Jane Feather - 03 - A Noiva Inesperada

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Trilogia Noivas

The Least Likely Bride Jane Feather

Disponibilização: Jossi Slavic Tradução: Dani P. Equipe de Revisão:Cildinha, Ady Miranda, Anelise Romilda, Maria Betânia, Dani P. Revisão Final:Cildinha May Formatação:Serenah e Cildinha May

Trilogia Noivas 01-The Hostage Bride - Distribuído(RS & RTS) 02-The Accidental Bride-Distribuido 03-The Least Likely Bride- Distribuído

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Comentários sobre o livro: Há muito tempo não lia um romance tão gostoso, a história é surpreendente deste o princípio. Antony é aquele homem que mistura o gostoso ao bem humorado, ao mesmo tempo duro e cruel nas suas decisões. A história tem trechos que nos tira boas risadas, como também reflexões sobre até que ponto se é fiel aos amigos e as escolhas que fazemos em nossas vidas. É um livro que com certeza indico a todas as apaixonadas pela liberdade e pelas escolhas. Antony é simplesmente divino e o amor dele para com Olivia é tudo que uma mulher deseja. Cildinha_may

Argumento Um dia, enquanto Olívia Granville passeia pela praia, perdida na leitura de um livro de filosofia grega, se desequilibra e cai de um penhasco. Ao voltar a si, encontra-se nua e cativa a bordo de um navio, ao que tudo indica parece ser um navio pirata. Mas seu sequestrador não é um pirata comum, mas sim um atraente e misterioso homem de olhos cinza, médico e artista, perversamente sedutor que admite ganhar a vida no mar ao comando do Wind Dancer. O mais desconcertante nisso tudo é que este, ao fixar seu intenso olhar em Olivia, não vê a jovem gaga que foi até o presente momento, mas sim uma bela e apaixonada mulher, capaz de tomar uma grande decisão: …embarcar na aventura de um amor para toda a vida.

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Prólogo Ilha Wight, junho de 1648. Estava amanhecendo. A chuva caía incessantemente sobre o molhado topo do penhasco e desabava açoitando o quebra - mar sobre o oceano riscado de cristas brancas. Enormes ondas batiam sobre o canal e se espalhavam ao redor de St. Catherine's Point, encrespando-se e rompendo sobre as rochas dentadas em um balanço ensurdecedor e inexorável que orvalhava de espuma branca a escuridão. Não havia estrelas nem lua, só o ocasional brilho de um raio de luz iluminava a ilha, escondida como uma baleia à entrada do Canal de Solent, com suas colinas e vales enegrecidos pela chuva. O melancólico som da sirene da baliza, sob o escarpado, transpassava as rajadas de vento, levando sua advertência aos navios que lutavam contra a tormenta de verão no enfurecido canal. Uma advertência e uma grata sensação de segurança. Um pequeno navio conduzido por alguns remadores de rosto sombrio lutavam para mantê-lo em pé naufragava por entre as ondas. A pequena embarcação se aproximava da baliza cabeceando por entre as ondas, balançando como um insignificante pedaço de cortiça à deriva. Da popa, um dos homens lançou um cabo sobre a baliza flutuante e puxou do navio rebocando-o palmo a palmo até que alcançou a bóia e o som rítmico da sirene pareceu ensurdecedor apesar do rugido da água, do vento e do incessante tamborilar da chuva. Ninguém dizia nada, as palavras seriam levadas ao vento; mas de todos os modos não tinham nenhuma necessidade de falar. Os homens deixaram de remar, enquanto que o marinheiro da popa segurou firmemente o navio à bóia e um de seus companheiros, com mãos peritas, rápidas e habilidosas, enrolou um pedaço de pano grosso ao redor do badalo do sino, silenciando o lânguido som de advertência. Em seguida se soltaram da bóia e a pequena embarcação voltou para a praia. Lutando contra vento e a maré, um dos homens elevou a mão assinalando o topo do penhasco. Uma luz piscou e lançou um brilho lampejante, como um farol que arrojasse sua mortífera mensagem em uma noite devastada pela tempestade. Braços solícitos cercaram o fluxo para pô-los a salvo, rebocando o bote para a areia. Os homens estavam com as roupas molhadas e tremiam de frio, dispusera-se a tomar um bom gole das garrafas que lhes ofereciam. Havia uns vinte homens na praia, não eram mais que silhuetas movediças vestidas de negro que se confundiam com a escuridão do escarpado amontoando-se sob as rochas, e que mantinham os olhos fixos no mar enfurecido, espreitando sua presa. Uma súbita labareda brilhou no topo do penhasco e todos avançaram como um só homem. De repente apareceu outro navio entre as trevas com as velas rasgadas 3

balançando ao vento e ao emparelhar no navio causou um barulho como ossos velhos rangendo. Dirigiu-se para a luz que prometia sua salvação, e com um barulho terrível se partiu em dois ao se chocar contra as rochas de St. Catherine's Point. Os gritos rivalizavam com o ruído do vento. As figuras despencavam da proa levantada e oscilante do navio, como tantos outros restos de tecido, caíam em pedaços sobre o caldeirão fervente do mar. O navio quebrava como uma casca de ovo, enquanto os homens que observavam a situação da praia corriam apressadamente para o quebrar das ondas, com os olhos faiscando e emitindo gritos agudos de triunfo. Os desesperados homens, mulheres e meninos que se afogavam na violência das águas lhes pediam ajuda, mas eles se limitavam a degolá-los com facões ou golpeá-los com os mastros quebrados, terminando assim com suas próprias mãos o que o mar não havia terminado. Arrastaram baús, caixas e corpos para a praia. Saquearam os corpos arrancando anéis e rasgando seus vestidos enquanto se exibiam em uma macabra e sanguinária dança alimentada pela cobiça. Por cima deles, no topo do escarpado, um homem se aproximava à luz do farol traiçoeiro com o casaco sobre os ombros para proteger do açoite da chuva. Contemplou fixamente o navio condenado e sorriu ao ouvir o caos e a destruição no romper das ondas enquanto seus homens faziam o trabalho. Tinham apanhado a um bom pássaro nas rochas nessa noite devastada pela tormenta. Virou de costas e apagou o fogo. Tudo voltou a continuar as escuras, só os desvarios da praia competiam com o vento, à chuva e o mar. Ao longe, fora do quebra - mar 1, outro navio lutava na tormenta. Não tinha nenhuma vela içada e o capitão estava ao leme, dirigindo o casco do navio através do vento. A magra figura refletia o contrário, já que ocultava a robustez dos músculos e a força das mãos longas e finas, lutavam contra a tormenta e esforçava-se para arrebatar seu navio enquanto tentava escutar o sino de advertência de St. Catherine's Point. - O farol desapareceu Senhor - Gritou o timoneiro ao ouvido do homem para que ele pudesse lhe ouvir em meio aquele barulho da tormenta. O patrão olhou para o topo do penhasco, onde de repente surgiu o brilho da luz traidora. Agora podiam ouvir os gritos sufocados, sabiam que não eram gritos de gaivotas em uma noite fechada, e sob o súbito resplendor, apareceu por um instante, horrivelmente iluminada, a lúgubre silhueta do navio que jazia ao lado das rochas. Mas seguia sem ouvir o som do sino de St. Catherine's Point. A tripulação se consumiu de repente em um estranho e opressivo silêncio. Por um instante, os homens atalharam sua luta contra a tormenta. Todos eles, sem exceção, tinham navegado por estas águas na infância e conheciam seus perigos; 1

Um quebra-mar ou talha-mar é uma estrutura costeira que tem por finalidade principal proteger a costa ou um porto da ação das ondas do mar.

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todos sabiam que o pior deles estava na costa. - Que Deus tenha piedade de suas almas! - Murmurou o timoneiro, fazendo o sinal da cruz involuntariamente. - Parece um navio mercante - O capitão disse com um tom frio e distante – Deveria se tratar de um saque muito importante. Escolheram uma boa noite. - Sim - Murmurou de novo o timoneiro, coçando a cabeça enquanto os clamores dos corpos agonizantes se perdiam sob o vai e vem das ondas que golpeavam o casco do navio feito estilhaço.

