela visitou o laboratório. Algum dia, quando todas as profecias do mundo virassem chamas. Ela respirou profundamente. — Pronto? — Não, — Mestre Haywood disse. — Eu sei o que você quer dizer. Ninguém pode estar pronto para o que estamos prestes a enfrentar. — Não, não é o que eu quis dizer. Ela olhou para ele. Ele mudou de ideia? — Então o que você quer dizer? *** Do celeiro abandonado em Kent, Iolanthe desmaterializou o Mestre Haywood e ela mesma em Gravesend, no centro de Londres, depois em West Drayton, a dez quilômetros ao leste de Eton. Ela não sabia exatamente quão longe a zona sem desmaterialização de Atlantis se estendia, mas eles chegaram a West Drayton sem percalços e, partiram de trem para Windsor e Eton Central, imediatamente na porta do Castelo de Windsor. O castelo estava dentro da zona sem desmaterialização, que ainda estava em vigor. Contudo, os muros altos e as entradas protegidas não eram suficientes para impedir dois magos que podiam invadir mentes. Na verdade, o único problema que Iolanthe tinha era determinar a localização precisa da sala que ela costumava desmaterializar para se encontrar com Lady Wintervale. Mas ela sabia que estava de frente para o norte e no piso superior. E ela deu uma descrição detalhada o suficiente para um lacaio, sob um feitiço que o fez acreditar que ela era uma das damas de companhia da

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rainha inglesa, para saber exatamente de qual sala de estar ela estava falando. Posteriormente, a voz dela soou claramente no interior da sala. — Toujours fier10. O que Lady Wintervale lhe disse para dizer para chamar a nobre mulher do seu esconderijo no interior do castelo. Exceto que desta vez essas palavras chamaram apenas os agentes de Atlantis, que estavam esperando.

10 Sempre orgulhoso.

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Capítulo 12 Titus dirigiu o veleiro em frente. O mar estava acinzentado e agitado, o borrifo frio como facas. Kashkari e Amara estavam amontoados um perto do outro na popa, mas raramente falavam. Amara, apesar do remédio para enjoo que Titus lhe dera, parecia tentar desesperadamente não perder o café da manhã. Se ele pensasse nisso, era estranho que Amara tivesse os acompanhado – ele vagamente se lembrava da troca em sussurros entre Kashkari e ela enquanto ainda estavam no laboratório. Mas Titus não dedicou muito tempo para a estranheza de sua escolha: todos os que não eram Fairfax estavam livres para tentar sua sorte com Atlantis. Todos morreriam de qualquer maneira. Estava quase escuro antes de avistar a terra – uma pilha de pedras que pertencia às ilhas Nereidas, um dos Arquipélagos periféricos do Domínio. Titus dirigiu o barco mais ou menos para atracá-lo. Eles tiveram sorte, não viraram e ninguém se feriu. Assim como fizera nos países da Europa, Titus se apropriou metodicamente de muitas partes de seu próprio Domínio. Ele deu a Kashkari e Amara uma forte dose de auxílio de desmaterialização para

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cada um, e os desmaterializou em uma ilha maior a cento e quarenta quilômetros de distância. Outra desmaterialização e eles estavam em uma terceira ilha, desta vez diante de um antigo templo que caíra em ruínas. No santuário interno do templo, Titus apontou sua varinha para o chão. — Aperito shemsham. As pedras enormes recuaram, abrindo uma passagem para baixo. — Hesperia, — ele disse a título de explicação. Hesperia, a Magnífica, passou uma parcela significativa de sua infância aprisionada. Após arrancar o Usurpador do poder, ela estava determinada a nunca mais perder sua liberdade. Tudo o que ela construiu tinha múltiplos meios de fuga, os quais levavam a todo o Domínio. A câmara secreta embaixo do santuário interno tinha um portal que levava a uma câmara secreta semelhante embaixo de um santuário similarmente dilapidado, desta vez nas Montanhas Labyrinthine. Encontrar lugares nas Montanhas Labyrinthine sempre foi complicado. Titus pediu a Kashkari e Amara que permanecessem na proximidade do santuário enquanto ele desmaterializava para ver o quanto as montanhas mudaram. Ou seja, ele desmaterializou cegamente – desmaterializando com os olhos bem abertos, olhando para onde queria ir ao invés de usar memórias reais de um lugar que ele visitou antes. Nas Montanhas Labyrinthine, onde tudo se movia, a desmaterialização não funcionava tão bem quanto em outros lugares. Teria sido mais fácil para ele usar um tapete e examinar a paisagem a partir de um ponto mais alto, mas ele não se atrevia a ficar tão visível. Após sua quarta desmaterialização, ele finalmente se materializou perto da esconderijo: ele reconheceu o som do Riacho da Sonata. De perto, o Riacho da Sonata era apenas outro ribeirão da montanha, do tipo que estava em todos os lugares para ser encontrado nessas partes – águas claras e frias, folhas vermelhas e douradas levadas rapidamente pelas correntes.

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Parecia comum também, o burburinho da água, o sussurro dos galhos de árvores sobre a cabeça, o ocasional chirriar de um pássaro ou inseto. Mas de alguma forma, se alguém estivesse na distância certa, quando combinados, todos os sons comuns do lugar formavam uma música. Música não figurativa, mas literal, como se o fluxo tivesse aprendido a tocar lira e a atacar pequenos triângulos para marcar o ritmo de seu progresso. Sempre que ele e sua mãe faziam uma longa caminhada, ela sempre se certificava de passar pelo Riacho da Sonata. Esta era a sua montanha, o parque infantil, o refúgio seguro de seu pai tirano e da atenção de Atlantis, cada vez mais perto. E ela queria que ele sentisse sua magia em seus ossos, para manter sempre em seu coração um profundo sentimento de reverência e admiração. Ele se permitiu um minuto para escutar. Esta seria a última vez que ele se depararia com o solo argiloso de sua infância, a última vez que respiraria o cheiro de casa. Então desmaterializou de volta para transportar Kashkari e Amara até a encosta gramada abaixo de uma rocha pura. Atrás da superfície rochosa estava um espaço de convivência surpreendentemente grande, sala após sala rústica, a mobília simples e resistente, as paredes de granito levemente avermelhadas à luz dos candeeiros. Era onde Fairfax teria ficado durante o verão anterior se as coisas não tivessem dado errado para eles. Eles fizeram tantos planos. Cada momento que ele poderia ter fugido do castelo, que eles passariam juntos, treinando e planejando, mas também apenas de mãos dadas e se inclinando um para o outro, armazenando uma reserva de felicidade e esperando enfrentar os dias mais sombrios. Em vez disso, eles não passaram nenhum tempo juntos. E tanto quanto Titus desejava aproveitar os bons momentos que compartilharam para manter o desespero à distância, ele teria gostado de ficar no esconderijo, cheio de beijos e um pouco mais.

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— Há uma casa de banho na parte de trás, com água quente, — ele disse a seus companheiros. — Vão em frente e façam uso dela. Ele entrou na cozinha. Não havia alimentos frescos armazenados, mas uma grande variedade de conservas e mantimentos desidratados. Ele colocou uma panela de água para ferver sobre um fogão sem fogo e adicionou uma variedade de ingredientes para fazer uma sopa de vegetais. À medida que a sopa borbulhava, ele abriu várias embalagens de pão, embebeu os pedaços em água, depois os colocou em um forno quente, de acordo com as instruções de aquecimento. Quando terminou, ele se inclinou contra o balcão de pedra áspera, mais exausto do que gostaria de admitir. Apenas o primeiro dia da jornada, e já sentia como se estivesse viajando há anos. Mais do que qualquer coisa, ele queria engolir uma dose de ajuda do sono e passar algumas horas em um esquecimento feliz. Mas primeiramente ele precisava

garantir

que

seus

companheiros

fossem

alimentados

corretamente. Talvez devesse colocar algumas frutas secas na mesa de jantar, ou... — Titus, — veio a voz de Kashkari. Ele se virou. — Sim? Kashkari ficou na entrada da cozinha, uma cópia do Observador Delamer na mão. A expressão no rosto dele fez o coração de Titus afundar antes mesmo de dizer: — Receio ter más notícias. *** Titus mal conseguia acreditar no que lia. Demolido. Retornar ao serviço no início do próximo ano. — O seu disruptor pode ser usado em um translocador diferente? — Kashkari perguntou. Titus sacudiu a cabeça. Ele não estava envolvido com a fabricação do disruptor – herdado do príncipe Gaius, seu avô, que há muito tempo procurava maneiras de entrar em Atlantis. Mas a instrução era muito clara: funcionaria apenas nesse translocador em particular.

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Essa era a razão pela qual os translocadores 1 a 4 do Leste de Delamer, embora obsoletos, nunca foram substituídos: era uma falha de segurança naquela geração particular de translocadores que fazia o disruptor funcionar. Isso

poderia

ser

uma

coincidência,

a

demolição

dos

translocadores quando ele mais precisava que eles funcionassem como de costume? E quem, além dele, Fairfax e Kashkari, ainda sabiam da existência do disruptor? — Então, o que fazemos? — Kashkari perguntou. Titus jogou o jornal. — Nós roubamos um carro blindado e fazemos o que precisamos? — Você sabe tão bem quanto eu que no momento em que Atlantis perceber que um veículo está fora do controle deles, nós cairíamos como uma pedra. Se tivessem Fairfax, controlar o ar não seria um problema. Mas eles não tinham. — Você poderia cuidar da comida? — Ele perguntou a Kashkari. — Eu preciso contatar meu espião e descobrir o que está acontecendo. *** Titus ficou no topo da superfície rochosa, a ponta de sua túnica agitando com o vento. Os últimos raios dispersos da luz do pôr do sol estavam desaparecendo; o manto completo da noite estava sobre as montanhas. Por que Dalbert ainda não veio até o esconderijo? Antes de deixar o laboratório, ele avisara Dalbert que estaria esperando nas montanhas. Ele tinha alguns outros lugares, mas Dalbert deveria ter entendido que ele se referia ao esconderijo. E Titus teria esperado que Dalbert, sempre meticulosamente organizado e preparado, tivesse chegado bem antes. Ele tentou recordar as palavras exatas que Dalbert usara em seu comunicado anterior, mas só podia lembrar a essência, algo sobre não poder enviar mensagens por vários dias.

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O que exatamente aconteceu no castelo enquanto Titus esteve no deserto? Dalbert também estava fugindo – ou se escondendo, onde ele poderia estar? — Sua Alteza, — veio o som de uma voz familiar. Dalbert ficou na base do penhasco, o rosto redondo virado para cima. Ele não era um servo de libré, mas no castelo ele sempre usava um capelet branco, bordado nas costas com a imagem de uma fênix de duas cabeças, o emblema pessoal da mãe de Titus. Desta vez, estava sem o capelet, vestia uma túnica simples de um homem explorador e uma bolsa de couro desgastada pendurada no ombro. — Dalbert! — Titus ficou mais do que feliz – ficou emocionado. Desceu e agarrou seu valete e mestre dos espiões. — Você está bem? Dalbert curvou-se na cintura. — Estou muito bem, senhor. Eu esperava chegar mais cedo e deixar tudo pronto no esconderijo para Sua Alteza, uma refeição e um banho em particular. Titus acenou com a mão. — Eu posso fazer isso sozinho. Entre e me diga o que está acontecendo. Amara e Kashkari estavam colocando a mesa quando entraram. Titus fez as apresentações, e juntos trouxeram todos os itens para a ceia da cozinha e sentaram-se. — Obrigado, Mestre Dalbert, — Kashkari disse, — Por ter a previsão de nos fornecer um translocador. — De fato, — Titus disse. — Quando você colocou aquilo no lugar? — Após sermos informados de que Sua Alteza deveria ir para uma escola não maga na Inglaterra, eu estava entre os magos enviados à casa da Sra. Dawlish para garantir que a habitação fosse adequada. Aproveitei esse momento para examinar alguns locais em Londres. Com cada viagem subsequente, fiz algum trabalho no guarda-roupa no Museu Victoria e Albert. Estava pronto para ser usado na sua terceira temporada em Eton. — Bem feito, claro. Mas como você antecipou que eu poderia precisar de algo do tipo? — Titus nunca falou sobre sua missão para Dalbert: sua política sempre foi sigilosa. E, no entanto, aqui estava ele,

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descobrindo que Dalbert há muito tempo programava medidas de emergência em seu nome. Dalbert sorriu um pouco, um sorriso com um traço de melancolia. — Quando eu tinha quatorze anos, tornei-me pajem da Alteza. Depois que ela atingiu a maioridade, ela demitiu o secretário pessoal, que o príncipe Gaius, lhe atribuiu, e confiou o posto a mim, em vez disso. Ao mesmo tempo, ela me contou que tinha previsões do futuro, e muito para o arrependimento dela, era estranhamente exata nessas visões. Alguns anos depois, ela pegou a Comandante Rainstone espiando o diário dela, no qual mantinha registros de suas visões. Depois disso, ela colocou um feitiço para deixar o diário em branco, de modo que mesmo que alguém soubesse a senha do diário, eles ainda veriam apenas páginas em branco – o toque da mão dela era necessário para mostrar o conteúdo. Mas quando ela soube que iria morrer jovem, ela enfrentou um dilema. Muitas das suas visões diziam respeito a você, senhor. Era importante que você tivesse acesso a elas, mas também era crucial que você não fosse dominado por tudo ao mesmo tempo. Ela não teve tempo suficiente para configurar os feitiços necessários para o diário mostrar apenas o que você precisava ver em algum momento. Essa tarefa foi entregue a mim em vez disso, com o entendimento de que, no decorrer do cumprimento, eu poderia encontrar algumas de suas visões. Eu tinha permissão para ler aquelas: ela me encarregou de cuidar de seu filho e eu deveria ter o conhecimento necessário. As sobrancelhas de Titus se ergueram. — Você nunca me disse isso... Que ela me deixou sob sua responsabilidade. Dalbert curvou a cabeça. — Foi uma escolha consciente da minha parte, senhor. Sua Alteza era muito confiável por natureza. Conhecendo a missão que ela estabelecera para você, senti que você deveria segurar suas cartas perto do peito... Não confiando em ninguém, se possível. Titus o encarou perplexo, o homem que ele conhecia por toda a vida. Não tanto pelo que Dalbert disse, mas porque, de repente, ele viu a influência de Dalbert sobre ele, algo que não sabia até este momento.

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Não confie em ninguém. Ele sempre acreditou que se tornara tão suspeito como era simplesmente por causa de suas circunstâncias. Mas não, também foi a influência discreta de Dalbert no trabalho. Certo, eles reforçaram seu isolamento. No isolamento, havia segurança. No isolamento, ninguém poderia trair sua confiança. Agora ele se perguntou o que Dalbert achava dos companheiros que ele juntou ao longo do caminho. E aquela que ele deixou para trás. Como se tivesse ouvido Titus, Dalbert disse: — É preciso ter cuidado para permanecer vivo e livre. Mas o ponto de permanecer vivo e livre o suficiente é lidar com a grande tarefa – e isso não pode ser realizado sozinho. Por isso, estou muito agradecido de que Vossa Alteza tenha encontrado uma amizade de propósito comum. Eu sei a muitos anos que Sua Alteza foi encarregada de encontrar o grande mago elementar do nosso tempo. Como todos os outros, eu não podia estar inteiramente certo de que Vossa Alteza havia realmente a encontrado. Mas, como Atlantis, depois dos acontecimentos de quatro de junho, eu também suspeitei que Lady Callista pudesse estar envolvida de alguma forma. Quando ouvi que Atlantis, por fim obteve informações de Lady Callista de que ela havia escondido por muito tempo a maga elementar, eu queria avisá-lo pessoalmente, mas não podia, pois não tinha autorização para tirar seu translocador pessoal do Domínio. Quando surgiu a notícia de que você havia desaparecido e seus pertences foram confiscados, consegui argumentar que alguém do Domínio também deveria estar em cena. — Eu estava me perguntando, Mestre Dalbert, — Kashkari disse, — Quando você chegou à casa da Sra. Dawlish, como conseguiu descobrir que eu era um mago? Você reconheceu minha cortina como um tapete voador? — Não, evidentemente que não, Senhor Kashkari. O que me chamou a atenção foi o pequeno altar no seu quarto. Você tinha os

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acessórios habituais, tal como lâmpadas a óleo, ghee11 e especiarias. Mas em vez de vermelhão, o pequeno montículo de pó vermelho no prato era musgo de fogo moído. — Oh, eu trouxe isso de casa. Pensei que nossos altares eram exatamente os mesmos que os nossos vizinhos não magos. — Eles são bastante parecidos, mas o musgo de fogo moído é de uma textura ligeiramente diferente – e um perfume mais pungente, se alguém colocar uma pitada perto do nariz. Então eu escolhi dar a você a mensagem sobre a confissão de Lady Callista. Eu não sabia se você seria capaz de passá-la para Sua Alteza, mas era uma chance melhor do que confiá-la a alguém naquela casa. Quando eu estava saindo, fui detido por agentes de Atlantis. Felizmente, eu tinha autorização, então eu poderia dizer honestamente que eu estava simplesmente seguindo as ordens. Mas ainda assim, meia dúzia de agentes de Atlantis me acompanhou no caminho de volta. Quando percebi que eles queriam me interrogar sob o soro da verdade, eu fugi. Eu antecipara problemas do tipo e já havia removido minha máquina de mensagens do castelo. Infelizmente, as coisas aconteceram mais rápido do que eu esperava, e ainda não tinha tido a oportunidade de recuperar certos itens cruciais do mosteiro – tanto o castelo quanto o mosteiro estão sob custódia daqueles que estão na folha de pagamento de Atlantis desde o início do verão. É isso o que eu fiz nos últimos dias. Entrar no mosteiro não foi difícil, mas se afastar mostrou-se bastante incômodo. Somente ontem à noite eu consegui sair sem ser detectado. Ele tirou um item da bolsa que carregava e colocou na mesa de jantar. Titus quase saiu da cadeira. — A varinha de Hesperia. A qual também era da sua mãe. Dalbert assentiu com a cabeça e então tirou outra coisa: a cópia do Crucible do mosteiro. — Atlantis já confiscou a cópia da Cidadela e a

11 Ghi ou Ghee é um tipo de manteiga clarificada, muito usada na culinária indiana, feita com leite de vaca ou de búfala. É considerada uma gordura mais saudável do que a manteiga, tendo diversos benefícios para a saúde.

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cópia pessoal de Sua Alteza. Eu não queria que a última cópia ainda em nossa posse fosse encontrada e levada. Titus passou os dedos pela capa de couro envelhecida. — Obrigado, Dalbert. Minha gratidão é imensa. Mas você deve saber que não pode mais ser usado como um portal, não enquanto as outras cópias permanecerem com Atlantis. — Eu preciso discordar, Senhor. Segundo ouvi da Senhorita Seabourne hoje, enquanto Sua Alteza ainda estava viajando. — Ela está bem? — A pergunta disparou de Titus como um tiro. Eles estavam apenas a mil e quinhentos quilômetros de distância – eles estiveram separados por distâncias muito maiores desde que se conheceram, ou mesmo durante as últimas quarenta e oito horas. Mas desta vez não era um espaço físico que os dividia, mas a linha entre a vida e a morte. Ele já estava morto. Mas ela ainda podia viver. — Ela não mencionou sua saúde, — Dalbert respondeu, — Mas posso deduzir que ela está segura, pelo menos. Segura, pelo menos. Ele supôs que era tudo o que ele poderia pedir, embora quisesse muito mais. — E o que ela disse? — Ela relatou que o senhor Kashkari recebeu uma mensagem no caderno de duas vias que ele deixou para trás. Ela implorou o perdão do senhor Kashkari, mas nas circunstâncias ela sentiu que não tinha escolha, além de tentar adivinhar a senha e ler a mensagem. — Eu teria exortado ela a fazer o mesmo, — Kashkari disse. — A mensagem era da Sra. Hancock. Uma ingestão coletiva de respiração reverberou na sala de pedra. — De acordo com a senhorita Seabourne, — Dalbert continuou, — Há uma semana, na noite do desaparecimento de um aluno chamado West, o Oráculo das Águas Paradas disse a Sra. Hancock algo como: Sim, você já viu isso antes. — Eu me lembro disso, — Titus disse. — A Sra. Hancock pensou que o Oráculo falava sobre o Crucible, que ela havia visto muitas vezes no meu quarto, antes que eu o tirasse de lá.

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— Realmente, o Oráculo se referia ao Crucible, mas uma cópia diferente, que a Sra. Hancock agora se lembra de ter visto na biblioteca de Royalis. Royalis era o luxuoso complexo palaciano de Lucidias, a capital de Atlantis. Desta vez, Titus saiu do assento. — Que a Sorte me proteja. Meu avô nos disse que a quarta cópia do Crucible havia sido perdida. Mas nunca foi. Em vez disso, o Príncipe Gaius deve ter enviado a cópia como um presente para Bane. Deve ser assim que ele havia enviado o excepcional espião que conseguiu dar uma boa olhada nos anéis de defesa do lado de fora do Palácio do Comandante. E essa cópia do Crucible permaneceu na prateleira da biblioteca em Royalis por todos esses anos, acumulando poeira. Dalbert também se levantou. — Eu vejo que as novidades te agradam, senhor. Sim. E aterrorizavam-no também. Mas ele apenas assentiu. Então se virou para Kashkari e Amara. — Parece que encontramos outro caminho para Atlantis. *** Depois de terem superado a logística, Amara desejava passar algum tempo em oração e pediu que Kashkari se juntasse a ela. Isso deixou Titus e Dalbert sozinhos. — Senhorita Seabourne pediu que eu ficasse de olho em suas costas, senhor, — Dalbert disse. — Posso dar uma olhada? Titus quase se esqueceu da lesão dele. Apesar de seu árduo dia, suas costas não pioraram. Darbert também se declarou satisfeito – aparentemente os remédios trabalharam como deveriam e ele não precisava ser enfaixado mais. Eles se sentaram novamente em volta da mesa de jantar. — Mais perguntas que posso responder por você, senhor?

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Dalbert o conhecia muito bem – outra coisa que Titus não conseguiu apreciar. Ele exalou. Ele também poderia tentar, já que a oportunidade não voltaria. — Eu encontrei menções ao meu pai no diário da minha mãe pela primeira vez esta manhã. Você serviu minha mãe durante o tempo de namoro. O que você pode falar sobre ele? Dalbert parecia considerar sua escolha de palavras. — Ele era... Um homem simples, simples no melhor sentido da palavra – sincero, gentil, e animado, sem ser bobo ou irresponsável. Se eu tivesse uma filha ou uma irmã, eu ficaria satisfeito se ela trouxesse para casa um jovem como ele. — Mas? — Mas minha filha ou irmã não se tornaria um dia a Mestra do Domínio. Ela precisaria enfrentar situações complicadas e difíceis – ou lidar com um inimigo hostil que exigiria uma manipulação mais cuidadosa e delicada. Seu pai não teria sido um trunfo para uma mulher em tal ambiente – mas uma deficiência. Uma casa principesca não é um lugar para um homem que não entende de traição ou engano. — Você tem certeza de que ele não entende essas coisas? Ele é Sihar, não é? É possível um homem Sihar chegar à idade adulta sem entender algo da complexidade e crueldade do mundo? O Sihar, por sua prática de magia do sangue, foi impugnado pelo resto da comunidade maga. E embora não fosse mais aceitável discriminar abertamente os Sihar, o antigo fanatismo havia sofrido em novas formas mais sutis e às vezes mais insidiosas. — Você pensaria que o preconceito que os rodeia criaria amargura em cada coração Sihar. E, no entanto, descobri que nem sempre é esse o caso. Às vezes, a resposta daqueles que recebem uma porção desproporcional da feiura do mundo é uma surpreendente beleza de caráter, vivacidade e alegria de viver que não pode deixar de ser atraído e movido. No entanto, eu estava convencido de que ele murcharia se ela o forçasse a ser seu consorte – requer certa severidade, certa crueldade, se eu posso dizer, usar a coroa com sucesso. Sua Alteza, como tal, não possuía sangue-frio o suficiente. Se ela se aliasse em casamento com um

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homem ainda mais temperamentalmente inadequado para governar... Em qualquer caso, eu recomendava que ela fizesse isso de forma antiquada: casar com um de seus barões para fortalecer sua posição e manter seu amante longe do olhar do público. Mas Sua Alteza era uma idealista. Ela não queria seguir meu conselho, embora o reconhecesse. Nós discordamos fortemente sobre o assunto – provavelmente foi o mais tenso que a nossa relação já chegou. Então, um dia ela veio perturbada, e pediu que eu nunca tentasse prejudicar seu amado. Eu fiquei magoado por ela pensar que eu ultrapassaria meus limites a uma extensão tão execrável, e eu disse isso a ela. Pela primeira vez, em todos os anos que eu a conheci, ela chorou. Ela me disse que algo terrível aconteceria com ele e me implorou para prometer-lhe que não seria por minha mão ou minha instigação – já que eu era o único em quem ela confiara a identidade dele, que tinha os meios e motivos para removê-lo de sua vida. Para deixá-la à vontade, me ofereci para fazer um juramento de sangue. Ela se recusou a me ligar com um, dizendo que minha palavra era boa o suficiente. Ela agonizou sobre o que fazer sobre o pai dela. Ele não se opunha a uma indiscrição juvenil ou duas da sua parte, mas ela manteve seu caso extraordinário em segredo porque temia o que ele poderia fazer caso descobrisse que seu amante era um Sihar. No final, ela decidiu não falar nada ao príncipe Gaius e se casar apenas após subir ao trono, quando ninguém poderia contradizê-la – ou providenciar para que seu amado se encontrasse com um infeliz acidente. Na segunda semana de janeiro de 1014, seu pai realizou sua viagem de voluntariado anual no exterior. A comunidade Sihar do Domínio é muito mais rica do que aquelas em muitos outros reinos, e os jovens da comunidade frequentemente viajavam para o exterior para ajudar seus parentes menos afortunados – era assim nos anos anteriores a Revolta de Janeiro, quando os magos ainda tinham a liberdade de fazer viagens instantâneas inter-reinos. Embora Sua Alteza sentisse falta dele desesperadamente, ela ficou contente por ele estar ausente do Domínio, longe dos caprichos de seu pai. Ele deveria voltar em uma quinzena, antes do início do período de primavera, mas ele nunca voltou. Quando ele estava desaparecido,

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falei com todos que o conheciam. Seus amigos que foram ao exterior com ele concordaram que ele começou a jornada de regresso antes deles, com toda a intenção de retomar sua vida diária em Delamer. Mas, ao longo do caminho, ele desapareceu. Eu relatei minhas descobertas para Sua Alteza. Ela se levantou pálida e abalada, e me disse que havia visto um trecho do meu relatório em uma visão – exceto que ela pensou que teria mais tempo. Ela me pediu para continuar procurando. Quando todas as pistas do inquérito chegaram a um beco sem saída, ela finalmente confrontou o pai dela. Eles tiveram uma briga horrível. Ele foi inflexível, dizendo que não teve nada a ver com isso – se tivesse descoberto, ele realmente teria feito alguma coisa, mas não haveria segredo, pelo menos não entre pai e filha. Ele teria deixado que ela visse exatamente como ele lidaria com esse jovem inapropriado. Ela não acreditou nele. Ela lhe disse que o filho deste jovem inapropriado se sentaria no trono. Bem, você é o Mestre do Domínio, senhor. Titus agarrou suas mãos juntas. — Você acredita no Príncipe Gaius? — Eu não sei. Ele certamente teve prazer em contar a verdade feia, mas ele não estava acima de uma mentira conveniente ou duas. Afinal, se ele estivesse por trás disso, qual era o ponto de não confessar naquela tarde? Titus assentiu lentamente. — Eu... Eu pareço com ele, meu pai? — Você tem algo da expressão dele, senhor, mas, em geral, você tem uma semelhança muito maior com Sua Alteza. — Minha mãe manteve alguma foto dele? — Ele teria finalmente um vislumbre de seu pai? Ele reconheceria algo de si mesmo no sorriso que sua mãe tanto amara? — Se ela manteve, eu não encontrei nenhuma dentre os pertences dela após sua morte. Decepção cortou afiada e profunda – não era para ser, então. Titus deveria estar acostumado a continuar com os desejos de seu coração não sendo concedidos, mas o sentimento de vazio dentro de Titus só se intensificou.

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Ele afastou a sensação de perda. — Você disse que ele deveria retornar antes do início da primavera. Ele era um estudante? — Sim, senhor. No Instituto Real Hesperia. O Instituto Real Hesperia, situado na extremidade da University Avenue, do lado oposto ao Conservatório, foi construído pelos Sihar para que seus filhos pudessem receber uma educação avançada. — Ele era um estudante de botânica. Realização despontou. — A videira que minha mãe adorava observar? Ele deu a ela? — Sim, senhor. Com que frequência ele viu sua mãe acariciando o caule ou uma folha da videira? E quando seu quarto ficou sem uma guirlanda das pequenas flores douradas, penduradas em um espelho ou na coluna da cama? Titus engoliu o nó na garganta. — Eu tenho o nome dele? — Sim, senhor, você tem. O nome dele era Titus Constantinos. O pai dele... — Eugenides Constantinos, que dirigiu o Empório de Belas Artes e Curiosidades na University Avenue. — Agora tudo fazia sentido. — O que aconteceu com ele? O que aconteceu com meu avô? — Titus era seu único filho, e temo que a perda foi demais. Ele vendeu a loja e se mudou para Upper Marin March. Ele morreu alguns anos depois. E a Sra. Hinderstone comprou o lugar e abriu a loja de doces, onde Fairfax adorava ir comprar sorvete de pinemelon, sem saber que ela estava sentada no mesmo lugar onde seu destino foi escrito pela primeira vez. E onde seus pais se conheceram e se apaixonaram. — Obrigado, Dalbert, — ele disse. — Não vou retê-lo com mais perguntas. Muito ainda precisava ser feito antes de deixar as montanhas. Dalbert se levantou. — Se eu puder, senhor, eu gostaria de acompanhá-lo.

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Era tentador, terrivelmente tentador dizer sim. — Eu daria meu braço da varinha para ter você. Mas a guerra e a destruição estão chegando a estas margens, e você será desesperadamente necessário aqui. Você sabe em quem confiar. Ajude-os a proteger meu povo. Dalbert inclinou a cabeça. — Eu entendo, senhor. Titus levantou e tocou sua testa para Dalbert. — Obrigado, Senhor Dalbert. Obrigado por todos esses anos. Dalbert, com um brilho de lágrimas nos olhos, curvou-se e partiu. Titus passou as palmas das mãos nos olhos enquanto observava a partida do homem que era o mais próximo de uma figura paterna que ele teve. Não havia para onde ir agora, além de Atlantis.

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Capítulo 13 A Avenida do Palácio era a maior estrada em Delamer, passando diante das cinco penínsulas feitas por mago que constituía a mão direita de Titus. Não era o lugar mais animado da noite, já que a maioria dos grandes edifícios de ambos os lados abrigavam as várias agências e departamentos que dirigiam os negócios do reino – a Casa de Elberon sempre havia entendido que o truque para sobreviver a alguns governantes incompetentes era uma forte burocracia capaz de coordenar as operações diárias do Domínio, mesmo que um idiota estivesse sentado no trono. Mas geralmente pode-se esperar ver algum fluxo de trânsito e pedestres indo participar de um concerto nos parques públicos ou descendo à praia para um passeio à luz da lua. Esta noite, a avenida estava totalmente vazia e as razões para isso pairavam imóveis acima, cada ave metálica brilhando duramente sobre a capital, que juntas criavam um teto abobado que escondia as estrelas. Carros blindados. Não havia nenhum diretamente acima da Cidadela, mas o mais próximo estava a mais de dois quilômetros de distância. E por oito quilômetros ao redor da Cidadela havia uma zona sem desmaterialização.

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Titus sussurrou uma oração e pulou em seu tapete. Ele disparou das sombras de um bosque de tília azul, cruzou a Avenida do Palácio e acelerou pela Avenida Cidadela. Havia guardas junto à Cidadela Boulevard, mas quando ele passou por cima, em vez de desafiá-los, eles o saudaram: a parte de baixo do tapete voador brilhava com a imagem de uma fênix e um wyvern protegendo um escudo que levava as sete coroas, seu símbolo pessoal. O portão da Cidadela se abriu. Ele atravessou o passadiço, não abrandando até as paredes do palácio bloquearem seu caminho. Incitando o tapete até uma parada súbita, ele pulou na grande varanda. O que ele estava prestes a fazer não oferecia uma vantagem estratégica nem tática. Na verdade, era uma façanha colossalmente inconveniente para tentar, pelo que ele teria que sacrificar a última cópia do Crucible ainda na posse da casa de Elberon. Mas algumas coisas não poderiam ser evitadas. Ele era o soberano dessas terras, e na véspera da guerra, ele deveria se dirigir ao povo. Ele caminhou até um pódio perto da balaustrada, colocou ambas as mãos no seu topo de mármore liso e fresco e recitou a senha e a contrassenha. Chegou o som de um pequeno sino tocando, uma reverberação suave que não parecia ser transmitida muito longe. No entanto, seria ouvido dentro de cada lar, sala de aula e local de trabalho no Domínio, assim como sua voz. As luzes dos carros blindados já oscilavam em direção à Cidadela. Ele inalou profundamente. — Para os magos desta grande cidade e deste grande reino, eu falo com vocês sobre uma crise que se aproxima. Durante meses, vocês ouviram os rumores, de agitação longe e perto. Mas agora Atlantis declarou guerra sobre nós, sobre todos os que não toleram mais a opressão deles. Protejam-se, salvem aqueles que vocês apreciam e protejam aqueles que não podem se proteger. Melhor ainda, lutem por eles. Não posso defender cada um de vocês, mas defenderei este reino até o meu último suspiro. — O que aconteceria em outro lugar, pois ele

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nunca mais veria seu próprio país. — Lembre-se sempre: a Sorte favorece os corajosos. Os carros blindados se aproximaram dele. E era sua imaginação, ou ele ouviu um coro fraco, mas se elevando, de: e os corajosos fazem sua própria Sorte? Não havia tempo para ouvir mais atentamente. Ele colocou o Crucible no pódio. — Eu sou o herdeiro da Casa de Elberon, e estou em perigo mortal. Quando a última sílaba deixou seus lábios, uma mão fechou em seu braço. *** Titus ergueu a mão, sua varinha esticada e apontada, o coração acelerado. Mas a pessoa que pousou na grama alta com um grito não era um soldado atlante. Com seus olhos arregalados, suas mãos esticadas em um gesto de súplica, ela gritou: — Por favor, não me machuque, Titus! Aramia, a filha de Lady Callista. Atrás dela, o castelo da Bela Adormecida apareceu à distância, suas torres iluminadas pela luz de tochas e fogo muito abaixo. Os dragões que guardavam a entrada rugiram, um pouco alto demais pela pequena perturbação de sua chegada ao prado. Instantaneamente, ele estava alerta, examinando o céu acima. — Eu queria te dizer para ir embora, — Aramia disse, levantandose. — Tio Alectus já informou Atlantis de sua presença na Cid... Titus a puxou atrás dele. — Praesidium maximum! O escudo mais forte que ele poderia invocar era apenas o suficiente para defendê-los contra um banho de espadas e clavas. Ele praguejou. Armas enfeitiçadas nessa quantidade – desde que alguém não estivesse editando as histórias – só poderiam pertencer à Feiticeira do Skytower, que deveria estar ocupada sitiando o Reduto de Risgar. No entanto, a silhueta maciça delineada contra as colinas a oeste dos prados não era outra senão aquela da própria Skytower, uma

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fortaleza de aspecto bulboso, colocada sobre uma enorme formação rochosa na forma de um cone. Que diabos? O Reduto de Risgar estava a uma centena de quilômetros de distância. E Skytower, apesar de todas as suas virtudes inexpugnáveis, não viajava terrivelmente rápido. Para manter Kashkari e Amara seguros, ele os manteve dentro do Crucible antes de se aproximar da Cidadela, há apenas quinze minutos. Como Skytower conseguiu cobrir tanta distância em tão pouco tempo? E onde estavam aqueles dois? — ...Eu vou com você. Ele girou bruscamente para Aramia. — O quê? Ela engoliu em seco. — Minha mãe agora sempre será conhecida como a pessoa que traiu você e sua maga elementar. Eu preciso redimila, desfazer alguns dos danos que ela causou involuntariamente. Mas ele já parou de ouvir. Kashkari e Amara se aproximavam, voando na direção dele, suas velocidades vertiginosas. Seus tapetes circularam e ficaram suspensos acima de suas cabeças. — Saia do chão! — Amara gritou. — Agora! Tardiamente, Titus lembrou que uma vez que as armas da feiticeira caíam, elas apenas ficavam mais perigosas. Ele abriu o tapete, segurou Aramia e saltou nele, ganhando altitude suficiente para evitar ser cortado em pedaços por uma série de espadas desenfreadas. — Essa é a mulher que invadiu a festa, — Aramia disse. Titus a ignorou e falou com Kashkari. — Quando Skytower chegou aqui? — Uma eternidade atrás, — Kashkari disse. — Ou cinco minutos. Você não estava brincando quando disse que era perigoso dentro do Crucible. Ele os advertiu em termos inequívocos para esperar o pior quando entrassem. Mas não havia esperado tanto problema. Tanto quanto ele poderia dizer, o Crucible tornava-se mais perigoso quanto mais permanecia aberto como um portal. Quando voltou a entrar no Crucible da biblioteca da Cidadela para encontrar o wyvern que ele usara como

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corcel, este estava em pedaços no prado, o Crucible estava em uso quase uma hora, se não mais. Mas desta vez o Crucible ficara aberto por apenas quinze minutos. — Praesidium maximum! — Ele gritou quando outro enxame de lâminas enfeitiçadas se precipitara em direção a eles, afiadas e sibilantes. Ele se virou para Aramia. — Diga E eles viveram felizes para sempre. — Não. Eu vou com você. — Você não vai. Saia. — Você terá que me obrigar. Em circunstâncias normais, ele só teria que levá-la pelo braço, dizer a senha de saída, incapacitá-la enquanto estivessem fora e depois voltar novamente. Mas ele não poderia deixar o Crucible agora, não quando deveria estar cercado por soldados Atlantes na grande varanda. Nem poderia empurrar Aramia do tapete e deixá-la para se defender até que ela voltasse aos seus sentidos, não com as espadas enfeitiçadas embaixo deles. E não tinha tempo para discutir com ela – os soldados atlantes os seguiriam até o Crucible a qualquer momento. Mas se ela saísse do prado, ela não poderia mais deixar o Crucible à vontade, não importa quantas vezes gritasse E eles viveram felizes para sempre! Não enquanto o Crucible estivesse sendo usado como um portal. — Esta é a sua chance de viver. Ela balançou a cabeça, seu rosto determinado. Ele praguejou e falou com Kashkari e Amara. — Norte-nordeste. Tão rápido quanto vocês puderem. Ele simplesmente teria que se livrar de Aramia mais tarde. — Quem é ela? — Kashkari perguntou enquanto aceleravam na direção que Titus especificou. — A filha de Lady Callista. Ela me segurou quando entrei. — Como podemos confiar nela? — Amara perguntou. — Se eu voltar, os Atlantes vão me interrogar sob o soro da verdade, — Aramia alegou. — E me colocariam no Inquisitório e me manteriam lá, porque sabem que eu queria vir e ajudá-lo.

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— O Inquisitório é a melhor opção para você, — Titus disse com impaciência. — Para onde vamos, todos morrerão. — E isso é muito pior do que passar o resto da minha vida em uma cela sem janelas no Inquisitório, para nunca mais ver o céu? Sua resposta foi inequívoca. — Sim. Aramia ficou em silêncio. Eles voaram a velocidades vertiginosas. Passaram pela cidade do mercado de Lilia, O ladrão inteligente. O Lago Dread, à distância, era visível pelas suas águas, que brilhavam um vermelho estranho. E além disso... — Onde ela está? — Aramia perguntou, gritando para ser ouvida sobre a onda de ar. — Onde está aquela que é a verdadeira filha da minha mãe? — Ela não virá conosco. A voz de Aramia se ergueu. — Por que não? Não é por isso que você a protegeu por tanto tempo? Ele não disse nada, mas olhou para trás. Dezenas de wyverns estavam em perseguição, longe o suficiente para que não os alcançassem a tempo. Ele se virou para Kashkari e Amara. — Lembrem-se, quando formos escoltados para o grande salão, certifiquem-se de não olhar para a senhora. — Você já nos advertiu contra isso antes de entrar no Crucible, — Amara disse. O aperto de Titus aumentou na borda do tapete. — Eu já avisei que ela é exatamente como Fairfax? Vários portais foram instalados no Crucible. Para ir da cópia do Crucible do mosteiro para a cópia agora na grande biblioteca de Royalis, eles deveriam passar por um portal no fundo do Bastião Negro, a fortaleza de Helgira, a Convocadora de relâmpagos, e um dos lugares mais perigosos do Crucible. — Minha mãe viu Fairfax em uma visão, em pé sobre o Bastião Negro. Depois ela mudou a ilustração de Helgira em todas as cópias do Crucible às qual ela teve acesso.

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Kashkari e Amara trocaram um olhar. — Então eu posso ver como realmente é Iolanthe Seabourne? — Aramia murmurou. — Ela é tão bonita como minha mãe? — Além da Inquisidora, toda mulher que conheço é mais bonita do que Lady Callista. Suas palavras não ficaram bem com Aramia. — Minha mãe nunca te machucou. — Talvez não, mas ninguém egoísta é verdadeiramente bonita. Kashkari e Durga Devi começaram a desacelerar. O Bastião Negro apareceu à frente, maciço e ameaçador. A última vez que ele se aproximou foi quando Fairfax o salvou de um Bane voando em um corcel gigante. Ele havia estremecido de gratidão quando pousou no terraço superior e deslizou de seu corcel. E uma vez que percebeu que a jovem que o esperava não era Helgira, mas sua amiga fiel... Desta vez seria apenas Helgira, cruel e implacável. *** Soldados cercaram-nos no momento em que pousaram na muralha do Bastião Negro. — Nós fomos atacados! — Titus exclamou. — O Feiticeiro Louco de Hollowcombe prometeu terra e riquezas inexistentes aos camponeses em troca de nossas vidas. Era mais ou menos a mesma coisa que ele usara na vez anterior que havia atravessado – exceto com as mudanças necessárias para acomodar seus três companheiros. O ardil funcionou mais ou menos tão bem quanto anteriormente ao conseguir que o capitão suspeito convocasse seus soldados e os escoltassem da muralha para a fortaleza. O grande salão estava alegre e lotado. Havia música e dança. Helgira, vestida de branco, com os longos cabelos pretos em cascata, sentava-se no centro de uma longa mesa em um grande estrado, bebendo de um cálice de ouro. Ele deveria saber melhor. Ele sabia melhor e, no entanto, ele parou completamente. Quatro lanças pressionaram suas costas – e já

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podia sentir uma dor maçante onde Helgira havia cortado o seu braço. Ainda não conseguiu mover um único passo. Atrás dele, o capitão riu: — Deixa-os cada vez mais abobados, ela sempre faz isso. O déjà vu era tão forte que ele ficou tonto. Helgira ergueu a mão. Os músicos pararam. Os dançarinos se retiraram para ambos os lados do corredor, limpando um caminho no meio. Titus foi empurrado para frente. Lentamente, Helgira se levantou. Ele já sentia a raiva dela pela sua insolência. Observar sua ascensão em toda a altura inspirou o mesmo medo e admiração de ver o relâmpago de Fairfax, aquele que surgiu do chão do deserto para derrubar uma meia dúzia de wyverns de uma só vez. O capitão bateu na lateral de sua cabeça e gritou com ele pela falta de respeito. Ele afundou de joelhos, mas não abaixou o olhar enquanto repetia seu conto. Deixe a faca cortá-lo outra vez. O que era um pouco de sangue e agonia quando já se dirigia para o seu fim? Ela saiu do estrado e se aproximou dele lentamente. Ele terminou de contar sua história? Ele não tinha a menor ideia. Ele só sabia que não ousava dizer outra palavra diante da fúria que emanava dela. Ele a enfureceu demais da última vez? Será que isso importa? — Perdoe-me, minha senhora, — ele grunhiu, nem sequer estava certo do que estava dizendo. Ela deu um soco tão forte que ele tinha certeza de que seu pescoço estalou. Então ela deu uma bofetada nele novamente, com as costas da mão, na outra bochecha. Enquanto ele cambaleava, ela grunhiu: — Você pode se levantar e me seguir, vocês quatro. O som de sua voz o atordoou. Ele se lembrava da voz de Helgira, alta e nítida. Mas as sílabas emitidas pela mulher diante dele eram baixas, quase graves. Ela não era Helgira. Ela era Fairfax.