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Capítulo 1 O sol quente e brilhante resplandecia sobre as calmas águas do Canal da Mancha. Olivia Granville passeava pelo estreito caminho do penhasco sobre o St. Catherine's Point absorta em seus pensamentos, distraída com a delicada beleza dessa manhã ainda úmida pela tormenta da noite anterior. Deu uma grande dentada a uma maçã sem poder evitar franzir o cenho diante da complicada estrutura do texto grego que sustentava entre as mãos. A erva ainda estava úmida sob suas sandálias e em alguns pontos era o suficientemente longa para roçar suas panturrilhas e molhar seu vestido de musselina. Uma mariposa, uma pequena mariposa vermelha, dava um toque de cor às páginas brancas de seu livro, e uma abelha zumbia entre os cheirosos casulos de cravos silvestres. Olívia olhou a seu redor, deixando de prestar atenção ao texto por um momento. O mar azul se estendia tranquilo como um lago, até a costa de Dorset que se dividia no horizonte. Era quase impossível imaginar a fúria da tormenta que havia afundado o navio que se entrevia ao longe, sob as rochas. Os homens se apinhavam contra ao navio como formigas para ajudar nos trabalhos de resgate. Pela manhã, em casa, todos os comentários se referiram ao naufrágio, em como o navio havia sido deliberadamente atraído pelos provocadores de naufrágios que desde o inverno passado invadiam a ilha. Olívia respirou profundamente o ar impregnado de sal e algas marinhas. O sexto inverno da guerra civil havia sido interminável. No ano anterior parecia que tudo havia terminado. O rei Carlos havia se rendido ao Parlamento e então ficou retido no palácio de Hampton Court, em Londres, enquanto se celebravam as negociações que acordariam o fim da guerra, porém ele faltou com a sua promessa e, rompeu qualquer intenção de acordo, havia escapado de Hampton Court. Foi para a ilha de Wight, um feudo monárquico, que ficava sob o amparo do governador da ilha, o coronel Hammond. Este, demonstrando a sua escassa fidelidade à monarquia, havia seguido as ordens do Parlamento e havia mantido o rei como prisioneiro informal no castelo de Carisbrooke. Como resultado, as longas negociações se transferiram necessariamente à ilha. O pai de Olívia, o Marquês de Granville, era um renomado parlamentar e um dos principais negociadores, por isso ao final do ano anterior havia se deslocado à ilha com sua filha primogênita, seu filho de nove meses e sua quarta mulher, que tornava a ficar grávida. Suas duas filhas menores ficaram por petição própria em sua tranquila casa de Oxfordshire, onde tinham vivido os três anos anteriores sob os cuidados de sua querida preceptora. Lorde Granville tinha adquirido uma grande casa de um só andar com o teto de palha em um povoado chamado Chale, a algumas milhas das grandes muralhas de pedra do castelo de Carisbrooke, encontrava-se prisioneiro o rei. A casa era pequena e, no inverno, era fria; mas pelo menos estava fora do castelo. Para Olívia e Phoebe, 6

mulher de seu pai e também sua melhor amiga, era um alojamento muito melhor do que podiam encontra dentro de um complexo militar. O rei seguia mantendo a corte nas dependências do castelo em uma tentativa de disfarçar a verdadeira natureza de sua situação, mas nada podia ocultar o caráter militar de seu entorno. Olívia viveu dezesseis anos na fortaleza de seu pai na fronteira de Yorkshire, e durante os primeiros anos da guerra civil, acostumou a viver praticamente em estado de sítio; quando a guerra se deslocou para o sul, também o fez com lorde Granville. “Fui me acostumando a esta nova vida”, pensou Olívia com meio sorriso, se espreguiçando sob raios quentes do sol. Sua resistência ao norte tinha sido vencida pelo suave clima do sul e sua amável paisagem. Estava habituada à neve e ao frio glacial, e a úmida garoa do inverno das regiões do sul não lhe oferecia nenhum estimulo espiritual. Fazia um frio úmido que impregnava até os ossos e soprava um persistente vento do nordeste procedente do mar, mas era mais monótono do que ameaçador. Mas por fim havia chegado o verão. E era como se o inverno não tivesse nunca existido. Ali estava o céu brilhante e a magnifica expansão do mar. Não tinha conhecido o mar até então. Havia Cordilheiras e terrenos pantanosos em sua terra natal Yorkshire os rios serpenteavam o vale do Támesis e nos últimos três anos havia considerado seu lar, porém nada era comparável a esta maravilhosa sensação de espaço aberto, a esta vista esmagadora em que o mar se fundia com o céu e só prometia o infinito. Olívia lançou a maçã pelo precipício e se sentiu cheia de vida e foi inundada por uma súbita vontade de dançar. Ali abaixo havia umas velas, lindas velas brancas em uma reluzente embarcação. As gaivotas voavam em círculos e deslizavam pelas correntes de ar quente. Olívia invejou sua maravilhosa liberdade, sua capacidade para deixar-se levar pela corrente sem nenhum propósito ou necessidade, simplesmente por puro prazer. Riu em voz alta e se aproximou do extremo do penhasco. Tropeçou no matagal e se precipitou para o abismo. A única coisa distinguível naquele momento era a dor, uma dor imprecisa e dilatada no que não despontava de nenhuma ferida concreta. Ouvia um murmúrio de vozes, especialmente uma, uma voz sossegada acompanhada de mãos frias que lhe percorriam o corpo girando-a, pegando-a nos braços e lhe lubrificando a pele. Um par de olhos cinza a penetraram em seus sonhos onde só havia medo e confusão. Um gole de absinto misturado com sua própria bílis atraiu um confuso emaranhado de imagens aterrorizantes em um mundo de pesadelo, coisas às quais não podia nomear e que se contorciam a seu redor como serpentes de Medusa. Lutou com a amarga bebida, afastando as mãos que levavam a taça aos lábios. - Uma vez mais, Olívia. - Disse a voz tranquila lhe segurando as mãos com um gesto firme e sereno. Olívia recostou a cabeça em seus braços. Com um leve gemido, rendeu-se a 7

uma força e uma vontade muito maior que a dela, a bebida enjoada deslizou entre os lábios abertos para entrar na garganta em um asfixiado suspiro de repugnância. Em seguida se afundou em um poço escuro e as verdes águas se fecharam sobre sua cabeça. A dor retrocedeu e já não tinha pesadelos, só um sonho profundo e aprazível que pressagiava sua recuperação. Olívia abriu os olhos. O que viu não tinha sentido para ela, por isso voltou a fechá-los. Após um minuto, voltou a abri-los novamente. Nada havia mudado. Permaneceu completamente imóvel, atenta a sua respiração. Não se ouvia nenhum outro som. Notava uma grande frouxidão por todo o corpo e não tinha nenhum desejo de mover-se. Ao fazer uma recontagem de suas feridas, sentiu uma pontada de dor na parte anterior da coxa, certas moléstias aqui e ali, mas ao percorrer pausadamente o corpo com as mãos, pareceu-lhe que estava bem. Embora estivesse nua. Lembrou que estava de pé no topo do escarpado e que tinha jogado uma maçã pelo precipício. E em seguida um emaranhado de sonhos, pesadelos, vozes, mãos. Mas tinham sido parte do sonho, não eram reais. Fechou os olhos e voltou a sumir em um poço escuro. Ao voltar para a superfície, percebeu movimentos a seu redor. Ouviu sussurros contidos, o chiado de uma cadeira, uma porta que se abria e voltava a fechar-se. Sentiu que sua respiração acelerava naquele ambiente onde distinguia ao seu redor uma enorme urgência, mas manteve os olhos firmemente fechados, rebatendo instintivamente atrair a atenção para sua pessoa até recuperar a plena consciência de seu corpo nesse lugar desconhecido. Quando retornou a calma, abriu os olhos. Encontrava-se deitada em uma cama que não era propriamente uma cama. Ou pelo menos não se parecia com nenhuma das camas nas quais havia adormecido até então. Ao tentar mover as pernas, esbarrou em beiradas de madeira. Não era muito alto, mas teve a sensação de estar deitada em um caixão. Lançou um olhar ao teto de fitas de seda de madeira de carvalho. De uma cadeia, pendurava um abajur apagado. Mas não havia necessidade de luz artificial, porque o sol entrava em torrentes pela persiana situadas a pouca distância dos pés da cama. A parede, revestida de madeira curva e brilhante, parecia inclinada. As janelas estavam embutidas nos recôncavos curvos e permaneciam abertas, deixando que a suave fragrância do mar se dispersasse pelo ar em uma amável brisa. Olívia girou a cabeça sobre o travesseiro com muita precaução para não sentir dor. Sob sua face, notou a aspereza do travesseiro e um aroma que exalava a prancha de ferro e brisa matutina. Contemplou atentamente a estadia, era uma habitação coberta de madeira com janelas de persiana e luxuosos tapetes turcos sobre um chão encerado de madeira de carvalho. Havia uma mesa oval, uma cômoda e várias cadeiras de madeira esculpida. Mas era uma estadia de forma irregular. Sem cantos. E parecia balançar-se. Muito 8

lentamente, mas com regularidade. Balançando-se como um balanço. Olívia tornou a fechar os olhos. Quando voltou a despertar, o sol seguia brilhando e a estadia não havia esquecido seu balanço. Era a mesma habitação que havia estado observando antes de cair adormecida. Mas desta vez não estava sozinha. Havia um homem sentado na mesa oval, inclinado sobre alguns papéis com um instrumento na mão. A Olívia pareceu que ele estava esculpido em ouro, rodeado por uma aura brilhante. Então se deu conta de que a luz do sol que entrava pela janela refletia em sua figura e iluminava seu cabelo. Um cabelo da mesma cor dos guinéus de ouro. Abstraído no que estava fazendo, todo seu corpo permanecia completamente imóvel, exceto as mãos. Parecia concentrado, absorto em seu trabalho. Olívia reconheceu esta qualidade, porque era uma das características de seu próprio caráter. Sabia o que significava ficar absorta em seu próprio mundo. Se perguntava, se devia dizer algo, mas parecia impossível perturbar sua concentração, permaneceu deitada e ficou observando-o com os olhos entrecerrados, consumida no lânguido calor dessa estranha cama. Doía-lhe todo o corpo, e parecia ter sido golpeada na nuca. Outros machucados e contusões se confundiam em sua mente, percebeu que se encontrava fraca. Sentia-se alheia, satisfeita, por fim havia vencido o terror dos pesadelos. E era consciente da estranha conexão que se estabelecia entre o homem que estava sentado à mesa e ela. Era desconcertante, mas mesmo assim somente de um modo vago. Ela sentia-se feliz. Então, ele falou. - A Bela Adormecida retorna ao mundo - Disse sem elevar a cabeça nem levantar a vista de seu trabalho, com a mesma voz melódica que ela havia ouvido em sonhos. A pergunta de Olívia não quebrou o silêncio, mas sim se espalhou pela estadia. - Quem é você? - Perguntou ela. De todas as perguntas que lhe vinham à cabeça, parecia a única com certa importância. Então ele levantou a vista. Colocou distraidamente sua mão sobre os papéis que estavam na mesa e a olhou esboçando um meio sorriso. - Esperava que você desse uma palmada na testa e em seguida dissesse “ Onde estou? “ ou algo parecido. Ela não obteve a resposta imediata, ele rodeou a mesa e se sentou a um extremo, diante dela, estendendo as pernas e as cruzando pelos tornozelos. O sol batia totalmente em suas costas e de repente pareceu que o cabelo dourado flamejava. Soltou uma gargalhada em um tom alegre e amável. Seus dentes brancos emitiam um brilho em seu rosto bronzeado e uma expressão divertida enrugava o contorno de seus profundos olhos cinzas. 9

- Não quer saber onde está Lady Olivia? Perguntou-se, ele estava brincando com ela? Sentou-se, agarrando com força a coberta até o queixo. Ao fazê-lo percebeu que se encontrava nua. A coberta, limpa, áspera e fria, era tudo o que se interpunha entre sua nudez e aquele homem, sentado ali, tão displicente, rindo dela. - Como sabe meu nome? Ele sacudiu a cabeça. -Temo que não se trate de esoterismo. Trazia o nome «Olivia» costurado em sua roupa íntima. Uma prática comum, pelo que entendi, em famílias numerosas nas quais as lavadeiras estão muito ocupadas para separar as roupas. Tive que despi-la para lhe atender, espero que compreenda. Ao perceber um brilho de prazer no olhar do homem, Olivia estremeceu. Então, ele se inclinou para uma pequena mesa e pegou um livro. Era o que ela estava lendo antes de cair no vazio. - Olivia Granville. Disse olhando o livro até abri-lo na primeira página. Ele mostrou onde havia escrito seu próprio nome -. Tosquio... Não é o que eu chamaria uma leitura trivial. Elevou as sobrancelhas em atitude inquisitiva, com o sorriso desenhado no rosto. - Vejo que a filha de lorde Granville é uma conhecedora da literatura grega. - Conhece meu pai? Perguntou Olivia apoiando a cabeça entre seus joelhos. Tinha a sensação de que a conversa devia alertá-la sobre algo, mas por alguma razão não era capaz de preocupar-se. Seguia sentindo-se alheia a tudo a que ocorria a seu redor. - Ouvi falar dele. Quem não conhece o Marques de Granville na ilha? O aplicado carcereiro de Sua Soberana Majestade. Uma deixa irônica se misturou em suas palavras e seu sorriso deixou de ser afável. Olivia se ruborizou. Ao que parecia estava na companhia de um simpatizante da monarquia. - Meu pai negocia com o rei em nome do Parlamento - Disse com obstinação Não é um carcereiro. - Não? Franziu o cenho e logo voltou a rir - Na política, temos que aprender a não ficar de acordo, Olivia... OH, por certo, isto estava no bolso de seu vestido. O coloquei no livro para não perdê-lo. Aproximou-se e lhe estendeu um anel de pequenas tranças. - Teria posto no dedo, mas temi que se desfizesse e supus que tem um valor 10

especial. Olivia pegou o anel. - Sim, tem. O sustentou com firmeza na mão, e de repente tudo pareceu cobrar maior sentido. O anel pertencia a outro mundo, a pessoas que pareciam estar muito longe dali, mas ajudou a sentir-se em contato com a realidade. Esperou que ele pedisse alguma explicação, mas não foi assim, mas sim permaneceu sentado sobre a mesa, tamborilando os dedos sobre a superfície encerada. - E qual é seu nome? - Perguntou ela, ainda zangada pelo tom que havia empregado ao falar de seu pai, mas inexoravelmente atraída para ele como guiada por rédeas de seda. - Sou o senhor do Wind Dancer. Pode me chamar Anthony, se a agradar. Pronunciou seu nome sem lhe dar importância, como se tivesse ocorrido de repente. - O Wind Dancer? - Inquiriu Olivia, como se esta pergunta pudesse lhe esclarecer todas suas dúvidas. -Meu navio. Está a bordo do Wind Dancer e temo que deva permanecer aqui durante alguns dias. Pegou um pedaço de papel e uma pluma da mesa que tinha ao lado, levantando-se sem pressa. - Não era minha intenção, mas nos vimos obrigados a zarpar esta manhã, por isso não poderá retornar a casa antes de chegarmos ao porto. Ao afastar da mesa, Olivia observou que sua cabeça quase tocava o teto do camarote e se deu conta de quão alto era. Estava magro e as mangas vincadas de sua camisa branca, que estavam arregaçadas até o cotovelo, deixavam expostos antebraços fortes e bronzeados. Tinha um porte descontraído, informal, quase desalinhado, mas Olivia sentiu o poder de sua figura esbelta e sóbria. Teve a sensação de que, apesar de seu ar de indiferença, não fazia nada sem um propósito concreto. Tinham sido as mãos desse homem que havia sentido sobre seu corpo. Eram dele as mãos frias e competentes que a haviam tocado tão intimamente, levantando-a para ungir com azeite seus ferimentos enquanto sustentava sua cabeça nos piores momentos de seu pesadelo. Voltou a estremecer e um ligeiro rubor alagou seu rosto lembrando coisas que possivelmente não devesse. Ele seguia falando despreocupadamente em alguma parte atrás dela, e Olivia agradeceu não ter que o olhar nos olhos ao lembrar com clareza seus cuidados. - Os penhascos desta parte da ilha são perigosos. Há ravinas e gargantas profundas ocultas sob a erva daninha. Um passo em falso e pode cair para o vazio. Creio que estava tão compenetrada em seu grego que não se deu conta do tamanho do penhasco que sucumbia diante de seus olhos. Mas teve sorte. Deslizou por uma greta e caiu aos pés de um de meus vigias que estava a posto nas rochas. 11

Olivia afastou o cabelo do rosto. - Quando? - Faz três dias. Ele começou a assobiar suavemente entre dentes, situando-se a suas costas. “Três dias!”. Fiquei deitada aqui durante três dias! - Mas... Mas... E Phoebe... E outros... Estarão desesperados! - Exclamou Olivia – Avisou-os? - Não, há certas dificuldades - Disse, com ar indiferente - Mas logo encontraremos uma forma de devolvê-la para sua casa. Seu pai não estava em casa. Havia voltado a lutar no fronte. Os escoceses ameaçavam cruzando a fronteira para defender o rei Carlos e em todo o país havia revoltas a favor da monarquia. Ainda que esporádicas e estavam mal organizadas, supunham uma séria ameaça para a vitória final do Parlamento. Se lorde Granville estava no fronte e desconhecia o desaparecimento de sua filha, Phoebe estaria morta de preocupação. - Tenho que voltar para casa - Disse Olivia com um desespero que contrastava notavelmente com a aparente e calma indiferença de seu companheiro. - Deve me conduzir à costa imediatamente. - Creia, o faria se pudesse - Disse o senhor do Wind Dancer e continuou assobiando suavemente em algum lugar atrás dela. - Onde esta minha r-roupa? Exigiu Olivia com um arrebatamento de ira. Quero minha r-roupa! - Insistiu virando-se para olhá-lo com raiva, muito zangada para dar-se conta de que a gagueira que a havia mortificado desde a infância havia escapado do controle que havia se esforçado em preservar durante todo esse tempo. Ele franziu o cenho sobre o papel como se não a ouvisse. - Adam fez o que pôde para conservar sua roupa - Repôs com indiferença.- Seu vestido quase se estragou. Mas esperemos um milagre. Adam faz maravilhas com a agulha. Levantou a vista, com o cenho ainda franzido entre suas loiras sobrancelhas, inclinou a cabeça e sorriu, jogando o papel e a pluma sobre uma banqueta que havia ao lado da cama. Olivia cravou os olhos no papel. - Isto... Isto... Isto é minhas costas! - Exclamou. Era um desenho a tinta de suas costas nua, curvada, na posição que tinha adotado ao apoiar a cabeça entre os joelhos. Era sua nuca, com a cabeleira escura caindo por um de seus ombros, as omoplatas claramente delineadas, a linha da coluna, a flexão da cintura e a curvatura do quadril e o inicio de sua fenda na base da espinha dorsal. Estava tudo ali só com alguns hábeis traços de pluma.