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Capítulo 14 A carta de Lady Wintervale ao Mestre do Domínio, que data do início de seu primeiro semestre em Eton, lia-se: Seu Nobre, Alteza Sereníssimo, É com prazer e tristeza que eu o saúdo a Inglaterra. Eu não deveria estar aqui e nem você. Mas, como estamos, devemos aproveitar ao máximo. Nós, os exilados, tivemos que abandonar muitas tradições, o que provavelmente explica o fervor com o qual fiz um lugar em Eton para meu filho, Leander. Você pode não se lembrar dele, mas ele se lembra de você, dos seus dias de criança no Domínio, e ele está ansioso para ser seu companheiro na escola – um papel que meu tio teve para o seu avô e Lady Callista para sua mãe. Sempre amei muito a sua mãe – muitas, muitas pessoas a amaram imensamente. Era impossível não ser atraído pela bondade e profundidade de sua sinceridade. Sua morte me devastou. E isso me destrói até hoje, não importa o que eu ou qualquer outra pessoa faça, ela não pode ser trazida de volta.

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Mas vejo em Sua Alteza uma centelha da grandeza que ela nunca teve a chance de perceber. Rezo para que Leander possa ajudá-lo a alcançar essa grandeza – ele espera por um propósito na vida e anseia por provar a si mesmo no mundo mais amplo. Por enquanto, espero que sejam bons amigos e fiéis companheiros da casa da Sra. Dawlish. A casa está a um passo acima de uma cabana, mas as mudanças que agitam o mundo vieram de lugares mais estranhos. Sua humilde serva, Pleione Wintervale P.S. Antes de falecer, Barão Wintervale encomendou um balão de ar quente para o décimo aniversário de Leander, esquecendo que seu filho ficava aterrorizado por estar tão alto acima do chão. Se Sua Alteza estiver interessado, o aparelho pode ser encontrado na casa principal do Castelo de Windsor – antes de falecer, o Barão Wintervale e eu muitas vezes nos hospedávamos na casa da rainha inglesa; seu funeral também foi feito lá. Talvez Sua Alteza ache o balão de ar quente divertido. Considere isso um presente, de alguém que nunca parou de lamentar a perda de sua mãe. *** Enquanto os agentes de Atlantis invadiam o Castelo de Windsor, Iolanthe disse ao Mestre Haywood: — Eu acho que entendi. Na minha contagem, um, dois, três. Ela criou uma chama. Ele acendeu a vida. Ao mesmo tempo, o Mestre Haywood ligava uma bomba de força que foi anexada a duas latas de óleo de parafina, conduzindo o combustível para uma cisterna superior. Chamas se incendiaram na abertura do invólucro do balão de ar quente. O balão subiu mais. — Tudo bem. Vamos praticar mais algumas vezes. Eles fizeram. Então praticaram um pouco mais com o Mestre Haywood aumentando o fogo. Quando essa arma de fogo não maga já não

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mais parecia inteiramente estranha, eles deixaram o balão continuar subindo enquanto tiravam o conteúdo da gôndola. Eles estavam muito acima da planície de Salisbury, a mais de cem quilômetros a oeste do castelo de Windsor. Foi o Mestre Haywood que apontara que Iolanthe estava muito otimista ao pensar em ir até Lady Wintervale para obter ajuda para voltar ao Domínio. — Qual é a primeira coisa que Atlantis teria feito? — Ele perguntou a ela. — Eu estive em uma situação semelhante, e não acho que o protocolo tenha mudado nos últimos seis meses. Eles teriam a interrogado sob o soro da verdade, e ela teria contado sobre todas as últimas interações que teve com você, incluindo onde vocês se encontraram pela última vez. —

E

se

eles

ainda

mantêm

Eton

em

uma

zona

sem

desmaterialização, você acha que eles não teriam mantido uma vigilância semelhante naquele quarto no Castelo de Windsor, especialmente depois de perderem sua trilha no deserto? Suas dúvidas fizeram muito sentido. Mas de que outro ponto ela poderia pedir ajuda? Iolanthe se voltou para o diário da princesa Ariadne, que não lhe deu nada. Em desespero, ela leu a carta de Lady Wintervale a Titus, a qual ela apenas olhou anteriormente. O detalhe que saltou para ela foi a localização do funeral do Barão Wintervale, que confirmava as suspeitas do Mestre Haywood. Mesmo que Lady Wintervale tenha sido libertada da custódia de Atlantis na hora de planejar os últimos ritos de seu filho, ela não teria mantido seu memorial em alguma igreja pouco conhecida em Londres, como indicado no aviso do Times, não quando ela fez o velório do marido no meio do castelo da rainha inglesa. Foi somente quando Iolanthe estava novamente inquieta no laboratório que entendeu: ela deveria, pelo menos, ir e ver se o balão de ar quente ainda estava no Castelo de Windsor. Quando os magos arrumaram seus pertences entre os não magos, tais pertences permaneciam inalterados até o proprietário original vir até eles ou outro mago procurar especificamente por esses itens. Ela nunca ouviu que

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Titus mencionou ter ido a um passeio de balão de ar quente, então havia uma chance de que o balão de ar quente que o Barão Wintervale encomendara para o seu filho havia permanecido inalterado na casa de carruagem em Windsor. E assim foi. Ela e o Mestre Haywood fizeram uma série de feitiços, o que obrigou o pessoal do castelo a transportar o balão e tudo o que veio junto para a estação ferroviária em um carro de aluguel. Enquanto isso, Iolanthe encontrou um lacaio que conhecia a localização do salão onde ela costumava encontrar Lady Wintervale. Cerca de duas horas depois que o trem de Iolanthe e do Mestre Haywood partiu para Windsor e a Estação Central de Eton, o lacaio entregou um pequeno busto de pedra na sala. O príncipe tinha um busto grande em seu quarto na Sra. Dawlish, que responderia por ele quando estivesse em outro lugar. Iolanthe criou um busto similar no laboratório e se saiu bem: quando começaram a subir no balão de ar quente, ela queria que a atenção de Atlantis se concentrasse em Eton, buscando-a freneticamente nas proximidades, em vez de ampliar o alcance da busca. Com toda a carga na gôndola segura, Iolanthe colocou um par de óculos que viera com o balão de ar quente e entregou outro par ao Mestre Haywood. — Pronto? — Pronto. Ela reuniu uma feroz corrente de ar e propulsou o balão em direção ao Atlântico. *** Iolanthe sentou em um canto da gôndola, seus olhos meio fechados, um relógio de bolso do laboratório na mão. O relógio, assim como o que Titus carregava junto a sua pessoa, trabalhava como um relógio. Mas, de forma mais importante, também dava leituras sobre a direção, a altitude e a velocidade. Em um ponto, ela empurrou o balão para cerca de 300 quilômetros por hora, mas isso provou ser demais

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mesmo para as linhas reforçadas que seguravam a gôndola e para ela também. Depois disso, ela se instalou em uma velocidade em torno de 210 quilômetros por hora. Mestre Haywood, envolto em um enorme casaco de peles, seus olhos quase invisíveis atrás dos óculos, observava os céus, movendo-se a cada poucos segundos de um lado da gôndola para outro, e de vez em quando murmurava um novo feitiço de longa distância. Estavam a cerca de trezentos quilômetros a sudoeste de Land's End quando ele gritou, sem se virar: — Eu vejo algo! Iolanthe exalou e gradualmente – mas não muito devagar – soltou as correntes de ar que ela havia reunido. O balão, sujeito às condições atmosféricas, começou a se dirigir para o norte. — Você está absolutamente certo de que o feitiço Irreproduzível está intacto? — Sim. O feitiço Irreproduzível colocado sobre ela quando era uma criança tornava impossível que sua imagem fosse feita, capturada ou transmitida do lado de fora do Crucible. Enquanto o feitiço permanecesse intacto, apenas aqueles que a conheceram pessoalmente poderiam reconhecê-la. — Meu Deus, o que é isso? — Ele gritou. — Venha olhar, Senhorita Franklin! O ato havia começado, mesmo que o inimigo ainda estivesse a certa distância – no caso de alguém poder ler lábios. Iolanthe se levantou, pegou um rifle e se juntou ao lado da gôndola. — Meu Deus, são as águias de Haast? — Não pode ser. As águias de Haast foram extintas há séculos... E nunca habitaram nenhuma ilha nesse extremo norte. Eles olharam boquiabertos para os wyverns se aproximando rapidamente, o som do bater de suas asas ecoava em seus ouvidos, seu odor de enxofre já flutuava nas narinas. Ela estremeceu sem ter que tentar.

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— Cristo todo poderoso, que diabos é isso? — A voz do Mestre Haywood também tremia. — Isto são... Eles são... Dragões? Com um baque, ele caiu no chão da gôndola, já havia sido decidido antes que ele desmaiaria à vista de qualquer wyvern ou veículos atlantes aéreos. Os rebeldes que Titus conheceu no oásis do deserto fizeram isso, e Titus nunca questionou sua autenticidade como caravanistas. Sem mencionar que também pouparia o Mestre Haywood, que esteve no Inquisitório por semanas e não tinha um feitiço Irreproduzível que protegesse sua imagem o máximo possível da atenção dos atlantes. Ela apontou seu rifle – outro truque emprestado dos rebeldes do Saara – no cavaleiro na liderança, cujo corcel agora pairava a apenas três metros da gôndola. — Não se aproxime mais ou eu... Vou atirar! — Ela gritou; sua voz se quebrando. — Quem é Você? O que você é? — Quem nós somos não é de sua preocupação. Identifique-se e ao seu companheiro e para onde você vai nesta nave. — Eu sou Adelia Franklin e este é John McDonald, o velho valete do meu pai. Somos balonistas viajando dos Açores para a Inglaterra, para reivindicar um... Mantenha seus animais longe da cobertura do meu balão! Não podemos ter arranhões ou queimaduras. — Para que fim você empreende uma jornada desse tipo? — Por dinheiro, o que mais? — Ela berrou. — Há um prêmio de mil libras para o primeiro time a completar uma viagem de mil e quinhentos quilômetros sem tocar o chão antes do final do ano. E não estamos tão longe da Inglaterra agora. Então, se você simplesmente sair do nosso... O líder dos cavaleiros acenou uma mão. Dois de seus subordinados pediram que eles se encaixassem, até que pairassem logo abaixo da gôndola. Saindo de suas selas, eles pegaram os cabos que envolviam toda a gôndola e começaram a subir. Iolanthe apontou o rifle para eles. — Vocês não têm permissão para entrar!

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— Abaixe essa arma primitiva caso não deseje que seu balão seja queimado até as cinzas, — disse o líder dos cavaleiros Wyvern com frieza. Os dois Atlantes entraram na gôndola agora cheia de gente e examinaram o queimador, os balastros, os recipientes de combustível adicionais, que foram parte da encomenda do Barão Wintervale. Eles também olharam as trouxas de roupas, as latas de biscoitos, os potes de carne e os utensílios de cozinhar e comer – Iolanthe havia invadido a cozinha, a despensa e o departamento de lavanderia do Castelo de Windsor, bem como pegado emprestado alguns rifles que pertenciam à rainha. Um dos atlantes cutucou o Mestre Haywood com uma bota. — O que aconteceu? Quem são esses rufiões que estão bagunçando nossas coisas? Onde estão meus óculos? Deixe-me colocálos. Querido Deus no céu, há um... Mestre

Haywood

cambaleou

novamente,

seu

rosto

convenientemente pressionado no lado da gôndola. — Oh, por amor de Deus, — Iolanthe gritou. — Veja o que você fez ao pobre homem. Não posso conduzir sozinha este balão daqui até a Inglaterra – ele precisa de atenção o tempo todo. Cuidado com o fato de não fazer qualquer coisa precipitada com o combustível, é altamente inflamável. E sequer pense em lançar um dos balastros – isso fará o meu balão subir diretamente nas garras de seus cavalos acima! Quão atentos os Atlantes estavam em procurar tudo? Ela não estava preocupada com ela. Mas suas bolsas de emergência, as quais ela amarrara em cima da cobertura interna do balão, os delatariam imediatamente. Ela convocou apenas ar suficiente para empurrar a gôndola. Os atlantes tropeçaram. Ela agarrou a lateral da gôndola também. — Cuidado! Ao longo do oceano aberto está cheio de correntes de ar enganosas. — O que é isso? — Um atlante perguntou, apontando para a bola de digitação, a qual ela decidiu que valia o esforço de carregar.

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— Você não sabe nada? É uma máquina de escrever. Até canetas de penas vazam nessa altura, então usamos a máquina de escrever para nossos registros diários. Mas ela não pensou em criar um diário de bordo antes do tempo. E se eles pedissem para vê-lo? É melhor ir à ofensiva. — De qualquer forma, quem são vocês? Aqueles dragões são seus, posso tirar uma fotografia deles? Isso levará o mundo científico à loucura... Fará com que o Monstro do Lago Ness seja tão interessante como um lagarto na banheira. Meu Deus, eu poderia vender o negativo para o Times! Onde está minha câmera? Ela também pegou uma daquelas do castelo. O atlante mais próximo dela puxou o aparelho da sua mão. — Ei, ei! Você não pode simplesmente jogar a minha câmera ao mar. Os Atlantes voltaram para suas montarias e saíram sem outra palavra, enquanto ela gritava atrás deles: — Aonde vocês vão? Voltem aqui. Vocês devem me compensar pela destruição da minha câmera. Ela me custou vinte e cinco dólares americanos quando eu estava na cidade de Nova York da última vez! O bater de asas de dragão ficou mais distante. Ela continuou gritando por algum tempo. Então Mestre Haywood levantou e ficou ao lado dela, olhando para as costas em retirada dos cavaleiros nos wyvern – pois fazer qualquer outra coisa seria fora do personagem para não magos que foram criados com a ideia de que os dragões eram estritamente fictícios. Após os cavaleiros desaparecerem da vista, não houve abraços festivos. Em vez disso, procuraram cada centímetro do interior da gôndola por qualquer rastreador que o Atlante pudesse ter deixado para trás. Então aproveitaram um enorme banco de nuvens e entraram no meio delas para que Iolanthe verificasse o exterior da gôndola e até o exterior da cobertura do balão. Eles encontraram oito rastreadores, seis dentro da gôndola e dois na cobertura. Mantê-los era permitir que Atlantis supervisionasse seu

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progresso. Destruí-los ou jogá-los no oceano seria um sinal claro que esses não magos, aparentemente convincentes, realmente sabiam o que os rastreadores faziam. Iolanthe agonizou por dez minutos antes de entrar em ação. Ela cortou a seda rígida das saias de um dos vestidos que ela roubara – metros e metros de tecido foram usados para fabricar aqueles vestidos – e prendeu a uma armação com pedaços de vime que cortou de uma cesta de piquenique que guardava alguns dos alimentos. Então, juntou todos os rastreadores à pipa e lançou-a no alto com uma corrente suave. Ela flutuaria acima do Atlântico, à deriva com o vento, e sinalizaria uma localização falsa. Mais uma vez, ela aplicou fortes correntes ao balão. *** Ela se preocupou que se chegassem enquanto ainda havia luz do dia, eles seriam visíveis a todos. Mas o tempo cooperou. Uma faixa de chuva cobriu o céu sobre a Ilha de Ondine, a cem quilômetros a leste do continente do Domínio, e eles conseguiram pousar invisivelmente, em cima de uma montanha que atravessava as nuvens. Iolanthe escreveu uma mensagem na bola de digitação. Então ela desinflou a cobertura do balão e recuperou suas bolsas de emergência. — Então esperamos? — Mestre Haywood perguntou. — E tomamos um pouco de chá. O chá da rainha inglesa era muito bom, assim como seus biscoitos de bolo seco. Sob seus pés, a cobertura do nevoeiro se estendeu por quilômetros em todas as direções, criando um brilho dourado pela luz do sol no oeste. — Lembra-se quando fomos acampar aquela vez nas ilhas Siren? — Ela perguntou. Eles passaram a noite em um grande pico cônico não muito diferente deste. Ao amanhecer, o Mestre Haywood a acordou para ver o sol se erguendo sobre um oceano de nevoeiro que se estendia de horizonte

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a horizonte. Era uma das memórias mais indeléveis de sua infância, a beleza daquele nascer do sol – e sua completa felicidade, estar no topo do mundo com a figura do pai que ela adorava. — Sim, eu lembro. Você tinha cinco anos e teve seu dente da frente nocauteado um mês antes, jogando fuzileiro com fuzileiros com crianças muito mais velhas. E você se recusou a ter um dente cosmético colocado... Você disse que o espaço a fazia parecer mais assustadora quando grunhia. Ela sorriu um pouco. Os magos elementares eram quase sempre violentos e excessivamente energéticos, e não, ela não era nenhuma exceção. Um dos garotos mais velhos com quem ela brigou sofreu uma concussão – e a evitou cuidadosamente por meses depois, e não foi necessário um grunhido com dentes faltando. — Eu me pergunto se haveria tempo para que passássemos pelo campus do Conservatório, — seu guardião disse. Ela suspirou. — Eu duvido. Ela desejava muito caminhar sobre Eton pela uma última vez. Para se despedir dos garotos, que ainda deveriam estar se perguntando o que aconteceu com seus quatro amigos. Uma boa parte de sua vida foi de partidas precipitadas e amigos deixados para trás quando as circunstâncias mudavam de maneira evidente. E, no caso do Conservatório, seria muito doloroso ver os ramos nus e as folhas caídas, sabendo que nunca mais estaria lá para receber a chegada de outra primavera. Ela olhou para o guardião. — Quando chegarmos ao continente há uma esconderijo nas Montanhas Labyrinthine. É esculpido nas rochas, tem um suprimento de água doce, e abundância de bagas e plantas frondosas espalhadas ao redor... Sem mencionar uma despensa abastecida com o básico, o suficiente para durar anos. Você poderia... Você vai considerar ficar lá? Os olhos do Mestre Haywood se iluminaram quando ela descreveu o esconderijo. Mas quando ele entendeu que ela não faria uso dele, ele balançou a cabeça.

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— Eu treinei para isso, — ela argumentou com ele. — Você não. Ele pegou outro biscoito. — Isso não é inteiramente verdade. Depois que Lady Callista pediu minha ajuda, e antes que minhas memórias fossem trancadas, fiz um estudo bastante detalhado sobre os feitiços de magia antiga. Seus olhos se arregalaram. A especialidade de pesquisa dele era a magia de arquivamento, que tratava da preservação de práticas que caíram em desuso. E enquanto uma boa série de feitiços se tornava obsoleta com o tempo, devido ao desenvolvimento de feitiços melhores, mais fáceis e mais rápidos, os hexágonos e maldições mais comuns eram muitas vezes abandonados porque eram impulsionados pelo autosacrifício, que já não era considerado aceitável atualmente. — Além disso, minha querida, você está assumindo que eu sou conduzido pelo altruísmo. Nada poderia estar mais longe da verdade. Eu sou conduzido inteiramente pelo egoísmo – eu vou com você porque não serei capaz de ter uma vida sem você. Então, a menos que você possa garantir o seu retorno em segurança, não há nada que possa dizer para mudar minha decisão. Ela mordeu o lábio e balançou a cabeça. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, um homem apareceu, a varinha na mão. Ele era quase da mesma idade do Mestre Haywood, um pouco rotundo, mas suave em seus pés enquanto se movia. Iolanthe o viu antes e ele à Iolanthe, embora não enquanto ela estava em forma humana. — Mestre Dalbert, — ela disse. — É um prazer finalmente conhecê-lo.

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Capítulo 15 Titus sentiu como se estivesse caindo, o fundo do abismo se aproximando muito rápido. — Não. — Sua negação era rouca, quase inaudível. — Não. Ela deveria ter ficado para trás. Segura. Ele deveria ter percebido quando viu Skytower no prado diante do castelo da Bela Adormecida que o Crucible não esteve aberto por apenas alguns minutos, mas por pelo menos várias horas. E Dalbert sabia – e não disse nada. — Não? — Fairfax estreitou os olhos, olhos tão implacáveis quanto os de Helgira. — Então talvez eu devesse deixar você ser escoltado para minha masmorra. É um lugar muito hospitaleiro para magos que dizem não. Ela faria isso. Ela o trancaria nas entranhas do Bastião Negro enquanto se aventurava na direção de sua desgraça. Ele sacudiu. — Por favor, reconsidere-se, minha senhora. Por favor. Por favor, fique aqui. Não vá mais longe. Por favor, não me faça assistir você morrer.

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Ao redor dele, seus companheiros estavam levantando, como ela havia ordenado. Titus permaneceu de joelhos. — Levante-se ou será arrastado para o calabouço, — ela disse suavemente, friamente. Ele olhou para seus traços impiedosos, suas bochechas ainda doíam com as impressões de sua mão. — Por favor, eu te imploro. Sua expressão pareceu suavizar. Seu coração saltou – a última vez que eles estiveram juntos no Bastião Negro, ela o olhou exatamente assim, com fúria e ternura. E foi o início do momento mais feliz de sua vida. — Vendem os olhos, — ela disse. Soldados vendaram Titus e todos os que ele trouxera. A tira de pano preto estava sobre os olhos dele em um nó tão apertado que ele não poderia remover. — Não! — Ele gritou em pânico quando alguém o levantou e o empurrou para frente. — Você não pode me enviar para o calabouço. — Então cale a boca e ande, — veio sua resposta curta de algum lugar atrás dele. Sons de passos estavam ao seu redor. Ele não sabia onde estavam Kashkari ou Amara, embora ocasionalmente Aramia gemesse a alguns metros à sua direita. Eles foram escoltados pelo corredor, depois por outro corredor, e subiram por escadas íngremes – em direção ao quarto de Helgira, a alcova de oração que servia como o portal real. O que ele poderia fazer? As armas dos guardas estavam em suas costas, e quando caminhava muito devagar, ele sentia o frio das pontas afiadas de suas lanças, lanças que poderiam viajar mais de dois quilômetros para caçá-lo. Pararam repentinamente. — Eu mudei de ideia sobre a jovem com o manto verde, — Fairfax disse. — Cerca de cinquenta quilômetros ao sul-sudoeste daqui fica um castelo vazio cercado de espinheiro e guardado por dragões. Leve-a para o prado a oeste do castelo e a deixe lá.

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— Por favor, não! — Aramia gritou. — Minha mãe... E a sua... Se Bane não cair, ela nunca sairá do Inquisitório. Então ela descobriu que eles não estavam lidando com Helgira, mas com Fairfax. —

E

isso

deveria

me

preocupar?



Fairfax

respondeu

uniformemente. — Tudo o que ela fez foi manter você segura. — Tudo o que ela fez e sempre fará é manter-se a salvo. Quanto mais cedo você perceber isso, mais cedo você vai parar de encontrar desculpas para ela. Aramia soltou um soluço. — Eu sei que você não pensa nela como sua mãe, mas ela é minha mãe, e nunca foi má comigo. Por favor, deixeme fazer o que posso para ajudá-la – e a você. Eu sou muito mais útil do que pareço. — Se eu puder interromper — Kashkari disse. — O prado diante do castelo da Bela Adormecida é uma zona de guerra agora. Skytower está nas imediações, e os soldados da minha senhora podem ter problemas para passar. Titus quase podia ver a torção dos lábios de Fairfax. — Nós vamos morrer, senhorita Tiberius, todos nós. Se você deseja morrer por Lady Callista, essa é sua escolha. Mas no momento em que você se tornar um obstáculo, você ficará para trás para se defender sozinha. Uma porta se abriu e fechou, com passos desaparecendo em seu interior. A porta se abriu novamente. Titus mais uma vez foi empurrado para frente. Ele continuava tentando magias que desfizessem a venda. Mas algumas formas antigas de magia não tinham equivalentes modernos exatos. Poucos segundos depois, as vendas foram removidas. Ele reconheceu o interior do quarto de Helgira. Haywood estava perto da porta, ouvindo. Fairfax, do outro lado do quarto, já não estava com a peruca ou o vestido branco, mas uma simples túnica e calças azuis, os cabelos curtos ainda bagunçados pela remoção da peruca.

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— Não tente nada, — Fairfax disse; sua voz sem inflexão. — Já estamos na cópia do Crucible em Atlantis. E eu selarei a conexão. Seu sangue esfriou. Ele pensou que só os havia encaminhado para o quarto de Helgira. Mas não, ela já os guiou além da alcova de oração dentro do quarto de dormir, o que servia como portal. Por quê? Por que você não me deixa salvar você? — Então é mesmo você, — Kashkari disse, balançando a cabeça um pouco. Ela assentiu. — No entanto, você deve saber que a senhora da fortaleza nesta cópia do Crucible não se parece em nada comigo, mas, felizmente, consegui convencê-la de que eu era uma mensageira de seu amado

Rumis

e

que

ele

está

com

problemas.

Helgira

está

temporariamente ausente. É melhor irmos antes que ela volte. — Mas... — Kashkari disse. — Senhorita Tiberius, você se importaria de fazer companhia para meu guardião por um minuto? Aramia olhou para Fairfax, então olhou para Titus. Ele indicou que ela fosse para Haywood, como Fairfax ordenou. Ela fez isso, arrastando os pés enquanto ia. Quando ela não era mais uma parte de seu grupo, Fairfax colocou um círculo de som em torno dos quatro. — Bane não conseguirá me sacrificar. — O que você quer dizer? — Amara perguntou, com a voz tensa. — Um mago que morre de magia sacrificial não parece nada como o cadáver bem reconhecível que Kashkari viu. Alívio passou por Titus, até que percebeu que não morrer de magia sacrificial não implicava que ela ficaria viva. Ao vir com eles, ela ainda morreria. — Meu guardião sabia disso e não lhe disse. — Ela deu de ombros. — Mas de qualquer forma, estou aqui agora. — Então você esteve no Crucible durante todo esse tempo, esperando por nós, — Kashkari disse.

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— E abrindo o caminho para vocês. O príncipe ainda carrega uma cicatriz da última vez que passou por aqui. — Mas por que esperar até agora para se revelar? — Amara perguntou. — Por que não nos encontrou no esconderijo? Fairfax olhou para Titus. — Porque Sua Alteza aqui teria feito tudo em seu poder para me abandonar de novo – o fato de não morrer de magia sacrificial não faz diferença para ele. Não estou certa, Sua Alteza? Ele não disse nada. Claro, ela estava certa. Ele abandonaria sua própria

vida,

mas

nunca

a

dela.

Nunca

de

bom

grado

ou

conscientemente. Ele era tão egoísta sobre ela quanto seu avô foi com o trono. — Bem, eu estou feliz por você estar aqui, — Amara disse. — Mas o que devemos fazer sobre essa garota? Não confio nela e tampouco em mais ninguém. — Infelizmente, o Bastião Negro não é um lugar para abandonar um guerreiro endurecido pela batalha, muito menos alguém que tenha levado uma vida protegida – e quando o Crucible está sendo usado como um portal, entradas e saídas só são possíveis pelo prado diante do castelo da Bela Adormecida. Eu digo que devemos levá-la para lá e a deixarmos. — O prado nem sempre é um lugar seguro. — Titus falou pela primeira vez desde que chegaram naquela cópia do Crucible. — E quanto mais o Crucible permanecer em uso como um portal, mais perigoso e imprevisível se torna. Por quanto tempo você esteve na outra cópia do Crucible? — Ficamos no Bastião Negro por cerca de duas horas e meia antes de vocês chegarem. — Ela pareceu triste, como se ainda não quisesse falar com ele. — Então o Crucible esteve aberto por cerca de três horas antes que eu chegasse ao prado, com Senhorita Tiberius pendurada em mim. Era uma cena de caos letal. — Vamos garantir que ela tem a senha para sair.

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— Mas depois que ela sair, ela estará em Atlantis, — Kashkari apontou. — Não demorará muito para ser presa e interrogada. E então Bane saberá que estamos dentro das fronteiras de Atlantis. — Mestre Haywood está trabalhando para suprimir a memória das últimas vinte e quatro horas. Ela ficará inconsciente depois disso, o que nos dará tempo para viajar para o prado. E ficaremos com ela até que ela recobre a consciência e deixaremos com uma nota na mão dela antes de irmos. Dessa forma, mesmo que ela saísse do Crucible diretamente nos braços de Bane, ela não será capaz de dizer nada. — Como seu guardião pode conseguir isso? — Kashkari perguntou. — Você está falando do feitiço de memória de precisão, e isso requer contato. Como ele teria acumulado todas essas horas de contato entre eles? — Ela nasceu Iolanthe Seabourne, a criança de dois estudantes pobres. O nascimento dela foi bastante prematuro e exigiu uma longa permanência no hospital. Os médicos recomendaram tanto contato físico quanto possível para ajudá-la a se desenvolver. Seus pais tiveram que permanecer na escola – suas bolsas eram suas únicas fontes de renda e não podiam ficar com ela tanto quanto quisessem. Então eles pediram para seus amigos irem no lugar deles e segurá-la. Meu guardião foi muitas vezes, muitas vezes durante quatro ou cinco horas diretas – foi assim que ele acumulou horas suficientes de contato. Os lábios de Fairfax se achataram. Chegou a Titus que esta deveria ter sido uma história que ela adoraria ouvir: seu guardião, dedicado a ela desde o primeiro dia. Mas era um bebê diferente nos braços dele, completamente outra pessoa. Amara exalou. — Eu ainda não gosto disso. Mas suponho que quando não há uma boa solução, devemos aceitar a menos terrível. Fairfax, que observava seu guardião, franziu a testa. Titus olhou na direção de seu olhar. O círculo de som bloqueava apenas os sons dentro dele; eles podiam ouvir Aramia falando de forma animada sobre Lady Callista, feliz por ter encontrado finalmente uma audiência receptiva.

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Haywood esperou até Aramia parar e se desculpou. — Você se importaria de fazer companhia a Senhorita Tiberius por um minuto, Kashkari? — Fairfax perguntou. Kashkari não se incomodou, mas se retirou com bastante facilidade. Eles refizeram o círculo de som para incluir Haywood. — Meu feitiço não funcionou, e não consigo entender o porquê, — Haywood disse. — Eu poderia jurar que a segurei por pelo menos setenta e duas horas. — Você segurou, — Fairfax disse. — Eu vi o registro dos visitantes do Royal Hesperia Hospital com meus próprios olhos. — Mas o feitiço se recusou a funcionar. Fairfax apertou as palmas das mãos contra as têmporas. — Algo não está certo em tudo isso. Mas não importa. Em vez disso, você pode esperar até que estejamos no prado, prontos para sair, então usar um forte feitiço de memória nela? Haywood fez uma careta, mas assentiu. Fairfax apagou o círculo de som e abriu as venezianas. — Peguem seus tapetes, todo mundo. Nós estamos indo. *** Titus subiu no tapete de Iolanthe. Doía olhar para ele: ele parecia uma mera casca de seu antigo eu. Ele pegou a mão dela. Ela aumentou seu aperto enquanto acelerava, deixando o Bastião Negro para trás. — Todos nós vamos morrer logo, — ele disse; sua voz mal audível. — Você realmente deseja perder tempo ficando irritada comigo? — Sim. — ela sibilou. — Eu permaneço uma otimista impenitente. Se eu vir que estou prestes a morrer, ou você, eu vou te perdoar. Mas não até então, seu bastardo. Ela não o chamava de bastardo desde os primeiros dias em que se conheceram.

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— Não vou me desculpar, sabe. Nós pensamos que você acabaria sendo usada para a magia sacrificial, e isso deveria ser evitado a todo custo. — E eu pedi que você se desculpasse por isso? Não. Mas você deveria se preocupar pelos seus métodos usados. Você me drogou. Você enlouqueceu? — Sim. Ela ficou surpresa por sua admissão. — Isso não é uma desculpa. Você viveu muitas situações difíceis. Você deveria ter sido capaz de pensar com mais clareza. Ele não disse nada por um longo tempo. Então suspirou. — Desculpe-me por meus métodos. Eu entrei em pânico. E quando entro em pânico, só consigo pensar em mim mesmo, como eu não poderia continuar sabendo que a hora da sua morte já havia sido declarada. Perdoe-me. O que ela poderia dizer a algo assim? Como poderia manter sua raiva diante do desespero dele? Ele ajustou o capuz da túnica dela – a temperatura não estava sequer tão fria como a do norte da Escócia, mas o ar noturno ainda estava frio. — Por favor. Nós temos tão pouco tempo. E eles se precipitavam a uma velocidade tão rápida para esse eventual encontro com o destino. — Quando estamos no Crucible, — ele disse, — Estamos em um espaço dobrado, bem como no interior do laboratório – e nossa localização não pode ser identificada. Mas no momento em que sairmos, estaremos em Atlantis. O que não demoraria muito agora – já que as torres do castelo da Bela Adormecida eram visíveis á distância. — Caso as condições sejam adversas quando deixarmos o Crucible e eu não tenha essa a oportunidade, Fairfax... Eu te amo. Uma vez, eles se afastaram, porque ele não queria que eles agissem sobre os sentimentos de um pelo outro – ele achou que o amor interferiria com a tarefa deles, os tornaria fracos e hesitantes.

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Agora, ela se perguntou se depois de tudo ele não estava certo. Até este momento ela foi dirigida pela raiva, que era uma emoção déspota: quando a raiva governava, governava sozinha; a mente estava vazia de tudo, exceto a raiva. Mas agora que ele destruiu sua ira, agora que ele persuadiu o amor, o medo veio correndo: medo da perda, medo de morrer, medo de falhar no final, depois de cada sacrifício ter sido feito. Ela não disse nada. Mas desta vez, quando ele pegou a mão dela novamente, ela não o afastou.

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Capítulo 16 O

prado

diante do castelo da Bela Adormecida

parecia

suficientemente pacífico – eles não estavam nessa cópia do Crucible por tempo suficiente para que todo o inferno se soltasse. Ainda assim, Kashkari e Amara, que suportaram o peso do caos na outra cópia, seguraram suas varinhas fortemente e circularam novamente e novamente, antes que julgassem seguro pousar. — Não há sinal de Skytower, pelo menos, — Kashkari disse. Fairfax e seu guardião estavam com as mãos cruzadas, as cabeças inclinadas um para o outro, falando em vozes muito suaves para que Titus ouvisse. Provavelmente estavam discutindo a melhor forma de se livrar Aramia sem causar a ela um dano corporal grave, mas a visão da proximidade deles, a óbvia afeição e dependência um do outro, fez seu coração se contrair. — Então, onde está a cópia do Crucible? — Aramia perguntou. Ninguém respondeu. — Nós estaremos em Atlantis, não estaremos, quando saírmos? — Sua voz tremeu. Ainda sem resposta.

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— Que a Sorte me proteja. — Ela mordeu o lábio. — E você planeja me deixar aqui? — Seria o melhor, — Fairfax disse. — Talvez, se você fosse para outro lugar. Mas aqui seria um erro. O que você sabe de Atlantis? Fairfax olhou para Titus. Eles estudaram tanto quanto puderam tudo sobre Atlantis, e que poderia ser relevante para as tarefas deles – ele mais do que ela, já que ele estava nisso por muito mais tempo. O problema era que a informação que eles tinham era muitas vezes desatualizada. Atlantis, quando era pobre e à beira da ruína, foi de pouco interesse para os reinos magos mais prósperos e poderosos. E quando a Sorte virou, também evitaram ampliar os laços diplomáticos com o mundo. Sem dúvida, o desejo de Bane de manter seu segredo a qualquer custo também desempenhou um papel – se o resto do mundo não soubesse nada sobre Atlantis, eles também não saberiam nada sobre ele. Titus leu a maioria dos livros e artigos sobre Atlantis que poderiam ser desenterrados, e estudou os mapas rudimentares que os magos mais aventureiros do passado fizeram. De tempos em tempos, Dalbert, de sua maneira discreta, apresentava um relatório a Titus. Mas mesmo Dalbert só podia fazê-lo até certo ponto. — Aha, — Aramia disse triunfante. — Como pensei, vocês sabem a gravidade da ignorância de vocês. Mas a minha mãe sempre coletou informações em todos os lugares aonde ela ia, e todos adoravam confiar nela. Haywood estremeceu. Fairfax estreitou os olhos para Aramia, que engoliu em seco. No deserto do Saara, Titus chamou Fairfax de a garota mais assustadora do mundo. Aramia obviamente concordava com ele. Mas ela continuou, visivelmente menos presunçosa. — É noite lá. Você sabe que Atlantis tem um toque de recolher no local há décadas? — Claro, — Amara retrucou. — Isso é um conhecimento comum. — Então pode ser. Mas você também sabe que as vilas e cidades de Atlantis são iluminadas de noite?

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Ela olhou ao redor. Desta vez, ninguém lhe disse que estava repetindo velhas informações. — Bem, elas são, — Aramia continuou. — Exceto pelas maiores avenidas, que são continuamente patrulhadas, a maioria das ruas não tem árvores, mas arbustos pequenos e bem ordenados, que oferecem poucos locais para se esconder. Mesmo a arquitetura não é amigável para qualquer atividade ilícita – não há becos estreitos entre casas onde se poderia esconder da patrulha noturna. E as casas quintais no fundo não compartilham um jardim comum, como às vezes acontece no Domínio. Mesmo com a criação de terras do oceano, o terreno adequado para a construção está sempre no topo da Atlantis, então suas casas e apartamentos simplesmente se voltam um para o outro, sem espaços intermediários, e os jardins comuns estão nos telhados, que, novamente, têm flores e arbustos, mas sem árvores, tornando muito fácil para as patrulhas ver tudo. Cada palavra que pronunciava era uma notícia indesejada. Não que Titus tivesse contado que chegar à noite fosse ser uma vantagem – ele também sabia sobre o toque de recolher de longa data e entendia que movimentos durante a noite poderia ser potencialmente problemático. Mas

a

informação

de

Aramia

revelou

o

quão

profundamente

desinformado ele era sobre a Atlantis como uma sociedade – seria quase impossível para eles estarem em céu aberto sem serem descobertos. Se Fairfax sentia-se como ele, ela não revelou. — Não é suficiente para você apontar o que não conhecemos. Que soluções você pode oferecer para nos ajudar a contrariar essas desvantagens? — Obviamente, eu nunca pisei em Atlantis também. Mas sei que os próprios Atlantes encontraram vários caminhos em torno do toque de recolher. Há magos que têm desculpas legítimas para estarem no exterior à noite: guardas de segurança particulares, trabalhadores de turno tardios ou técnicos convocados para reparos de emergência – e eu acredito que é uma prática bastante comum trocar favores entre eles ou suborná-los por seus passes noturnos.

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— E você acha que podemos fazer isso sem sermos reportados imediatamente? A maioria das pessoas não teria já arranjado um passe para esta noite antes de deixar suas casas? — Há sempre aqueles que não conseguem planejar com antecedência. Eles terão que pagar mais, é claro. — Aramia olhou para eles. — Esta cópia do Crucible é em Lucidias? Ela não recebeu nenhuma resposta, mas isso era aparentemente resposta suficiente para ela. — Minha mãe conhece os túneis embaixo da cidade. As estradas que levam para dentro e fora de Lucidias têm postos de controle. Se pudermos entrar nos túneis, podemos evitar todas as autoridades. — Como entramos nos túneis? — Fairfax perguntou. — Isso eu não posso divulgar até deixar o Crucible. Eu vi de primeira mão o quão perigoso ele pode ser quando é usado como um portal. — Aramia sorriu. — De qualquer forma, vamos sair? Não será necessário ficar aqui por muito mais tempo. *** No momento em que Titus deixou o Crucible – e entrou em Atlantis – sua memória suprimida por um longo tempo voltou para a cabeça, penetrantemente, lamentavelmente vívida. As memórias normais desapareciam e distorciam ao longo do tempo, mas as que foram suprimidas sempre ressurgiam com perfeita clareza e precisão. Ele tinha treze anos, em seu primeiro semestre de verão em Eton, e remava no rio Tâmisa com uma careta. Ele odiava remar, odiava essa escola, e odiava a Inglaterra: francamente, não havia um único aspecto de sua vida que ele não detestava resolutamente. No final de quatro quilômetros a passos largos, eles se viraram para ir à casa de barcos. Os tripulantes estavam de costas para seu destino, então Titus estava de frente para o oeste. Estivera chovendo durante uma semana inteira. Mas agora as nuvens se separaram, e a luz

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do sol que caiu sobre ele tinha um matiz de ouro rico e saturado que tirava o fôlego. E então um dos outros três remadores no barco, um menino chamado St. John, que também morava na casa da Sra. Dawlish, seu humor provavelmente também impulsionado pelo repentino fluxo de luz, disse: — Diga-me, quem é o maior assassino de galinha em Shakespeare? Titus revirou os olhos. Ele considerava os meninos não magos com quem ele foi forçado a compartilhar a escola, idiotas absolutos – idiotas absolutos e incompreensíveis. — Quem? — Perguntou outro garoto. — Macbeth! — Gritou St. John. — Porque ele matou mais abomináve12. Entendeu? O assassino da maioria das galinhas? Os outros dois remadores gemeram. Titus quase sorriu: ele havia realmente entendido a piada e a achou bem engraçada. E quando eles puxaram o barco a terra e começaram a voltar para suas casas residentes, em vez de sentir-se dolorido e mal-humorado, como era o costume, ele sentiu-se forte e – quase feliz. A sensação o assustou. Sua mente acelerou: talvez ser enviado para a escola em um reino não mago não fosse o castigo que sempre acreditara. Aqui ele era apenas outro garoto, sem o tédio da etiqueta da corte ou o peso das expectativas de um reino. E se tentasse, ele poderia aproveitar essa adolescência, longe de tudo o que ele odiava sobre ser o Mestre do Domínio. E talvez, só talvez, talvez ele ignorasse por alguns anos as exigências que sua mãe colocou. Após desfrutar completamente, Bane ainda estaria lá. Qual era a pressa? Qual era o prejuízo em não passar cada segundo livre se preparando? A visão das possibilidades que se abriram diante dele era vertiginosa. Ele poderia se divertir. Ele poderia ter amigos. E até mesmo sabia exatamente como faria amigos – o balão de ar quente que Lady Wintervale lhe havia contado, ainda guardado na casa de transportes no 12 Aqui ela faz um jogo de palavras foul=abominável e fowl=galinha, as pronúncias das palavras são parecidas.