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Indignada, pregou os olhos nele sem poder articular nenhuma palavra. - Sim, não esta ruim - Replicou o capitão. - Acho que as linhas são particularmente elegantes. - C-como se atreve? Não pode desenhar as costas de qualquer um desse jeito... As costas nuas... Sem perguntar! A voz se quebrou em uma torpe cascata de raiva até que finalmente voltou a apoiar a cabeça no travesseiro. - Não pude resistir. Suas costas são lindas - Disse sorrindo com a indolente bondade de um gato Montes. Olivia o olhou fixamente, cobrindo-se com a coberta até o queixo. - Saia. Agitou as mãos como uma menina desesperada afugentando a um patinho inoportuno. Mas ele não se moveu, sentado no alto da mesa, com as longas pernas estendidas diante dele e as mãos ocultas nos bolsos da calça. Usava o cabelo recolhido em um rabo grosso e loiro sobre a nuca com uma fita de veludo preto, e seu peito forte e bronzeado se sobressaía pela gola aberta de sua camisa. Os olhos cinzentos lançaram um brilho de prazer, e a inclinação de sua boca revelou dentes brancos e tortos. - Não creio que esta indignação pudica seja própria de você. Disse ele. - Só eram suas costas e possivelmente esqueceste que durante três dias velei por você. Olivia voltou a sentir que o rubor aflorava em suas faces. - Você está sendo pouco cavalheiro ao me fazer lembrar desse detalhe. Ele jogou a cabeça para trás e riu com vontade. - Chamaram-me de muitas coisas durante minha vida, Olivia, mas nem meu melhor amigo diria que sou um cavalheiro. Olivia se afundou ainda mais no colchão de plumas que a protegia. - Então o que é? -Além de um médico razoavelmente bom, sou um homem que vive do mar. Respondeu, cruzando os braços e observando-a com o mesmo prazer íntimo. Mas agora tinha um leve indício de especulação em seu olhar. - Um pescador? Inclusive ao perguntar, sabia que era impossível. Nada tão mundano como a pesca podia atrair o interesse desse homem. -Procuro capturas mais estimulantes que a pesca - Explicou. Levou as pontas dos dedos à boca em um gesto reflexivo, antes de dizer lentamente: 13

- Creio que nesta vida também há outras coisas que resultariam interessantes, Olivia. Será que a filha intelectual de Lorde Granville aceitaria deixar-se encantar por alguns dias? Olivia percebeu o desafio sob a cadência musical de sua voz. E sabia que não era uma proposta feita levianamente apesar do sorriso e o toque de ironia. - Não sei a que se refere - Disse ela. - Pois eu acho que sim, Olivia - Respondeu ele, sem deixar de olhá-la Possivelmente ainda não sabe, ou não é capaz de entendê-lo. A princípio pode lhe parecer estranho, mas lhe prometo que se deixar levar, chegará a ver e compreender muitas coisas que a filha de lorde Granville nunca poderia presenciar e entender no curso normal dos acontecimentos. Coisas que demonstrarão que ainda não conhece o suficiente. Aproximou-se da cama e se inclinou sobre ela. Com os dedos roçou ligeiramente a face em uma carícia fugaz, e em seus olhos Olivia descobriu um olhar brilhante como uma chama ardente. - Disse isso a você porque a mim ocorre o mesmo - Concluiu ele. Olivia o olhou nos olhos, voltando a sentir a estranha conexão que havia experimentado antes. Não sabia nada desse homem e em troca tinha a impressão de que durante todo esse tempo havia estado esperando conhecê-lo... Como se este instante no camarote banhado de sol tivesse que ocorrer acontecesse o que acontecesse. Arrepiou-se e as palmas de suas mãos se umedeceram de suor diante desse pressentimento. E apesar do comichão de temor, sentia-se eufórica. Uma euforia tão embriagadora como desconcertante. - Se você observar. Disse ele calmamente. - Você também sente o mesmo. Seu tom mudou de repente, tornou-se, mais arisco quando alguém bateu na porta. - Entra. Um homem de cabelo grisalho, de baixa estatura e de constituição gordinha, com ombros robustos e braços musculosos, entrou no camarote. Lançou um olhar curioso a Olivia e a saudou com a cabeça. - O “Dona Elena” aproxima-se, Senhor. E o vento virou a sudoeste. - Subirei em um instante. Ah! Adam, nossa convidada pergunta por suas roupas. Disse o senhor do “Wind Dancer” se espreguiçando diante do sol. - Logo terei terminado. Disse o velho. - Mas neste momento há coisas mais importantes que precisamos fazer. - Certo. Adam abandonou a estadia e seu senhor se dirigiu a grandes passos para a porta. - O trabalho me chama Olivia. Disse alegremente por cima do ombro. - Não 14

deve se assustar pelo que ouvirá nas próximas horas. Não há nada que temer. E com essas palavras, saiu do camarote, fechando a porta atrás dele. Olivia se levantou lentamente no camarote vazio. Olhou ao seu redor com atenção, notando a luxuosa decoração. Não havia nada ostentoso na ampla estadia, embora tudo parecia da melhor qualidade. O sol se filtrava pelos vidros das janelas e acentuava o brilho da cera de abelha que protegia os móveis, o chão e as paredes. Havia estantes cheias de livros embutidas nos cantos, e despensas com puxadores de prata na parte inferior. Havia dito que se chamava Anthony, mas parecia que o tinha tirado da manga por conveniência. Simplesmente para que ela pudesse chamá-lo de algum modo. Não era um cavalheiro, ou pelo menos tinha dito, mas respirava um ar de autoridade e distinção. Era senhor de navio. Sua voz era agradável e harmoniosa, sem arestas bruscas, e suas mãos, tão longas e finas, não eram as de um jornaleiro nem as de um homem do mar. O que era então? Quem era? Um homem que parecia desconcertante, isso era o único que sábia dele. Olivia afastou as mantas e se sentou na cama, cobrindo-se com a colcha. Pôs os pés no chão e quase se sentiu desfalecer, já que o balanço a pegou de surpresa. Fraquejaram-lhe os joelhos e começou a rodar a cabeça quando tentou dar um passo vacilante para a mesa. Três dias prostrada no leito, sedada com aquele amargo remédio, tinham deixado seu rastro. Ajoelhou-se sobre uma cadeira acolchoada que havia sob a janela e olhou para fora. O mar pintalgado de luz por toda parte. E ao longe, quase no horizonte, outro navio; uma chamativa embarcação pintada de carmesim, violeta e dourado, com suas grandes vela brancas içadas ao vento. Ouvia vozes e passos sobre o convés e a voz do senhor se sobressaindo por cima das demais, dando ordens. Olivia deu a volta. A colcha era pesada e sem querer, ao girar-se, abriu uma das despensas embutidas nos cantos. Continha pratos, uma baixela de cristal e utensílios de prata. Em outra havia um montão empilhado de roupa de linho com lavanda pulverizada por cima. Rebuscou na pilha. Camisas, camisolas, lenços. Qualquer coisa. Pegou uma camisa de dormir. O senhor do navio era um homem alto e a peça quase lhe serviria como vestido. Em um instante a pôs pela cabeça e atou os laços de seda na gola de renda. As mangas eram muito longas e largas, e as arregaçou até os cotovelos. A prega lhe roçava os tornozelos e se ondulava a seu redor no que parecia uma enorme quantidade de tecido. Pelo menos este vestido improvisado a fazia parecer menos vulnerável. Virou-se havia o montão de roupa que havia encontrado no armário e escolheu um lenço carmesim2. O atou como uma faixa para segurar as volumosas dobras da saia. 2

Cor vermelha do carmim.

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Encontrou um pequeno espelho embutido no canto sobre um lavabo de mármore e Olivia se deteve a contemplar-se. Estava inclusive mais pálida que de costume e seus olhos negros, com escuras olheiras, pareciam excepcionalmente grandes. Seu nariz, o grande nariz dos Granville, uma característica sempre marcante de seu rosto, pareceu-lhe especialmente proeminente. Pegou um pente de marfim do jarro e o levou à cabeça. Seus cachos de cabelos negro estavam irremediavelmente emaranhados e resistiam a qualquer esforço que pudesse fazer para lhes dar um aspecto asseado. Precisava lavar o cabelo; estava opaco e sem vida, como o cabelo murcho de uma invalida prostrada na cama. Olivia se sentiu perturbada por seu aspecto. «Estou tão pálida e acabada e tenho uma cara tão desalinhada como se acabasse de sair de uma cova úmida», pensou. Ainda o coçava a pele em algumas partes, e quando tocou o ponto que lhe doía atrás da coxa, encontrou uma grossa bandagem. Seus dedos roçaram ligeiramente a atadura e sentiu que sua face pegava fogo. Ele havia enfaixado suas feridas. Havia limpado, tinha atendido suas mais íntimas necessidades. Podia sentir suas mãos sobre ela, quase tão vividamente como se a lembrança se tornasse realidade. Havia dito que era médico, mas Olivia não tinha conhecido em toda sua vida um médico como o senhor do Wind Dancer. E o que havia dito justo antes de ir? Algo que sabia que ela gostaria. Tinha falado em código, como em um enigma, mas suas palavras haviam tocado uma fibra sensível, uma fibra que inclusive não podia pôr nome. Os enigmas tinham que resolver. Com um movimento rápido, Olivia arrojou o pente, colheu o cabelo embaraçado e o jogou para trás. Utilizou outro de seus lenços, desta vez de cor azul, para afastar os cachos da cara e voltou a dar um olhar ao reflexo que lhe devolvia o espelho. Seu rosto pálido contrastava vivamente com o lenço de cores brilhantes. Mordeu os lábios, esperando lhes devolver um pouco cor, e beliscou as bochechas com a mesma intenção, mas não serviu para nada. Afastou-se do espelho, mordiscando as unhas. Ele havia falado sobre lhe ensinar algo que a filha de lorde Granville nunca teria conhecido se as coisas tivessem seguido seu curso normal. Mais enigmas. E por que sentia esse estranho desapego, não só a respeito do navio que rasgava o mar, ou o reflexo do sol sobre seu rosto ou mesmo a palpitante consciência que tinha de seu corpo, mas a conflitante pergunta de seu íntimo quem era ela antes de cair no vazio? Pensou em Phoebe como se ele tivesse ali. Possivelmente a contemplaria com inquietação desde seus redondos olhos azul, com seu habitual emaranhado de cachos caindo dos alfinetes. Devia estar muito preocupada. Era provável que a imaginasse morta. Abriu a mão em que seguia apertou o anel. Se pudesse enviá-lo a Phoebe, ela saberia que não havia nada que temer. Voltou a dar uma olhada no mar brilhante que se divisava pela janela. Necessitaria uma pomba mensageira para enviar a mensagem,

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e não tinha o costume de levar consigo este tipo de ave. E, entretanto, por alguma razão, a preocupação de Olivia pela inquietação de sua amiga parecia algo longínquo, alheio a quão jovem estava nesse momento no camarote dirigindo-se Deus sabia aonde. Não podia fazer nada para aliviar os temores de Phoebe e seu mal-estar pareceu dissipar-se como a fumaça. A sensação que invadia todo seu ser, de pé no camarote inundado de luz, inalando a doce fragrância do mar, era inquietante. De bons presságios. De esperança.

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Capítulo 2 - Milady, lorde Charles está chorando. A babá pronunciou estas palavras em voz baixa, quase indecisa, da porta que dava à galeria onde a marquesa de Granville andava de um lado para outro, detendose em cada janela para dar uma olhada ao ensolarado e aprazível jardim. Phoebe pôs a mão no seio no mesmo instante que o tênue choro do menino fez que o leite fluísse instantaneamente. - Me dê ele. Pegou o menino e lhe acariciou a bochecha. - Esta sentindo os dentes? Tem a bochecha vermelha. - Creio que sim, minha Lady. Esfreguei um pouco de azeite de cravo nas gengivas para aliviar a dor. Phoebe assentiu com a cabeça. Sentou-se no banco estofado diante da janela e desabotoou o sutiã. O bebê submergiu avidamente na fonte que lhe dava seu sustento, soluçando. - Nicholas continua dormindo? - Sim, minha Lady. Trarei-os quando despertar da sesta. -Ele se cansou muito esta manhã - Observou Phoebe com um carinhoso sorriso maternal. - É um travesso este pequeno... Ele está uma pilha de nervos - Declarou a babá em um tom que só queria indicar aprovação. Fez uma reverência e se virou para sair da galeria. - Ainda não há notícia de lorde Granville? - Perguntou Phoebe, embora soubesse que se tivesse chegado alguma mensagem, a teriam notificado imediatamente. - Ainda não, minha Lady. O sargento Crampton acredita que sua senhoria está em Westminster, mas enviou outra mensagem para Maidstone caso ele venha encontrar-se com lorde Fairfax. Phoebe suspirou e o bebê se viu obrigado a lhe soltar o seio com um choro de indignação. - Não deveria se preocupar milady. Não é bom para o leite. Aconselhou a babá. Ele pode empedrar e consequentemente pode secar. Phoebe tentou obrigar-se a ficar tranquila e voltou a colocar o menino sobre seu seio. - Giles não tem nenhuma notícia sobre as equipes de resgates da ilha? 18

Voltou a fazer uma pergunta da qual já sabia a resposta. Giles Crampton, o sargento de confiança de seu marido do início da guerra, teria lhe comunicado qualquer informação imediatamente. - Ainda não, senhora. A babá voltou a fazer uma reverência e abandonou o cômodo. Mas alguém devia ter visto Olivia. Phoebe acariciou a cabeça de seu filho, tentando acalmá-lo inclusive por causa de sua própria agitação. Como podia ter desaparecido da face da Terra? Não havia pegado nenhum cavalo, por isso não podia ter ido muito longe. E, por outro lado, a ilha era muito pequena. E se a tinham sequestrado? Era o que mais temia. Anos atrás, no inicio desta interminável guerra, tinham tentado raptar Olivia e pedir um resgate por ela. Porém o sequestrador havia raptado outra jovem por equívoco... Ou talvez quem sabe como aconteceram às coisas, seria melhor dizer que foi um acerto, já que Portia, sobrinha de lorde Granville, agora era a feliz e encantadora esposa do autor do sequestro. Com Cato longe dali, Phoebe se sentia responsável. Sabia que ele não a culparia, mas Olivia era a filha de seu marido e sua mais querida amiga, e na ausência de lorde Granville, supunha-se que ela era a cabeça visível da casa. Mas Cato nunca opôs que Olivia perambulasse pela ilha sem vigilância. A ilha era segura. Estava ocupada pelas forças do Parlamento, cuja presença estava por toda parte; os habitantes da ilha eram pessoas pacíficas, ainda que quase todos fossem acirrados partidários da monarquia; e o encarceramento do rei no castelo de Carisbrooke se dava com extrema delicadeza e cortesia. Mas onde estava Olivia? Se estivesse ferida, alguém a teria encontrado, e ela teria dado um jeito de enviar uma mensagem para casa. Phoebe colocou ao menino no outro seio e apoiou a cabeça no marco da janela, olhando para o jardim, de onde ascendia o aroma denso e doce dos lírios; uma pequena fonte discorria musicalmente no centro do lago. Era uma cena reconfortante e aprazível que não se prestava a pensar em sequestros violentos nem horríveis feridas. Concentrou todos seus pensamentos em Olivia, com quem havia vivido durante quase seis anos. Conhecia-a tanto como a si mesma. Sentiam-se atadas por laços que iam além da simples amizade. Phoebe entreabriu os olhos e lembrou-se dos penetrantes olhos negros de Olivia, seu permanente cenho franzido e sua expressão concentrada, a linha suave de sua boca... Tentando fazer com que a lembrança de Olivia lhe enchesse completamente a mente para podê-la sentir a seu lado. O menino havia adormecido e o mamilo tinha saído da boca. Phoebe o acariciou na cabeça com a palma de uma mão e deslizou a outra no bolso de seu vestido para estreitar o pequeno anel de cabelos trançados que sempre levava consigo. Portia havia pegado umas mechas de seus cabelos e havia trançado três anéis, no principio de sua amizade, quando tinham jurado que nunca se casariam nem

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sucumbiriam ao destino habitual das mulheres. Duas delas já tinham falhado, embora nenhuma desempenhasse o papel submisso das mulheres casadas. Olivia era a única que seguia fiel a seu juramento. «E conhecendo-a, provavelmente o manterá sempre», pensou Phoebe. Portia havia trançado os anéis como um pacto, as obrigando a unir seu sangue em um juramento de eterna amizade. Phoebe sabia que Olivia, como ela mesma, sempre levava consigo o anel. Portia, possivelmente não; era um gesto muito sentimental e volúvel para um caráter tão masculino. Mas ao estreitar o anel, Phoebe soube que se tivesse ocorrido algo a Olivia, ela saberia no fundo de seu coração. E simplesmente não tinha essa sensação. Mas onde estava Olivia? Olivia saiu do camarote descalça, vestida com a roupa que havia tomado emprestada. Teve que agarrar-se à parede do estreito corredor uma ou duas vezes quando o navio se lançou a uma dança especialmente enérgica entre as ondas e suas pernas ainda cambaleantes ameaçavam ceder. No outro extremo do corredor havia uma escada de degraus metálicos. O sol se desenhava no chão, ao pé da escada, filtrando-se por uma escotilha aberta de onde Olivia podia visualizar a franja azul do céu e o ângulo de uma vela branca. Subiu engatinhando pela escada e teve que entreabrir os olhos; apareceu no ensolarado convés sob a claridade resplandecente e azul da manhã. Sentiu a madeira suave e quente sob seus pés descalços. O vento formou redemoinhos sobre seu improvisado vestido, fazendo que imediatamente lhe grudasse ao corpo ondulando-o como um sino. Olivia contemplou a ordenada agitação dos homens que trabalhavam em excesso a seu redor, rindo e cantando enquanto dirigiam rodas e aparelhos, subiam nos mastros e atavam os cabos. Ninguém parecia notar sua presença no alto da escada, e ela não sabia aonde ir. Então ouviu uma voz que resultava familiar dando uma ordem, olhou e viu o senhor do navio na ponte de comando, de pé atrás do timoneiro. Tinha a cabeça caída para trás para olhar para as velas; os pés, separados; as pernas, escoradas no convés oscilante; as mãos, colhidas detrás das costas e os olhos, entreabertos para proteger do sol. Parecia tranquilo e parcimonioso3, embora sua postura e sua expressão delatasse um estado de tensão e alarme. Olivia duvidou por um instante, e logo abriu passo para a escada que conduzia à ponte de comando. Subiu lentamente, detendo-se para buscar ar a cada degrau, mas apesar do leve tremor das pernas, sentia-se tão livre e leve como uma das gaivotas que voavam em círculos em cima de sua cabeça. 3

Comedido nas ações.