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Castelo de Windsor, o que seria um grande atrativo para os meninos da casa da Sra. Dawlish. Sua excitação continuou a aumentar. Ele nunca soube que poderia ter muitas ideias sobre se divertir. De volta à casa da Sra. Dawlish, após se lavar e trocar de roupa, ele sentou para imaginar mais um pouco o futuro potencialmente sublime. Por hábito, ele bateu o dedo contra a capa do Lexikon der Klassischen Altertumskunde e voltou ao livro de referência alemão para o que realmente era, o diário de sua mãe. Novamente por hábito, ele começou a virar as páginas em branco. Mas sua mente não estava no diário: ele já estava pensando sobre o que poderia fazer para que Wintervale se sentisse incluído, quando o outro preferiria pular de um penhasco a andar em um balão de ar quente. Por acaso ele olhou para baixo e ficou atônito ao ver a escrita nas páginas. O diário era o único vínculo que ele tinha com sua mãe, e suas revelações eram raras o suficiente para que seu coração acelerasse. O que ele precisava saber agora?

25 de abril, AD 1021. No dia anterior a sua morte. Este é pior ainda, um golpe tão forte que estou prostrada com a tristeza. É um mundo em chamas, tudo queima. De alguma forma, eu discerni figuras que voam pela tempestade de fumaça. Eles são perseguidos com urgência, por magos em wyverns usando feitiços aceleradores. Os feitiços de ataque à longa distância podem ser mortais. Muitos feitiços deste gênero causam danos mortais. E apenas os melhores equipam-se com aceleradores de magias.

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Seguro minha respiração. O próprio céu parece estar em chamas. Os feitiços voam. Um dos magos que fogem cai. — Não! — Um grito perfura a noite. — Não! O mago que cai não atinge o chão. Em vez disso, alguma força para sua queda a seis metros no ar. Um tapete voador acelera e o condutor puxa o corpo para o tapete. — Revivisce omnino! — O condutor chora com voz rouca. — Revivisce omnino! O mago caído não mostra nenhuma reação. Ele está morto, então. O feitiço é um poderoso, mas nem mesmo os feitiços de reanimação mais poderosos podem trazer um mago de volta dos mortos. — Você não ouse morrer! Agora não! Você não se atreva, Titus! Não, não meu Titus. Então eu vejo seu rosto, e é meu filho, não mais velho do que um adolescente e já foi derrubado. Enquanto o mundo queima. A visão desapareceu, mas o dano foi feito. Eu estou destruída. Apenas ontem fiz Titus prometer que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para derrubar Bane. Ele fez, minha criança solene que já tinha o peso do mundo em seus ombros. E essa foi a recompensa dessa promessa, uma vida brutalmente curta e uma morte violenta. Nunca me odiei tanto. Ao meu lado, meu filho dorme profundamente. Mantenho-o até de noite, querendo passar o maior tempo possível com ele antes da minha execução. E ele ficava feliz até a exaustão alcançá-lo. Eu poderia? Poderia, quando ele acordar pela manhã, dizer para ele se esquecer de Atlantis e simplesmente aproveitar todos os privilégios que vieram com sua posição na vida? Eu quase o acordei para fazer exatamente isso. Mas com a mão no ombro dele eu não poderia seguir adiante. Não se opõe a um futuro que tenha sido revelado, nem mesmo se alguém fosse um receptáculo dos Anjos.

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Após um longo período de hesitação, abri meu diário, que quase não deixa o meu lado, e escrevi essa visão, colocando-a logo depois daquela em que o vi movendo-se de maneira furtiva na biblioteca da Cidadela, seguida de uma cena de Alectus e Callista ao redor da Inquisidora. Não tenho a menor ideia se essas visões formam um fio incessante do futuro, mas Titus, no momento da sua morte, usava uma túnica encapuzada que parecia muito com aquela que ele usava naquela visão. Quando terminar, eu levarei a mão do meu filho e a apoiarei na minha bochecha e me desculparei silenciosamente, infinitamente. Isso não compensará o que eu vou tirar dele, mas não posso fazer mais nada. Perdoe-me, meu filho. Perdoe-me.

Titus dificilmente conseguiu entender as palavras de sua mãe – as letras tremiam muito. E quando colocou o diário em sua mesa e apertou as mãos ainda tremendo em seus lados, ele descobriu que ainda não conseguia ver as letras – não através da umidade em seus olhos que borrava e distorcia cada frase. As últimas palavras que ela havia falado para ele, minutos antes de sua execução, foram: Nem todos acreditarão. E ele sempre se consolou com a crença de que ela havia encontrado um pouco de paz e tranquilidade. Em vez disso, ela foi à sua morte quebrada pelo que aconteceria com ele. Lágrimas escorreram pelo seu rosto. Ele já era adolescente. Quanto tempo ele teria? Quantos? Seria o suficiente para realizar esta grande tarefa que ela colocou sobre ele? No Além, quando eles se encontrassem novamente, ele gostaria de tranquilizá-la de que seus anos não foram brutalmente curtos depois de

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tudo, pois ninguém que derrotou Bane poderia ter vivido nada menos que uma vida extraordinariamente completa. Mas ele ainda sequer achara o grande mago elementar. E não havia como dizer quanto tempo demoraria. Ele enterrou o rosto nas mãos. Ele teria que estar muito mais preparado do que estava agora. Muito, muito mais preparado. Uma explosão de riso veio de algum lugar do lado de fora de sua porta. Um grupo de outros calouros que estavam juntos no corredor, planejando algo divertido. Com uma pontada em seu coração, ele se lembrou de sua breve hora de quase felicidade, da possibilidade de uma vida normal. Não havia dúvida disso agora: sem amigos recém-feitos ou passeios lendários em um balão de ar quente. Só haveria trabalho. E então, depois disso, mais trabalho. Ele puxou sua varinha, apontou no canto da última página da visão e marcou com o símbolo de crânio. E então apontou a varinha para a têmpora dele. *** Titus cambaleou. Ele havia mentido para si mesmo. A supressão da memória nunca foi sobre o esquecimento dos detalhes específicos, mas sobre não lembrar totalmente do desgosto de sua mãe – e aquele momento de luz do sol, quando ele poderia ter levado sua vida por um caminho muito diferente. Alguém apertou sua mão – Fairfax. — Você está bem? Ele assentiu. Ninguém mais pareceu notar. Todos estavam ocupados – e examinando cautelosamente seus novos arredores. Ele esperava que eles aparecessem no interior cavernoso de uma biblioteca estadual, alojada em um palácio tão opulento que quebrou o tesouro real e causaria a queda do último rei de Atlantis.

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O que não esperava era um quarto apertado e desordenado, cheio de livros em cada superfície horizontal. A luz que se espalhava da fenda entre as cortinas iluminava pratos cheios de migalhas de bolo e pedaços de crosta de pão, copos com anéis secos de chá no fundo e uma miscelânea de chinelos e meias sob a grande mesa diante da janela. Fairfax colocou a palma da mão no rosto dele. — Você tem certeza de que está tudo bem? Ele balançou a cabeça. Ele era tão corajoso – e não mais tão assim. — Eu manterei você a salvo, — ela disse. Seu coração saltou um pouco. — Você me perdoou? — Você superestima minha magnanimidade. Ainda não terminei de esbofetear você – e é por isso que você não morrerá tão cedo. Os cantos dos lábios se levantaram ligeiramente. A ponta do polegar dela acariciou sua bochecha. — Lembre-se disso. Kashkari foi o primeiro a declarar o óbvio. — Eu não acredito que estamos na grande biblioteca de Royalis – pelo menos não na principal. — É para lá que devemos ir? — Aramia perguntou; sua voz guinchando. — Se assim for, podemos estar no escritório do bibliotecário? Haywood, que espiava por trás das cortinas, respondeu: — Não parece isso, a menos que a biblioteca do Royalis esteja cercada por uma rua residencial comum. Nós estamos vários andares acima, a propósito. Titus olhou pela própria janela. A rua abaixo estava iluminada como se fosse um evento noturno, exceto que estava vazia. Forrando as calçadas havia arbustos perfeitamente esféricos aparados com menos de sessenta centímetros de diâmetro. Os prédios de apartamentos opostos, menos andares do que aquele em que estavam, se uniam, e as fachadas eram lisas. O jardim comum no telhado era bom o suficiente, mesmo com a luz forte que o inundava; mas também não oferecia nenhum recanto ou esconderijo onde uma criança poderia se esconder, e muito menos um mago crescido.

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Então ele percebeu que os edifícios do outro lado da rua não eram menores, mas estavam mais baixos – eles estavam em uma inclinação. E ele tinha uma visão clara até o cais e o mar além. O redemoinho de Atlantis estava a setenta quilômetros da costa e muito longe para ver, mas Lucidias era um lugar bastante marcante e, por si só, uma grande metrópole construída sobre a mais delgada faixa de terra viável, uma cidade que era em grande parte nova e aparentemente perfeitamente regulada. Havia certos distritos em Delamer que nunca dormiam – no máximo, eles se acalmavam por uma hora ou mais antes do amanhecer. A orla do porto de Delamer era um desses lugares. Mas seu equivalente em Lucidias estava tão vazio como uma sala de aula durante as férias escolares. Não era de se admirar, quando também estava acesa como um palco ao ar livre. Onde estava a fonte da luz? Ele se levantou – e o cabelo na sua nuca se arrepiou. Algo estava pendurado acima do cais, algo enorme. Uma fortaleza flutuante que era quase do tamanho da Cidadela, luz inundando sua base. Do outro lado da sala, Kashkari abriu a porta e espiou. — Parece um apartamento de algum tipo. Titus estava prestes a alcançar Fairfax e alertá-la sobre a fortaleza flutuante quando ela disse: — Shhh. Kashkari imediatamente fechou a porta. Titus ouviu, com a cabeça inclinada. Uma cama rangeu em algum lugar no apartamento. Passos, depois o som de uma cômoda sendo usada. Mais passos vacilaram e um corpo de peso aparentemente considerável caiu em um colchão, fazendo a cama gemer apenas um pouco. Titus exalou. — Aqui, olhe para isso, — Aramia sussurrou, apesar de terem um círculo de som no lugar. Ela havia virado um casaco pendurado na parte de trás da porta. Sobre o revestimento foi costurado um rótulo que dizia: Se encontrado,

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procure pelo Professor Pelias Pelion, Halcyons Boulevard 25, University District, Lucidias. — Eu acho que posso adivinhar o que aconteceu, — Aramia continuou. — O livro estava na grande biblioteca. Mas mesmo os livros em uma grande biblioteca podem ser emprestados, especialmente para aqueles com credenciais acadêmicas. O Professor Pelion pegou o Crucible emprestado, e é por isso que estamos na casa dele. Isto era um problema. Na biblioteca, eles podiam esperar não serem perturbados até a manhã antes de sair, para evitar fugir do toque do recolher. Mas em uma casa particular, com um dorminhoco inquieto... — E a opção que a senhorita Tiberius mencionou? — Haywood disse. — A de subornar um trabalhador noturno? Kashkari franziu a testa. — Onde encontramos um trabalhador noturno? — Não deveria haver um em um desses edifícios? — Haywood perguntou. — Se apenas para garantir que ninguém escape durante as horas do toque de recolher? — Eu posso ir e olhar, — Kashkari disse. Fairfax levantou a mão. Titus também ouviu: alguém tropeçou em alguma coisa, e o som veio do lado oposto do quarto do professor no apartamento. Era muito fácil para um mago cuidadoso segurar uma porta ou impedir que um chão rangesse, mas uma batida acidental produzia sons. Era um filho adolescente do professor voltando para casa depois de uma noite selvagem? Ou até mesmo seu criado? Ou era uma direção de pensamento muito benigna? Será que Bane de alguma forma já descobriu o lugar exato para capturar aqueles que vieram por sua queda? Eles assumiram posições em ambos os lados da porta. Lá fora, o vento uivava. O professor roncava no quarto, um barulho explosivo no silêncio da noite. A porta se abriu, devagar, silenciosamente. Uma figura pequena, agachada, mascarada, fechou a porta e se apoiou de lado.

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Kashkari avançou, pegou o intruso e colocou o mago no tapete diante do escritório do professor. Titus olhou para o corredor para se certificar de que não vinha mais ninguém. Então ele fechou a porta novamente e acenou com a cabeça para Kashkari, que tirou a máscara do rosto do intruso. Ele, Kashkari e Fairfax sugaram uma respiração coletiva. Sra. Hancock.

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Capítulo 17 Kashkari usou um feitiço de ataque bem suave. Não demorou muito para a Sra. Hancock acordar. Medo inundou seus olhos quando ela se viu cercada, mas relaxou um pouco ao reconhecer os rostos mais próximos dela. — Vocês já estão aqui, — ela sussurrou. — Desculpe por te deixar inconsciente, — Kashkari disse; o volume de sua voz tão baixo. O professor, em sua cama, tossiu novamente. — Voltem para o livro, — a Sra. Hancock disse. — Deixe-me leválo para minha casa. Nós estaremos mais seguros lá. Titus hesitou. Se a Sra. Hancock agisse agora de acordo com Atlantis, eles estariam condenados. Mas então ele lembrou que a Sra. Hancock estava presa por um juramento de sangue para não prejudicar nem ele, nem Fairfax. — Certo, mas deixe-me fechar o livro e reabri-lo, para que ele esteja mais seguro dentro. Ele havia saído do Crucible com um broche que pegara do alto do cofre de marfim de Helgira. Quando o Crucible era usado como um portal e algo era trazido para fora, então o livro não fechou, e alguém poderia retornar rapidamente.

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Mas o interior do Crucible ficava cada vez mais perigoso se fosse deixado aberto por muito tempo. — Eu irei com você, — Fairfax disse. Eles retornaram ao Crucible com varinhas desembainhadas. Nenhuma chuva de espadas e clavas caiu sobre eles, mas criaturas estranhas estavam saindo das florestas a oeste do prado, espreitando o Castelo da Bela Adormecida. À vista de um bando de ogros, Titus deixou cair rapidamente o broche no chão e disse, segurando na mão de Fairfax, — E eles viveram felizes para sempre. Três minutos depois, os seus companheiros que haviam vindo à Atlantis estavam mais uma vez no prado, que parecia tranquilo o suficiente no momento. — O que poderia atrair tantos personagens de tantos contos dessa maneira? — Fairfax perguntou. Titus já estava configurando uma defesa perimetral. — Pode ser a história da Bela Adormecida. Tenho uma lembrança vaga da minha mãe me dizendo que algum príncipe ou princesa anterior havia adicionado a descrição de um estupendo tesouro escondido no interior do castelo. Mas minha mãe não gostou de quão lotado ficava a área ao redor do castelo – a atração do lucro é aparentemente muito mais forte do que a atração da própria Bela Adormecida – então ela tirou essa adição de sua cópia do Crucible, que mais tarde tornou-se minha cópia. Eu não vi provas de ninguém circulando pelo castelo na cópia da Cidadela. Mas aquele tinha um gigante fantasma guardando o castelo, e eu diria que é por si mesmo mais do que suficiente para manter longe aqueles que são meramente gananciosos e oportunistas. Fairfax olhou para ele com olhos estreitados. De repente, ele se lembrou de que uma vez ele se recusara a deixála olhar para a Bela Adormecida em sua cópia do Crucible. Nos dias antes de passarem a confiar um no outro completamente, ele havia modificado a Bela adormecida em sua cópia do Crucible para se parecer exatamente com ela – e não queria que ela soubesse ou adivinhasse por que ele não

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permitia que ela subisse ao sótão do castelo onde a princesa dormia por anos. — Quando chegarmos à casa da Sra. Hancock, — ele disse, — Eu darei uma olhada no texto da Bela Adormecida e vou ver se posso desfazer a mudança. Ela arrancou uma lâmina da grama que cobria o prado. — Talvez seja melhor não fazer isso. — Por que não? — O guardião dela perguntou. — Isso pode ser uma vantagem no caminho de volta: aqueles de nós ainda deixados em pé saberão o que esperar; Atlantis, nem tanto. Ele supôs que era verdade que, além de Fairfax e ele próprio, ninguém foi profetizado para morrer. Isso não significava nada, no entanto, quando se tratava de suas chances de sobrevivência. Mas ele não queria dizer não a ela – eles tinham pouco tempo restante. — Vou deixá-lo como está então. — Espero que alguns de vocês viva para tirar proveito disso, — ela disse aos companheiros. Haywood

estremeceu.

Kashkari

parecia

sombrio;

Aramia,

devidamente com medo. A única que parecia estar confiante era a comandante de uma base rebelde. — Obrigada, senhorita Seabourne, — Amara disse. — Tenho toda a intenção de fazer exatamente isso. *** A Sra. Hancock morava em uma rua de pequenas casas de dois andares. As casas tinham fachadas e alturas idênticas, seu telhado combinado incluíam parapeitos baixos e decorativos. A fortaleza flutuante não podia ser vista da janela da Sra. Hancock. Titus descreveu isso como o melhor que pôde para seus companheiros, enquanto eles ainda estavam sendo transportados no Crucible. Mas algo assim era preciso ver para acreditar.

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Ele deslizou as persianas no lugar e fechou as cortinas. — Você pode ligar esses objetos agora, — ele disse a Sra. Hancock. Uma luz suave com uma pitada de damasco apareceu, iluminando um interior não muito diferente da sala da Sra. Hancock na casa da Sra. Dawlish. A casa da Sra. Dawlish estava cheia de papeis de parede bordados de flores, mas a sala da Sra. Hancock sempre foi vazia ao ponto de austeridade. Mas enquanto na sua sala inglesa tinha puxadores de gavetas marcados pelo redemoinho estilizado que simbolizava Atlantis, aqui não havia decorações tão patrióticas. — Como você está? — Fairfax perguntou, abraçando a Sra. Hancock calorosamente. — Nós nos perguntamos o que aconteceu com você. — Eu pensei que você fugiria e se esconderia em algum lugar da Inglaterra, — Kashkari disse. Londres, Titus teria apostado, em um dos bairros mais lotados, onde a adição de uma mulher de meia idade que vestia roupas marrons nunca teria sido notada. — Sentem-se, por favor, — a Sra. Hancock disse, distribuindo vários pratos de lanches pouco familiares. — Eu considerei isso. Nos primeiros minutos depois que a casa da Sra. Dawlish foi invadida pelos Atlantes, o tempo todo eu tive que me impedir de escapar e desaparecer entre os ingleses. E então eu voltei aos meus sentidos. Se meus superiores suspeitassem de mim, eu já teria sido presa. Eu não fui – então decidi que eu deveria usar minha posição para uma maior vantagem.

Esforcei-me

para

parecer

ansiosa

em

ajudar

meus

compatriotas. Pobre Cooper, ele estava bastante perturbado por eu estar tão civil, de fato obsequiosa, para os homens que estavam carregando coisas de seus quartos. E doeu, mais do que pensei, perder a boa opinião de Cooper. Mas eu deveria fazer o que eu precisava fazer. O que eu não esperava era que eu fosse imediatamente chamada para Atlantis para interrogatório. Embora concordasse, mais uma vez eu quase fugi. No final, eu disse a mim mesma que era providencial: se eu iria ajudar a derrubar Bane, não seria de algum fosso escondido nas favelas de

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Londres. Então voltei. Eu havia comprado esta casa pouco antes de ter sido designada para o colégio Eton. Eu volto duas vezes por ano para parecer normal – nossos superiores desconfiam de quem parece estar cortando laços com Atlantis. Eu pago para manter a casa e o jardim em boa forma, ofereço jantares para os meus vizinhos e digo a eles o quanto estou ansiosa para voltar quando eu estiver aposentada. E me submeti alegremente aos interrogatórios – sob o soro da verdade, é claro. Mas o que meus interrogadores não sabiam era que eu havia tomado um soro anti-verdade antes de sair da minha casa. — O quê? — Titus exclamou. — Existe um soro anti-verdade? Ela suspirou e assentiu. — Era uma das coisas que assombrara Icarus Khalkedon. Icarus Khalkedon, enquanto ainda vivia, foi o oráculo pessoal de Bane, fornecendo respostas para as perguntas mais urgentes de Bane. — Eu lhe disse que Bane frequentemente perguntava sobre aqueles que apresentavam futuras ameaças ao seu governo. Uma das respostas que Icarus deu foi o nome de Ligea Eos. A Sra. Eos ficou preocupada com a prática de Bane de entrevistar regularmente o seu pessoal veterano sob o soro de verdade – seu marido sendo um dos maiores funcionários. No momento em que seu marido começou a questionar o regime, ela sabia que ele estava condenado, a não ser que pudesse fazer algo. E esse algo era a invenção de um soro anti-verdade, o que impedia que o soro da verdade fizesse efeito – e dava segurança àqueles que não concordavam totalmente com Bane. Ou teria dado segurança, se ela tivesse sido capaz de divulgar o antídoto como gostaria. Como esperado, os agentes a acompanharam cuidadosamente por meses. Quando ela finalmente conseguiu produzir um lote de anti-verdade, eles confiscaram toda a sua produção e a levaram embora. Ela nunca mais foi vista. Mas sua criação não foi imediatamente destruída. Em vez disso, foi escondida cuidadosamente no Palácio do Comandante. Bane estava considerando dar doses aos seus comandantes militares em todas as campanhas, para que não pudessem entregar segredos estratégicos, mesmo que fossem capturados. Eu não sei se ele fez isso, mas Icarus,

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durante sua aparentemente inocente exploração do palácio, conseguiu roubar uma pequena quantidade, caso eu precisasse mentir sob o soro da verdade algum dia. Meu interrogatório real ocorreu relativamente sem intercorrências. Aquele que me questionou era alguém que não conheci antes – alguém muito mais alto na cadeia de comando do que aqueles que eu normalmente pensava serem meus superiores. Ela estava bastante irritada por eu de alguma forma não te conseguido descobrir o plano contra Bane, apesar de termos vivido sob o mesmo teto por tanto tempo. Eu ressaltei que por todas as aparências, o Mestre do Domínio participava das aulas e esportes como os outros meninos. Sem mencionar que ele aparecia a tempo para refeições e verificações de ausência. E, apesar de não ser particularmente animado ou prestativo, ele não deu nenhum problema tanto quanto qualquer um podia ver. Felizmente, a esse respeito, eu poderia me esconder atrás do próprio fracasso de Bane – ele morou naquela casa por algumas semanas sem perceber que quem ele buscava estava a poucas portas de distância. É claro que eu não disse nada em voz alta, mas se ele não percebeu aquele por quem ele percorreu um longo caminho para encontrar, como poderia uma simples mulher, cujos poderes de observação de nenhuma maneira rivalizavam com os dele. Quando eles ficaram satisfeitos, eu fui culpada de nada mais do que incompetência, eles me colocaram em suspensão temporária e me liberaram. Fui até a catedral mais próxima para agradecer e, por causa dos velhos tempos, fui à biblioteca de Royalis e me sentei num jardim. Royalis, durante todo o reinado de Bane, sempre foi aberto ao público – uma maneira pela qual ele procurou distinguir-se dos antigos reis, que acumularam a riqueza do reino e deixaram as pessoas morrerem de fome. Ele estava decidido a se mostrar um grande senhor. Royalis foi e está disponível para casamentos e outras recepções de comemoração por apenas uma taxa nominal, e o mago na rua é bem-vindo a qualquer momento – exceto durante as horas do toque de recolher – para apreciar a beleza de seus muitos jardins. Pelo que eu entendo, nos primeiros anos do reinado de Bane, Royalis era praticamente um lugar de festividades de casamentos, aniversários importantes e assim por diante. Por fim,

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começamos a ser prósperos em casa e respeitados no exterior, e a população como um todo estava em um clima festivo que prolongou por um bom tempo. E então, algo mudou. Uma sensação fria penetrou. Bane já não era apenas reverenciado, mas sim reverenciado e temido. Talvez os Atlantes normais não estivessem exatamente cientes desse medo, mas sabiam que não queriam realizar seus casamentos no terreno da Royalis, mesmo que o local fosse magnífico e praticamente gratuito. Quando eu trabalhava na biblioteca em Royalis, tinha poucos visitantes – às vezes, os moradores da cidade ainda queriam ver o lugar, mas não muitos outros. Quando Bane permaneceu no Royalis, os administradores das escolas locais de armas enviavam seus alunos para visitas educacionais, e vários ramos de governo realizavam cerimônias de premiação e jantares anuais em que o comparecimento era obrigatório, de modo que Bane ainda teria a impressão de que Royalis, o símbolo da sua generosidade para o seu povo, permanecia um destino popular e amado. Como resultado, quando Icarus e eu costumávamos nos encontrar, o jardim que mais preferíamos quase sempre estava deserto. Ninguém sabia de nossa associação e, enquanto Bane poderia achar estranho que Icarus me enviasse para Eton, ele provavelmente pensou que não era mais estranho do que qualquer outra declaração oracular, cujo significado ainda não havia sido confirmado pelo tempo. Então eu estava mais uma vez sentada em nosso banco nesse jardim lindamente mantido, mas sem vida, e me veio do nada o que o oráculo do livro do príncipe quis dizer quando ela falou: E sim, você já viu isso antes. Na época eu pensei que ela falava da cópia do Crucible no quarto do príncipe, e eu disse que é claro eu vi isso antes, estava lá há anos. Isso foi verdadeiramente estúpido da minha parte. Alguns meses antes, o Inquisidor interino havia levado uma cópia do tal livro e perguntou se o príncipe o usava como um portal – eu deveria ter percebido que existiam cópias deste livro. Mas você deve entender que o príncipe nunca foi minha prioridade – para mim ele era apenas acessório, alguém que estava envolvido apenas porque eu precisava de uma desculpa para estar em Eton, quando Bane entrasse, depois do grande cometa vir e ir. Naquele dia fatídico, depois que os

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agentes de Atlantis saíram do quarto do príncipe com o Crucible, acabei percebendo que o Inquisidor interino não havia falado loucamente, que o livro realmente era um portal. E foi enquanto eu estava sentada no banco do Icarus e meu jardim favorito que percebi onde exatamente eu o vi, naquele mesmo banco, perto do início da nossa amizade. E então eu lembrei que Icarus dissera que ele havia pegado o livro emprestado da biblioteca e desejava devolvê-lo mais tarde naquele dia. Então hoje saltei do banco e corri para a biblioteca. Como a biblioteca é bem grande, a maioria dos usuários faz seus pedidos no balcão de referência. Desde que eu era uma ex-bibliotecária, sabia onde estava a sala do catálogo e fui diretamente até lá. O sistema de catalogação que tínhamos era um pouco antiquado, mas ainda era o suficiente para me informar que o livro esteve emprestado por todo o período acadêmico para o Professor Pelion, do Grande Conservatório de Lucidias. Eu invadi o escritório do professor na universidade ontem à noite, mas não consegui encontrar o livro. Esta noite eu fui até a casa dele e, bem, encontrei vocês. *** Uma chaleira apitou em algum lugar da casa. A Sra. Hancock desapareceu por um minuto, voltou com uma grande bandeja de chá e serviu para todos. — Bem, estamos aqui, contra todas as probabilidades – ou como foi destinado, — Kashkari disse. — O que você aconselha, senhora? Qual é a melhor maneira de chegar ao Palácio do Comandante? — Você quer dizer, a maneira menos terrível? Tenho pensado nisso há anos e ainda não sei como. Sra. Hancock entregou a primeira xícara de chá a Titus, por deferência a sua posição. Titus entregou a xícara para Fairfax, que, por sua vez, entregou ao seu guardião. — Então, como Bane se desloca entre o palácio elevado e a capital? — Kashkari perguntou, trazendo a discussão de volta ao tópico. — Uma carruagem puxada por grifo.

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— Não há portais ou outros translocadores? — Icarus nunca encontrou tal coisa no Palácio do Comandante – qualquer portal que poderia facilitar o transporte de Bane para outros lugares poderia se virar e se tornar o caminho fácil de outra pessoa para o Palácio do Comandante. E a zona sem desmaterialização em torno do palácio se estende a cento e sessenta quilômetros em todas as direções. — Como isso é possível? — Amara exclamou. — A quantidade de trabalho necessário para criar uma nova zona de um quilômetro de extensão já é um empreendimento imenso. Quão grande é a zona sem desmaterialização em torno da Cidadela? — Um raio de dez quilômetros, — Titus disse. — E foi um empreendimento controverso, tanto pelo tempo quanto pelo consumo do tesouro. — Esta zona sem desmaterialização não foi alcançada em um ano, uma geração, ou mesmo um século, — a Sra. Hancock disse. — Não vamos esquecer por quanto tempo Bane tem vivido. Uma vez que as habilidades oraculares de Ícarus divulgaram a verdadeira idade de Bane, comecei a reunir a história dele. Uma grande parte do tempo, o fundador de uma nova dinastia ou regime apresenta uma versão clara e glorificada de si mesmo, mas o passado do mago que ficou conhecido como nosso Senhor Comandante Supremo parecia não precisar de limpeza ou de embelezamento. A família dele era altamente respeitada – amada até. Eles saíram da costa oeste, na parte mais distante das montanhas que abrigam o Palácio do Comandante, uma parte mais pobre e mais severa do que já era um domínio difícil. Ao contrário de muitas famílias proprietárias de terras que exploravam seus peões, os membros do clã de Zephyrus eram reconhecidos por sua humildade e generosidade. O jovem Delius Zephyrus não era exatamente uma criança prodígio. Até aos quinze anos, ele era quase banal, exceto pela boa aparência juvenil. Mas, então, seu amado bisavô morreu, e isso significava que sua morte impeliu o jovem Delius a fazer algo de si mesmo. A partir desse momento, sua ascensão foi notável. Isso foi há mais de cinquenta anos. Atlantis na época era governada por uma porção de senhores da guerra, cada um

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controlando uma parcela do reino, cada um tentando expandir seu próprio território à custa de outro senhor da guerra. Havia uma agitação constante. As criações eram terríveis devido ao deslocamento dos camponeses, e as pescarias estavam perto de ser novamente destruídas, porque os magos estavam lutando para se alimentar. Todos temiam que nós tivéssemos outra fome generalizada, e foi quando o jovem Delius pegou sua varinha e organizou seu próprio povo, provavelmente melhor alimentado e melhor tratado do que qualquer outro grupo de camponeses no país, e os persuadiu a segui-lo na batalha, uma vez que sozinho nenhum grupo jamais poderia aproveitar a boa sorte: se eles, os magos melhores que estavam cercados de miséria, não fizessem nada além de se revoltarem à sua própria sorte superior, mais cedo ou mais tarde, a miséria penetraria em qualquer barreira que considerassem ter erguido contra ela. Eu desejo ajudar porque não posso suportar não ajudar, ele disse em um discurso perante muitas testemunhas. Se é assim que você se sente, junte-se a mim. Se não é assim que se sente, você ainda deve se juntar a mim. Porque nossos destinos não são diferentes de nossos companheiros Atlantes e, ajudando-os, você ajuda a ninguém tanto quanto a si mesmo. E você iria até o fim de seus dias, sabendo que foi corajoso e sábio, que não se encolheu em seu próprio abrigo seguro enquanto o caos acontecia, mas lutou por ordem, pela justiça, por uma causa maior que você. Eu conheço bem, esse discurso. Na primeira vez que o li, eu chorei. Fiquei tão emocionada com a coragem e o orgulho dele de ser um Atlante sob sua administração. Na escola, reencenávamos a cena todos os anos, e durante anos costumava me emocionar. Uma luz melancólica entrou nos olhos da Sra. Hancock. Ao mesmo tempo, Titus podia vê-la como uma jovem, cheia de orgulho e alegria pelo notável renascimento de sua pátria. — E assim, esse jovem que não tinha nada além de coragem e o favor dos Anjos marchou contra os senhores da guerra com seu bando de seguidores. E eles ganharam vitória atrás de vitória, os oprimidos em todos os lugares inchando suas fileiras, porque viram a esperança pela primeira vez. E eles estavam tão famintos por uma vida melhor, por uma

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sociedade caracterizada pela paz, prosperidade e comunhão, que não se importaram de dar suas vidas a esse objetivo nobre. Logo ele se tornou imparável. Quando suas forças tomaram Lucidias e ele declarou o reino livre dos senhores da guerra e dos velhos caminhos que mantiveram o mago comum oprimido, havia tal júbilo, tal euforia. A Sra. Hancock suspirou. — A coisa sobre esta história é que é esmagadoramente verdadeira, pelo menos os fatos na superfície. Durante anos, trabalhei como bibliotecária encarregada do arquivo histórico na grande biblioteca. E naquela época, visitei muitos colecionadores particulares para providenciar a compra ou doação de fontes primárias para o arquivo. E enquanto eu trabalhava com meus deveres oficiais, especialmente se eu estivesse na costa oeste, eu colecionava documentos e anedotas que poderiam me ajudar a resolver o enigma de quem Bane realmente era. Quanto mais eu aprendia sobre o clã Zephyrus, mais minha atenção começou a se concentrar em seu fundador, alguém chamado Palaemon Zephyrus, que viveu até a idade de noventa e um anos. Magos raramente viviam além dos sessenta e cinco anos, e quase nunca passavam dos setenta – era algo que apesar de todos os seus poderes, eles não podiam mudar. Hesperia, a Magnífica, que chegou aos oitenta anos, não teve apenas a vida mais longa de todos os herdeiros da Casa de Elberon por uma grande margem, mas também a terceira maga que teve a vida mais longa em toda a história registrada do Domínio. O avô de Titus, que morreu aos sessenta e dois anos, era considerado ter vivido uma velhice plena. Um mago viver até os noventa anos era desconhecido, um período de vida quase cinquenta por cento maior do que a expectativa de até mesmo os mais privilegiados e mais poderosos. — Ele viveu até os noventa e um anos por meios naturais? — Fairfax perguntou. — Essa questão esteve bastante na minha mente. Eu também queria saber se essa era a verdadeira idade dele – ou se ele mentiu quando afirmou ser um jovem quando chegou à costa oeste. Mas a minha

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pergunta mais importante foi: Que evidência eu posso achar de que ele realmente morreu? Como não havia um governo central forte na época, a documentação para eventos da vida era irregular. Bane realmente doou os papéis e as cartas de sua família para o arquivo histórico da grande biblioteca. Pouco a pouco, já que não queria parecer curiosa – eu vasculhei esses livros. Um pesquisador menos suspeito teria se afastado com a impressão de uma família que estava completamente acima da censura – havia inúmeras notas de agradecimento de magos que eles ajudaram ao longo dos anos. E, no entanto, os membros da família se encontraram com uma série de infortúnios, especialmente nos primeiros anos,

como

atestam

as

quase

igualmente

inúmeras

notas

de

condolências. Um dilúvio de tais notas veio quando Palaemon Zephyrus estava com setenta anos, as condolências sobre a morte de seu filho e filha, seus dois únicos filhos. Havia também uma série de desejos de boas-vindas. Consegui localizar uma cópia de um manifesto do senhor governante dessa época. Um manifesto do senhor governante era um artigo publicado por um senhor de terras para seus inquilinos a fim de informá-los sobre os acontecimentos na área e, às vezes, em outras partes do reino, e talvez até no exterior. Era uma prática comum na época, já que o mago comum não tinha nenhum outro acesso às notícias. Também era usado para anunciar eventos significativos na propriedade propriamente dita. De acordo com essa edição particular do manifesto do senhor governante de Zephyrus, Palaemon Zephyrus e seus filhos tiveram o grave infortúnio de se deparar com uma serpente gigante. Titus ergueu uma sobrancelha. — Serpentes gigantes realmente ainda vivem em Atlantis? Ele viu uma réplica de um esqueleto de serpente gigante no Museu da História Natural Hesperia, a Magnífica. Ele não duvidava que elas tivessem se arrastado pela terra em algum momento, mas a crença geral era que as serpentes gigantes se extinguiram há muito tempo. — Aqui em Atlantis, nós tendemos a dar um pouco de credibilidade aos relatos da existência delas. Há poucas testemunhas

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oculares, porque se diz que as serpentes gigantes são ferozmente territoriais e matam sem qualquer provocação. Mas às vezes os caminhantes se deparam com pilhas de ossos daqueles que foram atacados por serpentes gigantes – geralmente como marcadores do território – e imediatamente retornam. Geralmente, pode-se pesquisar um relatório com o Departamento de Recursos do Interior. A maioria não faz, porque tais relatórios podem levar a perguntas indesejadas com: O que você estava fazendo nessa área? Por que se desviou do limite da reserva natural? Onde mais você foi além desse lugar? Onde afirma ter visto a pilha de ossos? De qualquer forma, acreditamos na existência de serpentes gigantes o suficiente, porque quando minha irmã desapareceu, todos sinceramente pensaram que era o que havia acontecido com ela. Ela estava em uma reserva natural aprovada com seus colegas de turma, mas o lugar esteve infestado de serpentes gigantes em algum ponto, e foi aí que todas as nossas mentes foram. Então a explicação de Palaemon Zephyrus não foi questionada. Ele era um homem respeitado e amado, para não mencionar que havia perdido metade do braço no próprio incidente. O clã lamentou e a vida continuou. Quase exatamente dez anos depois, surgiu uma nova inundação de notas de condolências, desta vez durante a morte da neta mais nova de Palaemon Zephyrus. Ele se casou tarde. Seus filhos tinham trinta anos quando morreram. E esta neta, nascida após a morte do pai, tinha apenas nove anos quando morreu. A edição desse mês do manifesto do senhor governante dizia que ela foi levada por uma inundação repentina. Nenhum corpo foi recuperado. Ele também disse que Palaemon Zephyrus perdeu o olho na busca por sua neta. Kashkari beliscou a pele entre as sobrancelhas. — Então você está dizendo, senhora, que ele sacrificou os seus próprios filhos e netos? — Não tenho provas diretas, mas essa é minha conclusão. Aramia parecia querer desmaiar – ou vomitar. Em vez disso, ela agarrou a borda da cadeira e encarou o relógio na parede. — Depois disso, — a Sra. Hancock continuou, — A próxima rodada de condolências foi finalmente para o próprio Palaemon Zephyrus.

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O obituário publicado no manifesto do senhor governante mencionou que ele havia ficado de coração partido após a morte de seus filhos e neta e passou os últimos anos de sua vida isolado em seu retiro na montanha – e morreu lá, de acordo com o manifesto. — Então o retiro nas terras altas existiu mesmo antes de Palaemon Zephyrus estar oficialmente morto, — Fairfax meditou. — Parece que sim. — Ele foi levado para uma pira? — Haywood perguntou. Nos reinos que caíam sob as bandeiras do Anfitrião Angélico, um mago falecido era queimado na pira com cobertura suficiente para modéstia. O rosto nunca era escondido. — Naqueles anos, Atlantis como um todo estava tão empobrecida que até mesmo os ricos não tinham piras adequadas para seus funerais. Nunca tivemos uma grande quantidade de bosques em Atlantis, a maior parte da floresta original já havia sido cortada, e importar madeira para pira estava além dos meios de todos, exceto uns poucos. Os corpos dos falecidos foram preservados para o dia em que podiam ser devidamente cremados,

suas

cinzas

oferecidas

aos

anjos.

Até

então,

eles

permaneceram nos subterrâneos, bem embalados, de modo que os anjos não podiam ver sua vergonha por terem sido enterrados. — Esses corpos estavam envolvidos antes do funeral? — Sim. — Então ninguém realmente viu o cadáver de Palaemon Zephyrus? — Exceto uma pessoa, um sobrinho do lado da sua falecida esposa, que envolveu o corpo para o funeral. E ele morreu logo depois, dormindo. A causa dada foi uma insuficiência cardíaca súbita. Titus e Fairfax se entreolharam. A última vez que ouviram o termo, ele estava conectado com o Barão Wintervale, que não sofreu um ataque cardíaco afinal de contas, mas foi morto por uma maldição de execução. — Matar uma testemunha que poderia saber que Palaemon Zephyrus não estava realmente morto, — Amara disse.

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— Por favor, me diga que as atrocidades contra sua própria família terminaram com a “morte” dele, — Aramia disse, mais pálida do que já era. — Essa era a minha esperança. Infelizmente, alguns anos depois, um bebê recém-nascido da família, um bisneto dele, foi roubado. Era novidade até mesmo em Lucidias – eu encontrei cartas da época referentes

ao

sequestro.

Havia

algumas

demandas

de

resgate

exorbitantes, então se acreditava que bandidos e outros criminosos deveriam estar envolvidos, talvez com a ajuda de alguns criados. Houve uma busca enorme, as exigências de resgate pararam de vir após algumas semanas, e o bebê nunca foi encontrado, embora os seus pais recusassem a desistir por anos e anos. Aramia tremia visivelmente. — Existe tal coisa, como a magia sacrificial ser mais poderosa se for sacrificada sua própria carne e sangue? — Kashkari perguntou. — Foi uma escolha deliberada da parte

dele continuar

sacrificando crianças mais novas e mais jovens? — Fairfax perguntou quase ao mesmo tempo. — Vocês já ouviram falar de um livro chamado... — a Sra. Hancock hesitou, como se estivesse relutante em até mesmo deixar as palavras passarem pelos lábios: — Uma Crônica de Sangue e Ossos? Todos sacudiram a cabeça, exceto Haywood, que disse: — Esse é o manual mais conhecido sobre magia sacrificial, não é? Eu pensei que todas as cópias tivessem sido destruídas. —

Precisei

cavar

fundo

nos

registros

da

biblioteca.

Aparentemente, dias antes da queda do último rei, uma cópia foi confiscada em Lucidias e enviada para a destruição. Então ficou perdida no caos subsequente. — Isso teria sido em torno do tempo em que Bane nasceu. — Correto. Não tenho provas definitivas sobre se ele já encontrou aquela cópia ou como, mas durante a minha pesquisa, eu li sobre um jovem de Lucidias, chamado Pyrrhos Plouton, que foi milagrosamente curado de uma doença mortal que estava a poucos dias de matá-lo. E

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vasculhei sua história procurando por pessoas que desapareceram sem deixar rastro. Em sua história, foi mencionado que sua recuperação foi agridoce, acreditando-se que seu melhor amigo era um dos curiosos que se aproximaram muito do redemoinho que aparecera recentemente em Atlantis e foi levado. A Sra. Hancock olhou para Fairfax. — Lembra-se do que você disse sobre o mago elementar que provocou o redemoinho provavelmente ser o primeiro caso de sacrifício do Bane? Você estava exatamente certa. E décadas depois, ele atravessou toda Atlantis – não era uma façanha naqueles dias – para se tornar Palaemon Zephyrus13. — O que aconteceu depois que o bebê foi levado? — Aramia perguntou, com sua voz baixa e tensa. — A maldição sobre a família pareceu acabar depois disso – não houve mais desgraças naturais. E então veio Delius, que se transformou de um menino bastante medíocre para um jovem imensamente perfeito quase de um dia para outro. Oh, eu me esqueci de mencionar que Delius tinha um irmão gêmeo que, segundo dizem, morreu em uma das batalhas. Enterrado. Uma vez que Bane tomou o poder sobre toda a Atlantis, ele colocou muitos de seus ancestrais e parentes em uma enorme pira e finalmente ofereceu suas cinzas aos anjos. Todas as evidências destruídas, em outras palavras.