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- Que criatura, mais engenhosa que se tornaste! - Observou Anthony quando a viu avançar para o convés de um branco deslumbrante. Enrugou os olhos e esboçou meio sorriso ao olhar seu vestido. - Perturbo? – Inquiriu Olivia agarrando-se com força no corrimão quando uma rajada de ar encheu a vela maior e escorou perigosamente o navio. - Nem um pouco. Um uso inteligente de uma roupa que eu não utilizo. Respondeu com gesto indiferente. De improviso, Olivia se perguntou onde havia dormido ele se ela ocupava sua cama. O rubor produziu efeito nas maçãs de seu rosto e se virou de costas com dissimulada atenção para contemplar a paisagem. - Não se importa que suba aqui, não é? Fez gesto para proteger os olhos e assim poder contemplar a grande expansão de água, agradecendo a brisa que lhe refrescava as faces. Ele negou com a cabeça. - Não, se sentir com forças. Mas não esqueça que ficou três dias na cama. - Encontro-me perfeitamente bem. Assegurou Olivia, com um tom que dava a entender que não era completamente certo o que dizia. Anthony não acreditou; ainda estava muito pálida para encontrar-se bem, e ele sabia melhor que do ninguém a quantidade das às essências de camomila, absinto e suco de papoula que lhe havia feito beber, apesar de sua resistência, nos últimos dias. - Estou pálida e débil porque acabo de me levantar da cama. Disse Olivia interpretando corretamente seu ardiloso olhar. Preciso me banhar e lavar o cabelo. Sinto-me suja. Ele assentiu com um encolhimento de ombros. - Mais tarde iremos providenciar isso para você. Talvez inclusive possamos encontrar um pouco de água doce. - Água quente? - Perguntou ela com ilusão. - Não será fácil. Mas se for amável com Adam, talvez possamos consegui-lo. - Galeão a proa. Entoou uma voz muito por cima da cabeça de Olivia, que ao levantar a vista distinguiu uma pequena figura em cima de uma saliência na parte superior da mezena4. - Meu Deus! Preparado para virar, Jethro. - Sim, senhor. O timoneiro começou a girar o leme. Anthony tinha os olhos fixos na vela maior, assobiando silenciosamente entre 4

vela latina quadrangular que se enverga no mastro da mezena

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dentes. - Olivia, não solte do corrimão. Estamos a ponto... - A ponto de que...? Olivia pareceu surpreendida. O que ia ocorrer? Ele se limitou a rir. - Tinha esquecido que é um marinheiro de água doce. Simplesmente se agarre forte quando ouvir uma explosão. Olivia obedeceu às instruções e se aferrou ao corrimão enquanto ouvia uma série de ordens incompreensíveis que levaram os homens a amontoar-se nos aparatos, soltando os cabos à medida que a fragata se aproximava a mercê do vento. De repente, a enorme retranca (Náutica Uma das vergas do mastro de mezena) ficou suspensa no ar, desinchando a vela maior, em seguida o timoneiro pareceu virar a embarcação, o vento voltou a inchar a vela e a retranca deu uma inclinação brusca para estibordo. As velas voltaram a desdobrar-se e o Wind Dancer tomou um novo rumo deslizando entre as ondas. Olivia viu que o navio pintado que havia avistado do camarote estava muito mais próximo, e parecia que navegava para eles. Esperou até que tudo se acalmou de novo e o senhor voltava a olhar serenamente as velas com as mãos recolhidas nas costas. - Quem é? - Perguntou ela, assinalando em direção ao navio pintado. -Ah, o Dona Elena - Respondeu ele, olhando-a com olhos travessos. - Ficamos esperando vários dias até que zarpasse do porto. - Por quê? Por que o esperavam? - Para lhe caçar. Procurou a luneta no bolso de sua calça, desdobrou e examinou o navio pintado. - Tinha visto antes um Galeão espanhol? Olivia disse que não com a cabeça. - Dê uma olhada – Disse-lhe estendendo a luneta. Olivia pôs o olho e o navio multicolorido apareceu diante de seu olhar. - Por que querem lhe c-caçar? Ruborizou-se, zangada por sua leve gagueira. - Quem dera pudesse evitar - Desculpou-se ela. O C era a consonante que lhe resultava mais difícil, e apesar de todos seus esforços ainda gaguejava em determinadas ocasiões. - Só gaguejo quando estou nervosa ou preocupada - Acrescentou com desconsolo. - Pois eu acho encantador - Disse Anthony alegremente. 22

- Sim? Olivia parecia surpreendida. - Sim - Repôs ele com um sorriso - Agora, adivinhe por que quero apanhar o Galeão. Vos disse que vivia do mar, lembra? Olivia baixou lentamente a luneta. Olhou-o como se o visse pela primeira vez. Sem dúvida, não era um cavalheiro. - São piratas! - Exatamente - Disse Anthony. Olhou-a com gravidade, sem um sorriso. Sabia o tipo de resposta que esperava dela. Mas seria capaz de responder o que ele desejava ouvir? Durante os dias em que esteve cuidando dela, pensava ter reconhecido em Olivia o brilho da personalidade que constituía o pilar de seu próprio caráter. Mas tinha ela a presença de ânimo suficiente para que este brilho se convertesse em uma verdadeira labareda? Séria capaz de deixar de lado a prudência e a formação para lançar-se à aventura? Para ele era importante averiguar. Esperou, contemplando fixamente seu rosto. Olivia franziu o cenho, com a conjetura marcada em seu escuro olhar. - Mas... Mas, é perigoso. - Nisso que está seu atrativo. - Sim? - Perguntou Olivia, com um murmúrio que só parecia expressar em voz alta seus próprios pensamentos. O perigo era fascinante? Sentiu arrepiar o pêlo da nuca e deu um olhar rápido ao pirata. Ele sorriu pausadamente e Olivia se encontrou devolvendo um sorriso cúmplice. Ela voltou a olhar pela luneta. O Galeão parecia muito maior que o Wind Dancer, com suas quatro enormes velas desdobradas. E agora podia ver uma fileira de remos a um de seus lados, deslizando-se rapidamente sobre o mar. - Vai muito rápido - Disse ela pensativa, mordendo os lábios - É mais rápido que seu navio? Podem c-calcular a velocidade? A leve gagueira de excitação dava a Anthony a resposta que estava esperando, e ocultou um sorriso de satisfação. -É mais pesado que o Wind Dancer. Respondeu mais lentamente ao leme. Embora com as velas desdobradas e os escravos remando a toda velocidade, poderia nos superar. - Escravos? - Galeotes5. Vê os remos? 5

Pequena gale de 20 remos.

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Olivia assentiu, ainda olhando através da luneta. - Logo os verá com maior nitidez. Sua boca desenhou um gesto de asco e o ar divertido se desvaneceu de seu olhar. - Estão permanentemente atados aos remos. De vez em quando os regam com uma mangueira. - Que barbaridade! A voz de Olivia se estremeceu de indignação. - Os libertaremos quando capturarmos o navio? Anthony riu em silêncio. - Está completamente segura de que está pequena aventura nos sairá bem, não é? Olivia tornou a levantar a vista para ele, com o olhar resplandecente. - Não, é obvio que não. Creio que terá planejado cada detalhe com o maior cuidado. Terá levado em conta fatores como o vento, a maré e a velocidade dos remos. Coisas deste tipo. - Sim, claro - Acrescentou ele solenemente. Todas essas coisas foram levadas em conta. - Eu gostaria de saber fazer esse tipo de cálculo. Disse ela com ar pensativo. A matemática é uma de minhas disciplinas preferidas. - Mais que a filosofia grega? Olivia refletiu antes de responder. - Às vezes prefiro matemática e outras, a filosofia. Depende se um tema determinado a atrair meu interesse. - Entendo. Respondeu ele olhando pelo corrimão, com um secreto prazer desenhado nos olhos. - E o que ocorrerá com a c-carga do Galeão? Perguntou Olivia, deixando de lado a discussão sobre seus estudos no momento. - É uma boa presa, sabia? - Muito boa. Acrescentou ele tão solenemente como antes. Seleciono minhas presas com o maior cuidado. Traz dobrões de ouro e sedas das Índias. Certamente farei melhor uso do que seus patrões espanhóis. - E libertará os escravos? - Apressou ela. - Se assim o desejarem... - Sim. Olivia assentiu energicamente - Parece-me um propósito elogiável. 24