13

O trecho a seguir é um relato escrito pela Sra. Hancock:

Dois meses depois, encontrei mais uma menção de Pyrrhos Plouton, em uma carta de um distante conhecido, exclamando como ele não havia envelhecido um único dia em vinte e cinco anos. Parece que a primeira façanha de magia sacrificial realizada por Plouton foi tão poderosa que lhe deu não só longevidade não natural, mas também juventude aparentemente indestrutível. Esta pode ser a razão pela qual ele se mudou para longe, para se tornar Palaemon Zephyrus: para evitar o tipo de especulação provocada por sua aparente atemporalidade. A julgar por todas as fontes que eu colecionei, Pyrrhos Plouton e Palaemon Zephyrus – antes do encontro do último com a serpente gigante, pelo menos – eram belos espécimes físicos, não sofreu nenhuma desvantagem e nem faltava um dedo mínimo. O que me levou a concluir que Plouton deve ter alimentado seu primeiro sacrifício com um rim. Os órgãos são altamente valorizados em magia sacrificial, mas pode-se viver uma vida normal com apenas um rim e, talvez igualmente importante, dê a impressão de estar inteiro e não mutilado. – Trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião.

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— Sacrificar seu maior inimigo é bastante ruim. Mas praticar magia sacrificial sobre aqueles que amam, confiam e respeitam você – isso é desprezível além das palavras. Especialmente... — Fairfax apertou brevemente seus dentes sobre seu lábio, como se tentasse controlar uma náusea, — Especialmente porque ele sabe exatamente o que implica a magia sacrificial, a agonia indescritível que as vítimas devem suportar, a extração de cérebros e da medula, e Deus sabe o que mais, enquanto o coração ainda bate. Aramia cobriu a própria boca, como se temesse vomitar de outra forma. — Desculpe por isso, — Fairfax disse. — É o que é. — Fiquei completamente distraída, não é? — A Sra. Hancock disse a Kashkari. — Tudo o que você perguntou foi quão difícil seria chegar ao Palácio do Comandante, e eu aqui falando de tudo o que aconteceu há décadas. — Não, não, é claro. Sempre é bom saber com o que estamos lidando, — Kashkari respondeu. — E você mencionou que a zona sem desmaterialização em torno do Palácio do Comandante é de 160 quilômetros de alcance. Os Atlantes nunca têm motivos para entrar na área? — Nossa população sempre se concentrou nas regiões costeiras. O interior do reino está praticamente vazio de habitantes, especialmente na região ao redor do Palácio do Comandante. O terreno é inapropriado para quase tudo – a massa terrestre é muito jovem e a rocha vulcânica não teve tempo suficiente para se tornar uma rica cinza vulcânica. Há alguns lugares em que você dificilmente pode andar. A terra sob seus pés é semelhante a uma floresta de facas. Os fluxos de obsidiana às vezes produziram tais paisagens, a lava vulcânica, ao esfriar, fraturava, produzindo bordas afiadas. — Você teria um mapa? — Titus perguntou. — Os mapas devem mostrar todos os lugares. Mas nenhum deles terá a localização do Palácio do Comandante marcado. No entanto, você

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pode adivinhar a área geral. Seria o setor no quadrante do noroeste da ilha, o qual é inteiramente coberto por floresta selvagem. A Sra. Hancock moveu-se para uma mesa e abriu uma gaveta. — Aqui estão dois mapas. Um de Lucidias e um de todo o reino. Eu marquei onde pensei que poderia haver imprecisões ou informações que vocês poderiam usar. Titus pegou os mapas e agradeceu. — Agora vocês só precisam sair de Lucidias. — Através dos túneis? — Amara perguntou. — Os túneis têm seus usos, mas dificilmente serão uteis para vocês: ainda tenho liberdade de movimento. Amanhã de manhã, levarei o Crucible, com todos vocês dentro, para uma excursão no país. Há algumas áreas de natureza recreativa designadas, não muito longe daqui. Uma vez que estiverem lá, vocês poderão continuar com menos olhos em vocês. E eu comprei algumas túnicas simples e capas para todos, de modo que suas roupas não se destacarão. Kashkari inclinou-se em sua cadeira. — Você não pode saltar de Lucidias diretamente? Isso seria mais seguro para todos. A Sra. Hancock sacudiu a cabeça. — A cidade inteira é uma zona sem desmaterialização. Esta não foi uma novidade bem-vinda. — Vamos nos destacar? — Amara gesticulou para Kashkari e para si mesma. — Um pouco, mas temos uma pequena população de magos que se mudaram para Atlantis dos reinos no Oceano Índico. Então a aparência de vocês apenas não os levará a serem interrogados. — Ela se levantou. — Se alguém ainda estiver com fome, eu tenho alguns ovos na cozinha e posso fazer omeletes. Isso seria bom? — Isso soa bem, — Haywood disse. — Não me importaria com uma omelete fresca. Obrigado. — Quando vocês comeram pela última vez, — a Sra. Hancock prosseguiu, — Vamos ver como podemos arrumar camas, mais

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confortáveis possíveis, para todos. Vocês parecem precisar de uma boa noite de descanso. Poderia ser a última. Titus estava acostumado a noites tardias e a dormir pouco. Mas foi um longo dia, tanto física quanto emocionalmente. E o pensamento de algumas horas de sono ininterrupto parecia mais tentador do que ele queria admitir, para alguém que realmente não deveria perder mais tempo. Ele se aproximou de Fairfax, com a intenção de perguntar como ela estava segurando. — Não! — Aramia gritou. Todo mundo parou no meio do movimento. — Sem comer. Nem dormir. Vocês devem sair desta casa agora! Vão para os túneis, saiam de Lucidias neste minuto. Titus olhou para ela. De repente, ele soube o que ela estava prestes a dizer. — Estou carregando um rastreador. Confiei a outra metade ao tio Alectus para dar ao novo Inquisidor. Eles levariam um tempo para nos encontrar, mas estamos aqui há um tempo. Claro. Se tudo o que ela queria era libertar Lady Callista, seria muito mais fácil ajudar Bane do que derrotá-lo. Titus poderia ter se estrangulado. Aramia tinha um talento estranho para se retratar como uma vítima, uma garota fraca demais em qualquer assunto, alguém que nunca intencionalmente serviria como um receptor de um assassinato. Era isso o que levaria a morte de Fairfax? — Não! — Fairfax gritou, apertando a mão sobre ele e puxando seu braço para baixo. De repente, ele percebeu que tinha sua varinha apontada para Aramia, com toda a intenção de completar uma maldição de execução. O quarto ficou escuro ao mesmo tempo. Ele piscou antes de perceber que Kashkari havia apagado a luz, a fim de olhar para fora sem chamar a atenção. Quando afastou as persianas, uma luz azul claro entrou.

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— A morte dela agora não serviria de nada, — Fairfax disse. — Eu não sabia que é por isso que Bane a queria, — Aramia choramingou. — Eu não sabia que era para usá-la em magia sacrificial. — Então estava bem para você quando não sabia desse fato específico? — Titus rosnou. — O que você pensou que fosse acontecer? Que Bane a convidaria para um chá da tarde e a liberaria? A mão de Fairfax apertou em seu braço. — Pare de perder tempo. Temos de sair. — Ela se virou para Aramia. — Entregue o seu rastreador. Aramia cavou sob as dobras de sua túnica e entregou um pequeno disco redondo. — Comece a senha no Crucible. Vou enviar o rastreador o mais longe possível. — Não teremos tempo suficiente para entrar no Crucible, — Kashkari disse da janela. — Eles estão vindo.

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Capítulo 18 Iolanthe correu para a janela. À luz clara e suave das lâmpadas da rua era muito fácil ver o enxame de carros blindados, do tipo que a perseguiram no Cairo e em Eton, acelerando em direção a eles. Ela praguejou e jogou o rastreador. — Eu tenho um meio portal! — A Sra. Hancock gritou. — Rápido. Por aqui. Um portal totalmente funcional exigia um gabinete de partida e um gabinete de extremidade. Um meio portal, por outro lado, poderia enviar um mago a certa distância, mas não havia como dizer o quanto seria deslocado, ou mesmo em que direção. Eles pegaram suas bolsas de emergência. A Sra. Hancock instou todos a entrar em um armário em seu quarto, apertados tão juntos como se fossem espectadores em um desfile. — E quanto a mim? — Aramia exclamou. — Se Atlantis me interrogar agora, eles saberão que eu ajudei vocês, afinal. — Então é melhor você garantir que não a interroguem, — a Sra. Hancock disse enquanto fechava a porta no rosto de Aramia, deixando-a para trás.

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No momento seguinte, eles se encontravam em um jardim de algum tipo, cercado por fontes e canteiros feitos de arbustos anões. A cidade se espalhava para o sul – uma fina e densa faixa. E, à distância, o mar, a espuma de suas ondas agitadas brilhava com uma sombra estranha de azul esverdeada sob a luz da fortaleza flutuante – Titus lhes havia dito que era grande, mas sua imaginação não era correspondente ao tamanho do colosso no céu. A Sra. Hancock olhou ao redor. O jardim estava tão iluminado quanto qualquer outro lugar em Lucidias. — Nós estamos no River Terrace Park, — ela disse; um nome que não significava nada para os não Atlantes, — Cerca de cinco quilômetros da minha casa. — É seguro aqui? — Kashkari perguntou. — Existem alguns túneis? — Não há túneis nas proximidades, — a Sra. Hancock disse, acenando para que a seguissem, enquanto ela caminhava para o oeste. — Os espaços públicos em Lucidias são cuidadosamente observados durante o dia e ainda mais durante as horas do toque de recolher, porque podem oferecer lugares de ocultação. Precisamos sair do parque. — E então o quê? — Titus perguntou. Mesmo que pudessem encontrar algum lugar para se esconder até de manhã, o plano original de atravessar a cidade no Crucible, sendo carregado pela Sra. Hancock, já não era viável – a própria Sra. Hancock era agora considerada uma fugitiva da lei. A Sra. Hancock os conduziu para mais perto de um muro de contenção alto, acima do qual havia outro terraço como aquele que eles atravessavam – o parque fora esculpido em uma encosta. E se ele ouvisse com atenção, quase podia ouvir o rugido do rio homenageado no nome do parque. — Existem algumas faculdades nessa direção, — a Sra. Hancock disse. — Normalmente, as faculdades estão autorizadas a policiar seu próprio campus. O Instituto Inter-reinos de Línguas e Culturas é elogiado pela imposição do toque de recolher. Espero que possamos ficar lá até o nascer do sol.

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— Realmente existem lugares em Atlantis onde os magos estão interessados nas línguas e culturas de outras terras? A Sra. Hancock parou. — Sua Alteza, com todo o devido respeito, é claro. Só porque você conheceu alguns burgueses que são atlantes não significa que o resto de nós é ignorante e sem curiosidade. Isso ocorre porque vivemos em condições hostis por nosso modo de pensar e estamos menos inclinados a nos juntarmos à burocracia que envia magos no exterior, porque tendemos a discordar da posição oficial de desdém e brutalidade. Um momento de silêncio. Iolanthe sentiu-se envergonhada de si mesma: não havia dito isso em voz alta, mas pensou a mesma coisa. — Minhas desculpas, senhora, — Titus disse. — Eu vou me lembrar de seu conselho. A Sra. Hancock retomou a caminhada apressada. — Desculpas aceitas, Sua Alteza. E obrigada por... Uma pancada. Iolanthe olhou para cima enquanto Titus pegava seu braço. Uma fração de segundo depois, dois guardas uniformizados caíram aos pés da Sra. Hancock. Ela saltou para trás, sua mão apertando a boca. — Eu poderia ter atordoado os guardas muito tarde, — Amara disse, calma e imperturbável. — Eles poderiam já ter espalhado a informação. A mandíbula da Sra. Hancock apertou. — Há uma série de degraus à frente. Vamos mover os guardas para lá. A linha de degraus foi cortada no muro de contenção para permitir o acesso do terraço inferior para o superior. Os degraus eram largos e baixos – de novo, projetados para oferecer um lugar tão pequeno que era impossível de se esconder. Mas, no final dos degraus, eles eram menos propensos a serem vistos, a não ser que estivessem diretamente sobre eles. Eles

empurraram

os

Atlantes

inconscientes

debaixo

dos

corrimãos. Titus olhou do topo das escadas; Kashkari e Amara fizeram o mesmo na parte inferior. A Sra. Hancock tinha a mão sobre o coração,

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recuperando a respiração. O Mestre Haywood inclinou-se contra a parede de pedra que segurava a lateral dos degraus, a palma da mão pressionada contra a testa. Iolanthe pegou a mão dele. — Está tudo bem. Podemos ter mais sorte do que pensamos. Se esses guardas já tivessem informado seus superiores ou pedido reforços, eles já estariam aqui agora. Mas seus ombros caíram ainda mais. — Se eu tivesse conseguido suprimir as memórias da Senhorita Tiberius. Se eu ao menos tivesse feito isso... Ela olhou para ele. No fundo de sua mente, pedaços de informações que se recusaram a fazer um sentido, fizeram exatamente isso em uma avalanche de percepção. Seu aperto na mão dele aumentou. — Você nunca poderia ter feito isso, porque ela não era a pessoa que você segurou por horas e horas. Fui eu. Não sou a filha de Lady Callista – eu sou a verdadeira Iolanthe Seabourne. Mestre Haywood olhou para ela. — Mas isso é impossível. Eu mesmo troquei vocês duas. Com sua excitação, ela agarrou Titus pela parte de trás da túnica e o puxou para ela. — Lembra-se de quando encontramos o círculo de sangue no Saara? Cada um de nós enviou uma gota de sangue para o círculo de sangue. O seu reagiu ao círculo, mesmo que fracamente; o meu não fez nada. Agora ele também estava com a boca aberta. — Que a Sorte me proteja. Meu sangue reagiu ao círculo de sangue, porque Lady Callista e eu somos parentes distanciados. Mas o seu... E o dela... — Exatamente! Eu deveria ter colocado dois e dois juntos no momento em que me lembrei de tudo. Mas estávamos tão ocupados com a batalha e tudo o que se seguiu – não houve tempo para parar e pensar. Ela estava vertiginosa: a extremamente egoísta Lady Callista e o supremo covarde Barão Wintervale não eram seus pais. — Ainda não entendo o que aconteceu, — Mestre Haywood disse aturdido.

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— A explicação é óbvia. No momento em que Aramia nasceu, eu já estava na enfermaria do hospital por seis semanas. As enfermeiras da noite poderiam não reconhecer Aramia, mas elas devem ter me reconhecido, e acharam que eu havia sido de alguma forma colocada no berço errado e nos destrocaram. — Então não há nada enganador sobre minhas lembranças afinal de contas, — Mestre Haywood disse lentamente. — Eu era um homem que criava a filha dos meus colegas de escola, a quem amei acima de tudo. Tudo isso era verdade, tudo isso. Ela apertou a mão dele. — Sim, fomos nós. Somos nós. Ele apertou a mão dela. — Não posso dizer o quanto estou emocionado por Jason e Delphine Seabourne, que a filha deles acabou sendo tudo o que eles poderiam ter desejado em uma criança. — Porque você fez tudo certo comigo. Nunca se esqueça disso. Um brilho úmido iluminava os olhos dele. — Eu não fiz. Mas nunca esquecerei que você disse isso – faz tudo valer a pena. Tudo. Sua visão também estava nebulosa. Ela se inclinou e o beijou na bochecha. — Nós... Ela resmungou com a pressão forte que a mão de Titus exercia em seu ombro. Ele estava olhando para a Sra. Hancock, que estava... Que estava... A Sra. Hancock brilhava, como se ela tivesse se transformado em um grande inseto luminoso. Boquiaberta, ela fitava suas mãos, as quais estavam com uma luminescência fraca, verde-venenosa, a boca bem aberta, os olhos aterrorizados. Mestre Haywood se endireitou. — Acho que não foi apenas o soro da verdade que Atlantis lhe deu. Isso parece o trabalho de um elixir de farol. Ele agarrou Iolanthe pelo braço. — Saia em seu tapete! Você deve chegar tão longe de... A Sra. Hancock entrou em erupção, como um farol de luz disparando para o céu, notoriamente visível mesmo contra a brilhante iluminação de fundo da noite Lucidiana. A mesma luz girou sobre ela,

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envolvendo-a como se estivesse em um tubo. Seu rosto estava congelado em um grito de horror. — Vão! Vão agora, todos vocês! — Mestre Haywood gritou. — Ela já está morta. Movam-se! — Mas para onde? — Amara gritou. Kashkari apertou o tapete. — Para longe daquilo! Aquilo era uma fortaleza flutuante, viajando em direção a eles com a velocidade de um carro blindado. Eles fugiram na direção oposta de onde seguiam, o refúgio da faculdade agora uma miragem sem esperança. O tapete de Iolanthe foi subordinado ao de Amara, sendo a mais rápida e mais experiente possível entre eles. Mas, mesmo com os tapetes avançando a uma velocidade vertiginosa, a fortaleza flutuante já estava em cima deles. Pior, suas bordas se estendiam para baixo. Iria confiná-los fisicamente em um lugar onde não podiam desmaterializar, onde uma vez encurralados, eles não teriam como sair. Seu coração batia como os pistões de uma máquina a vapor que estava prestes a superaquecer. Era isso? Esse era o começo do fim? Ela arrancou pedaços da encosta e os jogou na fortaleza flutuante. A rocha vulcânica produziu um ruído muito satisfatório contra a base, mas não teve efeitos práticos. A fortaleza flutuante estava exatamente acima deles, sua velocidade idêntica à deles, as bordas próximas do chão. Amara fez uma curva e inverteu sua direção. Mas a fortaleza flutuante, do tamanho do distrito de uma cidade, repetiu seus movimentos sem a menor hesitação. — Kashkari, dirija-se em uma direção diferente! — Titus pediu. — Eu farei o mesmo. A fortaleza flutuante ignorou suas tentativas de criar confusão e seguiu

Amara,

Iolanthe

e

o

Mestre

Haywood.

Iolanthe

sentiu

bruscamente a pressão súbita na alça no seu ombro. Mas era apenas o Mestre Haywood procurando em sua bolsa de emergência. Ele apertou o tapete de reposição, abraçou-a com um braço e beijou sua bochecha. — Eu amo você. — Para Amara, ele gritou: — Saia de debaixo da fortaleza!

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Então ele estava no tapete de reposição, correndo em direção à fortaleza flutuante. — O que você está fazendo? — Iolanthe gritou. Tudo o que ele pretendia fazer apenas o mataria. A figura dele se afastando começou a brilhar, assim como a Sra. Hancock. — Não! — Iolanthe gritou novamente. O que Atlantis deu a ele durante seu tempo no Inquisitório? Impossivelmente, a fortaleza voadora também começou a brilhar. Por um momento, sua mente se recusou a entender o que estava vendo: um feitiço de último mago, extremamente destrutivo porque era alimentado por uma vida voluntariamente dada. A vida voluntariamente dada por Mestre Haywood. Toda

a

fortaleza

flutuante

brilhava

alaranjado,

exibindo

rachaduras vermelhas. Ela balançava e abaixava, mesmo enquanto suas bordas continuaram descendo. Iolanthe se forçou a se concentrar. O vento de cauda que ela convocou lançou-os para frente; Amara mal conseguia controlar os tapetes. Eles giraram enquanto deslizavam para longe da base da fortaleza. A fortaleza flutuante quebrou e despencou. Uma maré de detritos caiu em sua direção. Iolanthe criou os escudos mais fortes que conhecia e enviou uma forte corrente contrária de ar – ainda assim ela teve que levantar sua bolsa de emergência na cabeça para se proteger dos pequenos fragmentos que caíram. Saindo da nuvem de fumaça e poeira apareceu Kashkari e Titus. Mas não havia tempo para indagar sobre o bem-estar deles, nem mesmo para recuperar o fôlego. Sob o barulho da destruição da fortaleza flutuante, surgiram sons de algo deslizando pela grama. Cordas de caça, centenas, talvez milhares delas. Cordas de caça seguiriam os aromas de suas vítimas, se tivessem sido levadas pela primeira vez à casa da Sra. Hancock. E viajar com o tapete voador não dissuadiria as cordas de caça de seguir seus aromas. Mas cordas de caça, felizmente, tinham uma imperfeição: elas apenas funcionavam em terra firme.

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— Para o rio. Agora! — Iolanthe comandou. O rio estava a poucos metros a frente. A nuvem de detritos começava a desaparecer; Titus convocou uma grande e poderosa barreira de fumaça. Sob condições diferentes, algo assim teria indicado a localização deles. Mas agora, a localização deles já era conhecida, e tudo o que precisavam era que Atlantis não conhecesse o próximo movimento deles. O rio estava muito mais cheio do que Iolanthe havia antecipado, as correntes eram escuras e rápidas. Ela inalou profundamente e fez um movimento com a mão, como se estivesse abrindo uma janela. A água se separou, revelando um leito de rio de aparência irregular, do tipo onde não havia lugar bom para colocar o pé. E enquanto o canal não era muito íngreme, havia uma inclinação notável. — Abaixe-se e incline-se. — Devido à inclinação, o rio não era muito profundo, no máximo três metros. Ninguém pareceu muito feliz com o que ela propôs. Mas todos obedeceram imediatamente. Ela saltou na frente deles. — Espere, — Titus disse conforme Iolanthe preparava uma bolha de ar ao redor deles. Tirando uma corda de caça de sua própria bolsa, ele a esfregou várias vezes no dorso da mão e depois a atirou para a borda distante do rio. Ela esperava que seu truque mantivesse ocupadas as outras cordas por um tempo. Respirando fundo, ela deixou o rio continuar seu estrondoso progresso em direção ao mar. A bolha de ar que ela havia formado no leito do rio manteve-os com segurança no lugar. Mas ficar no lugar não era seu objetivo. Mais cedo ou mais tarde, aqueles que os procuravam voltariam para este ponto: eles precisavam se mover. — Desçam dos tapetes, — ela disse. — Então nós levitaremos uma polegada ou duas acima do leito do rio e prosseguiremos rio acima. Teria sido muito mais fácil seguir o curso do rio, mas isso só os levaria para o mar. Os tapetes foram guardados. Iolanthe e Titus, cada

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um carregando uma jangada de emergência, tiraram os remos que acompanhavam

os

kits.

Completamente

desdobrados,

os

remos

mediriam dois metros de comprimento. Mas eles deixaram os remos com cerca de quarenta e cinco centímetros. No Saara, Iolanthe e Titus usaram feitiços de levitação para atravessar um túnel que ela escavou no solo. Aqui, o truque funcionou novamente: flutuando três centímetros acima do leito do rio, cada um deles usava um remo para se empurrar para frente. Iolanthe reduziu o tamanho da bolha de ar o máximo possível sem sufocar a todos – quanto mais água passava por eles, menos provável serem visto. Kashkari coordenou seus movimentos. Titus observou sua velocidade,

altitude

e

suprimento

de

oxigênio



lembrando-a

regularmente que era hora de trazer um pouco de ar fresco – enquanto lutava com a bolha de ar, empurrando-a pelo fundo do rio ao ritmo de seu progresso. Amara permaneceu em silêncio, exceto para perguntar uma vez: — É difícil manter a bolha de ar intacta? — Não, — Iolanthe respondeu. — A parte difícil é mantê-la debaixo d'água. Este ar exerce muita flutuação. E foi uma luta constante para segurar a bolha de ar, e não a deixar saltar para a superfície. Seu progresso foi lento e torturante – e muitas vezes ficaram completamente no escuro. Quando Titus dizia que a água era suficientemente profunda, ele permitiria um leve brilho de luz. Caso contrário, eles continuaram sem qualquer iluminação, procurando o caminho para frente. Para Iolanthe parecia como se tivesse passado a vida inteira naquele caminho apertado e antinatural, com os ombros doendo e a cabeça latejando, quando Titus disse: — Nossos feitiços de levitação estão se enfraquecendo. Podemos ter que parar um pouco. Eles atravessaram um trecho de leito relativamente plano. Titus tirou um bote de emergência, que, quando inflado, fazia um colchão decente. — A água aqui tem quatro metros de profundidade. Você pode aumentar a bolha de ar um pouco.

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— Quão longe nós chegamos? — Iolanthe perguntou, entrando em colapso no bote. Não suficientemente longe, pelo que ela já sabia, já que a mesma luz azulada que iluminava Lucidias em algum lugar incidia sobre o funil que ela havia feito até superfície para trocar o ar. — Cerca de dois quilômetros e meio. Mas o curso do rio virou algumas vezes. Então, em linha reta, estamos a apenas cerca de quatro quintos de dois quilômetros de onde começamos. — Ainda em Lucidias? — Sim. — Titus entregou-lhe um pequeno frasco de remédio. — A boa notícia é que eu tenho estudado o mapa de Lucidias que a Sra. Hancock nos deu, e tenho certeza de que: um, o rio nos tirará de Lucidias; e dois, isso acontecerá em um ponto onde não há posto de inspeção. A má notícia, é claro, desde que Atlantis não achou necessário instalar um posto de inspeção, acharemos isso punitivo de alguma forma. O conteúdo do pequeno frasco, quando ela o colocou na boca, provou bastante familiar, com seu sabor de laranja. Ele havia lhe dado exatamente o mesmo remédio de bem-estar no dia em que se conheceram. O dia em que ela se sentou dentro de um baú escuro, leu a carta do Mestre Haywood e soube o quanto ele havia desistido para mantê-la segura. Não haveria retorno triunfal ao Conservatório para ele, sem vida de conforto e abundância. E eles nunca compartilhariam outro nascer do sol nas Ilhas Siren, inclinando-se um para o outro enquanto o nascimento de outro dia os impregnavam com esperança. Ela sabia que estava chorando, mas não percebeu que estava tremendo até Titus abraçá-la. — Ele queria mantê-la segura, e agora ele fez. — Por quanto tempo? Eu não sairei de Atlantis viva – todos nós sabemos disso.

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— Nós nunca podemos julgar o efeito total de qualquer ação nas consequências imediatas. Mas lembre-se, não foi apenas você que ele manteve vivo e livre, foi o resto de nós também. Um suave lamento flutuou em seus ouvidos. Por um momento, ela pensou ter imaginado, mas era Amara cantando silenciosamente. — É um hino para aqueles que levaram vidas dignas, — Kashkari disse; sua voz falhando. — Seu guardião e a Sra. Hancock não viveram nem morreram em vão. Enquanto Amara cantava, Iolanthe deixou-se chorar, com a cabeça no ombro de Titus. Quando a nota final do lamento subiu até os ouvidos dos anjos, ela enxugou os olhos nas mangas. Eles ainda tinham um longo caminho a percorrer, e ela deveria se concentrar nas tarefas em questão. Mas Amara cantou novamente. — Uma oração por coragem, — Kashkari murmurou, — O tipo de coragem para enfrentar o fim da estrada. Era bem possivelmente ser a mais linda canção que Iolanthe já ouviu, tão assombradora quanto comovente. — O que é o Vazio, senão a ausência de Luz? — Titus disse, citando a ária Adamantine. — O que é Luz, senão o fim do Medo? Iolanthe ouviu sua própria voz juntando-se a ele no resto do verso. — E o que sou eu, senão a forma de Luz? O que sou eu, senão o começo da Eternidade? Você é o começo da eternidade agora, ela disse silenciosamente ao Mestre Haywood. Você chegou ao fim do Medo. E eu amarei você sempre, enquanto o mundo continuar.

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Capítulo 19 O árduo progresso deles continuou durante a noite. Ao meio-dia, eles chegaram a uma enorme cachoeira, e Fairfax declarou que era hora de todos saírem do rio. Titus estava acostumado com as montanhas – ele crescera no coração de uma grande cordilheira. Mas as montanhas ao norte de Lucidias – a Cordilheira Costeira – eram como nenhuma que ele já havia visto. Não havia encostas. Tudo erguido em um ângulo quase vertical. Até as margens do rio eram íngremes e cheias de enormes e afiados pedregulhos. Eles tiveram que voar para fora do leito do rio depois que Fairfax mais uma vez separou a corrente. Titus fez uma série de desmaterializações cegas até que estava alto o suficiente para ver a cidade densa e lotada que consumia cada centímetro quadrado de terra viável entre o mar e as montanhas. Acima de Lucidias estavam penduradas várias fortalezas flutuantes, girando lentamente. Entre eles, esquadrões de carros blindados. Quanto à intensidade da busca no chão, ele só podia imaginar. Ou tudo poderia ser um espetáculo colocado para enganá-los, fazendo-os pensar que Atlantis ainda acreditava que eles estavam presos em Lucidias.

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Infelizmente, a montanha se ergueu mais atrás dele e ele não conseguiu ver o que acontecia em outros lugares da Atlantis. E pensar que essas montanhas eram montes gentis em comparação com o que os esperava mais no interior. Ele voltou a verificar Kashkari e Amara, apesar de suas habilidades, eles estavam frustrados pela outra grande fraqueza do tapete voador: só poderia viajar acima do solo. Ele podia ver uma saliência a sessenta metros de altura. Mas estava em um penhasco sem apoio em lugar nenhum, e eles simplesmente não podiam subir tão alto somente com a força dos tapetes. No final, uma Fairfax exausta convocou uma corrente de ar forte e precisa para levá-los até a altura exigida, o que lhes permitiu deslizar mais ou menos para dentro e colapsar em massa. Titus se ofereceu para o primeiro turno de vigia. Mas a saliência não era grande o suficiente para mais de duas pessoas deitarem. — Eu vou me juntar a você para a vigilância, — Kashkari disse. Titus colocou um lençol de calor em torno de Fairfax. A saliência não era exatamente suave e uniforme; ele não podia imaginar que ela estava confortável, mesmo com o tapete de batalha mais grosso debaixo dela. Mas ela já estava adormecida, os dedos dela escorregando de sua mão. Atrás dele, a grande cachoeira trovejava, gerando tanto spray que as partículas dispersas atingiam até um quarto de milha ocasionalmente. Ele limpou uma pequena gota de água da bochecha dela e desejou pela milésima vez que ele pudesse protegê-la do que estava por vir. Eventualmente, ele sentou-se ao lado de Kashkari e entregou a este uma barra de nutrição. — As senhoritas se esqueceram de comer. — Se eu pudesse, eu também dormiria agora e comeria depois, e não o contrário. — Kashkari fitou cansadamente a barra de nutrição. — O que você viu? Titus descreveu a cena sobre Lucidias e mencionou sua suspeita de que tudo poderia ser uma armadilha.

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— Enquanto eles fortalecem as defesas em torno do Palácio do Comandante? Isso faz sentido. — Espero que Bane não decida mover seu corpo verdadeiro para outro lugar. Kashkari lambeu algumas migalhas de seus dedos. — Isso seria improvável. O Palácio Comandante forneceu-lhe abrigo e sigilo por cerca de um século, se não mais. É ali que ele está mais seguro. Para não mencionar, que para mover o corpo, ele teria que aceitar o risco do deslocamento: ele estaria mais exposto e mais vulnerável do que esteve há muito tempo. E o que o aguarda no outro lugar poderia não ser tão fortificado quanto o Palácio do Comandante. Além disso, a ideia de Fairfax chegar a ele deve ser terrivelmente emocionante. Ela se mostrou indescritível em outro lugar, e a caça custou-lhe uma e outra vez. Mas agora ela está no território dele. Do jeito que ele vê, ela está cometendo um grande erro, e logo enfrentará a impenetrabilidade de sua defesa e será capturada. Ele só tem que sentar-se e outro século de vida cairá em seu colo – isso é, se ele ainda tiver uma parte dele na manga. Titus baixou a cabeça de joelhos. — Isso é exatamente o que acontecerá, não é? Kashkari ficou em silêncio por um longo tempo. — Mas você e eu, pelo menos, ainda estaremos vivos depois que Fairfax não estiver. E é isso que devemos planejar agora. *** Iolanthe deveria estar dormindo por mais de dez minutos quando alguém a sacudiu no ombro. — Acorde, Senhorita Seabourne. Deixe os meninos descansarem um pouco. Amara. Iolanthe separou suas pálpebras e estremeceu pela altura da reentrância íngreme onde estava deitada.

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— Deixe-a dormir mais, — Titus disse a Amara, uma borda afiada na voz dele. — Não era necessário acordá-la. —

Você precisa

do seu descanso, —

Amara respondeu

calmamente. — Se estiver muito cansado, você se tornará uma responsabilidade para o resto de nós. Iolanthe levantou cuidadosamente para poder mudar de lugar com Titus. — Ela está certa. Durma. Quando eles trocaram de lugar, ele a segurou contra ele por um momento. Nada de seus arredores parecia bastante real, não a cachoeira rugindo, nem os penhascos, nem a saliência precária acima da superfície escabrosa muito abaixo – e ela estava tão cansada que sequer lembrava como eles subiram até ali. — Então você não nasceu na noite da tempestade de meteoros, afinal, — ele murmurou. Ela recordava vagamente algo sobre não ser a filha de Lady Callista, mas sim apenas a velha Iolanthe Seabourne, que nasceu seis semanas antes da tempestade de meteoros. — A chegada da minha grandeza não precisava de um anúncio tão excêntrico, — ela murmurou. Ele bufou suavemente e pressionou uma barra de nutrição na mão dela. — Perdemos tempo celebrando seu aniversário em setembro. Você tem dezessete anos a algum tempo. — Não é de admirar que eu esteja me sentindo velha e cansada ultimamente. Idade, ela rasteja em cima de você. — Então deite e durma um pouco mais. — Durga Devi está certa. Se você estiver exausto, não será útil para nós. Agora me desmaterialize em algum lugar onde eu possa ver Lucidias. Ele suspirou, beijou-a nos lábios e desmaterializou-os para um pico nas proximidades. Ela examinou a concentração de fortalezas flutuantes e carros blindados. — Era assim quando você a viu pela última vez? — Mais ou menos.

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— Você acha que eles acreditam que estamos em algum lugar da cidade. Seu braço ao redor do ombro dela apertou. — Isso pode ser uma ilusão. — Ele esperava mais problema do que nunca para onde eles iam – e era por isso que ela não iria sobreviver. Quando eles voltaram para a saliência, Kashkari já estava dormindo, esticado. Ela obrigou Titus a se deitar e observou-o se debruçar em um sono agitado. — Então você o perdoou? — Amara perguntou. Iolanthe se sentou ao lado dela. — Provisoriamente – no caso de eu morrer logo14. — E se não morrer? — Então eu terei o luxo de tempo para manter um rancor, não? Amara riu suavemente. Iolanthe a olhou: a mulher era incrivelmente linda, perfeita de todos os ângulos. Ocorreu-lhe que, apesar de terem se tornados camaradas em uma luta de vida e morte, ela sabia muito pouco sobre Amara, além de sua estupenda beleza e que ela era o objeto do desejo impossível de Kashkari. Ela convocou um pouco de água e ofereceu a Amara. — Você disse que sua avó veio de um dos reinos nórdicos? Amara desenroscou a tampa do odre e deixou Iolanthe dirigir um fluxo de água para dentro. — Você já ouviu sobre a beleza dos cavalheiros magos do reino dos Kalahari, eu confio?

O texto da nota que Seabourne deixou no laboratório de Titus VII antes de partir para Grã-Bretanha é o seguinte: 14

Sua Alteza, Eu vou matar você... Avidamente e com grande satisfação. Talvez eu esteja falando figurativamente; talvez não. Você descobrirá. Provavelmente muito tarde. Mas se tanto eu quanto o destino de alguma forma poupá-lo, e você voltar aqui um dia, vitorioso e inteiro, saiba que falei sério quando eu disse: não tenho arrependimentos sobre ir à Atlantis, apesar das profecias mortais. E sei que eu amei você o tempo todo, mesmo quando tramo sua morte iminente. Talvez especialmente enquanto faço isso. Agora e sempre, Aquela que anda ao seu lado. – Trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião.

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— Ah, sim. — Havia estudantes do Reino do Kalahari no Conservatório, e alguns deles eram espetacularmente bonitos – toda a mistura das linhagens produzia uma beleza incomum. — Meu avô gostava de brincar com isso, como uma imigrante, minha avó saiu do transporte, colocou os olhos no primeiro Kalahari próximo, e imediatamente pediu em casamento. — Sua avó já admitiu isso? Amara levantou uma mão, indicando que o odre dela estava cheio. — Ela insistiu até o dia em que morreu que ele era o terceiro homem que encontrou depois de chegar, e não o primeiro. Iolanthe sorriu e girou distraidamente o restante da esfera de água que convocou. — Eles eram os pais do meu pai. Minha mãe nasceu e cresceu nos Ponentes – o mesmo arquipélago Vasudev de onde vêm os avós de Mohandas, aliás, embora não da mesma ilha. Meu pai visitou os Ponentes em algum tipo de negócio oficial, e ele conheceu minha mãe enquanto estava lá. Do jeito que minha mãe falou, ela quase se desvaneceu com admiração quando o viu pela primeira vez – mas só depois que eles se casaram que ela percebeu, que entre outros Kalahari, a aparência dele era considerada de forma medíocre, na melhor das hipóteses. Iolanthe riu novamente. Até esse momento, ela não tinha certeza se gostava de Amara. Talvez seja mais preciso dizer que até este momento ela nunca viu Amara como uma pessoa real. — Você disse que seus pais deixaram o reino de Kalahari quando você era muito pequena. — Verdade. Eu nunca experimentei essa superabundância de beleza masculina. — Por que eles foram embora? Amara encolheu os ombros. — Por causa de Atlantis, o que mais? O reino de Kalahari teve o primeiro Inquisitório Atlantis construído no exterior. Iolanthe

ficou

envergonhada:

ela

não

sabia

disso



e

provavelmente deveria saber. — Por que o Reino de Kalahari interessava tanto a Bane?

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— Eu nunca entendi isso até que soube de Icarus Khalkedon através de Mohandas – ele escreveu um grande acordo quando estava voando para nós no deserto. Bane queria o controle sobre o nosso reino porque queria os nossos oráculos. Nós somos – ou fomos – famosos por nossos oráculos. É por isso que tantos magos de todo o mundo foram até lá em primeiro lugar, para consultar os oráculos. — Você quer dizer que existem outros como Icarus Khalkedon? — Não, eu nunca ouvi falar de outro oráculo humano como ele, mas havia a Árvore de Oração, o Campo de Cinzas, a Bem Verdade, e vários outros ao longo da história. Eu aposto que Bane provavelmente perguntou a cada um deles quando e onde ele poderia encontrá-la. — Não a mim, apenas o próximo mago elementar poderoso – provavelmente foi há tanto tempo que até mesmo os poderes do tio de Kashkari ainda não haviam se manifestado. Amara assentiu. — Você está certa. Faz quarenta anos que o Inquisitório foi construído. Ele deveria ter aprendido algo de todos os nossos oráculos, porque assumiu Ponentes apenas a tempo de Akhilesh Parimu desenvolver seus poderes. A história do tio de Kashkari nunca deixava de dar arrepios a Iolanthe: morto por sua própria família, de modo que não caísse nas mãos de Bane. — Após o estabelecimento do Inquisitório, Atlantis se tornou a única entidade que poderia perguntar sobre os oráculos? — Não, magos comuns ainda podiam consultá-los, mas menos frequentemente. E, claro, todas as perguntas precisavam ser aprovadas pelos acólitos, que agora eram atlantes ou aliados com Atlantis – para evitar exatamente o que a Sra. Hancock conseguiu fazer: usar o poder de um oráculo para perguntar como Bane poderia ser derrubado. No Além, a Sra. Hancock já se reuniu com sua irmã e Icarus Khalkedon? E Mestre Haywood – quem o receberia do outro lado? Os pais dele? A irmã que morreu tão nova? Quando Iolanthe chegasse, ele ficaria feliz em vê-la – ou triste por ter sobrevivido poucos dias?

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Ela trouxe sua mente de volta ao presente – os caminhos e meios do Além, ela em breve saberia o suficiente. — O único oráculo que eu já consultei está no Crucible – não há fila de suplicantes esperando por respostas. Mas um local com um oráculo real deve ser inundado com magos desesperados por respostas. Como os acólitos escolhiam os suplicantes que eles deveriam favorecer? — Isso ocorre de acordo com a vantagem. Alguns decidem sobre o mérito relativo das questões dos suplicantes; alguns, obviamente, sobre quem pode pagar mais; e alguns cobram uma taxa nominal e deixam o próprio oráculo decidir. — Então os suplicantes apenas fazem suas perguntas para o oráculo e veem se conseguem uma resposta? — Era assim que a Árvore de Oração funcionava. Alguém dava algumas moedas em esmolas para os necessitados, então escrevia uma pergunta sobre uma folha que havia caído da árvore e a deixava cair em qualquer lugar entre as raízes – e essas raízes cobrem uma grande, grande área. Se a árvore decidia responder a uma pergunta, uma folha branca cresceria nos galhos e um acólito escalaria para anotar a resposta e copiá-la para o registro. No momento em que meus pais fizeram sua pergunta sobre mim, eles provavelmente poderiam ter pagado com o resto do almoço. Os oráculos não duram para sempre. A Árvore de Oração havia se dispersado em grande parte, e não respondia perguntas há anos. Mas meus pais pensaram que eles também poderiam tentar, já que não tinham meios para pagar um oráculo mais forte. — Você estava doente? — Muito. Os médicos não sabiam se eu viveria meu primeiro aniversário e meus pais ficaram frenéticos. Mas a Árvore de Oração despertou para dar uma última garantia. — Então o que a árvore de oração disse a eles? Amara tomou um gole de água do odre. — Precisarei de um voto de silêncio de sua parte. Sem perceber isso, Iolanthe criou uma paisagem de águas complexas no ar, córregos esbeltos entrando e saindo de um grupo de

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águas rasas, todo brilhante e claro sob o sol da tarde. E agora, em sua surpresa com o pedido de Amara, a paisagem aquática caiu três metros abaixo. — Por quê? — Você verá. — Tudo bem, — Iolanthe disse. — Ela não viu como isso seria importante de uma forma ou de outra, por uma pergunta respondida há quase duas décadas sobre a expectativa de vida de uma menina. — Prometo solenemente nunca mencionar a ninguém. — A Árvore de Oração disse: Amara, filha de Baruti e Pramada, viverá o tempo suficiente para ser abraçada pelo Mestre do Domínio. — O quê? — A paisagem aquática se desintegrou completamente e caiu com um baque alto nos pedregulhos abaixo. — Uma grande resposta, eh? Iolanthe sugou uma respiração. — Então foi por isso que você invadiu a festa na Cidadela. — Você não teria feito, se lhe dissessem que você seria abraçada por um príncipe? Eu havia superado a curiosidade que eu tinha sobre ele quando era mais jovem. E, claro, Vasudev e eu já estávamos comprometidos, e nunca podia imaginar deixar outro homem me abraçar, a menos que fosse um rápido abraço de alguém como Mohandas. Mas ainda assim fiquei curiosa. — E então você o conheceu e percebeu que ele era um homem que não abraçava ninguém. Isso era um exagero, mas não muito. Iolanthe tinha certeza de que, depois de sua mãe e, talvez Lady Callista, quando ele era pequeno e não conhecia melhor, ela era a única pessoa que ele havia abraçado. — O que é um bom presságio para minha expectativa de vida, não é? — Amara riu, um som alto e abrupto. Iolanthe olhou para ela por algum tempo, talvez por fim vendo atrás da superfície perfeita. Havia uma resolução inflexível em Amara, mas, ao mesmo tempo, uma desolação que quase rivalizava com a desolação dessas montanhas. — Por que você veio conosco?

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Kashkari não teria negado nada a Amara. E Titus provavelmente estava muito perturbado por ter que deixar Iolanthe para se opor a uma substituição. Mas por que Amara decidiu que queria fazer parte de seu empreendimento sem esperança? E quando? Ela certamente não expressou tais interesses quando todos estavam juntos no deserto. E não era como se ela tivesse tido uma vida ociosa e inútil: a mulher comandava toda uma base rebelde; ela já dedicava sua vida a lutar contra Bane. O massacre no reino dos Kalahari realmente foi tão terrível para que ela estivesse disposta a abandonar não só seu novo marido, mas todos os seus colegas do passado, por algo que era, na melhor das hipóteses, uma missão suicida? — Eu vim ajudá-la, é claro, — Amara disse, sua voz calma e sincera. Um arrepio percorreu a coluna vertebral de Iolanthe, não porque não acreditava em Amara, mas porque acreditava. Elas ficaram em silêncio por algum tempo. O sol desapareceu atrás dos picos mais altos a oeste. As sombras caíram sobre a saliência. — Eu mencionei que há um oráculo dentro do Crucible, — Iolanthe disse. — Ela é especializada em ajudar aqueles que procuram seu conselho para ajudar os outros. Você gostaria que eu a levasse para vê-la? Amara puxou sua túnica mais forte sobre ela. — Não, obrigada. Eu já sei exatamente como contribuirei. — Como? — Você verá. O silêncio caiu novamente. Cada uma delas mordiscou uma barra de nutrição. Iolanthe olhou para a grande cachoeira, estava tão agitada quanto à piscina na base – e foi então que ela se lembrou do que Dalbert havia dito. Em Ondine Island, depois de se conhecerem, ela o pressionou por mais informações sobre o massacre de civis no Reino de Kalahari e a ameaça subsequente visando Titus e ela mesma.

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Aconteceu cerca de duas horas após a meia-noite, Dalbert havia dito ao começar seu relato. Esse detalhe particular não havia saltado para ela então. Mas agora sim. O massacre ocorreu nas primeiras horas da madrugada, enquanto que Amara deveria ter deixado o deserto do Saara na noite anterior para começar seu longo voo para a Escócia. O que faria com que ela deixasse tudo para se juntar a eles se não o assassinato em massa de seus parentes. Então o que aconteceu? A pergunta estava na ponta da língua quando Kashkari se levantou, se debatendo. Instintivamente, ela criou uma corrente de ar para pressioná-lo em direção ao muro do penhasco, fixando-o no lugar, de modo que ele não perderia o equilíbrio e cairia da borda. Kashkari ergueu a mão para proteger seu rosto do vento feroz. — Estou bem. Não vou cair. Iolanthe parou. O ar ficou imóvel, o único som na saliência era da água correndo em direção ao mar. — Outro sonho profético? — Amara perguntou. Kashkari olhou para Iolanthe. Seu peito apertou. — Sobre mim novamente? Ele não respondeu, e isso deveria ter sido uma resposta suficiente. Ainda assim, ela se ouviu dizer: — Diga. Kashkari dobrou o tapete voador tipo lençol que ele usou para se cobrir. — É você, na sua pira. E a pira já está queimando. Acima das chamas, vejo os contornos de uma grande catedral com asas que se estendem de seus telhados. Seus ouvidos zumbiam. Mas, ao mesmo tempo, um raio de esperança perfurou seu coração. — Essa é a Catedral Angelical Delamer – não conheço nenhuma outra catedral com uma silhueta assim. Somente os funerais do estado são realizados lá – não devemos ter falhado tanto para eu receber um funeral de estado. Você viu quem acendeu minha pira? Deixe ser Titus. Deixe ser ele.

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Kashkari balançou a cabeça. — Não me mostrou isso. Decepção aumentou em seu peito, dificultando sua respiração. — Nesse caso, não é necessário mencionar nada para... Não é necessário mencionar nada para o príncipe. Mas os olhos do príncipe já estavam abertos. E, a julgar pela sua expressão sombria, ele ouviu tudo. — Bem, — Amara disse, quebrando o silêncio tenso, — Já que você está acordado, Sua Alteza, você pode muito bem fazer uma desmaterialização cega e nos ajudar a encontrar uma saída dessas montanhas.

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Capítulo 20 Antes de partir, Amara novamente pediu tempo para orações. Enquanto ela e Kashkari oravam, Titus levou Fairfax para um lago de crateras que ele encontrou. O dia estava acabando e a água do lago estava fria e de um azul escuro. A imagem refletida das nuvens foi matizada com um rico tom de alaranjado pelo sol do oeste que flutuava sobre a sua superfície. Ao longo das bordas do lago cresciam plantas selvagens e arbustos, alguns ainda florescendo, adornando o interior da caldeira com guirlandas de creme e amarelo. — Que lugar lindo, — ela murmurou. Ele colocou o braço em torno de seus ombros. Ela parecia mais exausta do que ele já viu, seus olhos sombrios e melancólicos. — Em que você está pensando? — Ele não conseguia afastar a imagem da pira ardente, o corpo dela sem vida e imóvel cercado por chamas. — Eu estava pensando se a Sra. Hancock já esteve aqui. Além disso, se ela já viu qualquer coisa da Grã-Bretanha. — Provavelmente não. — Ano a ano, a Sra. Hancock esperou que Bane entrasse na casa da Sra. Dawlish, raramente se afastando da casa residente e provavelmente nunca fora dos limites da escola.

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— Estou feliz que desta vez eu deixei a Grã-Bretanha em um balão de ar quente – vi mais do país do que jamais vi. É uma bela ilha, especialmente as costas – elas me lembraram das terras ao norte do Domínio. Ela já estava recordando todas as pessoas e todos os lugares que conhecia e amava? Como se ouvisse seu pensamento, ela se virou para ele. — Não se preocupe. Vou continuar. — Então eu também. Ela tomou o rosto dele em suas mãos e beijou-o muito gentilmente. — Eu tive uma epifania sobre a felicidade, — ela murmurou. — A felicidade nunca está em pensar que cada beijo pode ser o seu último – está em se assegurar que haverá inúmeros mais que você não consiga se lembrar de somente um. — Se vale algo, isso é felicidade para mim, — ele disse. — Isto é o que eu sempre quis – que estivéssemos juntos no final. Ela olhou para ele por um longo momento e o beijou novamente. — Você sabe do que me arrependo? — O quê? — Meu antigo desdém pelas pétalas de rosa. No esquema maior das coisas, elas realmente não são tão ruins, afinal. Ele riu de sua admissão inesperada. — Se isso é tudo que você se arrepende, então sua vida foi bem vivida. — Espero que sim. — Ela suspirou. — Tudo bem, chega de indulgências filosóficas. Agora vamos ter a sua confissão, Sua Alteza. Por que você se recusou a me deixar ver a Bela adormecida quando lutamos com os dragões pela primeira vez? *** Do outro lado das montanhas, a terra estava caída e partida, como se alguém tivesse encolhido a Cordilheira Costeira para uma fração de seu tamanho e, em seguida, cópias foram espalhadas sobre as

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montanhas: o terreno rochoso era cheio de cortes, crateras e pedras inclinadas em ângulos tortos. Eles começaram a viajar após o pôr-do-sol, e ainda voavam com um olho no céu. Mas nenhum perseguidor apareceu no topo da Cordilheira Costeira, o que para Titus serviu para ressaltar o ponto de Kashkari: Bane estava mais do que feliz em esperar que eles fossem até ele. O progresso deles foi rápido, mas não tão rápido. Amara dirigiu o tapete que ela e Kashkari compartilhavam e marcou o ritmo para o grupo. Titus tinha a sensação de que ela não queria avançar em direção ao Palácio do Comandante a uma velocidade incisiva. Quem queria? Ninguém falou. Titus e Fairfax compartilhavam um tapete, mas eles estavam apenas de mãos dadas: tudo o que precisavam dizer já foi dito. Eles tinham declarações passadas de amor, lealdade ou mesmo esperança. Agora permanecia apenas o que eles poderiam realizar antes de suas mortes profetizadas. Titus os manteve na direção noroeste, parando de tempos em tempos para verificar os mapas e avaliar o progresso deles. Uma crescente forma estava baixa no céu, quando eles chegaram a um enorme escarpado vertical que os tapetes não podiam atravessar. Titus tentou uma desmaterialização cega – e não foi a lugar nenhum. — Nós devemos estar dentro da zona sem desmaterialização agora. A cento e sessenta quilômetros – ou menos – do Palácio do Comandante. Eles poderiam estar lá dentro de uma hora caso conseguissem voar sem interrupção. Titus sentiu uma fraqueza na ponta dos dedos: ele estava assustado, afinal de contas. Ele sempre esteve. Fairfax tentou impulsioná-los, mas a cerca de cento e oitenta e dois metros acima do solo, a força do ar que ela gerou foi suficiente para mantê-los pairando, mas não para ganhar mais altitude. E o topo das falésias ainda estava a mais de sessenta metros.

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— Devemos escalar ou dar a volta? — Amara perguntou, com a voz forte. — A falha geológica parece esticar o máximo que posso ver, — Kashkari disse, examinando a extensão das falésias com a ajuda de um feitiço de longa distância. — Você tem mais experiência com as escarpas, Durga Devi. O que você recomenda? Amara apertou os dentes sobre o lábio. — Eu digo para voarmos dois quilômetros em direção ao sudoeste – os penhascos nessa direção parecem mais baixos. Infelizmente, a impressão de menor altura acabou por ser uma ilusão de perspectiva. Amara sinalizou para que parassem. — Nós passamos por uma protuberância. Pode ser o melhor que podemos fazer sob as circunstâncias. A protuberância era apenas um ponto de apoio para um. Amara tirou uma longa corda de caça de sua bolsa. Todos contribuíram com as cordas e cabos que carregavam. A corda de caça, puxando todas as cordas juntas, disparou para o topo do penhasco e desapareceu sobre ele. O fim da corda foi amarrado a Amara, que usou a tração da corda de caça para subir o penhasco, tão graciosa quanto um acrobata. Titus e Fairfax, ambos ainda em seu tapete, trocaram um olhar entre temor e admiração. — Provavelmente machucarei meu rosto, — Titus disse. — Não, não isso. Essa é a minha parte favorita de você. — Sério? Você me disse outra coisa completamente diferente no farol. Era a primeira vez que ambos mencionavam a noite juntos. Ela olhou para ele. Mas então, a corda de caça voltou e Kashkari se preparou para sua ascensão, então eles tiveram que se posicionar debaixo dele e prestar atenção, caso ele caísse. Kashkari chegou ao topo sem percalço. Enquanto esperavam que a corda voltasse, Fairfax levantou e sussurrou: — Quando eu disse aquilo, era só para te deixar feliz antes de você morrer.

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Ele sussurrou: — Estou tocado. Você disse muito, muito alto. Você deve estar realmente preocupada com minha felicidade. Desta vez seus olhos se estreitaram. Brevemente, ele se perguntou se não haveria um relâmpago no futuro dele. Mas ela só pegou a corda e subiu o penhasco, saindo-se muito bem. Titus não esmagou seu rosto durante sua subida no precipício, mas uma vez que pousou, ele lutou para libertar a corda de sua pessoa. A corda continuou puxando-o em um ritmo acelerado. Ele perdeu o equilíbrio e foi arrastado. Amara sibilou para parar a corda de caça. Fairfax e Kashkari se atiraram nele, então ele não entraria em um dos grandes pedregulhos que havia no topo da escarpa. Ele tentou freneticamente todo o feitiço de desvinculação em seu repertório. O nó escorregou de repente, deixando-o a poucos metros de uma rocha, com Fairfax e Kashkari cada um pendurado em uma de suas botas. Lentamente, sentaram-se ofegantes. Os joelhos de suas calças estavam manchados de sangue: as calças não rasgaram – os tecidos magos eram de materiais fortes – mas a pele era muito mais frágil. Fairfax já estava olhando para seus joelhos raspados quando Amara finalmente conseguiu controlar a corda de caça. Ela veio e ficou ao lado deles, sua respiração tão irregular quanto a deles. — Desculpeme por isso. — O que você pediu que a corda de caça perseguisse? — Fairfax perguntou. Ela já limpava seus arranhões e passava um elixir regenerativo sobre eles. Ele teria dito a ela para guardar o elixir para feridas mais significativas – mas não era como se eles tivessem muito tempo para acumular feridas mais graves. — Eu disse para encontrar uma cobra, — Amara respondeu. — Talvez uma estivesse por perto. As cordas de caça aceleram quando estão perto de uma presa. — Espero que não tenhamos perturbado acidentalmente uma serpente gigante, — Kashkari disse.

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Ninguém comentou. Titus pode não acreditar na existência de serpentes gigantes, mas ele não quis comentar sobre ela de uma forma ou de outra. Ele não queria dizer nada. Ninguém sequer sussurrou, pois em cima da escarpa suas vozes ecoavam, como uma perturbação de que ele quase podia ver no ar limpo e frio. Fairfax terminou com seus cuidados. Ela guardou seus remédios e fez um gesto para que cada um entregasse seus odres e cantis para que ela enchesse. Ninguém se opôs a prolongar a parada, mesmo que seus recipientes ainda estivessem quase cheios – as condições não eram do tipo que exigia hidratação frequente. Titus pensou ansiosamente na saliência acima do penhasco. O que ele não daria para estar tão longe de Bane novamente. Ele se levantou, deu alguns passos cautelosos e pediu um feitiço de longa distância. A lua surgiu. A terra pela qual voaram, uma extensão escura e proibida se desenrolando ao pé das falésias, era pouco visível. De vez em quando, um afloramento irregular de obsidiana brilhava a luz das estrelas. E se ele esticasse os olhos podia distinguir barrancos e fissuras, como se alguém tivesse cortado a terra com uma espada enorme. Não era de se admirar que o interior de Atlantis permanecesse quase tão vazio quanto o dia em que os magos se estabeleceram pela primeira vez na ilha recém-nascida, quase arrefecido pelo paradoxo de sua criação. Se estivessem a pé, eles ainda estariam presos na Cordilheira Costeira, tentando encontrar uma saída de uma terra sem trajeto. Mas, tão assustador quanto ele achou o terreno atrás dele, foi a paisagem ainda à frente que o encheu de temor. Quinze quilômetros ou mais a noroeste, havia outra escarpa, maior do que aquela eles acabaram de escalar. Grande parte da superfície era tão suave como a cobertura de um bolo, mas, mais perto de sua base, as falésias pareciam estar cheias de manchas mais escuras. Elas eram cavernas de algum tipo? Tocas para serpentes gigantes? O desejo de retroceder, esconder-se para sempre

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entre os penhascos difíceis da Cordilheira Costeira, ficou cada vez mais potente. Fairfax colocou uma mão no seu cotovelo e deu-lhe o odre de água. Eles ficaram juntos por algum tempo. Então, sem palavras, eles se prepararam para continuar. Eles estavam no ar apenas segundos antes dela se inclinar para o lado do tapete. — Espera! O que é aquilo? Você viu? Titus virou o tapete em torno para olhar melhor. — Aquilo são... Ossos? — Ela sussurrou. Eram ossos de fato, espalhados por uma área relativamente uniforme, talvez a noventa metros ou mais da borda dos penhascos, escondidos de suas vistas anteriormente por vários grandes pedregulhos. Os ossos estavam espalhados, mas alguns pareciam estar ainda presos, não como parte de um esqueleto animal ou humano, mas como se tivessem sido colocados com argamassa. — Você acha que eles estavam em uma pilha mais cedo, esses ossos, e que a corda de caça os derrubou? — Fairfax perguntou a Amara. Amara engoliu. — É possível. Uma pilha de ossos. O que a Sra. Hancock disse sobre isso? Mas às vezes os caminhantes se deparam com pilhas de ossos daqueles que foram atacados por serpentes gigantes – geralmente como marcadores do território. Kashkari levantou alguns dos ossos com um feitiço de levitação. — Quantos anos eles têm? Ou, em vez disso, quão frescos? — Bastante degradados, — Amara julgou. — Eu diria que eles estiveram nos elementos por vários anos, pelo menos. — Vamos ter cuidado, — Kashkari disse. — As serpentes gigantes não devem ser um obstáculo se permanecermos no ar. Mas ele, como Titus, estava olhando o grande precipício que se aproximava do caminho, e as aberturas que pareciam um tamanho perfeito para serpentes gigantes. Fairfax bateu no ombro de Titus. — Eu ouço algo.

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Visões de serpentes gigantes pulavam em sua cabeça. Mas o som era apenas o de bater de asas – cavaleiros em wyverns faziam patrulha. Eles pousaram apressadamente e se esconderam nas rachaduras entre as rochas, as varinhas à disposição. Os cavaleiros do wyvern, no entanto, passaram sobrevoando, descendo em direção às terras baixas. Era a primeira vez que eles viram cavaleiros em wyverns desde a chegada à Atlantis propriamente dita. Mais um sinal de que eles certamente estavam se aproximando do Palácio do Comandante. Titus olhou para Fairfax. Se ela pensava em seu corpo sem vida na cripta de Bane, ela não demonstrou. Amara, ao lado dela, mostrou mais tensão, seus dedos cavando no pedregulho. Mas depois que os cavaleiros no Wyvern desapareceram de vista, foi Amara quem disse: — Vamos lá. O fim está perto. *** Titus manteve um olho no chão para pilhas de ossos. Ele não viu mais delas, mas isso não o confortava: se as pilhas marcavam os limites do território de uma serpente gigante, isso significava que eles estavam agora dentro do que a besta considerava seu domínio privado? O outro olho ele manteve no céu. Eles voavam mais alto do que ele gostaria – o medo de um ataque inesperado vindo de baixo se manifestando. Esta maior altitude tornava-os mais visíveis de todos os ângulos. Ao ver uma equipe de cavaleiros wyvern distantes ao nordeste, eles pousaram e se esconderam. Fairfax estabeleceu um círculo de som. — Lembro de você dizendo, Kashkari, que na primeira parte de seu sonho profético a meu respeito, você estava em um wyvern? — Isso é correto, — Kashkari respondeu, com um pouco de relutância. — Você já pensou em como poderia obter um wyvern? Pare, Titus queria dizer. Não o ajude a transformar qualquer parte do sonho em realidade.

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Mas ela estava certa. Se todos tivessem que sacrificar tudo para levar Kashkari para dentro do Palácio do Comandante, então era o que eles deveriam fazer. — Eu tenho pensado, — Kashkari disse, — Mas não vejo como – ainda não, em todo caso. Eles estão voando em grupos maiores do que eu esperava. E tenho certeza de que no momento em que atacarmos um grupo os pilotos avisarão todos os outros. Durante os próximos dez minutos, eles discutiram diversas possibilidades. Mas ninguém poderia encontrar um cenário plausível, onde os benefícios de conquistar um wyvern superavam as desvantagens esmagadoras. Após voltarem a sobrevoar sobre os tapetes, eles não avançaram quatro quilômetros, quando Amara disse: — Eu os ouço novamente. Atrás de nós. Não havia esconderijos perfeitos imediatamente próximos. Eles se esconderam em uma fissura no fundo e esperaram que a escuridão da noite os protegesse de olhos hostis. Um esquadrão de wyverns disparou das terras baixas. Eles circularam. E rodearam – logo acima, onde Titus achava que a pilha de ossos deveria estar. — Eles sabem que estamos aqui, — Kashkari disse. Eles discutiram se voltariam a voar ou prosseguiriam a pé. A questão foi resolvida quando Amara praguejou. — Eles estão soltando cordas de caça. Quando eles levantaram para o ar novamente, Titus e Fairfax se apertaram mutuamente. No próximo tapete, Amara e Kashkari fizeram o mesmo. O fim estava próximo. *** A próxima escarpa se aproximou muito cedo. Eles tentaram encontrar um caminho que não exigia que eles deixassem a proteção dos tapetes. No entanto, acima das aberturas que levavam a possíveis tocas

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de serpentes gigantes, os penhascos eram tão uniformes e verticais quanto uma parede, com apenas um ponto de apoio para uma cabra, e não para um mago crescido. E eles não ousavam usar uma corda de caça de novo, por medo de perturbar algo muito pior do que uma pilha de ossos. — Nós temos que avançar de alguma forma, — Amara disse, com o rosto obstinado. — Não há como voltar, e não podemos... Kashkari agarrou seu pulso e apontou para baixo. Das sombras na base dos penhascos, quase que diretamente abaixo deles, algo estava surgindo. Sua cabeça era do tamanho de um ônibus, e seu corpo ainda mais espesso. À distância, além do topo dos penhascos, veio o som das asas de dragão. Era o que as serpentes gigantes comiam entre longos períodos de inatividade? Wyverns – e cavaleiros em wyvern? O som de asas de dragão ficou mais alto. A serpente gigante abaixo parou. Titus a encarou, incapaz de desviar o olhar: a cabeça bulbosa, a quietude, o brilho vagamente metálico das escamas. Ele se preparou para o surgimento de uma enorme língua bifurcada. Nunca veio. Ele franziu a testa. O castelo da Montanha Labyrinthine abrigava uma pequena coleção de répteis locais. E cada vez que ele via as cobras, elas estavam sempre mexendo as línguas no ar. Ele olhou em volta, na esperança de não encontrar mais serpentes gigantes. Mas o que eram aquelas coisas deslizando silenciosamente no topo do penhasco? Serpentes gigantes jovens, atraídas pelo perfume de uma refeição agradável e fresca? Seu coração parou. Não, eram longas garras mecânicas, muito maiores e mais longas do que aquelas que se estendiam dos carros blindados perseguindo Fairfax e Kashkari em Eton, mas essencialmente exatamente a mesma estrutura. E saíram da serpente gigante. O que não era serpente, mas uma engenharia mecânica de Atlantis. É claro que as verdadeiras serpentes gigantes já estavam extintas. Claro que Bane teria uma falsificação. É claro que ele desejaria

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que os Atlantes acreditassem que as serpentes gigantes ainda existiam: tornava muito mais fácil não apenas manter os civis longe de sua fortaleza, mas explicar um desaparecimento ocasional, como aquele da irmã da Sra. Hancock, todos aqueles anos atrás. — Fairfax! Titus mal conseguiu espremer a palavra ao longo de sua garganta. Mas ela havia visto e entendido. Dois pedregulhos grandes voaram da planície abaixo e derrubaram as garras diretamente em seus pulsos, quebrando as garras completamente. As garras rasparam o penhasco enquanto caíam e encontraram a pedra dura da planície abaixo com um clamor enorme. — Nós temos que nos esconder, — Fairfax disse; sua voz tremendo. Amara já direcionava seu tapete mais para baixo. — Sigam-me. Ela os conduziu a uma das aberturas na superfície da escarpa. Era facilmente o pior esconderijo possível, exceto que a única outra opção era permanecer em espaço aberto – uma escolha inaceitável. Amara ouviu na boca da caverna. — Mais do que apenas os wyverns estão chegando. Posso ouvir bestas maiores. Titus não conseguia ouvir nada sobre o frenético golpe de seu próprio coração. Ele não desejava se encontrar com serpentes gigantes. Mas treinou no Crucible para lutar contra monstros parecidos em toda sua vida. A ferocidade de uma fera era sempre, sempre preferível à astúcia e à traição de qualquer coisa inventada por Bane. — Há uma parede traseira para esta caverna? — Kashkari perguntou. — Acho que não, — Fairfax disse, tendo a melhor visão noturna. — Não até certa distância, pelo menos. Uma coisa boa, pois o som inconfundível de centenas de cordas de caça deslizantes subiu para os ouvidos de Titus. — Podemos fugir das cordas de caça? — Amara perguntou.

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O que significava ir mais fundo na caverna, no labirinto de túneis conectados que as verdadeiras serpentes gigantes do passado deixaram para trás na base do penhasco. — Talvez não, — Fairfax disse. — Mas posso queimá-las caso cheguem muito perto. Desde que eles mesmos não corressem para um beco sem saída. Havia tantos perigos de lutar desesperadamente por um caminho pelo qual eles não sabiam nada... Kashkari praguejou. — Alguma coisa vem do interior. Fairfax, sempre rápida em reagir, derrubou pedras suficientes para bloquear a passagem. Eles mal tiveram tempo suficiente para se afastar, para evitar os pedregulhos voadores trazidos pelo teto da passagem cedendo. Eles estavam encurralados; sem saída, em um lugar escuro, perigoso e completamente desconhecido. A primeira onda de cordas de caça subiu os penhascos. Em vez do fogo, Fairfax pediu uma corrente de ar para soprá-los. Mas o que quer que fizesse agora estava apenas ganhando tempo. Lá fora os atlantes conversavam, aconselhando para terem cuidado enquanto cliffwalkers se posicionavam no lugar. Titus se aproximou tanto da abertura quanto ele ousava e viu que os cliffwalkers eram objetos que se assemelhavam a carros blindados, mas que tinham suportes que perfuravam a rocha para mantê-los ancorados na superfície vertical – eles foram carregados pelos animais maiores que Amara ouviu? — Volte aqui! — Fairfax grunhiu. Titus fez uma retirada apressada. Fairfax fechou a entrada da frente para a caverna. Agora eles estavam bem e verdadeiramente presos. De um lado, os cliffwalkers limpavam ruidosamente os escombros bloqueando a entrada. No outro extremo da caverna, algo invisível, seja a mesma serpente gigante falsa que viram anteriormente ou outra coisa diferente, a julgar pelos cortes metálicos que fazia, batia repetidamente contra as rochas em seu caminho.

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Eles tinham no máximo um minuto ou dois antes que suas defesas fossem violadas. Uma bola de chamas surgiu, a luz do fogo iluminando os olhos decididos, mas determinados de Fairfax. — Parece que este é o fim da estrada para mim. Eu sei que Titus não pode se matar e, provavelmente nem Kashkari. Você me fará um favor, Durga Devi, vai se certificar de que eu não seja capturada? Não! Não! Gritou uma voz dentro da cabeça de Titus. Mas ele apenas ficou com a mão apertada inutilmente em sua varinha. — Sim, eu farei tal favor, — Amara disse, sua voz rouca, mas com uma nota de triunfo. — Apenas não o que você pede. Ela colocou a mão em Fairfax. Um momento depois, duas Fairfaxes ficaram no centro da caverna. Aquela que era a Amara real afastou seu casaco grosso, empurrou a manga, e revelou um bracelete intrincado formado por rubis. E no seu braço esquerdo você usava um bracelete de filigrana dourada com rubis, Kashkari havia dito no farol ao descrever Fairfax em seu sonho profético. Mas eu não uso joias, Fairfax havia protestado. E eu não tenho nenhuma. E Amara estava lá, sentada calmamente entre eles. Ela sentiu a pressão metálica da armadilha contra sua pele? O peso insustentável de um futuro escrito em pedra? Titus tropeçou um passo para trás, choque batendo como um martelo na parte de trás da cabeça dele. A verdadeira Fairfax ofegou. — Você é... Você é mutável. Kashkari apenas fez sons pequenos e sufocados, como se tivesse sido mortalmente ferido. Aquela que ele viu morta em seus sonhos não era Fairfax, mas Amara na forma de Fairfax. — Vocês se esconderão no Crucible, — Amara ordenou, um farol de calma e autoridade no monte de escombros que a caverna se tornara, quando tudo que eles acreditaram sobre o futuro era virado de cabeça para baixo. — Eu sei que pode ser instável lá, mas vocês podem lidar com

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isso por um curto período de tempo. Eu vou garantir que o livro esteja disfarçado de pedra. — Eu irei com você, — Titus se ouviu dizer. — O quê? — Fairfax exclamou. Ele se virou para ela, morrendo de medo, ainda estranhamente exaltado de que ele era o único a se dirigir para sua desgraça, e não aquela que ele amava. — Eles sabem que estou aqui. Eles continuarão procurando se não me encontrarem. Mas se me capturarem, posso convencê-los de que todos morreram em Lucidias. Se acreditarem em mim, eles serão mais propensos a ser relapsos. Uma chance melhor para vocês dois chegarem ao Palácio do Comandante sem serem detectados. Além disso, Durga Devi pode parecer você agora, mas ela não soa como você – e Bane sabe como você é. Vou falar por nós dois e atrasar esse momento de descoberta o maior tempo possível. — Mas... — Não perca tempo discutindo. Foi-nos dada uma oportunidade. Use-a. — Ele trocou suas varinhas – ele não queria que a varinha que pertenceu tanto a Hesperia como a sua mãe caísse na posse de Bane. Então a beijou nos lábios e sacudiu o quase catatônico Kashkari. — Você também, Kashkari. Vá. Amara beijou seu cunhado na bochecha. — Não pense no que você deveria ter feito de maneira diferente. O bracelete esteve no meu braço desde o verão. Tudo estava destinado a ser assim15. Kashkari ainda permaneceu congelado no lugar, tremendo. Fairfax teve que pegar a mão dele e colocá-la no Crucible. Eles desapareceram lá dentro. Titus mudou a aparência do livro, depois o escondeu o melhor que pôde. A prática de usar braceletes da verdade remonta há quase um milênio. Uma vez que o casal de amantes se compromete um com o outro e colocam os braceletes da verdade, eles não podem ser retirados a menos que uma ou ambas as partes morram. Essa irreversibilidade é provavelmente a razão pela qual os braceletes da verdade nunca se tornaram populares. Mesmo o mais sincero casal de amantes poderiam se afastar ao longo do tempo. O que, então, fariam sobre este símbolo não mais significativo, que não pode ser removido, a menos que um esteja disposto a desistir de um braço também no processo? – Da Enciclopédia da Alfândega Cultural 15

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— Você se importaria se eu a atordoasse? — Ele disse para Amara, sua voz tremendo com medo e gratidão. — Desta forma, eu poderia fingir que eu tentei fazer uma maldição de execução – faria sentido para Bane que eu preferia te matar a deixá-lo ter você. E para que a voz dela, que permanece igual, não a entregasse. Amara assentiu. Ele sabia que era Amara. Ele sabia que a verdadeira Fairfax estava segura por enquanto, dentro do Crucible. Mas eram os olhos de Fairfax olhando para ele, os olhos arregalados de medo, e também decididos ao mesmo tempo. Ele a abraçou forte. — Se eu não tiver a oportunidade de dizer isso novamente mais tarde, seja o que for que aconteça, estaremos para sempre em dívida. Ela sorriu estranhamente. — Então eu vivi o tempo suficiente para ser abraçada pelo Mestre do Domínio. Que a Sorte proteja seus passos, Sua Alteza. Ele não sabia exatamente o que ela queria dizer, mas não havia tempo para perguntar. Ele apontou a varinha para ela. Ela caiu no chão, assim que os cliffwalkers abriram a entrada da caverna.

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Capítulo 21 No prado diante do castelo da Bela Adormecida, o caos reinava: criaturas de todos os tipos brigando, dragões vomitando fogo, espadas e clavas enfeitiçadas voando, enquanto Skytower subia além das colinas. Um ogro avançava para eles, apenas para ter sua cabeça desconectada do corpo assim que Kashkari ergueu a varinha. Um ciclope pertencente aos Guardiões da Torre Toro encontrou um destino semelhante. Iolanthe nunca viu Kashkari com tanta raiva. Ela deixou a morte para ele e se ocupou abrindo a barraca que trouxera do laboratório. Ela cobriu a tenda com uma camada de grama para protegê-la de instrumentos afiados e da visão de criaturas saqueadoras. Quando o abrigo estava pronto, ela arrastou Kashkari para dentro, sibilando ao ver o sangue dele em suas calças. Apressadamente, ela limpou e enfaixou a ferida. — Você não tem permissão para ser tão descuidado, Mohandas Kashkari. Você entende isso, caramba? Ele descartou sua varinha e escondeu o rosto molhado de lágrimas nas mãos. Ela se ajoelhou ao lado dele. — Eu sinto muito. Eu sinto muito.

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— Eu a mandei para a própria morte. Contei tudo sobre o sonho, até mesmo descrevendo o bracelete em detalhes. Deve ter sido assim que ela se reconheceu. Por isso ela se casou com meu irmão e partiu para nos encontrar no mesmo dia, não por causa do massacre no reino de Kalahari, mas por causa do meu sonho. Iolanthe lembrou-se agora do que Amara havia dito naquela manhã no farol, sobre a firme crença de que os eventos que foram previstos não eram tanto inevitáveis ou imparáveis. A oração pela coragem que ela cantou – foi uma oração para si mesma, que ela deveria ser suficientemente corajosa quando chegasse a hora. E sua resposta calma e sincera há apenas algumas horas, no topo da saliência de pedra, quando Iolanthe perguntou por que ela veio para Atlantis. Eu vim ajudá-la. Eu vim ajudá-la. E ela ajudou. Ela salvou Iolanthe e, nesse processo, salvou todos. Mas a que custo para ela mesma? A que custo para quem a amava? Iolanthe abraçou Kashkari e chorou também; por ele, por Amara, pelo marido que ela deixou para trás. Kashkari baixou a cabeça no ombro dela. — Eu sonhei com ela pela primeira vez quando eu tinha onze anos, — ele disse, como que para si mesmo. — No meu sonho era de noite, havia tochas por toda parte, e ela dançava. Ela tinha uma saia verde esmeralda, e um xale prateado sobre a saia, cheio de pérolas tão brilhantes que pareciam como pingos de chuva caindo cada vez que ela girava. Ela atravessou a multidão, sorrindo e rindo, abraçando todas as mulheres e beijando todos os bebês – nunca vi ninguém parecer tão feliz. Isso seria na noite de sua festa de noivado. A dança durou até tarde da noite – e meu irmão nunca mais tirou os olhos dela. — Sua voz falhou. — Agora ele nunca a verá novamente. Quando criança, um mutável pode imitar a aparência de outro e, em seguida, retomar a sua própria sem qualquer problema. Mas, como adulto, se um mutável mudar sua aparência, permanece alterado. Na

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vida e em morte, Amara, de agora em diante, sempre se pareceria exatamente com Iolanthe. Nenhum

deles

veria

seu

rosto

extraordinariamente

belo

novamente. Nunca. Iolanthe fechou os olhos e se imaginou na festa de noivado de Amara e Vasudev: a luz do fogo, a música, os pés pisando forte dos dançarinos, a pitada de perfume e especiarias no ar. E Amara, cheia de amor e entusiasmo pela vida, felizmente ignorante da profecia mortal que a aguardava. O desespero a inundou – o destino era o mestre mais cruel. Todo condenado estava condenado. Até aqueles que simplesmente foram varridos pela maré eram rebocados com mais frequência do que não. Quando abriu os olhos novamente, o interior suave da tenda a cumprimentou, iluminada pela luz mágica que ela convocara; tudo calmo e melancólico. Não havia alegria, nem música, nem celebração em seus ouvidos, apenas o barulho do pandemônio lá fora. Ela ergueu a varinha, querendo fazer algo e sem saber o que. Só então ela notou que não estava segurando uma simples varinha de reposição. Vagamente, ela lembrou que Titus tirou a dela e deu-lhe a varinha dele em vez disso. Ela nunca havia visto essa varinha, feita de chifre de unicórnio. Foram gravados os símbolos dos quatro elementos, junto com as palavras: Dum spiro, spero. Enquanto eu respiro, tenho esperança. Ela viu essas palavras no dia em que convocou um relâmpago. E agora aqui estavam elas novamente, perto do final. Uma inspiração divina ou uma piada cósmica? Não importava agora. Com ou sem esperança, eles ainda tinham trabalho a fazer. — Vamos, — ela disse, dando um aperto ao ombro de Kashkari. — Você não acredita na inevitabilidade de suas visões. Vamos. Se pudermos chegar logo ao Palácio do Comandante, talvez isso termine de maneira diferente.

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Suas palavras eram fervorosas, mas vazias por toda a urgência. Talvez no momento de seu sonho profético, o futuro ainda não tenha se endurecido. Mas agora... Kashkari permitiu que ela limpasse suas lágrimas. — Você está certa. Vamos fazer o que pudermos. Ele parecia tão vazio quanto ela, mas seus olhos ardiam, desesperados com um fio de esperança. Ela pegou as mãos dele, desejando com todo o coração que a senha de saída fosse qualquer outra coisa, além de... E eles viveram felizes para sempre. *** Dezenas de cordas de caça correram para a caverna e amarraram Titus e Amara fortemente. Os magos que carregavam escudos reais invadiram a caverna e despojaram Titus da varinha de reposição que estivera na mão de Fairfax há pouco tempo. Em seguida, eles não só vendaram os olhos dele, mas também o amordaçaram – presumivelmente Bane não queria que ele contasse a mais ninguém sobre a inclinação do Senhor Comandante Supremo pela magia sacrificial. Então ele foi colocado sob uma cúpula de contenção temporária, para garantir que ele não causaria nenhum problema para os soldados atlantes. Ele estava com medo de que eles também bloqueassem seus ouvidos, mas eles não pareciam se importar que ele ainda pudesse ouvir. — Ela está inconsciente, mas seus sinais vitais são fortes, — relatou alguém. — Estamos preparando o projetor astral, senhor. Um projetor astral lançaria a imagem – e a fala também, se fosse capaz disso – para outro lugar. Era uma peça de magia atlante que ninguém mais conseguira duplicar. A audiência no outro local estava aparentemente satisfeita, pois os próximos comandos que surgiram era que o projetor astral fosse desmontado e empacotado, e para a maga elementar ser transferida com muito cuidado. A mordaça na boca dela foi arrancada. — Onde está o livro?

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— Na bolsa dela, sob um feitiço de disfarce. Amara carregava um livro de orações com ela. Titus só podia esperar que os atlantes acreditassem em suas respostas. — Desfaça-o. — O feitiço é o dela. Eu não sei a contrassenha. — Onde estão os outros que vieram com vocês? — Eles morreram em Lucidias. A mordaça foi recolocada em sua boca. Algo como um som metálico se fechou em torno de seu peito. — Tudo bem. Vamos rapidamente, — ordenou o mesmo soldado que havia interrogado Titus. O corpo de Titus foi levantado. O objeto metálico provavelmente estava preso a um cliffwalker. Brevemente, ele sentiu o frio do ar livre antes de voltar a pousar, a pressão ao redor de seu peito diminuindo quando ele foi liberado do aperto metálico. Uma porta se fechou. Poucos segundos depois, o cliffwalker estava no ar. Ele verificou ao redor de sua cela – quase certamente uma cela de contenção – mas Amara não estava lá. Um debate explodiu em sua cabeça. Ele deveria tentar conscientemente lembrar-se de que essa mulher que parecia exatamente com Fairfax era outra pessoa, ou seria mais seguro para todos se ele parasse de recordar isso e deixasse seus instintos assumir? O sonho profético de Kashkari não incluiu a verdadeira Fairfax. O que teria acontecido com ela no momento em que ele, Amara e Kashkari estivessem juntos novamente? Ela estaria apenas alguns passos atrás de Kashkari ou... Saber que Amara era a única no sonho de Kashkari não eliminava danos à Fairfax. Na verdade, tirava a única garantia de que ela não seria usada na magia sacrificial. Agora não havia como dizer o que aconteceria com ela. Tudo era possível, incluindo o pior fracasso de todos. Muito cedo, a porta da cela de contenção se abriu e ele foi puxado. Um wyvern rugiu incomodamente perto. Mas nenhuma chama escaldou sua pele e nenhuma garra se enganchou em sua pessoa – apenas suas narinas foram assaltadas por um fedor sulfuroso.

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Por um momento, sua imaginação ficou selvagem. Atlantis era a mais geologicamente ativa de todos os reinos magos, não era? Quem deveria dizer que não havia um vulcão próximo? Bane pode acreditar que ele estivesse morto, mas ele apenas dormia, esperando alguém com o poder de despertá-lo. E isso não seria um espetáculo digno para os Anjos, ver o Palácio do Comandante engolido pela lava, engolido pela terra em si? Mas não, o cheiro de enxofre havia sido mais forte no deserto, quando ele enfrentou o batalhão de wyverns. Se algum vulcão dormisse nas proximidades, dormia profundamente. Ele seguiu um longo lance de escadas, e então o fraco odor de ovos podres se perdeu completamente. O ar ficou pesado – o aroma vivo e salgado do mar. Ele se perguntou se estava imaginando coisas. Mas, à medida que avançava, seus passos e os de uma falange de guardas ecoavam contra tetos e paredes distantes, o aroma só ficou mais visível. Bane cresceu na costa. Quando saiu de Lucidias, ele se instalou em uma costa diferente. Mas o Palácio do Comandante estava longe do mar. E aquele que não podia sair, aquele que permanecia escondido, enterrado nas entranhas desta fortaleza, perdeu o aroma que amava, o cheiro dos dias em que ele estava inteiro e livre. Era terrível lembrar que Bane ainda era humano – isso o tornava apenas mais monstruoso. O que a Sra. Hancock disse? Que ele usou seu primeiro ato de magia sacrificial para se curar de uma doença fatal. Então ele deveria se lembrar de seu medo e angústia diante dessa morte iminente. E, no entanto, ele pouco se importava se causava tal medo e angústia em uma escala industrial. A humanidade dele se estendia apenas para ele mesmo. O timbre dos passos mudou. As botas de Titus batiam contra uma pedra dura e lisa. Mas agora ele caminhava por um material diferente, que sentia e soava quase como... Madeira. Eles pararam. A mordaça e a venda nos olhos de Titus foram removidas. Ele estava em outra cela de contenção, transparente, que lhe permitiu ver que o chão da câmara em que se encontrava era, de fato,

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uma madeira fina e de cor dourada, o ébano da chuva dos Ponentes. E nas paredes, em vez de pinturas, murais ou tapeçarias, pendiam enormes painéis de madeira esculpida. O teto artesanal também estava equipado com uma rede de madeira fina. O que a Sra. Hancock disse? Nunca tivemos uma grande quantidade de bosques em Atlantis, a maior parte da floresta original já havia sido cortada, e importar madeira para pira estava além dos meios de todos, exceto uns poucos. Para Bane, não era mármore que simbolizava o luxo, mas a madeira, uma raridade dispendiosa na sua juventude. Titus esqueceu tudo sobre madeira quando viu que não muito longe dele, Fairfax estava deitada em outra cela de confinamento. Esta não é... Ele afastou o lembrete de sua mente consciente – os instintos assumiriam. Ele correu para o lado da cela de contenção que estava a poucos metros mais perto dela. — Fairfax. Fairfax! Você está bem? Você pode me ouvir? — E o que aconteceu com Fairfax, se eu puder perguntar? Por uma fração de segundo, Titus pensou que era West, o jogador de cricket de Eton que foi sequestrado pelo Bane, parado diante dele. Mas, apesar do homem ter uma semelhança com o West, ele tinha pelo menos duas vezes a idade de West. O corpo atual de Bane, então. — Não é como se você ficasse sem palavras, Sua Alteza, — Bane disse. — Seja gentil e responda a minha pergunta. Titus olhou para a menina inconsciente na outra cela de contenção. O principal impulso da mentira seria o mesmo, mas ele tinha uma decisão de dois segundos para tomar. Ele seria o oportunista de sangue frio ou o amante perturbado? — Ela me implorou para matá-la para que não caísse em suas mãos. Mas eu... — sua voz tremia ao vê-la à mercê de seu inimigo. — Mas não consegui.