- Então combinaremos a pirataria com um pingo de filantropia. Declarou Anthony. Virou-se para o timoneiro que estava as suas costas. -Jethro, creio que chegou o momento de nos pôr à sua esteira. O marinheiro lambeu o dedo e o elevou. - OH, sim, senhor. O vento vem de estibordo. Viramos nessa direção? - Sim, essa era minha ideia. Anthony segurou o leme. - O que irá fazer? Perguntou Olivia colocando-se a seu lado. - Veja a direção do vento? Vem da direita, a estibordo. Se nos situarmos ao lado do Galeão, ficarão sem vento e suas velas se desinflarão. Só terão os remos para seguir avançando. E quando estiverem indefesos, os abordaremos. - Parece um bom plano - Disse Olivia pensativa - Tem canhões? - Uma bateria de cada lado. Mas nos aproximaremos antes de utilizá-los. Quanto mais confusos fiquem sobre nossas intenções, muito melhor. Levantou a vista para o sol e esboçou uma careta. - Chegou o momento, ainda que eu seja quem o diga. Virou ligeiramente o leme. - Os espanhóis almoçam bem - Respondeu com um sorriso cínico - Uma comida temperada regada com vinho convida a uma larga sesta. Os pegaremos com o estômago cheio e a mente atordoada. De repente Olivia se deu conta de que estava morta de fome. - Não estão acostumados a almoçar no Wind Dancer? Perguntou ela sem querer. - OH, têm fome? Ele respondeu olhando-a. - Esqueci de que já fazem mais de três dias que não come nada sólido. Jantaremos como Deus manda quando tivermos acabado a tarefa. Agora o forno está fora de serviço. Estavam alcançando o Galeão e Olivia se deu conta que a atmosfera do Wind Dancer havia mudado. Os homens situados no corredor tinham deixado de rir e de cantar. Tomavam posição lentamente frente ao corrimão, cotovelo com cotovelo, tensos e espectadores. E agora Olivia via os canhões que até o momento tinham permanecido ocultos. Ao aproximar-se do Galeão, observou que as velas do outro navio começavam a desinchar. - OH, sim, estão roubando o vento. Gritou sem elevar muito a voz. Então alguém a repreendeu do outro lado da estreita franja de água. Um homem corpulento, vestido com calças de babados e um capote com galões de ouro e botões prateados, apareceu de repente no alto da escada de câmara do convés da popa 25

do Galeão. Olivia não entendia o idioma, mas o acento era inconfundível. O capitão espanhol havia ficado lívido ao ver que suas velas ondulavam ao vento irremediavelmente. Agitava um imundo guardanapo de mesa como se pudesse fazer o trabalho das velas caídas e dava ordens por um megafone. E então Olivia percebeu o aroma. Um fedor pestilento que lembrava-lhe carne podre e a indescritível sujeira de um canil. Levou a mão à boca, asfixiando-se. De repente, já não tinha fome. Anthony tirou um lenço de seu bolso e o estendeu. - Cubra o nariz e a boca. Aconselhou ele com o cenho franzido. A fragata estava quase ao lado do Galeão. - Canhões a estibordo... Redes... Não percamos tempo, cavalheiros. Gritou Anthony. Tudo aconteceu muito depressa. Ouviu-se um estrondoso barulho metálico quando os canhões rodaram para as portas, e as redes de abordagem voaram pelos ares, aprisionando os lados do Galeão com seus ganchos de ferro. O espanhol gritava e saltava sobre um e outro pé no convés de popa. Olivia pôde ouvir o violento barulho dos remos empunhados por braços desesperados, o vil estalido do chicote, os horríveis gritos e gemidos dos escravos quando o couro lhes rasgava as costas cheias de cicatrizes. Os homens do Galeão se apressaram a jogar as redes pela amurada, mas mesmo assim, os piratas se amontoavam no estreito oco. -Fogo a bombordo6! Olivia pensou que o chão afundava sob seus pés depois do tiro de canhão, e teria perdido o equilíbrio se Anthony não tivesse estendido o braço e a tivesse agarrado com força enquanto fazia girar o leme, situando o Wind Dancer perigosamente perto do Galeão. Tão perto que parecia investi-lo. O ruído da madeira estilhaçada alagou o caloroso ar de verão quando os canhões da fragata arremeteram contra o lado do Galeão. Olivia ergueu a vista para olhar Anthony e ele riu. Olivia se deu conta de que não estava assustada, mas sim se sentia presa de uma grande excitação. Continuando, Jethro, o timoneiro, dispôs-se a tomar o comando, agarrando com força o leme, e Anthony desembainhou a espada. Com um movimento rápido, inclinou-se, segurou o queixo de Olivia na palma de sua mão e a beijou na boca. - A pirataria parece agradar à filha de lorde Granville. Antes que pudesse responder, ele tinha desaparecido saltando por cima do corrimão, sobre a rede estendida, para lançar de um salto sobre a multidão de espanhóis que se aglomeravam no convés oposto. Com um gesto de surpresa, Olivia tocou a boca onde ele a havia beijado. 6

A esquerda da embarcação.

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Nenhum homem havia feito algo assim até então. Juntou os braços sobre seu corpo com um ligeiro estremecimento. Mas era de excitação, não de medo. Olhou Jethro e viu que estava completamente tranquilo e crédulo. Pareceu girar a proa da fragata em direção ao vento, por isso as velas se desincharam e o navio se deteve, oscilando suavemente ao lado do Galeão espanhol. Olivia lançou um olhar à anárquica voragem que acontecia no convés do Galeão e visualizou a dourada cabeça de Anthony. Parecia estar em todas as partes, sua espada brilhava como a do arcanjo Gabriel nas portas do Jardim do Éden. - Aconteceu alguma coisa? A pergunta falava por si mesma. - Não, senhora, não tema. O senhor nunca perdeu uma batalha até o momento. Disse Jethro com uma tranquilidade fleumática. E na realidade parecia que o caos estava se dissipando, tinham deixado de ouvir as vozes e os gritos que até então se confundiam com os gritos das gaivotas. Anthony saltou sobre a proa do convés do Galeão onde de repente se materializaram o capitão espanhol e outros três vestidos com casacas trançadas e grandes chapéus de plumas. Olivia contemplou como o pirata se encurvava com gesto teatral sobre suas vítimas, cortando o vento com a espada. Viu a si mesma lançando um olhar calculador para a rede de abordagem na ponte. Parecia fácil, apesar de que a água estava muita longe. Em que demônios estava pensando? Mas a razão parecia tê-la abandonado. Embora fosse uma loucura, a filha de lorde Granville não ia perder está aventura. Olivia riu entre dentes e, com uma leve sacudida, recolheu a dobra do vestido com as mãos, subindo-a por cima dos pés nus se segurou ao corrimão. -Pode-se fazer em três passos. Mas lembre-se que o navio se moverá sob seus pés. Olivia levantou a vista para ouvir o tom calmo do pirata do convés oposto. Havia um desafio e um convite em seu olhar. Ela assentiu mordendo o lábio em um gesto concentrado soltou-se do corrimão e deu um grande salto para diante. As redes ricochetearam sob seus pés e deu um grito, meio sobressaltado meio excitado, e logo alcançou o Galeão com segurança, com o vento lhe açoitando o cabelo sob o lenço azul. Deslizou-se sobre o corrimão e subiu para o convés da popa. - Cavalheiros, apresento-lhes Lady Olivia. Anunciou Anthony brandindo sua espada com uma reverência. Ela pegará suas espadas, se forem tão amáveis para desarmar-se. Sorriu educadamente. - Uma simples precaução que certamente entenderão. - Piratas! - Exclamou de repente o capitão espanhol com um forte acento. - Exato. Concordou Anthony. - Piratas em alto mar. Suas espadas, cavalheiros, 27

se me fizerem o favor. - Não mancharei minha honra com um vulgar pirata! Balbuciou um dos três espanhóis. - Prefiro morrer empunhando a espada que me render ante um ladrão. - Então, comecem a rezar. Têm três opções. Em seu rosto se desenhou um sorriso com uma indiferença educação. - Podem entregar suas espadas lady Olivia; podem morrer com elas se lhes agradar ou eu mesmo lhes arrancarei do cinto. Junto com suas calças, vocês podem escolher. Desembainhou sua espada de repente e deixou descansar a ponta na proeminente barriga do capitão. O homem retrocedeu com um chiado e Anthony seguiu empunhando a espada. Três rápidos cortes e o cinto do capitão caiu no chão com grande ruído. - Se fosse amável, não seria preciso fazer isso. Lady Olivia. Murmurou Anthony. Com destreza apontou a ponta de sua espada e os botões das calças saíram disparados aos quatro ventos. O capitão tentou agarrá-la para que não escorregassem até o chão, e ficou imóvel, carrancudo, amaldiçoando-o. Os outros três homens lançaram um olhar cheio de ódio e temor para seu sorridente assediador. Olivia pegou a pesada espada do capitão e a colocou cuidadosamente sobre o convés a certa distância de seu proprietário. Anthony lançou uma olhada a suas outras vítimas arqueando as sobrancelhas e esgrimindo a espada com desenvoltura. Uma segunda espada caiu ao chão; um segundo homem permaneceu impotente agarrando os calções para que não deslizassem até os tornozelos. Olivia pegou a espada e a pôs junto à outra. Estava a ponto de começar a rir, mas esforçou-se para imitar a atitude de Anthony, que agora permanecia de pé junto ao corrimão, com a ponta da espada entre os pés, enquanto contemplava os outros dois espanhóis. Blasfemando, um deles afrouxou a fivela do cinturão, e seu companheiro fez o mesmo. Anthony se inclinou para as espadas e as recolheu. -Muito obrigado, cavalheiros. Agora, se forem tão amáveis de acompanhar meu homem a seus camarotes enquanto acabamos nosso trabalho... Deixaremos todos vocês em paz antes mesmo que possam imaginar. Sinalizou para as escadas do quarto e Olivia viu um sorridente marinheiro esperando com espada e com um sabre7. O homem dirigiu uma zombadora reverência aos espanhóis. - Por aqui, cavalheiros, por favor. 7

Pequena arma branca amolada de um só lado.