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— A arrogância dos jovens. Pensar que você poderia me impedir e fugir com isso. — Bane sacudiu a cabeça, sua expressão quase simpática. — E onde estão os seus outros amigos, a propósito? — Eles nunca deixaram Lucidias – os três juntos impulsionaram o feitiço de último mago. — Eles valorizavam muito pouco suas vidas. — Melhor do que se apegar a vida por qualquer meio sujo. — Você, príncipe, está cheio da santidade dos jovens, — Bane respondeu. — Espero que quando o ancião Senhor Comandante Supremo dormir à noite ele não sonhe com nada além de sua própria morte agonizante – repetidamente. Titus queria atingir um nervo. Mas a cintilação de raiva nos olhos do Bane sugeriu que ele poderia ter ido longe demais – e foi muito preciso. Titus poderia ter se chutado. Quanto mais ele mantivesse Bane falando com ele, mais tempo Bane ficaria longe de Fairfax. Mas agora, Bane se aproximou da cela de contenção de Fairfax, que protegia os que estavam no lado de fora daqueles de dentro, mas não vice-versa. — Revivisce forte, — Bane disse. Ela não mostrou nenhum sinal de recuperação da consciência. — Revivisce omnino. O feitiço revivendo deveria ter sido forte o suficiente para combater o feitiço de inconsciência que Titus usou, mas Fairfax permaneceu imóvel, nenhuma contração, nem mesmo uma vibração dos cílios. — Muito desconsiderado de sua parte, Sua Alteza, — Bane disse. — Para o que eu planejei para ela, seria muito melhor com ela acordada e alerta. Titus sentiu como se estivesse preso em um caixão cravejado com espinhos por dentro. — Pensei que tudo que você precisasse era que seu coração continuasse batendo. — É verdade, mas um sacrifício torna-se muito mais poderoso quando ela está completamente ciente da mudança – isto é, até o

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momento em que os conteúdos de seu crânio são extraídos. Eu tenho um feitiço muito bom, que mantém o coração batendo durante tudo isso, até que ele também seja necessário no último passo. Nos horrores que Bane descreveu tão casualmente, a garganta de Titus se fechou. Suas mãos ainda apertadas em punhos, tremendo. — Você a ama, eu vejo. Então você deve estar lá para testemunhar seus últimos momentos nesta terra. É o mínimo que você poderia fazer por ela. O mínimo que eu poderia fazer por um par tão dedicado de jovens amantes. — Não! — Ele bateu o ombro contra a parede da cela de contenção. Era suave o suficiente para absorver o impacto de seu peso, mas firme o suficiente para não se mover uma polegada. — Não! Você não tocará nela. — E como você vai me parar, sem a ajuda do seu livro mágico? Você está no meu reino agora, Titus, de Elberon. Não há surpresas que você possa exercer contra mim. — Ela vai derrotar você. —

Eu

construí

essas

celas

de

contenção

para

serem

suficientemente poderosas para mim. Você pode dizer muitas coisas sobre ela, mas não pode dizer que ela é uma maga elementar mais poderosa do que eu. Bane se virou para Fairfax e apontou a varinha. — Fulmen doloris16. Titus se encolheu. O feitiço era poderoso o suficiente para fazer a morte se sentar e gritar de dor. Ela não se moveu nem fez um único som. Ele não podia acreditar nisso. Será que ele inadvertidamente provocou um dano permanente? — Quando você faz uma maldição de execução, você faz uma confusão, jovem, — Bane murmurou. Ele girou, sua varinha apontou para Titus, e essa conflagração de dor o engoliu, como se cada polegada de sua pele fosse incendiada. Ele gritou.

16 Dor fulminante.

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— Hummm, — Bane disse. — Ela realmente é insensata. Em alguns minutos, se ela ainda não acordar, vou colocar uma chama de verdade em sua pessoa e ver se isso não ajuda. Titus tremia. A dor que o dominou desapareceu, mas sua memória ainda queimava. — Agora, uma vez que a querida Fairfax se recusa a cooperar, teremos uma conversa, você e eu, Sua Alteza. Havia algo extraordinariamente presunçoso no tom de voz de Bane. Medo se arrastou sobre Titus como pés de uma centopeia. — Deixe-me perguntar uma coisa. Por que Gaia Archimedes me traiu? Levou um momento para Titus reconhecer o nome verdadeiro da Sra. Hancock. — Porque você matou a irmã dela para prolongar sua própria vida. — E como ela saberia disso? Titus hesitou. — Ela e seu antigo oráculo se conheceram e se apaixonaram. E eles trocaram informações suficientes para que isso acontecesse. Quanto mais verdade ele dissesse, maior a chance de não ser interrogado sob o soro da verdade. — Você fala de Icarus Khalkedon? Mas ele nunca se lembrava de nada de suas sessões oraculares. — É isso que ele queria que você acreditasse. Os olhos de Bane se estreitaram. Depois de um momento, ele disse: — Entendo. O que mais eu não sabia sobre ele? — Que ele não estava em um verdadeiro transe quando lhe disse que eu deveria ser enviado para uma escola não maga e que a Sra. Hancock deveria ser colocada no local para manter um olho em mim. — Por que você? — Porque minha mãe estava grávida de mim no momento, e você sempre viu o Domínio como uma ameaça em potencial. — Essa foi a única instância em que Icarus mentiu para mim durante uma sessão oracular?

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— É apenas a que eu sei. A Sra. Hancock disse que ele planejou dar várias respostas mais corretas e depois se matar. — Essa traição. O que a torna ainda mais reconfortante, asseguro-lhe, quando foi uma das suas respostas finais que me levou a esse corpo. — Bane gesticulou para si mesmo. — Um excelente espécime, não é? Eu obtive este corpo há quase dezoito anos, no Sheikha Manāt Interrealm Hub, no Reino de United Bedouin. Foi exatamente onde Icarus disse que estaria, à espera de um translocador de conexão. Um presságio afundou suas garras frias em Titus. Quase dezoito anos atrás. Um jovem viajante. Um desaparecimento que ninguém poderia explicar. Bane sorriu. — Eu não gosto do processo de assumir outro corpo. É necessário, mas não agradável. No caso de Wintervale, tive que me permitir estar cercado por suas memórias por algum tempo, para que eu pudesse reconhecer as pessoas ao seu redor e imitá-lo de um modo credível. Eu fiz o mínimo, o que provou ser um erro – era exatamente como aquele garoto estúpido e superficial, que nunca pensava em sua fraqueza fatal. Não, era todo o cricket, sua mãe, os garotos da Sra. Dawlish e sua antiga casa no Domínio. Titus desejou que seu punho pudesse se conectar com o nariz de Bane e empurrá-lo bem para dentro do seu crânio. — Wintervale valeu uma centena mais do que você. Milhares. Bane sacudiu a cabeça. — Você é um menino jovem e tolo, cheio de sentimentos tolos. Você deveria ter tido algum pragmatismo do seu avô. Ele matou a própria filha para manter o trono. Tudo o que você necessitava fazer era me entregar a maga elementar e poderia ter reinado em paz pelo restante da sua vida natural. — Meu avô era apenas um instrumento que você exercia. Foi você quem matou minha mãe. Eu atearia fogo na Cidadela antes de me tornar seu colaborador voluntariamente. E com prazer seria o último herdeiro da Casa de Elberon se isso apressasse a hora da sua morte. Bane sorriu novamente, mas desta vez com uma borda mais dura. — Nós divagamos. Agora, onde eu estava? Sim, minha falta de aprender

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o suficiente sobre Wintervale. Depois que Wintervale morreu, quando minha consciência viajou de volta, eu deveria encontrar o corpo que eu usava desde junho, mas depois que Fairfax o eletrocutou, ele morreu durante minha ausência, de um aneurisma no cérebro, de todas as coisas. Então fui para o próximo corpo, este. E com o horrível exemplo de Wintervale antes dele, pensei que era prudente cavar um pouco mais fundo na mente de alguém. Parecia ser algo simples. Antes de ser trazido aqui, ele estudava na capital do seu grande reino, um bom garoto, que gostava de ajudar os clientes na livraria de seu pai. Ele caminhou nas Colinas da Serpentina e saiu da costa – quase um clichê, se não considerasse sua ascendência Sihar. Titus recuou contra a parede distante da cela de contenção e deslizou para o chão. — Isso soa familiar para você? Era tão comum e pálido que eu estava convencido de que não havia necessidade de prestar mais atenção. E então, há cerca de quarenta e oito horas, pensei que talvez eu tivesse cometido um erro na execução da princesa Ariadne. Talvez, se eu não tivesse pedido a vida dela, não teria feito de seu filho um inimigo tão implacável. Essas emoções violentas entraram em erupção. Não que emoções violentas nem sempre atravessassem os pequenos peões. Você não pode conceber o tédio de sempre ter que ignorar suas birras e ataques de desespero. Mas, neste caso, a agitação foi cataclísmica. Eu precisava descobrir o motivo – que estava impedindo meu domínio sobre este corpo. Não foi fácil. Este realmente passou por algum esforço para compartimentar suas memórias. Foi a apenas algumas horas que finalmente terminei. E que segredo: um caso de amor apaixonado com ninguém menos que a própria princesa Ariadne. Quem imaginava? Embora eu tivesse me preocupado com a identidade de seu pai, Sua Alteza, e o que aconteceu com ele. E pensar que acreditei que foram alguns agentes do seu avô, quando o tive aqui o tempo todo. É uma pena eu não ter descoberto mais cedo. Você teria trocado Fairfax pelo seu pai, não teria? Será? Titus pensou selvagemente.

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— Mas já é tarde demais. Você não terá nenhum deles. Fairfax me dará mais um século de vida. E você, me dará grande prazer assisti-lo deixar as costas de Atlantis como um homem quebrado. Não será apenas Fairfax que eu sacrificarei pela minha saúde e longevidade; também usarei algumas partes boas de você. Veja, preciso de um olho, definitivamente um olho. O braço de sua varinha, é evidente. Além disso, dependerá do meu humor. Você gostaria de ser conhecido como o Príncipe Eunuco? Titus mal conseguiu se impedir de colocar os braços em torno de seus joelhos e se balançar para frente e para trás. Onde estavam Kashkari e a verdadeira Fairfax? Quando esse pesadelo terminaria? — Na verdade, antes de aplicar fogo em nossa querida Fairfax, eu vou passar uma lâmina em você. Você não se importa de perder um dedo ou dois, não é? Bane passou uma faca na mão. Titus queria gritar, mas ele só podia gemer. Então, de repente, ele se levantou e as palavras saíram dele como a água pela barragem. — Você pode me ouvir, pai? Minha mãe me nomeou em sua homenagem. E ela nunca desistiu de encontrá-lo. Sempre me perguntei por que ela participou da revolta contra Atlantis. Agora eu sei que foi por você. Isso falhou, mas antes de morrer ela me pediu para prometer-lhe que eu me esforçaria para derrotar Bane, porque era a única forma de eu te ver. O sorriso no rosto de Bane ficou cada vez mais presunçoso, quase radiante. Ele apoderou-se da mão imóvel de Titus. Uma lâmina gelada se instalou contra o polegar de Titus. — Ela adorava a videira que você deu a ela! — Titus gritou. — Ela sobe sobre uma pérgola na varanda superior do castelo. Eu sempre consegui encontrá-la embaixo dela – era seu lugar favorito! A faca levantou. — Filho? — Veio um sussurro tentativo, sem um pingo da arrogância do Bane. O coração de Titus quase explodiu de seu peito. — Pai! Por favor, me ajude! Por favor, ajude todos nós!

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Bane riu. Ele assobiou e deu uma gargalhada. — Você acreditou nisso? Oh, querido, oh querido. Você realmente acreditou que o pobre peão poderia me dominar? Lágrimas corriam pelo rosto de Titus. Ele era um menino de seis anos novamente, observando as chamas se aproximarem de sua mãe, nada além de desespero em seu coração. — Por favor, pai. Não deixe que ele faça isso. A faca escavou em sua carne. — Ela amava você, — ele sussurrou. — Ela te amou até o dia em que morreu. A faca se afastou. Ele ergueu a cabeça com incredulidade. Será que finalmente conseguiu, ou Bane estava prestes a fazer outra peça cruel? Também não era isso. Em frente a ele, Fairfax gemeu. Lentamente, ela se empurrou para uma posição sentada, com uma mão na cabeça. Então ela olhou para o ambiente desconhecido. Seu olhar se instalou em Bane. Ela estremeceu.

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Capítulo 22 Iolanthe e Kashkari emergiram do Crucible prontos para um ataque. Mas a caverna, seu ar ainda empoeirado, estava silenciosa – e escura. Eles ficaram no lugar por vários minutos, ouvindo. Então Iolanthe estabeleceu um círculo de som. — Acho que ninguém está aqui. O ardil funcionara como pretendido. Bane acreditava que agora tinha o Mestre do Domínio e a maga elementar a quem ele esteve procurando desesperadamente por tanto tempo. — Mas ainda temos o mesmo problema, — Kashkari respondeu; sua voz rouca, mas estável. — Ainda não conseguimos subir até o topo do penhasco. Iolanthe fez uma careta. Eles poderiam voar por aí? Eles não tinham ideia de quão longe a escarpa se esticava em qualquer direção. Certamente, além do alcance de seus feitiços de longa distância. Em seu impotente silêncio surgiram cliques agitados. — O que é isso? — Ela perguntou. — Desculpe, — Kashkari disse. O ruído parou. — Da última vez que todos deixamos o Crucible juntos, Titus me disse para tirar uma pequena pedra do prado, para manter o livro aberto.

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Kashkari tornou-se o seu protetor de último recurso, já que pareceu estar destinado a sobreviver a todos. Desde a Cordilheira Costeira, foi ele quem carregou o Crucible em sua pessoa. Titus ensinoulhe todas as senhas e contrassenhas para o Crucible, e Iolanthe lhe deu as palavras para libertar a conexão entre sua cópia do Crucible e aquela que eles deixaram para trás no Domínio – em um improvável evento em que ele deixasse o Palácio do Comandante vivo e precisasse sair de Atlantis rapidamente. — Eu estava empurrando o conteúdo do meu bolso, — ele prosseguiu, — E a pedra bateu contra as contas de oração de Durga Devi. Kashkari, como o príncipe, quase nunca se inquietava. Para que ele fosse reduzido a movimentos tão nervosos disse a ela tudo o que precisava saber sobre seu estado de espírito. Ela suspirou. No momento seguinte, ela o agarrou pela frente da túnica. — Eu sei como podemos colocar nossas mãos em dois wyverns – ou pelo menos sei onde podemos tentar. *** Iolanthe murmurou as palavras para revelar o Crucible e sentiu sobre o chão coberto de escombros da caverna até que ela tivesse o livro na mão. Em seguida, Kashkari fechou o livro. Então ela o levou para visitar o Oráculo das Águas Paradas. A piscina do oráculo capturava a imagem daqueles que finalmente a observavam. Foi assim que Titus contornou o Feitiço Irreproduzível e capturou sua imagem, dando seu rosto a Bela Adormecida. Ela não sabia se devia dar-lhe um golpe rápido ou um beijo bobo – ela se preocuparia com isso mais tarde, se houvesse um momento posterior. Agora, ela se ocuparia em armar sua barraca no meio da caverna – uma vez que a tenda estava fechada, a luz no interior não podia ser vista do lado de fora. Com Kashkari de guarda na entrada da caverna, ela se aconchegou na tenda, sob um monte de luz mágica, e fez mudanças em várias histórias no Crucible. Quando ela estava satisfeita com as

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modificações, ela apagou a luz, empacotou a tenda e entrou no Crucible mais uma vez, Kashkari ao seu lado. Como o Crucible acabava de ser reaberto, o prado estava calmo e pacífico, nenhum tesouro e caçadores pisoteando a longa grama ainda. Eles voaram para o castelo da Bela Adormecida. — Estou carregando um caderno de duas vias que me permite comunicar com Dalbert, — ela disse a Kashkari. — E se algo acontecer comigo, você fica com ele. A senha é conservatório. — Não seria muito útil, não é? — Você poderia pensar de forma diferente se sobreviver – não nos preparamos apenas para morrer. Ela não se agarrava a nenhuma esperança, mas enquanto respirasse, ela agiria. Eles atravessaram o círculo de espinhos impenetrável que cercava o castelo da Bela Adormecida e pararam. Abaixo, perto do portão do castelo, estavam os dois wyverns, dormindo, seus membros traseiros acorrentados. Era possível tirar objetos do Crucible. Na verdade, era necessário para manter o livro Aberto e acessível instantaneamente. Mas até agora, eles trouxeram apenas itens pequenos e inanimados: uma joia pertencente a Helgira ou uma pedra do prado diante do castelo da Bela Adormecida. Agora, eles tirariam algo diferente. — Eu fiz o mais fácil possível para nós, — Iolanthe disse. — Se não pudermos obter o melhor destes wyverns, não merecemos montá-los. Kashkari exalou. — Então o que estamos esperando? *** — Nos encontramos novamente, finalmente, Fairfax. Bem-vinda à minha não tão humilde residência, — Bane disse com graciosidade e maneiras suaves.

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A mulher que parecia exatamente com Fairfax o encarava com indignação. — Você está bem? — Titus exclamou. — Você está machucada? Ela fechou os olhos brevemente. Claro que ela sofreu – Bane a torturou no esforço para despertá-la. Mas ela quis permanecer perfeitamente silenciosa e ainda ganhar mais tempo, desistindo da pretensão apenas para salvar Titus de uma mutilação iminente. — Hmm, você não parece tão encantada com a nossa reunião, — Bane disse. — Suponho que não posso realmente culpar você, considerando o que está prestes a acontecer. Fairfax estremeceu, mas não falou. — Tanto quanto eu gostaria de ouvir você dizer algumas palavras por sua própria vontade, vou ouvir você em breve, quando começar a gritar. Devemos, então? Titus tropeçou – sem aviso prévio, as celas de contenção começaram a se mover. — Você está bem? — Ele perguntou novamente para Fairfax. Ela estremeceu e se inclinou contra a parede da cela de contenção. — Este não é o fim, — ele disse desesperadamente. — Ainda não. — Não para você, — Bane disse. — Você viverá, com tantas partes faltantes do corpo quanto possível, mas ainda permanecerá vivo. Titus estremeceu. Ou talvez ele não tenha parado de tremer desde que foi capturado pela primeira vez. — Pai, você pode me ouvir? Ele já matou a mulher que você amava. Por favor, não deixe que ele machuque ninguém que eu ame. Por favor! — Oh, amor jovem. Como é tocante, — Bane disse. — Nós nos encontramos por causa de uma das visões da minha mãe. Ela escreveu que eu veria uma façanha de poderosa magia elementar quando eu acordasse às duas horas e quatorze minutos da tarde. Então, eu pedia que Dalbert me acordasse precisamente naquele momento sempre que eu estava em casa, no castelo. Cerca de sete meses

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atrás, em um dia claro e sem nuvens, um relâmpago irrompeu do nada. Durou e durou até que a forma e o brilho dele fossem impressos nas minhas retinas. Eu peguei o peryton, desmaterializei para onde o relâmpago caiu, e foi assim que eu a vi pela primeira vez, metade de seus cabelos em pé. Bane, caminhando atrás deles, não mostrou nada além de um interesse educado. Então Titus continuou falando, contando ao pai tudo sobre todo o seu tempo com Fairfax, os contratempos, os corações partidos, os triunfos – tudo, exceto que não era a verdadeira Fairfax na cela de contenção que deslizava ao lado dele. Corredores, rampas, escadas. Ele teria se maravilhado de quão perfeitamente a cela de contenção avançava – ou as inúmeras tábuas de madeira intrincadas e extensas que se alinhavam em seu caminho. Mas a única coisa que lhe interessava era o fato de que eles não passavam por ninguém em sua descida interminável. Não era surpreendente que Bane tivesse uma rota particular através de sua fortaleza – tanto a Capital quanto o castelo estavam cheios de passagens secretas conhecidas apenas pela família, e talvez alguns funcionários mais antigos. Mas isso significava que seria quase impossível para Kashkari e Fairfax encontrá-los. A voz de Titus estava esgotada. — Eu me esqueci de lhe dizer, lembra-se da cópia da Poção Completa que minha mãe estragou no dia em que conheceu você na livraria? O que ela escreveu nas margens levou a Fairfax a convocar seu primeiro relâmpago. Estamos todos conectados no destino, todos nós. Eles não estavam mais descendo, mas em uma passagem direta, estreita o suficiente para que ele e Fairfax fossem conduzidos em uma fila única. Uma porta se abriu para uma enorme câmara. Uma enorme câmara com um enorme mosaico do redemoinho Atlante no chão – exatamente como Kashkari descreveu. Eles chegaram à cripta. ***

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Na extremidade da cripta, um sarcófago elaborado estava apoiado em um estrado elevado. Diante do estrado foram colocadas seis plataformas planas, levantadas em duas colunas. Cinco das plataformas estavam vazias. Na última estava West, o estudante de Eton que foi sequestrado porque ele, como o pai de Titus, tinha uma semelhança impressionante com Bane. As celas de contenção pararam no meio da cripta. — Somente o digno pode avançar mais, — Bane disse, e com um movimento rápido, ele acertou Fairfax. Titus nem teve tempo de chorar antes que Bane se afastasse. Fairfax, com o rosto contorcido de dor, agarrou seu braço direito. Bane ergueu uma gota espessa, e com uma expressão encantada no rosto, examinou o sangue extraído. — Um sangue muito lindo, — Bane disse enquanto caminhava em direção ao sarcófago. — Espero que isso diga que você será um sacrifício extremamente eficaz. Mas, é claro, são apenas formalidades – nós dois sabemos como você é poderosa, minha querida. Mas é claro que o sangue não revelaria nada disso. E assim que isso acontecesse, Bane descobriria imediatamente a verdade. — Você tem certeza de que tem partes do corpo que podem ser usadas para um sacrifício? — Titus zombou enquanto suas palmas transpiravam. — Tentando ganhar tempo, príncipe? Não, o tempo para falar já acabou. Atrás do sarcófago, com apenas a cabeça e os ombros visíveis, Bane ocupou-se com seus procedimentos infernais. — Você já sonhou com seus filhos? — Titus fez um último esforço. — Já viu seus restos sangrentos? E a sua neta? Você já a viu implorar para não machucá-la mais? — Isso me lembra de que me dará grande prazer remover sua língua, Sua Alteza, — Bane disse, completamente imperturbável. — Eu farei um serviço ao mundo mago, eu acredito...

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Sua voz se apagou. Ele levantou a cabeça e olhou para Fairfax. Ela olhou para ele. Ele voltou sua atenção para sua tarefa, parecendo repetir o procedimento mais uma vez. Depois, olhou para cima. Titus sentiu seu sangue se transformar em gelo. Bane sabia. Ele sabia que havia sido enganado, que aquela que estava diante dele não era aquela por quem ele moveu o céu e a terra para encontrar. Logo, ele se aproximou deles. — Não o deixe ferir minha amiga! — Titus chorou. — Pai, não o deixe. Ajude-nos! Bane parou diante da cela de contenção de Amara. — Quem é você? — Eu sou mais um dos seus inimigos jurados, — Amara disse, levantando-se, sua voz clara e orgulhosa. — Não há fim para nós. Toda vez que alguém cai, outro tomará seu lugar. Seus dias estão contados, seu velho depravado. Na verdade, você não viverá para ver outro s... Bane levantou a mão. Ela caiu. — Não! — Titus gritou. — Não! A leve distorção no ar que marcava os contornos de sua cela de contenção desapareceu. Bane ergueu a mão novamente e jogou-a por seis metros até uma coluna de suporte. — Não, — Titus sussurrou. Bane estava diante de Titus. — Onde ela está? Onde está Iolanthe Seabourne? Titus se ouviu rir, um som suave e meio enlouquecido. — Eu não sei. Você pode derramar qualquer quantidade de soro da verdade na minha garganta, e terá exatamente a mesma resposta. Eu não sei onde ela está. Os olhos de Bane queimaram em Titus. — Então você morrerá também. ***

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Com as túnicas negras e elmos que Iolanthe havia pegado emprestado

dos

trajes

que

estavam

sendo

preparados

para

o

extravagante baile à fantasia da Bela Adormecida, ela e Kashkari dificilmente eram distinguíveis – pelo menos no escuro – de qualquer outro par de cavaleiros atlantes de Wyvern. Após meia hora de voo, ela viu, como ele já sonhara, um pequeno ponto de luz à distância. Ela mal respirava, e era como se todo o sangue do seu coração tivesse escorrido horas atrás. Mas ela passou do momento de requerer coragem: desespero era um ímpeto muito melhor. Poucos minutos depois, Kashkari disse: — A luz vem do topo de uma montanha. De dentro do topo de uma montanha. Ele estava certo – a luz estava se espalhando da cúpula de um pico grande e cônico. Iolanthe sugou uma respiração. Agora ela finalmente compreendeu a descrição do Palácio do Comandante. — Está dentro da caldeira. — Alguma chance de você despertar o vulcão? Como o tio dele havia feito. — Eu queria que fosse o caso. Se houvesse magma em qualquer lugar, eu sentiria isso – nada além de pedra sólida debaixo desta. Desculpe. Kashkari fez uma careta. — Não era como se Bane facilitasse qualquer coisa para nós. Wyverns rodavam acima da caldeira, menos números, no entanto, do que ela teria sido levada a esperar – mesmo Bane não poderia substituir as centenas de experientes cavaleiros em wyvern que ele massacrou no Saara com um rápido aceno de sua varinha. Mas as cockatrices colossais, carregadas por carros blindados de grandes dimensões, eram cada vez mais fascinantes e uma visão intimidante como a descrição sugeria. Muitas torres de guarda estavam sobre o círculo de picos que cercavam a caldeira – a borda do próprio vulcão inativo. Soldados

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patrulhavam várias seções da borda, e de tempos em tempos, desciam por alguns minutos antes de voltarem a voar. — Vamos descer até as montanhas. Os cavaleiros em wyvern parecem fazer isso regularmente o suficiente – não devemos atrair muita atenção. Eles pousaram na base escura perto de um cume, mas não no topo da borda, no lado de fora da caldeira, e devolveram os wyverns ao Crucible. O prado estava de novo em um tumulto, com Skytower já na sua borda. Eles saíram apressadamente, pegando uma chave de bronze, que alguém deixou cair na grama, para manter o Crucible aberto. Atrás de Iolanthe, Kashkari mancava. Ela se virou. — Você está bem? — Um pouco mais de tempo e ficarei bem como novo. Ela apoiou o braço em torno da cintura dele; ele não recusou sua ajuda. Eles ficaram presos às sombras tanto quanto possível, enquanto subiam até a borda do vulcão morto, olhando ao redor constantemente. A subida era íngreme, mas não particularmente traiçoeira; sem pedras soltas ou poucas depressões para torcer os tornozelos. Na verdade, perto do topo, a terra se achatava visivelmente. Mesmo com o Kashkari se apoiando sobre ela, eles fizeram um bom tempo. Quando o terreno debaixo dos pés começou a se inclinar para o outro lado, eles se agacharam ao lado de um pedregulho – mais para se protegerem da torre de guarda mais próxima do que qualquer outra coisa – e olhar ao redor do esconderijo do Bane. Era muito, muito maior do que ela havia previsto. Mesmo contra este grande cenário natural, a fortaleza palaciana, em sua própria colina no centro da caldeira, dominava por sua pura agressividade. Ela imaginou que seria quadrado como o Bastião Negro, mas havia algo de marítimo na arquitetura do Palácio do Comandante. Suas paredes pareciam encontrar-se a mais de noventa graus, seus telhados pareciam velas desenroladas, e as suas terras do norte e do sul surgiam como uma proa de um navio.

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Kashkari praguejou. — Nenhum wyvern pousa no ou perto do palácio real – se tentarmos nos aproximarmos dessa maneira, nós seremos imediatamente marcados como suspeitos. Os tapetes serão uma indicação mortal. Não podemos desmaterializar e não podemos atravessar o chão da caldeira com todos esses anéis de defesa. Como diabos nós entraremos? Iolanthe respirou fundo. Seu coração acelerou e suas mãos tremiam, mas era como se a quantidade de medo e angústia que a lavara nessa noite de alguma forma a anestesiara. — Nós entraremos exatamente como você previu em seu sonho, — ela respondeu com algo que era quase tranquilidade. — Você gostaria de ser o primeiro parceiro de Skytower? *** Kashkari olhou para ela, provavelmente pensando em seu sonho profético. Eu estava no ar novamente, em um enorme terraço ou plataforma que flutuava para frente. — Skytower? Eu estava em Skytower? — Eu não sei, — Iolanthe respondeu. — Mas agora você estará. Quando eles passaram pela última vez no Crucible para se esconder, alguma parte de sua mente percebeu a silhueta de Skytower. Se ela estivesse de pé na frente da plataforma de comando, ela não veria a grande formação rochosa abaixo, na forma de um pico de cabeça para baixo, mas pensaria em uma plataforma flutuante. E isso era bom o suficiente para ela. Kashkari apertou a mandíbula. — Bem, vamos assumir a Skytower. Essa era uma tarefa muito mais fácil do que de outra forma, já que agora, a Feiticeira de Skytower e seu segundo em comando se pareciam exatamente com Iolanthe e Kashkari, respectivamente, após as modificações que ela fizera na ilustração que acompanhava a história, colocando suas próprias feições capturadas pela piscina do Oráculo nos rostos dos personagens.

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Pouco tempo depois, eles estavam na plataforma de comando da Skytower, sua equipe de marinheiros sanguinários aguardando ordens. Mas como alguém tirava uma torre do tamanho de uma montanha do Crucible? Através do leme de direção, Kashkari recomendou. A manipulação do leme não era geralmente a tarefa do segundo em comando, mas ninguém lhe negaria o uso dele, especialmente não quando a própria senhora de Skytower o acompanhava, a mão no braço dele. — E eles viveram felizes para sempre, — disse ela. O céu noturno no Crucible foi substituído pelo céu noturno mais brilhante acima do Palácio do Comandante, que parecia um pouco menos impressionante quando visto do alto pelo ponto de vista da Skytower. Eles conseguiram – eles retiraram o Skytower inteiro. A aparição repentina desta estrutura colossal atordoou os atlantes. Os cavaleiros nos wyverns ficaram boquiabertos em suas montarias; dois carros blindados quase bateram em Skytower; e gritos de alarme e consternação ecoaram de baixo, das torres de guarda e dos anéis de defesa. Kashkari convocou seu tapete. Eles colocaram o Crucible cuidadosamente em cima de um tapete de batalha, então eles poderiam recuperá-lo imediatamente: qualquer coisa tirada do livro desvanece se ele se deslocar a uma curta distância. Iolanthe pegou o tapete e o livro. — Onde está a timoneira? — Kashkari perguntou. — Ela pode... Ele gritou e caiu contra o leme. Skytower bateu diretamente na lateral da caldeira. A sua estrutura estremeceu. A tripulação gritou. Iolanthe agarrou a grade. Kashkari gritou. Skytower derrapou a estibordo, sua base enorme agora raspando e marcando a inclinação do interior da caldeira. Ela o arrancou do leme. — Qual é o problema? O que está acontecendo? Ele se curvou, seus dedos cavando no antebraço. — Dor. Em todo lugar.

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Ela ofegou. — Você ainda está conectado a Titus através de um juramento de sangue, não é? Você está sentindo a dor dele. Bane... O... Se Bane estava torturando Titus, então ele já sabia que Amara não era a maga elementar que ele procurava. O que aconteceu com ela? Ela pegou a timoneira normalmente responsável pela navegação de Skytower. — Você vê aquela construção? Perfure. Na horizontal. Eu quero ver profundamente as entranhas dela. *** Dor se espalhou por Titus. Seus órgãos internos foram raspados sobre o carvão queimado, seus ossos triturados. — Você é um pequeno pirralho, — Bane grunhiu. — Você acha que pode me impedir de conseguir o que eu quero? Tenho sempre o que eu quero. Titus não podia falar. Ele nem conseguia gritar. A dor aumentou e apertou. Ele estava cego com agonia. Ele mal sentiu o estremecimento no chão embaixo dele. O som, como enormes pedras trituradas, apenas foi vagamente registrado. Mas no próximo segundo sua dor parou. Ele desabou no chão da cela de contenção, ofegante. Bane ficou de pé, ouvindo. Titus não podia ouvir nada – eles estavam muito longe, no centro da colina em que o Palácio do Comandante estava localizado. O que fez o barulho de um momento atrás ainda mais notável. O que aconteceu? — Iolanthe Seabourne está por trás disso? — Bane perguntou. — Eu não sei. — Mas ele certamente não achava que estivesse além dela. O que ela havia feito? Causou um terremoto de verdade? Todo o palácio balançava, repetidamente, como se seus níveis estivessem sendo cortados um a um. As sacudidas foram direto ao estômago de Titus. Ele apertou os dentes contra repetidos surtos de náuseas. Mais outro golpe. O teto da cripta quebrou. Pedra e gesso choviam; dezenas de lascas de madeira batiam no chão.

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Os sons mudaram, daqueles de impacto brutal a algo quase como um raspador de agulha, se a agulha fosse do tamanho de uma rua. Titus respirou fundo. Skytower. Sua grande formação rochosa tinha uma ponta brusca, mas um dos segredos de Skytower era que ela poderia destruir um pico enorme com essa ponta. E a timoreira que pilotava a Skytower era conhecida por ser uma artista com essa ponta, e poderia escrever o nome dela em um pedaço de pedra não maior que o assento de uma cadeira. Deve ser Fairfax. Ela havia encontrado um jeito, como sempre fazia. Ele estava de pé, o rosto pressionado contra a parede da cela de contenção, o punho batendo. Vamos, Fairfax. Vamos! Algo que se assemelhava a uma vespa, se a vespa fosse do tamanho de um gigante fantasma, atravessou o teto perto da parede sul da cripta. Ele ofegou. Além do teto rasgado, estava o próprio céu – Fairfax e Kashkari conseguiram chegar até o Palácio do Comandante. Naquela faixa entalhada do céu noturno, as forças Atlantes estavam manobrando loucamente. Titus tentou recordar o que podia da equipe da Skytower. Eles tinham bastante poder de mago para segurar o batalhão da Inglaterra, as cockatrices colossais carregadas por carros blindados e todos os outros soldados e máquinas de guerra que Bane tinha à disposição? Ele olhou para Bane, esperando ver o rosto do outro retorcido com raiva. Em vez disso, Bane estava sorrindo. As esperanças de Titus se tornaram cinzas. Por que Bane ficou encantado? Quais eram os planos dele? Ele olhou ao redor selvagemente. Então ele viu, a base redonda e transparente da outra cela de contenção deslizando em direção à abertura no teto. Naquele momento, Kashkari e Fairfax subiram em seus tapetes. Antes que Titus pudesse gritar de advertência, eles passaram diretamente sobre a base da cela. Instantaneamente, as paredes da cela se fecharam sobre eles.

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Capítulo 23 Quando os tapetes de Fairfax e Kashkari atingiram a barreira invisível, eles gritaram e caíram em uma pilha. — Não! Não! — Titus gritou. Não poderia ser. Eles não derrubaram o Palácio do Comandante para ser pegos como ratos numa armadilha. Bane riu. — Por que, obrigado, minha querida Fairfax, por ter tido problemas para entregar-se a mim. Titus recuou contra a parede mais distante de sua própria cela de contenção, as mãos sobre o rosto. Isso não. Não este fim amargo e sem sentido. Não depois de tudo o que passaram, todos os sacrifícios que foram feitos, e todas as vidas irrevogavelmente perdidas. Dentro da outra cela de contenção, Fairfax se levantava. — Você está bem, Kashkari? Kashkari foi mais lento para se levantar. — Estou bem, — ele disse, soando distraído. O olhar de Fairfax pousou em Titus. Ela ergueu a mão e apoiou-a contra a parede de sua cela. — Sua Alteza. Titus só podia balançar a cabeça, tentando não desmoronar e chorar abertamente.

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— Onde está Durga Devi? — Perguntou. De seu ponto vista, o pilar sobre o qual Bane jogara Amara bloqueava a linha de visão para onde a última estava deitada. — Ela está aqui. — Ela e... — Eu não sei. A cela de contenção deslizava pelo chão em direção ao Bane. Kashkari gritou enquanto eles faziam a curva no pilar e viram a forma deitada de Amara. A garganta de Fairfax se moveu ao ver seu próprio corpo neste corpo imóvel. O barulho da batalha subiu para um campo ensurdecedor lá fora – os defensores do Palácio do Comandante estavam se lançando sobre os saqueadores de Skytower. Mas Titus mal ouviu isso, sua atenção fixa em Fairfax. Havia uma mancha de sujeira no rosto dela e pedaços de poeira de pedra em seus cabelos, e ele se lembrou do dia em que se conheceram; sete meses atrás, parecia uma eternidade. A cela parou a dois metros do Bane. Por fim, ela olhou para o próprio monstro. Ela não parecia terrível, apenas cansada além das palavras. — Minha querida, querida Fairfax, — Bane murmurou. — Senhor Comandante Supremo, — Fairfax respondeu, em sua voz baixa, rica, ligeiramente grave. — Ou é Palaemon Zephyrus? Não, eu esqueci. Seu nome verdadeiro é Pyrrhos Plouton, seu velho nojento. O bom humor de Bane, aparentemente, não podia ser atenuado por algumas palavras desagradáveis. — E serei um homem ainda pior, e mais velho, graças a você. — Você não me terá, — ela disse sem rodeios. — Essa cela também não me segurará. — Esta cela foi construída para ser suficientemente forte contra mim. — Foi isso que eu pensei, — ela disse. — Fique atrás de mim, por favor, Kashkari.

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Um relâmpago deixou suas mãos e atingiu a parede da cela de contenção, que acendeu e crepitou. A expressão de Bane mudou. Ele construiu a cela para ser forte o suficiente contra ele, mas não contra um relâmpago. De repente, Titus sentiu a varinha de Bane na sua têmpora. — Pare ou o menino morre, — Bane grunhiu. — Continue! — Titus gritou. — Não importa se eu morrer. Acabe com ele! Fairfax hesitou. — Não pense. Faça o que eu digo! — Ele gritou mais alto, mesmo quando sua voz ficou rouca. — Liberte-se agora! Uma dor como gelo o irritava no estômago. Ele caiu. O gelo transformou-se em fogo, ardendo todas as suas terminações nervosas. — Seja uma boa garota, — veio a voz melancólica de Bane, — E ele não sofrerá mais. — Não... — a possibilidade de que ela ouvisse Bane horrorizou Titus. — Não... Ela trincou a mandíbula. Uma agonia como se sua espinha estivesse sendo arrancada por ele. Ele convulsionou, mas manteve os olhos nela, e queria que ela se mantivesse firme. Suas mãos tremiam. Toda a sua pessoa estremeceu. Bane levantou sua varinha. Titus preparou-se para o pior. Bane abaixou a mão, levantou novamente e deslizou-a para o lado. Titus piscou, tão confuso e surpreso que ele apenas notou levemente que ele não sofria mais. Bane acenou sua varinha como o maestro de uma orquestra. Um riso torceu os seus lábios, uma expressão de puro desdém. No entanto, enquanto

Titus

observava,

esse

desdém

transformou-se

em

consternação. Então, absoluta raiva. No próximo segundo as paredes das celas de contenção desapareceram. Bane se ajoelhou e levantou Titus. — Saia dessa base, — ele disse para Fairfax e Kashkari, ambos espantados. — Eu não posso mantê-lo longe por muito tempo.

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Não, não Bane. Este era o pai de Titus, e Titus estava olhando para os olhos bonitos e bondosos que sua mãe adorava. — Pai. Pai! — Você é exatamente com sua mãe, — seu pai disse, abraçandoo forte. — Você é exatamente como Ariadne. Ele beijou Titus na testa. — Alguém me atordoa agora e coloque um feitiço ao meu redor. Bane não pode me usar se eu estiver inconsciente. Fairfax e Kashkari levantaram suas varinhas. Mas enquanto Kashkari cumpria o pedido do pai de Titus, Fairfax ergueu um pedaço de pedra e enviou-o voando para... West, que estava sentado na plataforma. Ele imediatamente se virou e caiu no chão. — Bem pensado! — Kashkari exclamou. Com o pai de Titus inconsciente, Bane se voltara para West. Mas agora, com seu último substituto fora de cena... Fairfax, Kashkari e Titus se entreolharam: encarando um caminho claro para o sarcófago de Bane, eles estavam perdendo tempo pensando no que fazer. Um muro de chamas rugiu no caminho. *** O corpo original de Bane pode não ter dedos para segurar uma varinha, ou mesmo uma língua para falar as palavras de um encantamento, mas sua mente era perfeitamente funcional. E a mente era tudo o que era necessário para impulsionar o poder da magia elementar. Enquanto Kashkari e Titus criavam escudos, Iolanthe levantou as mãos e empurrou o fogo para trás. — Mantenha um olho no West e em seu pai, — ela exclamou. — Mantenha-os em segurança. Ela se surpreendeu ao ouvir Titus chamar de pai o corpo atual de Bane. Mas tudo fazia sentido. Agora, se eles apenas pudessem derrotar Bane e sair daqui.

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Ela ergueu uma das plataformas de pedra e enviou contra o sarcófago, e depois outra – a melhor maneira de manter todos seguros era manter Bane ocupado defendendo seu corpo original. Ela avançou. O fogo que ele havia convocado continuou varrendo para ele. — Você gosta de ser tostado, Senhor Comandante Supremo? A terceira plataforma que ela esmagou no sarcófago fraturou a tampa. Com um aceno, as metades separadas da tampa saíram voando. — O teto! — Kashkari gritou. Rachaduras ziguezagueavam pelo teto. Enormes lajes de pedra caíram. Iolanthe redirecionou o monte de detritos para uma parede distante da cripta. No momento seguinte, a metade de tudo o que ela acabara de afastar mudou-se, dirigindo-se para Titus. Com um grito, ela mudou as lajes do curso. Titus gritou. Ela gritou também, com medo de que tivesse se ferido, só para ver que com todos os esforços concentrados em mantê-lo seguro, Bane conseguiu lançar uma laje no pai de Titus. Com o coração afundando, ela levantou a laje. Mais incêndio entrou em erupção, uma conflagração que engoliu toda a cripta. Ela levantou o fogo para cima, de modo que aqueles que estavam deitados no chão – Amara, West e o pai de Titus – fossem poupados das chamas. — Devemos continuar avançando! — Titus gritou. — Quanto mais ele nos atrasa, mais provável será que os magos de Skytower sejam derrotados e ele resgatado, — Kashkari disse quase ao mesmo tempo. Iolanthe apertou os dentes e abriu uma brecha pelo fogo. Titus e Kashkari marcharam de cada lado dela, aplicando escudos. As peças da decoração pegaram fogo e estavam queimando poderosamente. O ar brilhava com calor das chamas. O sarcófago de Bane parecia se deformar e se contorcer. Mais fogo. Mais rochas voando. Apesar dos escudos, ela sentiu a pele de suas bochechas arderem com a dor crescente. Grunhindo com o esforço, ela novamente elevou as chamas alguns centímetros mais, não querendo que aqueles no chão sofressem.

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Três metros. Um metro e meio. Noventa centímetros. Eles saltaram para o estrado e ficaram de pé sobre o sarcófago agora sem tampa. Mas tudo o que Iolanthe podia ver do interior era uma névoa leitosa. Kashkari cutucou a ponta de sua varinha contra o nevoeiro. A varinha foi parada por um escudo invisível. Titus já estava tentando vários encantamentos. — Devo quebrar o resto do sarcófago também? — Iolanthe perguntou. — Você pode tentar, — Kashkari disse. — Mas duvido que ajude. Eu acho que o sarcófago é apenas uma decoração – esse escudo é o que o protege verdadeiramente. Mas como eles atravessariam esse escudo, que Bane deve ter passado décadas, se não séculos, aperfeiçoando? E eles devem fazê-lo logo. Lá fora o rugido de wyverns era ensurdecedor. O cheiro das cockatrices colossais já chegara às narinas. E a tripulação da Skytower a chamava. — Nós precisamos sair daqui, Capitã! — Capitã, nós não podemos mantê-los do lado de fora por muito mais tempo! Eles chegaram tão longe para serem frustrados por um escudo? Titus e Kashkari sussurraram ferozmente, tentando feitiço atrás de feitiço. Ela e Bane invisível lutavam através do comando deles, bloqueados em um impasse. O suor escorria pelo rosto dela, uma dor indescritível onde passavam sobre as bolhas nas suas bochechas. Os gritos dos Atlantes lá fora se tornavam mais agressivos, mais triunfantes. Logo, carros blindados irromperiam, e seria muito tarde. Pelo canto do olho, ela viu West rastejando pelo chão da cripta. Seu coração quase pulou de seu peito: Bane havia retomado o comando do corpo de West. Mas quando ele ergueu o rosto e encontrou seu olhar, não havia malícia em seus olhos, apenas uma grande determinação – era apenas West, que havia recuperado a consciência.

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Ele avançou, arrastando uma perna ferida atrás dele, se aproximando do pai de Titus. Quando o alcançou, ele levantou uma das mãos do homem e apontou para o sarcófago. Claro. O corpo original de Bane precisava ser cuidado, e quem melhor para lidar com a tarefa do que seu corpo atual? Não havia nenhum feitiço ou encantamento que Titus e Kashkari pudessem pensar que rescindisse o escudo, mas o toque do corpo atual. — Afastem-se, — ela ordenou a Titus e Kashkari. Ela apontou um raio diretamente para o escudo, depois outro, e ainda outro – não para danificar o escudo, mas para manter Bane preocupado e nervoso, focado apenas nas ações de Iolanthe. E enquanto fazia isso, ela cutucou Titus e indicou West com uma inclinação de cabeça. Titus, depois de semelhante momento inicial de medo, entendeu. Ele saltou do estrado e trouxe seu pai inconsciente pelo resto do caminho até o sarcófago. Com a ajuda de Kashkari, eles levantaram-no para colocar a mão no escudo. A névoa leitosa se limpou. Iolanthe sabia que o corpo original de Bane deveria ser completamente mutilado. Mesmo assim, ela engasgou. Não sabia como alguém poderia estar tão destruído e ainda estar vivo. O corpo não tinha nada abaixo da cintura. Ambos os braços desapareceram. Orelhas, nariz, lábios, dentes – nada permaneceu. Apenas um olho a olhava com aversão, medo e uma cobiça que era cem vezes mais vil do que qualquer desfiguração. Titus e Kashkari também encararam, cambalearam e repeliram. — Vamos. Acabem com isso! — West gritou. Ela olhou para Titus – ele parecia tão paralisado quanto ela se sentia. — E você, Kashkari? — West implorou. Um músculo perto do maxilar de Kashkari saltou. Ele levantou a varinha e apontou para Bane. Como aconteceu com o ogro no Crucible,

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a cabeça de Bane se desconectou de seu corpo com um som audível e um jato de sangue que fez os três se afastar. Eles esperaram por um momento. Durante tanto tempo, os passos de Bane fizeram todo o mundo tremer. Iolanthe esperava que o chão da caldeira se colapsasse em uma convulsão catastrófica e enterrasse-os sob milhões de toneladas de rocha vulcânica. Mas, exceto pelo jorro de sangue, a morte de Bane foi comum como de qualquer outra pessoa. Kashkari caiu de joelhos e vomitou. Ela correu para ele e tirou um remédio de sua bolsa. Uma vez que ele engoliu o remédio, ela passou o braço ao redor de seus ombros e ergueu o odre com água até seus lábios. A sessenta centímetros deles, Titus ajoelhou-se ao lado de seu pai, segurando o pulso dele em sua mão com uma expressão sombria. Então ele fechou os olhos por um momento, beijou o pai na testa e saltou do estrado. Kashkari se levantou também. A maior parte do fogo elementar havia desaparecido, mas muitas peças decorativas feitas de madeira ainda queimavam. Através da névoa de fumaça, ele atravessou a extensão da cripta, espalhando os escombros, seus pés batendo no mosaico do grande redemoinho de Atlantis. Com a sua aproximação, Titus, que já estava do lado de Amara, olhou para cima e balançou a cabeça. Iolanthe cobriu os olhos. O sonho profético de Kashkari se tornou realidade, até o último detalhe. *** Uma mão a sacudiu pelo ombro. — Temos que ir. Agora. Titus. Eles se abraçaram brevemente, depois se ocuparam de colocar todos nos tapetes, Amara com Kashkari, o pai de Titus com ele e West com Iolanthe. As ruínas do Palácio do Comandante queimavam. A cena acima era um caos maior do que qualquer outra visão no prado do castelo da Bela Adormecida: wyverns gritando, carros blindados caindo, espadas e clavas enfeitiçadas de Skytower girando sobre a fortaleza, um tornado de armamento.

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Eles se dirigiram para o convés do comando, colocaram suas mãos no Crucible, com a outra mão de Iolanthe no leme da Skytower, e ela recitou a senha. Quando entraram no Crucible, ela percebeu que o caos no prado não era o único, afinal. Mas já que controlavam a Skytower, eles estavam acima da maior parte do pandemônio, o que facilitava a decolagem em seus tapetes em direção ao Bastião Negro. Seu tapete foi subordinado ao de Kashkari, o que lhe permitiu verificar a perna de West. Definitivamente estava fraturada, mas ela não poderia lhe dar nenhuma ajuda além de uma dose completa de remédio para dor. — Assim que chegarmos à segurança, teremos um médico examinando você. Mas haveria segurança no outro extremo? A cópia do Crucible do mosteiro certamente caíra nas mãos dos Atlantes. Estava no Inquisitório, ou pior, em Lucidias? Ela tirou o livro de duas vias que Dalbert havia dado a ela e escreveu, Bane está morto. O príncipe está vivo. No Crucible, dirigindo-se para a cópia do mosteiro. Bane está morto. O príncipe está vivo. Era tudo o que ela queria. No entanto, uma ansiedade sombria remexia no limite do coração. O sonho profético de Kashkari se tornou realidade. E a visão da princesa Ariadne sobre a morte de seu filho? Ela olhou para Titus. Ele olhava em sua direção. Estava muito escuro para ver claramente suas feições, mas ela sentiu o mesmo desconforto emanando dele. Deixe-o estar seguro. Deixe-nos sobreviver nesta noite. Ela encontrou alguma poção de queimadura, deu metade a West e aplicou o resto nas bolhas dela. — Isso foi bastante impressionante, por sinal, — West disse. — Relâmpago, agora eu já vi de tudo. — Como você está? Não muito abalado, espero? — Completamente abalado. Mas estamos seguros agora, certo? Se ao menos ela pudesse responder a essa pergunta com alguma confiança. — Difícil dizer. O próprio Crucible é perigoso, mesmo que... — ela olhou para trás e praguejou. — Estamos sendo perseguidos!

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Kashkari

ecoou

sua

imprecação.



Eles

estão

usando

aceleradores de magias. — Estão? — A pergunta de Titus era afiada. E sua voz estava instável. — Sua mãe mencionou aceleradores de magias em sua visão? — A voz dela também aumentou uma oitava. Ele disse apenas: — Me dê sua varinha. Dum spiro, spero. O que aconteceu com a esperança quando não houver mais respiração? Ela entregou-lhe a varinha e agarrou a mão dele. — Tudo ficará bem. — Eu amo você, — ele disse. — E você sempre será a garota mais assustadora que eu já conheci. Um nódulo se alojou em sua garganta. — Cale a boca e lute. Vários quilômetros atrás deles, três redes de capuz estavam sendo preparadas. Titus lançou seus feitiços um atrás do outro; Kashkari fez o mesmo. Depois de um minuto ou dois desses rápidos disparos, Kashkari arrancou todos os tapetes para cima e para a direita. West gritou; seus dedos agarrando-se fortemente na borda do tapete. — Kashkari tem que manter os tapetes firmes enquanto ele e Titus apontam, mas depois ele tem que evitar que sejamos atingidos pelos feitiços lançados pelos nossos perseguidores, — Iolanthe explicou; ofegante com alívio de que eles não foram atingidos. Pelo menos não nesta rodada. A resposta de West, depois de uma pausa, foi: — O príncipe chamou você de a garota mais assustadora que já conheceu. Você é uma garota? O colégio Eton parecia pertencer às reservas nevoadas da história, mas fazia poucos dias que West, Kashkari e Iolanthe participaram regularmente do treino de cricket. Claro que West tinha todas as razões para continuar pensando nela como um menino.

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Ela acenou uma mão. — Isso não é importante agora. Eles cobriram aproximadamente um terço da distância para o Bastião Negro. Isso era importante. Também importante era que em conjunto, Titus e Kashkari atordoaram vários de seus perseguidores. Ela limpou a mão na testa. Ela estava transpirando, e não apenas de nervos – a noite, bastante tranquila anteriormente, havia ficado quente. O tempo dentro do Crucible sempre refletia lá fora. Por que de repente ficaria quente em Atlantis? A Skytower estava bem em cima do Palácio do Comandante quando eles retornaram ao Crucible. O que significava que o Crucible teria caído diretamente dentro do inferno. — Titus, o Crucible pode pegar fogo? — Eventualmente, sim. — Nós podemos estar dentro dos restos do Palácio do Comandante. — Ou poderia ter sido deliberadamente incendiado, — ele disse severamente, — Para acabar com a gente. Não importava o que aconteceu, o resultado era o mesmo. Eles estavam dentro de uma grelha. As faíscas pulavam na pastagem abaixo. A fumaça já estava aumentando. O ar que passava rapidamente pelo rosto era tão quente que ela poderia ter enfiado a cabeça em um forno. No entanto, Titus e Kashkari pareciam não prestar atenção a esses desenvolvimentos, concentrando-se unicamente nos feitiços. A pastagem explodiu em chamas. Madeiras distantes também pegaram fogo, seus ramos queimados estalando. Fumaça obscureceu o céu, abafando os gritos dos wyverns à distância. O que Titus contou há muito tempo sobre a visão de sua morte? Minha mãe viu uma cena noturna. Havia fumaça e fogo – uma quantidade impressionante de fogo, de acordo com ela – e dragões. Todas as condições foram atendidas. — Sim. Isso é tudo! — Kashkari gritou.

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Ela se concentrou. Levou um momento para ela entender que ele falava sobre seus perseguidores. Enquanto ela estava preocupada com o fogo e a destruição, Titus e Kashkari atordoaram todos os últimos cavaleiros. E lá, à frente, estava a silhueta do Bastião Negro através da fumaça ondulante, muito mais perto do que ela pensou que estaria. Esperança disparou através dela, uma explosão de felicidade. O futuro que ela abandonara agora estava de volta ao seu alcance, cheio de risadas e promessas. Ela se voltou para o seu amado. Pela primeira vez desde a queda do Bane, ela queria celebrar. Ele estava olhando para ela também, com admiração em seus olhos. Eles fizeram o que precisavam fazer e sobreviveram. Agora eles teriam todo o tempo no mundo para serem jovens e frívolos. Eles brincariam, eles se sentariam juntos; passariam dias inteiros não fazendo nada de útil e não se preparando para nenhuma tarefa grande e terrível. Ele sorriu; aquele que tão raramente tinha razões para sorrir. Ela sorriu de orelha a orelha. Oh, quão adorável era estar vivo – e juntos. Ele se inclinou para ela, a mão estendida. No instante seguinte, ele se endureceu, sua expressão de dor e surpresa. Além dele, à luz do fogo, o rosto de Kashkari ficou cheio de horror. Os feitiços que foram lançados à distância demoraram um pouco para atingir seus alvos. E, em seu júbilo, Kashkari se esquecera de desviar pela última vez. Titus caiu.

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Capítulo 24 — Não! — West gritou. — Não! Iolanthe convocou uma corrente ascendente feroz. Eu morreria caindo, Titus já havia dito a ela. E então ela se preparou. Ele não morreria ao cair, não enquanto ela estivesse com ele, não enquanto ela fosse a grande maga elementar de seu tempo. — West, se prepare. — Com um feitiço de levitação, ela transferiu um West flutuante para o local vago no tapete de Titus. — Kashkari, desvincule meu tapete. — Feito! — Kashkari disse. Ela abaixou-se para onde Titus pairava no ar, mantendo-se no alto por sua corrente ascendente, o puxou para seu tapete. — Revivisce omnino! Revivisce omnino! Ele não mostrou nenhuma reação; seu rosto ainda tinha aquela expressão de surpresa dolorida. Ela agarrou o pulso dele... Sem pulso. Ela colocou a orelha no peito dele... Sem batimentos cardíacos. Ela não podia acreditar. Ela não podia aceitar isso. Certamente ele só ficou atordoado e não morto. — Você não ouse morrer! Agora não! Não se atreva, Titus! Kashkari, agora flutuando ao lado dela, tentou os próprios feitiços. Nada, nada.

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Sangue rugia em seus ouvidos. Eles deveriam fazer algo e deveriam fazer algo rápido. O Crucible não aceitava mortos. Titus seria expulso do Crucible se não pudessem pensar em algo. Mas o quê? O quê? Ela agarrou o braço de Kashkari. — Como os feitiços de distância matam? Como? — Parando instantaneamente o coração. Mas não consigo pensar em feitiços que façam o coração bater novamente. Nem

ela

conhecia

tais

feitiços.

O

desespero

a

engoliu.

Violentamente, ela sacudiu Titus pelos ombros – como se isso ajudasse. — Vamos! Vamos! — Posso... Posso oferecer uma sugestão? — West disse. Seu tapete, ainda subordinado ao Kashkari, o aproximara. Ela olhou para ele. Que ideias ele poderia ter? West engoliu em seco. — Meu pai é professor de biologia no Colégio King's, e faz experimentos sobre o efeito da eletricidade na estimulação muscular. Você pode comandar eletricidade. Você pode tentar ver se isso faria com que os músculos cardíacos dele se contraem? Iolanthe olhou para ele mais um momento. Que tipo de absurdo notório era esse? Mas além dessa fração de segundo, ela não hesitou. Ela juntou uma bola de relâmpagos em suas mãos e apontou a esfera de eletricidade no peito de Titus. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. A túnica dele fumegava. Ela afastou a fumaça e apagou as faíscas. Kashkari já segurava o pulso de Titus, suas sobrancelhas franzidas em concentração. — Há um pulso! — Ele gritou. — Que a Sorte me proteja. Há um pulso! Agora, era Kashkari a quem Iolanthe encarava com descrença. Como era possível? Como isso tudo era possível? — Não fique sentada, — Kashkari ordenou. — Coloque um pouco de ar nele, maldição!

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Claro. Claro. Ela separou o maxilar de Titus e forçou uma corrente em sua traqueia. Ele tossiu e meio que sentou, com um olhar de total confusão no rosto. Lágrimas encheram seus olhos. Ela o beijou loucamente, mas muito, muito brevemente. — Vamos. Vamos! *** Todo o mundo dentro do Crucible estava queimando. Eles voaram através da fumaça e fogo, com Fairfax segurando o pior de ambos no limite. Quando chegaram ao Bastião Negro, seus ocupantes estavam correndo em um frenesi, e eles tiveram pouco problema para obter acesso ao portal. Também conseguiram deixar o Bastião Negro na cópia do mosteiro do Crucible sem muita demora. Havia a questão desagradável de onde eles se encontrariam uma vez que saíssem do Crucible, e Titus deveria se preparar para isso. Mas ele simplesmente não conseguiu se livrar de seu absoluto espanto de estar vivo. Em qualquer outro momento ele se voltaria para Fairfax e perguntaria: — Você tem certeza de que ainda estou nesta terra? Tem certeza de que isso não é o Além? Ela simplesmente sorria e o beijava novamente. Por volta da décima quinta vez que ele perguntou, ela disse: — Eu prefiro pensar que todos nós estaremos mais limpos no Além. Era verdade que eles estavam em um estado terrível de sujeira – a fuligem no rosto dela havia manchado onde suas lágrimas escorreram. Pior ainda, havia um corte no braço e outro na sua lateral, e ela nem podia dizer o que aconteceu – ou quando. Ele se virou para West, provavelmente também pela décima quinta vez, e disse: — Se alguma vez houver algo que a Casa de Elberon possa fazer por você, me avise.

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West balbuciou um pouco, antes de limpar a garganta e dizer: — Eu ainda estaria preso naquele lugar horrível se todos vocês não aparecessem. Então eu diria que estamos quites. *** Quando o castelo da Bela Adormecida – e o momento da verdade – aproximou-se, Titus ficou em silêncio, perguntando-se se o pior ainda estava por vir. Fairfax colocou a mão sobre a dele. — Nós vamos superar isso. Ele ergueu a mão para sua bochecha, além de agradecido – ninguém que derrubou Bane poderia dizer ter vivido nada menos do que uma vida extraordinariamente completa. — Olhe para isso! — Kashkari gritou. A alguns quilômetros à frente, uma luz azul prateada disparou no ar. Ampliada para assumir a forma de uma fênix gigante, brilhando contra o céu noturno. Titus ficou atônito. — É o sinal de um aliado – um aliado da Casa de Elberon. Rapidamente, ele aplicou um feitiço de longa distância. Abaixo do sinal, no prado diante do castelo da Bela Adormecida, havia um homem, acenando. E esse homem não era outro senão um dos melhores aliados de Titus, Dalbert. *** Após o discurso de Titus na varanda da Cidadela, os magos começaram a lançar feitiços incendiários nos carros blindados que pairavam acima de Delamer e mantinham a cidade em um estado de cerco. A situação aumentou rapidamente. Depois de alguma hesitação, a Comandante Rainstone, que liderou a força que foi ajudar Titus e

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Iolanthe no deserto do Saara, decidiu não esperar mais e derrubou os carros blindados. No fim das contas, a incursão nas instalações sob as Montanhas Serpentine que tanto consternaram Titus não destruiu todo o arsenal de máquinas de guerra. Na verdade, a incursão permitiu enganar o povo de Atlantes, que pensaram que a resistência havia sido colocada de joelhos. Com máquinas de guerra novas e melhores escondidas em outro lugar, principalmente nas Montanhas Labyrinthine, as forças do Domínio derrubaram os carros blindados e avançaram sobre o Inquisitório. Este último ocorreu apenas algumas horas atrás, e todos estavam esperando, em um estado de tensão, para ver qual seria a reação de Atlantis. A morte de Bane mudou a vantagem decisivamente para aqueles que há muito se opuseram a ele, mas a situação continuou fluída e perigosa. Atlantis tinha uma grande força militar e contingentes instalados em todo o mundo mago. Quem controlaria essa estrutura no vácuo de poder deixado com a morte do Senhor Comandante Supremo? — Precisamos de sua ajuda para tomar decisões cruciais, senhor, — Dalbert disse após resumir os acontecimentos nos últimos dias. As três cópias do Crucible que Atlantis havia confiscado foram mantidas no Inquisitório em Delamer – Bane não queria nada que pudesse funcionar como um portal para seus inimigos na própria Atlantis, mas não queria destruí-los caso pudessem ser úteis para ele. Dalbert tornou uma prioridade recuperar as cópias após o ataque ao Inquisitório e os trouxera para uma casa de campo numa saliência das Montanhas Serpentine, onde os pais de Titus frequentemente se encontravam durante o namoro clandestino. E foi assim que Titus e seus amigos também se encontraram no antigo ninho de amor de seus pais, uma casa pequena e arejada, com paredes cor creme e decoração nas cores do mar. Dalbert tinha remédios, banhos e alimentos esperando por eles, e enquanto eles se refrescavam, verificou a perna de West.

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Titus lavou-se. Então, em uma macia túnica azul que cheirava a nuvem de pinho e musgo prateado, sentou-se na sala de jantar, ao lado de uma Fairfax comendo ativamente. — Hmmm, já está franzindo a testa, — ela disse. — Eu vejo que a alegria de estar vivo não dura muito com você. Aquela que ele amava conhecia-o muito bem. — Infelizmente, está começando a cair a ficha, que já que eu sobrevivi, eles esperam que eu realmente governe. Isso quase me faz querer estar lidando com Bane em vez disso. Ela revirou os olhos. — Seu idiota. Você já esqueceu o que era lidar com Bane? Cuide de seu maldito Domínio e seja grato. Ele riu. — Eu merecia isso, não é? Cale-se e governe. — Sim, você mereceu isso. — Ela empurrou um croissant de chocolate na boca e fechou os olhos por um instante de pura felicidade. — Mas aqui está outro pensamento: você fará isso muito bem. Na verdade, algum dia você pode ser igualado no mesmo patamar que Titus, o Grande e Hesperia, a Magnífica – não por mim, tenha em mente, apenas historiadores que não te conhecem tão bem. Ele riu novamente, sentindo-se leve e feliz. Do lado de fora, o horizonte finalmente virava um pálido alaranjado. A noite mais longa de sua vida chegou ao fim. Um novo dia estava começando. *** Kashkari havia acabado de se juntar a eles quando Dalbert anunciou a Comandante Rainstone, que estava do lado dele afinal de contas. Titus cumprimentou-a calorosamente e ofereceu a ela e a Dalbert um assento na mesa. Comandante Rainstone analisou a situação em maior detalhe. Então ela disse: — Em circunstâncias extraordinárias, o Conselho Superior pode aprovar entregar as rédeas de poder a um soberano que ainda é menor de idade. Essas são certamente circunstâncias extraordinárias, e não tenho dúvidas de que será

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aprovada unanimemente. Você pensou, Sua Alteza, sobre a melhor maneira de prosseguir? Titus olhou para Fairfax – eles estavam falando sobre isso antes que os outros três chegassem à sala de jantar. Ela assentiu. Ele exalou. — Bane destruiu por muito tempo qualquer pessoa que pudesse emergir como uma ameaça para ele. Não há ninguém esperando para sucedê-lo em Atlantis. Parece-me que o Domínio deve intervir e desempenhar um papel importante no futuro próximo, talvez na direção da própria Atlantis. Para fazer isso, precisamos, até certo ponto, do consentimento das pessoas de Atlantis. Proponho que eu tome a responsabilidade pelo que aconteceu e forneça um relato detalhado dos muitos segredos de Bane. Será um choque traumático para a maioria dos atlantes, mas a verdade é o único remédio em uma situação como essa. — Eu acredito que a Sra. Hancock deixou um relato da história dele – e as evidências que ela reuniu – em uma caixa de segurança no Banco da Inglaterra, — Kashkari disse. — Ela era uma Atlante que perdeu uma irmã com a prática de magia sacrificial de Bane, suas palavras carregariam peso significativo. — As palavras de Lady Wintervale também terão grande peso, — Dalbert acrescentou. — Ela está bem? — Fairfax exclamou. — Ela está muito bem – ela foi mantida no Inquisitório em Delamer. Eu falei com ela, e ela está mais do que disposta em deixar o mundo saber o que Bane fez com o filho dela. — Aqui vem a parte mais difícil, — Titus disse. — Bane tinha muitas pessoas leais que se beneficiavam bastante por sua associação com ele. E há aqueles em Atlantis que sentirão ressentimento com a perda de poder e prestígio do mundo. Na intersecção desses dois grupos, podemos esperar encontrar magos que estarão determinados a ignorar a verdade, não importa quão bem documentada. E eles desejarão buscar vingança pelo que considerarão um assassinato. A Sra. Hancock não está mais viva – e não deixou nenhuma família viva. Lady Wintervale não tem

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mais ninguém além dela. E quanto a você, Kashkari, você está preparado para aceitar o crédito por ter matado Bane? Kashkari ficou em silêncio por um minuto. — Eu sei que fiz isso, e é o bastante para mim. Não estou disposto a colocar em perigo a minha família ao ser conhecida publicamente como a que realizou a ação. Felizmente, minha contribuição no assunto pode ser obscurecida facilmente, mas Fairfax... — ele se virou para ela. — Seu papel não pode ser encoberto. — Não, realmente, — a Comandante Rainstone disse. — A maior parte sobre a grande maga elementar terá que ser dita. Fairfax franziu a testa. — Sua Alteza pode estender a proteção da coroa para a Senhorita Seabourne, — Dalbert sugeriu. Fairfax piscou. — Mas isso exigiria que nos casássemos, não é? Não temos idade. Tornar-se

uma

princesa

consorte,

com

todos

os

seus

compromissos e obrigações, não era o que Titus queria para ela também. Não agora, pelo menos, não quando ela estava finalmente a ponto de alcançar seu sonho de participar do Conservatório. — Acredito que posso ter previsto a solução, — Kashkari disse. Todos os olhos se voltaram para ele. — Você se lembra? Fairfax, quando estávamos em Atlantis, e pensei ter sonhado com o seu funeral? Fairfax assentiu. — Você me disse que aconteceu diante da grande Catedral Angélica de Delamer, onde apenas os funcionários estatais são mantidos. — Kashkari olhou em volta da mesa. — Já que minha cunhada faleceu na forma de Fairfax, por que não realizar um funeral de estado para ela? Os leais ao Bane não caçarão Fairfax se acreditarem que ela já está morta. — Essa é uma ideia engenhosa, — Dalbert disse. — Ninguém além dos que estão nesta sala sabem que a Senhorita Seabourne voltou de Atlantis, e nós guardaremos esse segredo.

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Iolanthe colocou a mão no braço de Kashkari. — Você tem certeza? Ele sorriu fracamente. — Precisarei consultar meu irmão, é claro. Mas, no essencial, acredito que Amara poderia ter se divertido por ter uma despedida tão grandiosa. *** Kashkari foi escrever para o irmão. Dalbert partiu em suas muitas e muitas vezes misteriosas tarefas. Mas a Comandante Rainstone permaneceu na mesa. — Se você não se importar por perguntar, Sua Alteza, Senhorita Seabourne, o que aconteceu com o Mestre Horatio Haywood e a Senhorita Aramia Tiberius? — O Mestre Haywood morreu nos defendendo com um feitiço de último mago. A Senhorita Tiberius está atualmente com as autoridades da Atlantis, eu acredito – ela nos traiu. A Comandante Rainstone respirou fundo. — Oh, aquela criança. — A maçã não cai muito longe da árvore. — Então você sabe que ela é realmente a carne e o sangue de Lady Callista, senhor? Isso chamou a atenção de Titus. — Você também sabe? — Depois que Horatio fez a mudança, eu as destroquei. Fairfax ofegou. — Foi você quem nos destrocou? A Comandante Rainstone suspirou. — Provavelmente você sabe que eu li o diário de Sua Alteza, Senhorita Seabourne, que eu li sob pressão – Callista, minha meia-irmã, continuou insistindo que algo terrível aconteceria com seu filho se eu me recusasse a descobrir o que Sua Alteza poderia ter previsto. No fim das contas, eu li uma visão de um homem trocando duas crianças de lugar em um berçário, em uma noite durante a qual parecia haver um banho constante de fogos de artifício do lado de fora da janela17. Quando saí do hospital, depois de ter sido pega 17

O texto das entradas que a Comandante Rainstone leu no diário da princesa Ariadne:

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espionando pela própria Alteza, eu vi a tempestade de meteoros e percebi que as marcas de estrelas que caíam eram o que a Alteza havia previsto. De repente, entendi por que Callista passava tanto tempo com Horatio, porque conhecia uma menina órfã naquele hospital, e porque aquela garota logo iria para um parente que nunca a viu antes. Eu decidi então que não permitiria que Callista fizesse isso. Ela não roubaria o filho de outra pessoa. E desfiz a troca. Eu estava com medo de que Callista pudesse tratar seu próprio filho como um simples chamariz. Mas isso não aconteceu, na maior parte do tempo, Callista manteve suas memórias suprimidas e não pensou em Aramia como a criança de outra pessoa – embora estivesse desapontada por Aramia não ser linda, nem encantadora. Passei o tempo com a minha sobrinha quando eu podia. Eu queria ser um tipo diferente de influência na vida dela. E no começo ela provou ser uma criança muito gratificante, brilhante, inquisitiva, sempre atenta e com bons costumes. Mas, posteriormente, eu vi que ela estava obcecada em ganhar o amor da mãe, o tipo de pessoa que não se importava com o que esmagava sob os pés, ou que esta mãe tratava quase todos com uma indiferença monstruosa, exceto a si mesma. Eu parei de me envolver com Aramia, mas devo me desculpar por isso. 6 de maio, AD 1012 Por que raramente vejo boas notícias? O descobrimento do amor e da amizade. O justo e corajoso recompensado por sua coragem e sacrifício. Ou mesmo um novo presente recebido – pelo menos aquilo seria algo para aguardar. Não, em vez disso eu vejo a morte e o infortúnio. E quando tenho sorte, coisas que não consigo interpretar de uma maneira ou de outra. Agora, nesta visão. É um hospital – ou pelo menos parece ser a maternidade de um hospital, com uma série de recém-nascidos em filas de berços. Um homem, com um jaleco branco e uma touca branca, seu rosto coberto por uma máscara protetora, checa todos os bebês, um a um. Ele para diante de dois berços e olha para os bebês por um longo tempo. Então, com um olhar para a janela que dá de frente ao corredor, ele rapidamente troca os bebês. Tão frustrante – o homem está claramente cometendo um erro terrível. No entanto, porque não aconteceu ainda, não posso fazer nada. Também não consigo reconhecer o hospital, apesar de ter visitado uma série de hospitais no verão passado, especialmente nas províncias. Aguardarei a visão voltar e esperarei mais informações de identificação. 19 de agosto, AD 1012 A visão veio novamente. Desta vez eu pude ver que há fogos de artifício pela janela, uma chuva constante de raias douradas. O aniversário do meu pai ou um dia de festa? – Trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião.

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A Comandante Rainstone inclinou a cabeça na direção de Titus. — No início, eu falei sobre a varinha irmã de Validus. Ela passou a informação para Atlantis quando o novo Inquisidor quis saber como poderia encontrar Sua Alteza após você escapar da redoma no deserto. — Você também contou a ela sobre o disruptor de destino em minha posse? — Titus perguntou. — Que me permitiria usar um translocador no Leste de Delamer para chegar à Atlantis? — Não. De acordo com aqueles no Inquisitório, Aramia lhes disse que foi o príncipe Gaius que lhe mostrara o disruptor há muito tempo. — A

Comandante

Rainstone

voltou-se

para

Fairfax.



Senhorita

Seabourne, por favor, deixe-me pedir desculpas para você também. Eu nunca deveria ter falado da varinha filha de Validus para qualquer um, relação de sangue ou não. Espero que você me perdoe por colocar sua vida em perigo. — Muito pelo contrário, — Fairfax disse. — Estou muito grata por você não me deixar crescer sob a influência da Lady Callista. Eles ficaram em silêncio por algum tempo. A Comandante Rainstone levantou e se curvou para Titus. — Com sua permissão, senhor, eu voltarei aos meus deveres. Titus assentiu. Quando ela chegou à porta da sala, Fairfax se levantou. — Se você me desculpar, Comandante. Você e meu guardião eram amigos – muito bons amigos, eu acredito. Você falou com ele sobre o que fez? A Comandante Rainstone sacudiu a cabeça. — Por um tempo eu fiquei tão chateada com Horatio quanto estava com Callista. Mas depois, um ano após o nascimento de Aramia, pedi para encontrá-lo. Ele disse apenas que estava muito ocupado. Um ano depois, ele me contatou. Mas quando nos encontramos, percebi que a única lembrança que ele tinha de Callista era da primeira vez que a viu. Mais tarde naquele dia, eu enfrentei Callista. Mas ela também não sabia do que eu estava falando – as memórias dela também foram suprimidas. Fiquei completamente frustrada: eu não poderia ajudá-lo, nem consegui encontrar ajuda para ele. Então me afastei de Horatio, sentindo que nossa amizade

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simplesmente não era forte o suficiente para resistir ao que ele havia feito e quem se tornou. Fairfax deslizou os dedos ao longo da borda da mesa. — E vocês foram... Mais do que apenas amigos? Titus se lembrou da foto que Fairfax lhe mostrou de Haywood e a Comandante Rainstone há muitos anos – eles pareciam ter sido completamente apaixonados um pelo outro. A Comandante Rainstone sacudiu a cabeça. — Não, nós éramos muito amigos, muito bons amigos, mas nunca mais que amigos. Aquele que eu amava era... Ela olhou para as mãos antes de seu olhar chegar a Titus. — Aquele que eu amava era a Sua Alteza, senhor, sua mãe18. *** Iolanthe e Titus nem foram para a cama, mas adormeceram em sofás longos no solário. Em algum ponto, ela percebeu que Titus estava falando com ela. — ...Aprovada a transferência de poder. Preciso ir. Eu amo você. Ela fez alguns sons. Provavelmente era uma série de mmmms, mas sentiu que ele saberia que ela lhe falava que o amava com uma ferocidade que assustaria a maioria dos wyverns.

Comandante Penelope Rainstone: Às vezes, os relatórios fazem parecer que minha ruptura com a princesa Ariadne era permanente. O que não foi o caso. Sua Alteza me dispensou, já que eu li seu diário sem autorização e me recusei a dar uma razão. Mas seis meses depois eu fui vê-la. Deixei claro que eu nunca poderia confessar por que eu bisbilhotei – Callista não queria que ninguém soubesse que somos parentes, que sua mãe se entregara a um caso com um jardineiro durante seu casamento. Mas eu pedi a Sua Alteza para entender o meu dilema, como uma mulher que também tinha segredos, que não podia dizer ao mundo. Ela ficou em silêncio por um longo tempo, mas então ela acenou com a cabeça lentamente. Não posso dizer o quanto isso significou para mim, seu perdão. Eu ofereci um juramento de sangue, como um gesto de minha gratidão e lealdade. Ela declinou, mas disse que se eu quisesse, eu poderia fazer esse mesmo esforço para o filho dela. Eu fiz. Na época, eu não tinha ideia de que anos mais tarde a promessa, que me ligava a Sua Alteza, me permitiria romper o cerco da redoma no deserto do Saara. Os fios do destino tecem misteriosamente. – De A Última Grande Rebelião: uma história oral 18

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Quando acordou de novo, era tarde e uma chuva estável caía lá fora. Ela saiu na varanda coberta e sugou uma respiração: o grande campanário do Conservatório, a menos de meio dia de distância! E os telhados vermelhos das faculdades, subindo acima da linha da árvore. E se estreitasse os olhos, ela poderia até mesmo se convencer de que estava olhando o fluxo de sombrinhas coloridas na University Avenue. — Vejo que você está acordada, Senhorita Seabourne, — veio a voz de Dalbert. Ela virou. — Oh, mestre Dalbert, eu sei que você não tem tempo de sobra. Mas você teria um lacaio que pudesse enviar para trazer uma cópia do exame de admissão da Academia superior que ocorreu em maio? Dalbert sorriu. — Considere isso feito. Enquanto isso, eu tenho um visitante esperando por você. — Quem é? — Quem mais sabia que ela estava aqui? — Mestre Kashkari, — Dalbert respondeu. — Mestre Vasudev Kashkari. Ela exclamou suavemente. — Quando ele chegou? — Cerca de meia hora atrás. Dalbert conduziu-a para a sala de recepção, onde Vasudev Kashkari esperava. A semelhança familiar era óbvia: os irmãos tinham a mesma construção, os mesmos olhos negros expressivos e a mesma boca alegre. No entanto, a diferença imediatamente a atingiu; havia uma grande gentileza no irmão mais velho. O irmão mais novo, por todos os seus modos impecáveis, era tenso. Mas Vasudev Kashkari era do tipo de sorrir e rir facilmente. Pelo menos ele deve ter sido uma vez. Eles apertaram as mãos. — Por favor, sente-se, — ela disse. — É uma honra conhecê-lo. — A honra é minha. Você conseguiu o que os magos têm aspirado há gerações. — Não sem ajuda. Não sem o sacrifício de muitos. — Ela já tinha lágrimas em seus olhos. — Nunca teria feito isso sem Durga Devi.

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— Eu fui vê-la agora mesmo, — ele disse suavemente. — Foi-me dito que ela parecia com você, mas ainda assim foi... Foi um choque. — Sinto muito por você não conseguir olhar o rosto dela uma última vez. — Eu já fiz isso antes de deixar o deserto. Ela me contou exatamente o que queria fazer. — Então você sabia que ela era mutável? Ele sorriu ligeiramente. — Eu nunca disse a ninguém essa história – sua mutabilidade era algo que tínhamos mantido em segredo, mas eu me apaixonei por ela quando ela parecia muito diferente. — Oh, — Iolanthe disse. — Você sabe que os mutáveis podem tomar a forma de qualquer pessoa quando são crianças, mas só podem mudar de forma uma vez quando são adultos? Ela assentiu. —

Nós

nos

conhecemos

durante

o

tempo

em

que

ela

provavelmente deveria ter parado de assumir as aparências de outros. Mas ela estava relutante em abandonar a liberdade de não ser encarada em todos os lugares em que fosse. Então eu a vi como a prima dela, Shulini19.

Vasudev Kashkari: Eu tinha vinte anos quando saí de casa para o deserto do Saara. Nunca houve dúvida de que eu queria fazer parte da resistência – mesmo que meu tio não fosse Akhilesh Parimu, eu ainda desejaria contribuir. Pouco depois de chegar à minha primeira base rebelde, no Saara Ocidental, uma mensageira veio de outra base. Eu a observei no almoço, falando e rindo com alguns dos meus amigos. Eu não tinha o hábito de me aproximar das meninas, mas havia algo irresistível em seu calor e vivacidade – e ela tinha um sorriso encantador. Na próxima refeição, reuni a coragem e me sentei ao lado dela. Nós conversamos. Por coincidência, sua mãe era dos Ponentes, o reino nativo dos meus avós. Então conversamos mais e mais. Nós fomos os últimos a deixar a cantina naquela noite. Na manhã seguinte, nos encontramos novamente para o café da manhã e conversamos até que ela teve que ir. Quando ela foi embora, andei disperso durante o resto do dia. Naquela noite, eu escrevi algumas linhas no meu caderno de duas vias. Ela respondeu imediatamente e continuamos escrevendo por horas. Isso se tornou um padrão: todas as noites nós escrevíamos um para o outro, sobre o que aconteceu naquele dia e tudo sob o sol. [Sorriso]. Eu tive que pegar um novo caderno depois de semanas porque conversamos muito. Sugeri muitas vezes que devíamos nos encontrar de novo. Mas ela sempre encontrou alguma dificuldade. Depois de quatro meses, eu tive o suficiente e inventei uma tarefa 19

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para melhorar o sistema de irrigação em sua base. Mas quando cheguei lá, ninguém na premissa sabia de quem eu falava. Eles se revezavam com mensageiros e ninguém usava o nome de guerra de Durga Devi. Quando mencionei sua conexão com os Ponentes, eles apontaram para uma jovem intimidantemente linda como a única com uma mãe desse reino. Minhas repetidas perguntas no caderno não obtiveram respostas. Não sabia o que fazer. Senti como se eu fosse o maior idiota. Eu também estava completamente perturbado: eu gosto de resolver problemas, e os problemas que não apresentavam soluções racionais me deixavam inquieto e irritado. Quando terminei minha tarefa e estava prestes a ir embora, uma mensagem finalmente veio dela, implorando para ficar na base dela, embora ela não estivesse lá e ninguém soubesse nada sobre ela. Se ficasse, eu encontraria respostas, ela disse. Eu agonizei minha decisão, mas no final eu fiquei. Eu a amava e precisava vê-la novamente. Se ficar na base dela me levaria de volta para ela, então era o que eu faria, apesar das minhas dúvidas. Enquanto isso, Amara foi promovida para supervisionar suprimentos e logística para a base, o que nos proporcionou uma interação em intervalos regulares. Eu achei essas ocasiões incômodas: geralmente ela era bastante breve, nunca olhando nos meus olhos. E nem precisa dizer que minhas conversas noturnas com a que eu amava também ficaram afetadas e incômodas. Eu não podia apenas fingir que tudo era o mesmo que antes. Três semanas depois eu disse que ela precisava me ver cara a cara e me contar tudo antes de outro mês começar. Nós discutimos de um lado para o outro e finalmente concordamos em nos encontrar no dia seis do próximo mês. Uma semana antes do nosso encontro, eu a vi na cantina, conversando com um grupo de tapetes como se não se importasse com nada. Eu olhei para ela. Ela olhou para mim e sorriu – deu um sorriso, mas um sem qualquer sugestão de reconhecimento. A seguir, eu soube, Amara segurou o meu braço e me arrastou para longe da cantina. Nós quase brigamos, ela me puxando e eu tentando voltar para a garota cuja ausência me consumiu há meses. — Aquela é a minha prima Shulini. — Amara falou na minha orelha. — Você nunca a conheceu, nem ela a você. Eu tomei a forma dela quando fui à sua base. Eu não podia falar através do meu choque - mutáveis são tão raros na vida real que a possibilidade nunca passou pela minha mente. Ela explicou que quando se afastava da base, ela geralmente assumia o aspecto de Shulini, porque seu próprio rosto atraía o olhar das pessoas. Mas ela precisou parar porque estava ficando velha demais para mudar à vontade, pelo menos não sem medo de acabar ficando permanentemente como outra pessoa. Fiquei com raiva. Já nos conhecíamos há dez meses. Em qualquer ponto, ela poderia ter me contado. Em vez disso, ela escolheu me deixar ferver minha própria ansiedade. Ela disse que tinha medo de me perder, já que eu nunca mostrei o menor interesse por ela. — Que tal agora? Você me perdeu, de qualquer maneira, — eu disse e me afastei. Por alguns dias eu me mostrei a Shulini em volta da base. Ela era uma garota legal, mas não havia nenhuma faísca entre nós, o que me deixou ainda mais irritado. Amara eu ignorei completamente. Mas ela não desistiu de mim. Ela conseguiu que nos atribuíssem o dever de patrulha da noite juntos. No escuro, quando eu não podia ver seu rosto, mas só ouvia sua voz – por isso ela falara tão pouco comigo desde que eu estava em sua base, porque ela ainda tinha a mesma voz. E eu adorei a voz dela, o ritmo, a precisão das vogais, e especialmente a maneira como ela às vezes cantarolava um pouco para si mesma. A partir daí, começamos nossa reconciliação. Demorou um tempo para eu me apaixonar por seu rosto – eu costumava me surpreender toda vez que eu via, especialmente se ficássemos sentados lado a lado por um tempo, conversando sem olhar um para o outro. Posteriormente, ela brincou com a intenção de se casar comigo porque eu era o único homem que a preferia no escuro. [Sorriso novamente.]

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Iolanthe conheceu Shulini, que era uma jovem de aparência simpática, mas dificilmente uma beleza da magnitude de Amara. — Que história deve ter sido. Eu queria... Gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-la melhor. — Você viu como ela se comportou sob as condições mais extremas. De certa forma, você não poderia conhecê-la melhor do que isso. Mas sim, gostaria que a conhecesse em circunstâncias diferentes, quando era simplesmente uma pessoa calorosa e maravilhosa para estar por perto. Os olhos de Iolanthe, mais uma vez, se encheram com lágrimas. — Você fez... Você pediu a ela para não fazer isso? Para não ir a um empreendimento do qual ela não voltaria? Ele olhou para a janela por um momento, para a chuva que ainda caía. Ela notou pela primeira vez que ele usava o bracelete de Amara no pulso. — Eu queria, — ele disse suavemente. — Eu queria muito implorar para que ela não partisse. Mas ela era mais do que a mulher que eu amo; era uma lutadora. E não se prende um lutador quando a batalha está na linha. Esse homem talvez não tenha terminado pessoalmente a existência de Bane, mas ele não era menos notável do que o irmão dele. Ela estendeu a mão e segurou as mãos dele. — Ela era a maga mais valente que já conheci. Vocês dois têm minha eterna gratidão.

E aí está a nossa história. Entrevistador: Após se reconciliarem, quanto tempo vocês ficaram juntos? V. Kashkari: Três anos e onze meses. Entrevistador: Muito pouco tempo. V. Kashkari: Todos os bons anos são curtos, assim como todas as vidas completas. – De A Última Grande Rebelião: uma história oral

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Vasudev Kashkari olhou para ela por um momento. — E você a nossa. Nunca se esqueça disso. *** A história da morte de Bane foi lançada naquela noite. Iolanthe leu em sua cópia do Observador Delamer, fascinada, embora já soubesse de tudo. O artigo, que ocupou quase a totalidade do jornal, terminou com: Pela segurança deles e a segurança de suas famílias, todos os que desempenharam papéis

importantes

em

tais

eventos

não

foram

mencionados pelo nome. Pela extraordinária coragem e astúcia, devemos a eles nossa eterna gratidão. Durante as próximas 48 horas, toda a cidade celebrou euforicamente. E então veio o funeral estatal. Dalbert assegurou a Iolanthe e West uma sala de recepção vazia no Museu Memorial Titus, o Grande, ao lado da catedral. Eles chegaram quando o sol estava se pondo, as janelas da catedral cintilando na luz moribunda do dia. Um enorme aglomerado de magos, silenciosos, sóbrios e todos vestidos de branco, atravessavam a Avenida do Palácio. A perna fraturada de West já havia curado. Ele poderia ter voltado para a Inglaterra, mas desejava assistir ao funeral. Enquanto eles esperavam a procissão começar, eles conversaram sobre os planos dele, os dela e todas as coisas maravilhosas que ele viu no Domínio. Então ela disse: — Posso fazer uma pergunta? — Claro. — Você estava bastante interessado no príncipe, no início do último – não, neste semestre. Ele costumava ser um pouco desconfiado. Eu me perguntei se você não era um espião atlante – mas você não é. Então, por que você tinha tantas perguntas sobre Sua Alteza? Uma pequena cor apareceu no rosto de West. — Eu o vi pela primeira vez no quatro de junho, quando a família dele instalou uma

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corte sob aquele enorme dossel branco. Ele estava lindo e zangado. E bem – West encolheu os ombros. — Pensei nele o verão todo. Iolanthe descansou os dedos contra os lábios. — Eu nunca adivinhei essa direção. — Prometa-me que você não contará a ele. Ela estava prestes a tranquilizá-lo de que Titus dificilmente mudaria sua opinião sobre West por causa disso quando percebeu que era simplesmente o pedido de um jovem orgulhoso que desejava manter seu amor não correspondido para si mesmo. — Eu prometo. *** À medida que as primeiras estrelas apareceram no céu, as centenas de tochas colocadas ao longo da Avenida do Palácio explodiram em chamas. As notas etéreas da oração dos Serafins aumentaram, quase inaudíveis no início, depois ficando cada vez mais fortes, mais apaixonadas. A procissão fúnebre começou a partir da Cidadela, os ataúdes que levavam os falecidos não eram carregados por pégasus, nem mesmo a fênix, mas levados nos ombros dos magos. A multidão juntou-se à oração, centenas de milhares de vozes levantadas. — Você sai de uma nave que sai do porto? Você volta como chuva na terra? Eu vou guiá-lo no Além, se eu estiver no alto da luz mais brilhante aqui na terra? Cinco ataúdes chegaram à praça diante da catedral: Amara, Wintervale, Titus Constantinos, Sra. Hancock e Mestre Haywood – os dois últimos representados por realistas estátuas de madeira. O Mestre do Domínio era um dos portadores do ataúde de seu pai, os irmãos Kashkari por Amara, Lady Wintervale para o filho, e a Comandante Rainstone para a Sra. Hancock. Iolanthe ficou tocada em ver Dalbert como portador do Mestre Haywood. Os falecidos foram colocados em suas piras. A oração subiu para um crescendo, depois se desvaneceu em completo silêncio. O Mestre do Domínio, solene e convincente, dirigiu-se à multidão. — Diante de vocês

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repousam a coragem, perseverança, gentileza, amizade e amor. Diante vocês repousam homens e mulheres que poderiam ter feito outras escolhas, que poderiam ter se acostumado com as injustiças do mundo, mas preferiram dar suas vidas para mudá-lo. Hoje à noite os honramos. Esta noite também honramos todos os que foram antes e abriram o caminho, os que lembramos e os que nos esquecemos. Mas nada está perdido na eternidade. Um momento de graça ressoa para sempre, assim como um ato de valor. Então honre os mortos – e viva em graça e valor. Uma a uma ele acendeu as piras. As chamas brotaram cada vez mais, chicotando, estalando. Uma voz de criança, tão clara e brilhante como o clarão dos anjos, aumentou com as notas de abertura da ária adamantina: — O que é o Vazio, senão a ausência de Luz? O que é Luz, senão o fim do Medo? E o que sou eu, senão a forma de Luz? O que sou eu, senão o começo da Eternidade? Com o braço de West em torno dela, Iolanthe chorou. *** Escoltado por Dalbert, West voltou à Inglaterra na manhã seguinte. Os irmãos Kashkari se despediram de Iolanthe pela tarde. Eles se moveram abertamente em Delamer, sob o pretexto de cartas que chegaram recentemente para discutir a situação com o Mestre do Domínio. Mas agora era hora de voltarem. Ela abraçou os dois irmãos. — Cuidem-se. — Você também, Fairfax, — Kashkari disse. — E antes de irmos, isso é para você. Ela aceitou a bela caixa de mogno. — Para mim? Kashkari assentiu. Pela primeira vez em muito tempo, parecia haver um toque de alegria nos olhos dele. Ela abriu a caixa e gargalhou. No final do semestre de verão, para agradecer a Kashkari pela ajuda que ele havia dado ao príncipe e a ela mesma na noite de quatro de junho, eles compraram um muito elegante conjunto de barbear com monograma.

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E agora, Kashkari havia devolvido o favor, e Iolanthe segurava em suas mãos um conjunto de barbear com monograma nos cabos de marfim e detalhes em ouro, quer teriam feito Archer Fairfax levitar com orgulho viril. Eles ainda riam quando se abraçaram novamente. Depois que os irmãos se foram, Iolanthe olhou o conjunto de barbear por um longo tempo, pegando cada item e sentindo seu peso e forma, esfregando os dedos contra as iniciais em relevo no topo da escova de barbear. E desejou ferozmente o bem-estar e felicidade desses jovens notáveis. *** Quando Titus voltou à casa de campo naquela noite, Fairfax estava deitada em um longo sofá no solário, os olhos fechados. Quando ele se aproximou dela, viu o diário de sua mãe em uma mesa lateral, uma entrada prontamente visível. Seu peito apertou. O que ele precisava saber agora? No topo da entrada do diário havia uma nota de Fairfax. Achei isso. Pensei que gostaria de vê-lo. Por uma vez, é uma boa notícia.

26 de abril, AD 1021 O dia em que sua mãe morreu. Por anos rezei por uma visão que eu realmente queira ver. Aconteceu hoje, um minuto breve e intenso. Naquela visão, vi meu filho sendo abraçado por seu pai, ambos se moviam além das palavras.

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Meu rosto está molhado com lágrimas. Não tenho tempo para escrever maiores detalhes, pois meu pai já chegou ao castelo e a hora marcada da minha morte está a poucos minutos de distância. Pelo menos agora posso dizer ao meu filho, nem tudo será perdido. Nem tudo será perdido. Ele leu a entrada mais algumas vezes, limpando as lágrimas nos cantos dos olhos. Depois de fechar o diário, ele viu que havia lido apenas metade da nota de Fairfax. A outra metade dizia: Estou na casa de verão da Rainha das Estações. A estação dentro do Crucible refletia aqui fora, exceto quando a história em si tinha condições climáticas excessivas. Na casa de verão da Rainha das Estações, sempre era verão, sempre lindo e adorável. As lanternas pendiam das árvores. As lâmpadas cintilavam entre os ramos frondosos. Ela estava sentada na balaustrada de pedra com vista para o lago, contemplando as estrelas. Ele subiu na balaustrada e sentou-se ao lado dela. Ela colocou o braço ao redor dele e o beijou na têmpora. — Feliz? — Sim. A mão dela roçou seu braço. — Estou prestes a deixá-lo ainda mais feliz. Seu pulso acelerou. — Não vejo como isso é possível. Ela colocou algo na palma de sua mão, algo leve e incrivelmente macio. Uma pétala de rosa. — Olhe ao redor. Ele deveria ter ficado cego – ou tinha olhos apenas para ela. Agora ele notou que havia pétalas de rosa em todo o lado; ao longo do caminho, no gramado suavemente cortado, de ambos os lados da balaustrada, e até flutuando no lago abaixo. Ele riu. — Quando você muda de ideia, você muda muito. — Espere até ver a tonelada de pétalas lá dentro. Você ficará cheio de admiração. Ele saltou da balaustrada e a colocou no chão também. — O imprevisto é a minha posição padrão quando se trata de você, relâmpago.

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Agora, deixe-nos ver se eu sou homem o suficiente para ficar deitado quando confrontado com uma avalanche de pétalas de rosa. Ela também riu. De mãos dadas, eles entraram na casa de campo, beijando-se enquanto fechavam a porta.

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Epílogo O cheiro de manteiga e baunilha envolveu Iolanthe no momento em que ela entrou na loja de doces da Sra. Hinderstone. O estabelecimento brilhante e elegante era um dos lugares favoritos de Iolanthe em Delamer. Ali serviam intrigantes sorvetes no verão, uma xícara de chocolate quente muito gratificante no inverno, e uma ótima seleção de pastelaria todos os dias do ano – sem mencionar a vitrine de doces. — Bom dia, minha querida, — disse a Sra. Hinderstone, radiante. Ela ficou ao lado do balcão. Acima dele, pendurado no teto, estava uma placa em que se lia: Livros de Artes Obscuras podem ser encontrados no porão, gratuitamente. E se você localizar o porão, gentilmente alimente o gigante fantasma lá dentro. Saudações, E. Constantinos. Antes de a Sra. Hinderstone comprar as instalações, o lugar era uma livraria administrada por ninguém menos do que o avô paterno do Mestre do Domínio – embora ninguém soubesse disso, nem mesmo o próprio príncipe. A Sra. Hinderstone manteve alguns livros, uma coleção bem grande para os clientes lerem enquanto esperam seus pedidos ou bebiam o chá da manhã. E ela manteve a maioria dos lembretes da livraria, incluindo um que dizia: Eu prefiro ler a comer. Iolanthe gostou

324

imediatamente

da

Sra.

Hinderstone

por

seu

senso

de

humor

autodepreciativo. — Bom dia, — Iolanthe retornou a saudação. — Como você está? — Estive esperando que você entrasse para lhe dizer isso. Eu tive tantas poções e elixires para o meu cotovelo ao longo dos anos, mas esse seu experimento – é um milagre! Não posso agradecer o suficiente. — Que bom! — Iolanthe sorriu – ela gostava bastante de ser útil. — Nada é tão bom quanto não ter dor em lugar nenhum, não é? — Nem me fale. O habitual para você hoje? — Sim, por favor. — Um croissant de chocolate e uma xícara de café com leite para a Senhorita Hilland, — a Sra. Hinderstone disse aos ajudantes atrás do balcão. Ela se voltou para Iolanthe. — Você sempre vem tão cedo nos sábados. Você não sai e se diverte nas noites de sexta-feira? — Oh, eu saio. Na noite passada, fui a um jogo de polo aéreo com meus amigos. O time do Conservatório ganhou, então celebramos cantando no quadrilátero, alto e mal, até às duas da manhã. Sua garganta ainda estava ligeiramente arranhando – foi um tempo divertido. — Mas são apenas sete horas. — A loja acabara de abrir e estava sem a multidão habitual, já que era tão cedo. — É a única vez da semana que tenho uma chance no meu lugar favorito, — Iolanthe disse. Ela não tinha ideia de por que sempre acordava na mesma hora no sábado, como fazia nos dias escolares. Ela nunca programou o alarme para despertar nas noites de sexta-feira, mas todos os sábados de manhã ela abria os olhos com o sol nascendo. Um dos ajudantes da Sra. Hinderstone trouxe o café e o croissant de Iolanthe. Iolanthe abriu carteira. — Absolutamente não, — a Sra. Hinderstone disse. — Isso é por conta da casa.

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Iolanthe agradeceu a Sra. Hinderstone e levou a bandeja para a pequena mesa junto à janela. A loja ficava na esquina da Rua Hyacinth e University Avenue, em frente à famosa estátua no jardim do Conservatório. Os magos vinham de toda a cidade para caminhar de manhã cedo, e nunca se sabia quem podia ver. Dez minutos depois, a própria Sra. Hinderstone recarregou o copo de Iolanthe. — Sabe, a senhorita Iolanthe Seabourne costumava vir aqui quando criança. Se não se importa que eu diga, você parece um pouco com ela. — Por que eu me importaria? Por favor, compare-me com a grande heroína da Última Grande Rebelião. Ambas riram. Na verdade, a Sra. Hinderstone não foi a primeira a comentar a semelhança de Iolanthe Hilland com Iolanthe Seabourne. No seu segundo ano no Conservatório, ela tivera uma aula com uma professora gorda e ruiva chamada Hippolyta Eventide – e a Professora Eventide fez uma observação semelhante. Mas Iolanthe não mencionou a Sra. Hinderstone. Isso seria se gabar. A Sra. Hinderstone colocou a cafeteira sobre a mesa. — E adivinhe quem veio na minha loja dois dias atrás? Sua Alteza! Iolanthe não conseguiu suprimir um meio guincho. Não era segredo que o Mestre do Domínio visitava a Sra. Hinderstone de tempos em tempos – um dos motivos pelos quais o lugar dela era tão popular. Mas Iolanthe nunca teve a sorte de encontrá-lo aqui. — Sim, ele veio, e pediu que uma cesta de piquenique fosse entregue à Cidadela hoje. Ela não fazia ideia do piquenique do príncipe. Ela pensou que ele trabalhava o tempo todo – e talvez ocasionalmente fosse para um longo passeio nas Montanhas Labyrinthine. — E sabe de uma coisa? Após pegar o pedido dele eu continuei pensando em você. Ele pediu tudo que você gosta – salada de verão, sanduíche de patê, quiche de espinafre e sorvete de pinemelon.

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— Meu Deus. — Isso poderia ter sido facilmente uma cesta de piquenique pedida para ela mesma. — Você o conheceu, não é? — Uma vez. Na minha formatura. O príncipe viera conceder prêmios aos melhores graduados do Conservatório e hospedara uma recepção para eles depois. — Ele não é um jovem muito bonito? — Eu estou feliz por ele ser o Mestre do Domínio. Ele foi muito cortês com todos os presentes, embora Iolanthe pudesse sentir que ele não gostava de ocasiões que exigiam pequenas conversas. — Nós não tivemos um tão digno desse título em um tempo, — a Sra. Hinderstone disse de forma decisiva. Na saída de Iolanthe, a Sra. Hinderstone a presenteou com uma grande e linda caixa de chocolates, um presente de agradecimento. Os chocolates

atraíram

vários

comentários

amigáveis

enquanto

ela

atravessava o grande gramado do Conservatório. No lado oposto do grande gramado, que de outro modo estava isento de qualquer espécie arbórea, havia uma magnifica árvore de starflower que o príncipe plantara em memória de sua parceira, a grande maga

elementar.

Em

dias

amenos

e

ensolarados,

Iolanthe

frequentemente abria um cobertor sob a sombra da árvore, estudava ou compartilhava um pote de sorvete de pinemelon com seus amigos. Ela chegava em casa alguns minutos antes das oito horas. Pouco depois de ter chegado a Delamer da remota Midsouth March, ela foi informada de uma oportunidade para cuidar da casa de um professor, enquanto ele fazia sua pesquisa no exterior. Ela se candidatou para a posição, sem pensar que conseguiria. Mas conseguiu. E por viver nessa encantadora casa, tudo o que precisava fazer era garantir que ela permanecesse limpa e bem conservada. Quase um pouco demais para uma garota muito comum do meio do nada.

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Ela entrou pela porta bastante modesta da casa, colocou o presente de agradecimento da Sra. Hinderstone na mesa e caminhou até a varanda nos fundos. O Conservatório de Artes e Ciências Mágicas ficava no meio das Montanhas Serpentine. Da varanda, ela tinha uma visão espetacular da cidade capital, até o marcante litoral. Ela ficou de pé por quase dez minutos, olhando para a mão direita de Titus, para o dedo anelar onde estava a Cidadela, a residência oficial do príncipe na capital. Com um suspiro, ela voltou a entrar para buscar a grossa pilha de relatórios de laboratório em sua mesa esperando ser tratado. Quando saiu de novo, seu olhar caiu sobre o retrato que foi tirado em sua formatura, do Mestre do Domínio entregando seu certificado e sua medalha de excelência. Ela parou em seu caminho. O retrato foi movido do seu criado-mudo para a mesa, depois para o topo das prateleiras e, finalmente, na parte de trás de um armário com todos os tipos de enfeites dentro. Isso a distraiu. Ainda assim, conseguiu parar o que estava fazendo para olhar. E lembrar. E desejar. Estúpida. Era tão estúpido que era humilhante. Meninas em todo o Domínio estavam apaixonadas pelo príncipe – no desfile anual do dia da coroação elas desfaleciam pelo príncipe ao longo da Avenida do Palácio. Compreensivelmente suficiente – ele era um jovem atraente em uma posição de tremendo poder, e o herói da Última Grande Rebelião, nada menos. Mas elas eram adolescentes de olhos estrelados, e Iolanthe era uma mulher de vinte e três anos no último ano de seu trabalho de pós-graduação. Ela ensinava práticas avançadas para alunos do primeiro e segundo ano. E, pelo amor de Deus, ela era sensata e disciplinada o suficiente para classificar seus relatórios de laboratório no início de uma manhã de sábado! E, ainda assim, persistiu, essa fixação pouco saudável no príncipe. Ela não foi para desfiles de dia da coroação; ela não comprou objetos com a imagem dele; e ela nunca se fez de tola na frente da

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Cidadela, acenando com uma faixa, Você se casa comigo? – ela sequer chegava perto da Cidadela, se pudesse evitar. Mas os menores feitos dele eram importantes para ela. Ela estudou seu cronograma publicado pela Cidadela, seguiu a cobertura da mídia sobre os eventos cerimoniais que ele assistiu, e analisou a linguagem das afirmações e discursos para a verdadeira avaliação dele da situação do Domínio. Era complicado o suficiente a transição do reino para a democracia após um milênio de regras autocráticas seguido de anos de ocupação estrangeira. Em seu vigésimo primeiro aniversário, ele também fez o movimento sem precedentes para reconhecer sua herança Sihar. No mês seguinte, enquanto o debate se desenrolava entre seus colegas, com um deles declarando: — O Mestre do Domínio é a exceção que prova a regra, — ela levantou e perguntou, mesmo com suas palmas transpirando. — Quantas exceções deve haver antes de perceber que a regra está apenas em sua cabeça? Que você nunca desejaria que fosse julgado do jeito que julgavam os Sihar? Naquela noite ela se sentou e escreveu uma carta longa e apaixonada ao príncipe. Para sua surpresa, dentro de alguns dias, ela recebeu uma resposta de duas páginas pela própria mão dele. Quando se conheceram na graduação, ele havia dito imediatamente: — Foi você quem me enviou a linda carta, não é? Eles conversaram durante todos os três minutos. Depois, ela não conseguiu se lembrar do que disseram um ao outro. Tudo o que carregava com ela era uma intensa sensação extraordinária com a maneira como ele a olhava, com a maneira como ele falou com ela, com a maneira como ele segurou sua mão brevemente antes de precisar render o lugar na fila de recepção – como se ela fosse mais importante do que todo o Domínio e lhe custaria metade da alma deixá-la ir. Essa foi a primeira e a última vez que ela o viu pessoalmente. Outras pessoas falavam dele, mas a vida parecia não ter planos de juntá-

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los novamente. Ela só podia assistir de longe conforme ele se deparava com seu grande destino. Certamente era loucura, olhar para esse ícone distante e pensar que, se pudessem encontrar, eles seriam os amigos mais próximos. Ele pode ser um homem excepcional, mas não era amigável, e tinha certeza de que em particular ele devia ser bastante difícil, de muitas maneiras. Mesmo assim, dia a dia, ano após ano, ele permaneceu como o segredo da sua vida. Ela percebeu que tirara o retrato instantâneo do armário e estava traçando seu dedo na borda de sua túnica cinza de carvão. Esta nova geração de retratos instantâneos capturava a textura de tecidos, de modo que ela sentiu a barra bordada elaboradamente, a qual marcava a bainha, os fios de seda suaves e uniformemente orientados sob seu dedo. Depois de uma obscenidade em voz baixa, ela entrou no escritório e empurrou o retrato instantâneo no topo das prateleiras, dentro de um pequeno armário. Noventa minutos depois, ela terminou com todos os relatórios. Fez uma xícara de chá e tirou alguns papéis que deveria ler para suas próprias aulas. Mas ela estava inquieta. Em vez de ler os papéis, ela os deixou em cima da mesa e observou a janela. Começou a chover, mas ela ainda podia ver a Cidadela à distância. Ela balançou a cabeça. Ela deveria parar de ser obcecada por ele. O que poderia esperar que acontecesse, mesmo que o encontrasse novamente? Não mais do que outros dois minutos do tempo dele. Se ele quisesse conhecê-la melhor, ele poderia ter feito isso há dois anos – ele conhecia seu nome e sua universidade; ele poderia ter descoberto tudo se quisesse. Se quisesse. O fato de não contatá-la posteriormente era uma ampla evidência de que ele não tinha tais desejos, de que todo o anseio de sua parte era totalmente não correspondido: verdades difíceis que ela deve obrigar-se a aceitar, no entanto, com satisfação.

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Um barulho dentro do pequeno armário a tirou do seu devaneio. Ela olhou para a porta do armário, confusa e levemente alarmada. Certamente não poderia haver um intruso nesta casa: ela criara feitiços de segurança – e era muito boa nisso. Mesmo assim, ela puxou sua varinha do bolso e silenciosamente pediu um escudo. A porta do armário abriu e se afastou, mostrando o próprio

Mestre

do

Domínio,

um

sorriso

no

rosto,

parecendo

gloriosamente jovem e feliz. Iolanthe estava atordoada. Que a Sorte a proteja, ela começou a alucinar? O príncipe, ainda que impecável, cortês em público, foi dito ser distante e solene por natureza, não dado à alegria ou a sorrisos. Ela ter evocado uma versão sorridente dele tinha que ser uma prova de que ela estava louca. Certo? — Oh, — ele disse enquanto assimilava seu choque e consternação. Ele limpou a garganta e sua expressão ficou mais séria. — Peço desculpas. Estou adiantado novamente. Ela não estava alucinando. Realmente era ele, o Mestre do Domínio, parado a nem mesmo três metros de distância. E o que ele quis dizer com estar adiantado? Mais cedo, quando ele viera mais cedo? — Senhor, — ela disse insegura. Ela deve se curvar. Fazer uma reverência. Ou fazer uma reverência era muito antiquado atualmente? — Não, não se curve, — ele disse; como se tivesse ouvido seus pensamentos. Então, depois de um momento, — Como estão seus estudos? — Eles estão... Tudo certo, indo muito bem. Ela não conseguia parar de olhar para ele. Seu cabelo preto estava um pouco mais longo do que no retrato oficial. Ele usava uma túnica simples sobre um par de calças cinza escuro e a usava bem – a túnica ficava lindamente sobre seu corpo magro e musculoso. — Você se divertiu na partida na noite passada? — Ele perguntou, sorrindo um pouco novamente.

331

Como ele sabia que ela foi a um evento esportivo? E por que ele a olhava exatamente como ela gostaria que ele olhasse, com tremenda admiração e algo que se aproximava de uma franca cobiça? — Posso, eu posso... Oferecer-lhe um assento, senhor? — De alguma forma ela conseguiu falar. — E algum chá? Também tenho um pouco de chocolate da loja da Sra. Hinderstone. — Não, obrigado. Acabei de tomar café da manhã. Ela estava começando a se sentir terrivelmente estranha. Como alguém perguntava ao Mestre do Domínio o que no mundo ele estava fazendo em sua casa? E como ele havia atravessado o armário, que não era um portal de qualquer tipo? — Eu também, — ela disse, — Na loja da Sra. Hinderstone. Ela mencionou que você esteve lá pessoalmente, há dois dias. — Sim, a cesta de piquenique para nós. Para nós. Nós! Deveria sentir-se tão desorientada quando os sonhos se tornam realidade? Ela estava dormindo, não era, isso tudo era apenas uma fantástica ilusão? Ele veio em sua direção, até que apenas uma porção de ar os separava. Tão perto que ela poderia distinguir o design exato nos botões decorativos de sua túnica: um brasão diferente do que já havia visto, com um dragão, uma fênix, um grifo e um unicórnio ocupando os quadrantes. Tão perto que ela respirava seu aroma de musgo de prata e nuvem de pinho. Tão perto, que quando olhou nos olhos dela, ela viu todos os detalhes do padrão estrelado de sua íris azul acinzentada. — Eu senti sua falta, — ele murmurou. E a beijou. Nas montanhas onde cresceu, às vezes as pessoas desciam ladeiras íngremes e rápidas. O beijo dele era exatamente assim; cheio de perigo e alegria, fazendo seu coração bater acelerado, pronto para sair de seu peito. Ele se afastou um pouco e passou um polegar sobre sua bochecha, uma carícia como um relâmpago. — Você, e somente você, — ele disse suavemente.

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De repente, sua cabeça parecia estranha, mil brilhantes pontos de luz se precipitando. As memórias explodiram no crânio como se fossem de um cilindro. Ela agarrou o ombro dele para se estabilizar. Ele a abraçou. — Tudo voltando agora? Uma vida secreta se desenrolou diante dela. A candidata aplicada e gentil para Mestre de Artes e Ciências mágicas era de fato o poder ao lado do trono. Aqueles longos passeios que ele dava no deserto das Montanhas Labyrinthine? Era o tempo que passavam juntos discutindo, planejando, e às vezes agonizando decisões difíceis. Aquele discurso histórico que ele fez quando anunciou sua herança Sihar e as reformas que planejava realizar para tornar os Sihar súditos reais em vez de simplesmente convidados da coroa? Ela havia redigido uma grande parte dele – para não mencionar que o levou a dar o passo monumental em primeiro lugar. E um verão inteiro, bem como uma parte de um tempo acadêmico em seu segundo ano no Conservatório, em vez de voltar às montanhas para cuidar de sua avó idosa, como ela e todos os outros acreditaram, ela estava ao lado dele, disfarçada como um ajudante de campo20 masculino, lutando contra os restos das forças de Bane. Claro,

houve

a

Última

Grande

Rebelião,

na

qual

ela

desempenhara um papel importante. Uma breve dor a atravessou enquanto se lembrava daqueles que foram perdidos – Amara, Wintervale, a Sra. Hancock, o pai de Titus e o Mestre Haywood. Ela experimentou um momento de repugnância ao pensar em Lady Callista e Aramia, que estavam agora no Exílio, junto com o Príncipe Alectus21.

20 Um oficial militar atuando como assistente confidencial de um oficial veterano. 21 Príncipe Titus VII: Na manhã do funeral do estado, fui informado de que os atlantes haviam entregado a Senhorita Aramia Tibério. Naquela tarde, eu a encontrei junto com Alectus e Lady Callista. Pouco tempo depois da queda de Bane, Alectus tornou-se um homem velho: ele se curvou e usava uma expressão de perpétua confusão. Lady Callista parecia ter perdido muito da elegância pela qual ela era tão admirada – era uma mulher nervosa que me reverenciava. Aramia simplesmente parecia aterrorizada. Eu me dirigi a ela primeiro. — Eu vejo que você está bem e saudável, Senhorita Tiberius. Ela teve o bom senso de não dizer nada. — Sua Alteza, por que não estou autorizada a participar do funeral da minha filha? — Lady Callista indagou. — Por que, de fato, não fui mencionada no relato que você deu

333

de como Bane foi destruído? Minha filha foi a grande heroína de sua geração, e os deixou acreditar que ela era a filha daqueles pobres estudantes do Conservatório? Eu olhei para ela até ela se mexer e se curvar novamente. — Peço desculpas pela minha explosão. Por favor, perdoe, senhor. — A senhorita Seabourne não era sua filha, — eu disse a ela. — Talvez eu não a tenha criado, mas eu a abracei. Meu sangue corre nas veias dela e também o sangue do Barão Wintervale, o maior herói da minha geração. — O Barão Wintervale traiu minha mãe. — Não, isso não é possível. — Pergunte a viúva dele sobre isso, se ela tiver condescendência de encontrar com você. Quanto ao seu parentesco com uma das mais valentes magas que esse reino já conheceu... Um exame de sangue já foi preparado. Peguei o copo de vidro. — Sanguis densior aqua. O líquido transparente no copo tornou-se gelatinoso e ligeiramente opaco. — Eu preciso de uma gota do seu sangue e da senhorita Tiberius. Elas hesitaram. Senhorita Tiberius furou o dedo primeiro, espremendo uma gota de sangue. A gota de sangue caiu na substância gelatina como um seixo na água, atingindo o fundo do copo com um plink audível. Lady Callista fez o mesmo. Eu mexi o copo. — Se vocês não forem parentes, o sangue não reagirá. As gotas de sangue, como duas pequenas bolinhas, afundaram no copo. E então, como se fossem ímãs, elas se moveram uma para a outra até se juntarem em uma única gota oval. — Parentesco muito próximo, eu diria. — Isso não pode ser verdade. Talvez por alguma coincidência sejamos parentes distantes. Sem uma palavra, realizei outro exame de sangue, desta vez usando meu sangue e o de Alectus. Nossas duas gotas de sangue também se aproximaram, mas em vez de se unir, formaram algo em forma de um haltere. — Ele é meu tio-avô. E o parentesco de vocês está muito mais próximo do que o nosso. — Não, — Lady Callista murmurou. — Não. Ela colapsou em uma cadeira. A Senhorita Tiberius ficou completamente imóvel, olhando para a mãe dela, a mulher por quem ela havia cometido traição. Eu poderia ter dito a ela uma e outra vez para não se preocupar em ganhar a aprovação de Lady Callista: Lady Callista usava todos que a amava – o único a quem ela jamais usou foi o Barão Wintervale, um homem que só pensava nele, que tomava e tirava daqueles ao seu redor. Mais cedo, eu tinha pensado em recomendar uma penalidade particularmente severa para Senhorita Tiberius. Mas agora eu não sabia com o que eu poderia puni-la tanto quanto a indiferença de sua mãe – de fato, repugnância – na ideia de ser parente dela afinal de contas. — Cada um de vocês pode ser acusado de traição. No entanto, recomendarei ao Conselho Superior um curso de ação menos punitivo. Como todos os colaboradores, vocês terão a chance de confessar e buscar perdão. Detalhar suas relações com a Atlantis, e provavelmente receber um perdão. Escondam qualquer coisa... Eu não precisava terminar a frase. — Enquanto isso, eu vou buscar o consenso do Conselho Superior para tirar de Alectus seu título e privilégios principescos. Vocês devem empacotar suas coisas e deixar a cidadela dentro de vinte e quatro horas. — Mas... Mas o que devemos fazer? Para onde iremos? — Alectus gritou. — Eu poderia, mas não vou reter seus bens pessoais. Então você terá mais que suficiente para encontrar um lugar para viver. Eu acredito que o mesmo seja verdade para Lady Callista. — Não podemos receber alguma clemência? — Alectus disse. — Nós somos sua família, afinal. — Você está olhando para a minha indulgência. Você gostaria de ver meu lado menos indulgente?

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E então, alegria pura enquanto olhava para o jovem diante dela. Ele era aquele com quem ela atravessara a guerra e o inferno. Aquele com quem ela mudou o mundo. Aquele com quem seu destino se entrelaçaria para sempre. Ela deslizou um dedo sobre sua sobrancelha. — Titus. — É senhor para você, senhorita, — ele respondeu, provocando. — Ha. Somente quando você se dirigir a mim como minha esperança, minha oração, meu destino. Ele a olhou com uma expressão fechada. Ela riu. — E como você se atreve a tirar proveito de uma pobre garota adoradora de heróis? Ele deu a ela outro olhar feio. — Eu continuo dizendo para você esquecer tudo sobre mim. Mas você ouve? E então, quando julgo mal o tempo, você olha para mim como se estivesse ajoelhada há mil anos, orando por mim. Ela riu. — Eu fico muito patética, consumida por você. — Não é pior do que eu. Você não sabe quão difícil é ter que esperar uma semana toda vez para que eu possa ver você novamente. Às vezes, eu ainda acho que qualquer pessoa com olhos poderia ter visto nosso segredo no dia da sua festa de graduação, mesmo eu me esforçando para tratá-la exatamente do mesmo jeito que todos. Ninguém viu isso, mas logo as coisas mudariam. Ela sempre planejara assumir uma falsa identidade para participar do Conservatório. Mas ela vacilara sobre se também assumiria um conjunto de memórias falsas para que pudesse desfrutar de uma experiência universitária mais pura e menos complicada, sem se distrair constantemente com o que Titus necessitava lidar como Mestre do Domínio.

Alectus tremeu. — Não, senhor. Obrigado, senhor. — Bom, — eu disse. — Estou ansioso para nunca mais ver nenhum de vocês novamente. Agora vão embora. Enquanto se embaralhavam em direção à porta, lembrei de algo. — Por sinal, Lady Callista, no dia anterior à Senhorita Seabourne enfrentar Bane, ela percebeu que não era sua parente porque o sangue dela não reagiu ao círculo de sangue que você colocou no Saara. Devo dizer, eu raramente a vi tão encantada. – De A Última Grande Rebelião: uma história oral

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No final, ela decidiu fazer uma tentativa, com muitas, muitas salvaguardas no lugar, e um juramento de sangue que exigiu de Titus que ele absolutamente a convocasse para o lado dele quando surgisse a necessidade22. De

modo

geral,

ela

teve

um

tempo

maravilhoso

no

Conservatório23. Mas agora que seu tempo havia chegado ao fim, ela ficou impaciente para ser quem ela realmente era. Assim que terminasse seu mestrado, sua verdadeira identidade seria revelada – ainda não era um

Sem ser de conhecimento do público em geral, os herdeiros da Casa de Elberon sempre foram proficientes no domínio da magia do sangue. A maioria dos magos no Domínio está familiarizado com a história da chegada dos Sihar, perseguidos em algum lugar e procurando desesperadamente um refúgio seguro. O que não é ensinado nos livros escolares é que os Sihar, cheios de gratidão, presentearam Hesperia, a Magnifica, com uma cópia do seu manual mais apreciado sobre magia do sangue, bem como um feitiço secreto para fabricar um espaço dobrado, um segredo que mais tarde se perdeu entre os Sihar, mas que foi preservado pela Casa de Elberon. – Trecho de Um Levantamento Cronológico da Última Grande Rebelião. 22

Iolanthe Seabourne: Na noite anterior ao funeral do estado, o príncipe e eu fomos ao apartamento do meu guardião em Paris. Apenas quatro dias se passaram desde que os dois se sentaram para o chá apenas para serem interrompidos pelo sinal do rastreador de que minha localização mudara milhares de quilômetros de repente. O serviço de chá ainda estava na mesa na sala de visitas. Quando vi isso... [Pausa]. Desculpe-me. Quando eu vi, chorei. Nós fomos ao quarto dele e reunimos suas coisas. Ele tinha poucos bens – fazia apenas alguns dias desde que o libertamos do círculo de medo em Claridge's. E tudo era novo, comprado em expectativa de uma longa estadia em Paris. Quando entramos no quarto de hóspedes, receio ter chorado novamente. Eu vi o quarto sobressalente quando o príncipe e eu o trouxemos para o apartamento, mas ele reorganizou o mobiliário e mudou o papel de parede para fazer com que se parecesse mais com meu quarto em nossa casa no Conservatório. [Pausa] Eu me sentei no quarto enquanto Sua Alteza passava pelo resto do apartamento, até que ele me chamou para o escritório. Ele encontrou uma carta escondida. Mestre Haywood escreveu que ele estava muito ansioso para minha chegada a Paris, para passarmos tempo juntos em segurança e anonimato. Mas que se, por algum motivo, algo acontecesse com ele, ele queria que eu tivesse as instruções necessárias para invalidar o Feitiço Irreproduzível que ele havia colocado em mim quando eu era criança. Para o dia em que eu viveria em tempos fáceis e pacíficos e iria querer capturar momentos da minha vida, como todos os outros. Não sei se chegamos a tempos completamente simples e pacíficos ainda. Mas uma das decisões que Sua Alteza e eu tomamos antes de assumir uma falsa identidade era revogar o Feitiço Irreproduzível para que eu realmente vivesse a vida tão normal quanto fosse possível, como o Mestre Haywood queria. Às vezes eu olho para as fotos em minhas paredes daqueles anos incríveis que passei como estudante no Conservatório, e desejo... Na verdade, acho que ele sabe no Além. Ele sabe que tudo o que ele sempre quis para mim se tornou realidade. – De A Última Grande Rebelião: uma história oral 23

336

mundo perfeitamente seguro, mas ela não era mais dissuadida pelos riscos. Depois disso, bem, ela estava ansiosa para ver como sua vida se desdobraria. E hoje ela daria o primeiro passo nesse novo caminho. — Pronto para o quatro de junho? Pronto para o querido Cooper adular tudo sobre você? Ela não havia visto Cooper, nem ninguém da Sra. Dawlish, desde que deixou a Inglaterra em um balão de ar quente. Titus murmurou. — Tão pronto quanto sempre estive. Ela o beijou, sorrindo. — Venha. Vamos fazer com que ele seja o homem mais feliz com vida. *** Cooper gritou e levantou Fairfax do chão. — Meu Deus, eu não posso acreditar. É mesmo você. Ela riu e o levantou também. — Cooper, cara. Ouvi dizer que você evitou tornar-se um advogado, afinal. O toque mais inesperado em toda a saga foi que Titus e Cooper se tornaram correspondentes semi-regulares – regulares da parte de Cooper e semi em Titus. Cooper nunca teria presumido escrever para Titus, mas suas cartas para Fairfax, enviadas ao falso endereço no território de Wyoming que Titus havia inventado, foram para Titus. E naqueles primeiros anos depois da morte de Bane, quando Lady Wintervale quase fora assassinada duas vezes, Titus considerou que era muito perigoso para Fairfax, que deveria estar morto, responder, mesmo que fosse para um não mago. Por isso, ele respondeu, colocando seu talento para mentir na criação de ficção. Ele achou relaxante narrar a vida de Fairfax, primeiro como fazendeiro do território de Wyoming, então como empresário em São Francisco e, ultimamente, empresário em Buenos Aires. Ele também começou a apreciar as longas e divertidas missivas de Cooper, cheias de notícias sobre as ações de seus velhos amigos. Sutherland ainda não se

337

casou com uma herdeira detestável. St. John remou para Cambridge. Birmingham

era

agora

um

egiptólogo

respeitável,

com

ávidos

patrocinadores de suas escavações e público ansioso para suas palestras. — Graças a Deus por isso, — Cooper disse. — Ser o secretário particular de um homem muito importante combina comigo. Estou bem no caminho para me tornar um peido insuportável. Ele virou para Titus, corou um pouco e tirou o chapéu, revelando um monte de cabelo exuberante. Titus sacudiu a cabeça. — Vaidade, o teu nome é Thomas Cooper. Uma vez, lembrando-se de seu longo sonho de encontrar-se com Cooper em um quatro de junho, Titus perguntou em uma carta se ele havia engordado. Cooper respondeu que ele havia mantido sua figura afeminada, mas, infelizmente, perdeu uma grande quantidade de cabelo. Titus, em um momento de caridade, enviou-lhe um frasco de elixir contra calvície. Fairfax bateu na nuca de Cooper. — Meu Deus, isso é lindo, Cooper. Bonito. Cooper ficou da cor de uma beterraba. A beterraba mais feliz do mundo. — Estou tão feliz em ver vocês. Faz muito tempo. E... — um pouco de cor foi drenada de seu rosto. — E nem sempre podemos garantir que encontraremos com velhos amigos depois de muitos anos, não é? Em sua última carta, Titus finalmente disse a Cooper que Wintervale e a Sra. Hancock morreram há um tempo, na mesma intriga do palácio que o tirou de Eton. Fairfax envolveu um braço em torno dos ombros de Cooper. — Mas hoje estamos aqui. Todos os velhos amigos do mundo. Eles reuniram Sutherland, Rogers, St. John e vários outros velhos amigos da casa da Sra. Dawlish e sentaram-se para um abundante piquenique. No meio do piquenique, Birmingham, o antigo capitão da casa, chegou com, de todas as pessoas, West, a reboque. Os jovens ficaram trêmulos à vista de West, que não só foi capitão do time de Eton, mas também passou a ser capitão do time de Cricket da Universidade de

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Oxford. Ele agora estava embarcando em uma carreira como físico e compartilhava uma casa em Oxford com Birmingham. West teve uma conversa animada com Fairfax. Então ele, Fairfax e Titus conversaram por algum tempo. Quando ele partiu para se juntar a uma conversa entre Sutherland e Birmingham, Fairfax sussurrou na orelha de Titus que West e Birmingham estavam juntos. Ele sussurrou: — Você acha que eu sou cego? Ela riu, cujo som foi afogado por um grito cheio de alegria de Cooper. — Cavalheiros, nosso amigo do subcontinente chegou! Titus e Fairfax exclamaram. Naturalmente, eles se encontraram com Kashkari várias vezes durante os anos – até mesmo passaram meses juntos em campanhas. Mas isso era especial, estar com ele, onde tudo começou. Eles comeram, riram e relembraram. Em algum ponto da tarde, Titus, Fairfax e Kashkari disseram adeus aos outros amigos e desmaterializaram para Londres para mais um chá. Eles tinham muito para conversar, já que Kashkari também planejava revelar a verdade sobre o envolvimento dele e de Amara na última grande rebelião. O dia estava acabando quando Titus e Fairfax se dirigiram para a casa nas Montanhas Serpentine, onde seus pais costumavam se encontrar. Nos últimos seis anos, tornou-se um refúgio para eles também, um lugar seguro onde podiam esquecer suas responsabilidades e simplesmente apreciar a companhia um do outro. — Você sabe como sempre vamos para a casa de verão da Rainha das Estações? — Ele perguntou, se jogando em um longo sofá no solário. — Longe de mim me cansar do lugar mais bonito do Crucible, — ela provocou, sentando-se. — Mas continue. Ele colocou as mãos cruzadas em cima da cópia do Crucible. — Bem, recentemente entrei na casa de campo da Primavera da Rainha das Estações e vi algo inesperado. A casa da primavera, em um prado alpino alto com jardins de flores silvestres cor de rosa e malva, era tão bonito quanto à casa de

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verão. Titus apontou para dois viajantes caminhando pelo prado, com os rostos brilhando a luz de um brilhante pôr-do-sol. — Olhe para eles. Fairfax sugou uma respiração. — Mas eles são seus pais. — Sim, — ele disse suavemente. — Ela manteve um registro da semelhança dele para eu encontrar algum dia. E para vê-los felizes e juntos. Eles observaram o jovem casal de braços dados, passeando pelo jardim e desaparecendo além de uma curva no caminho. Então Fairfax pegou a mão dele. — Estou pronta para o que o futuro traz. — Eu também, — ele disse a ela. — Eu também.

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Sherry Thomas - The Elemental 03 - The Immortal Heights

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