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Com um gesto de aborrecimento nos lábios, Olivia viu como seguiram o pirata dando inclinações bruscas. Agora que havia acabado a diversão, voltava a ter consciência do mau cheiro que provinha das entranhas do Galeão, aroma que na ocasião a fez engasgar. - Que criaturas mais ridículas! Declarou. - Parecem tão presunçosos com seus galões e suas ninharias, com suas enormes panças abarrotadas de comida, vivendo à custa desses pobres e famintos miseráveis. Anthony embainhou sua espada e se aproximou dela. Tinha sangue na bochecha. Pegou o lenço que ela ainda levava consigo e secou a ferida. - A respeito disso, devemos entregar o navio e seus senhores aos escravos ou abandoná-los a sua sorte? , quem sabe não seria melhor deixá-los à deriva em um de seus botes? O destino deles estão em nossas mãos. Olivia ponderou a situação. - Possivelmente os escravos os assassinariam se tivessem oportunidade. Murmurou - Acha que é provável? - Altamente provável. - Parece um castigo divino. Disse ela com firmeza. - Não acha que perder a mercadoria, os escravos e o Galeão não são castigo suficiente? Sugeriu o com o cenho franzido para sublinhar a pergunta. Os escravos ficarão com o Galeão e podemos lhes dar uns dobrões para partirem para onde quiserem. - Não é bastante sanguinário para ser um pirata. Observou Olivia. Mas possivelmente é melhor que cada qual siga seu caminho. - Pois, que assim seja. Virou de costas e se inclinou sobre o corrimão para dar uma ordem. Em poucos minutos começou a ouvir um martelar rítmico e constante, quando os homens se dispuseram a quebrar os grilhões dos escravos. Olivia se apoiou no corrimão para contemplar a atividade que movia ao seu redor. Os homens de Anthony tiravam cofres, caixas e fardos das profundidades do Galeão e as transladavam para Wind Dancer com movimentos que pareciam ter repetido muitas vezes. A tripulação do Galeão estava reunida no centro do navio, e alguns piratas os estavam desarmando, dançando alegremente a seu redor, conversando e assobiando como se tratasse de uma festa. - O que ocorrerá com as brechas que se abriu na lateral do navio? Não há perigo de que se afunde? -Não, se seus novos proprietários souberem remendá-lo. Disse Anthony sem prestar atenção. Estão a menos de um dia de navegação de Brest. - Brest? Olivia tratou de visualizar a costa francesa. A que distância estava Brest da Ilha 29

de Wight? Parecia-lhe que estava mais à frente do golfo de Saint-Mau. Quanto tempo demoraria para chegar até sua casa pelo mar? Sua casa. Era um conceito tão distante e tão irreal que parecia pertencer à outra vida. De repente, no diminuir a tensão, sentiu-se muito cansada. Lançou uma olhada à rede que cobria a ponte com apreensão. Parecia muito instável e muito acima do mar azul esverdeado que se agitava ali abaixo. - Muito cansada para voltar a tentar? Perguntou Anthony a seu lado, e ela o olhou rapidamente para captar aquele brilho sorridente de seu olhar. - Como se deu conta? - Minha obrigação é saber o que preocupa os membros da tripulação. Disse ele. - Especialmente a mais nova e inexperiente. - Pois acreditava que tinha me dado bem com isso de desarmar vilões. Protestou Olivia esquecendo seu cansaço por um instante. - OH, sim, é obvio. Têm um talento natural. Garantiu. - Nasceste para isso. Só os piratas natos consideram suas vítimas como vilões. - Pois me ocorreu sem pensá-lo. Disse Olivia, com um tom de surpresa. Não é assombroso? - Soube desde o começo. Respondeu ele sem dar importância. Venha, eu a acompanharei. Vejo que está desejando voltar para a cama. Era totalmente certo, embora Olivia não pudesse entender como sabia exatamente o que ela estava pensando a cada instante. Ele a tomou pelo cotovelo e a conduziu até a parte baixa do navio. Olivia contemplou a rede sem convicção, com o coração palpitante. A distância parecia expandir-se e contrair-se ante seus olhos e então se perguntou atônita como ela tinha saltado igual a um macaco a menos de meia hora. E logo, ao ver que ela duvidava maldizendo sua apreensão, Anthony a segurou entre os braços e a estreitou com firmeza. -Veja não nos tomará nem um segundo. Disse, e com um alegre assobio saltou a distância, tocando na rede só uma vez com os pés. -Pronto, agora pode descansar em sua cama, e quando despertar, já estaremos a caminho e então jantaremos... Jantaremos... O que Adam tenha preparado para nós. Sustentou-a durante um momento entre seus braços, e ela pôde sentir os batimentos do coração rítmicos do homem contra seu seio. Em seguida ele a deixou no chão e segurou rapidamente o lenço que tinha se soltado do cabelo e estava a ponto de ser arrastado pelo vento. O atou ao redor do pescoço. - Eu não gostaria de perdê-lo. É um de meus preferidos. Pôs as mãos na cintura e deu um passo atrás para observar a faixa carmesim. - E cada vez mais eu gosto deste. Disse dando as costas, e Olivia soube que estava sorrindo. 30

Pensar em deitar-se na cama era uma ideia irresistível. Estava muito exausta para ter fome, muito cansada inclusive para pensar no irreal da situação. Abandonou a fortaleza e desceu pela escada para o camarote, sentindo as pernas tão pesadas que quase não podia as levantar. O compartimento estava silencioso; o sol entrava em torrentes pela janela e sem duvidar nem um instante, estirou-se na cama e se tapou com a colcha. - Está louco. Como uma besta. Adam atirava faíscas pelos olhos. Estava a serviço deste homem desde que sua mãe o havia dado a luz, e sabia quando o senhor do Wind Dancer estava tramando algo. Podia ver na cara, na malícia de seu olhar. Adam sabia exatamente de onde procedia essa temeridade, e não suportava ter mulheres a bordo. Davam má sorte. Ficou de pé ao lado de seu senhor enquanto o Wind Dancer, fiel a seu nome, deslizava-se na brisa fresca. - Se preocupa com algo, Adam? Anthony não tirava os olhos do horizonte, mas sua voz parecia divertida, lendo como sempre a mente de seu servente e amigo com estranha precisão. - Ela não nos trairá. Disse. - Não sei como pode estar tão seguro - Resmungou Adam. Já sabe quem é seu pai. - O Marquês de Granville, o homem do Parlamento. Disse Anthony encolhendo de ombros. Mas não atribuamos à filha os pecados do pai, Adam. Não há razão para isso. - OH, é impossível. Não se pode falar com você. Protestou Adam jogando faíscas. E lá estava ela, com toda a desfaçatez do mundo, olhando como capturávamos o Dona Elena... - Ela fez sua parte, se por acaso não lembra. Interrompeu Anthony antes que Adam pudesse fazer outro argumento. - É uma desgraça. Declarou Adam. Especialmente por ser quem é. - Não é uma mulher comum. Disse Anthony com convicção. Jogou uma olhada para Adam, e desta vez foi um olhar sério e absorto. Confia em mim, Adam. Olivia Granville não é uma mulher comum. - Suponho que é outra de suas intuições. Murmurou Adam. - E sempre acerto, não? Anthony elevou uma sobrancelha com um gesto inquisitivo. - Sim, mas para tudo há uma primeira vez. Murmurou Adam sem muito convencimento. A mãe de Anthony também tinha tido a mesma habilidade para entender às pessoas com uma precisão que era impossível não se convencer, bastava um olhar e ela já sabia quem era e quais eram as intenções que nem mesmo a própria pessoa tinha noção do que acontecia. 31

Anthony sacudiu a cabeça. - Desta vez, não. - Bom, se está pensando em compartilhar sua cama, espero que se lembre de que ela não é uma mulher qualquer. É uma jovem educada e de berço. Fará bem a você em se lembrar! - O farei, Adam, o farei. Anthony sorriu. - Seu pai não jogará minha porta abaixo. Observou a expressão indignada de seu homem com um gesto zombador - Seria a primeira vez. - Sim, e só Deus sabe por que. Um insensato, um leviano, isso é o que você é. Declarou Adam com franqueza. - Tolices. Brincou Anthony. - Eu gosto de desfrutar sempre que posso, como qualquer homem de verdade. Adam escutou suas desculpas com reprovação e Anthony guardou seu conselho. Não que tivesse a intenção de levar Olivia Granville para cama, mas sim, isso era inevitável. E sabia que até certo ponto, ela também se dava conta disso. O que não sabia é como essa situação poderia interferir em seus planos. O tesouro capturado no Galeão espanhol iria engrossar as áreas dos rebeldes monárquicos e seus partidários escoceses, que romperiam a difícil trégua que havia com o encarceramento do rei e provocariam uma vez mais a guerra na campina inglesa, numa última tentativa para garantir sua soberania. Neste empreendimento, Cato Granville era o inimigo. No momento, não estava no castelo de Carisbrooke, mas logo retornaria. A restauração dos combates por parte dos defensores do rei e as notícias de suas negociações secretas com os escoceses endureceriam os carcereiros de Sua Majestade. Tentariam tirá-lo da ilha e fazer com que retornasse a Londres. Antes que isto ocorresse, Anthony tinha a intenção de oferecer ao rei Carlos a possibilidade de viajar para França no Wind Dancer. Restava ver como encaixaria Olivia Granville em seus planos. - Têm ideia do que havia no navio que fizeram naufragar na outra noite? Perguntou Adam. Acredito que tenha sido um bom saque. Você pensa que o boato se espalhou? O bom humor se dissipou da cara de Anthony. - Se o boato se espalhou, Adam. Por muito substancioso que fosse o tesouro, a mercadoria não terá nenhum valor se não puder ser vendida. Quem fez o saque já tinha ideia do que fazer com a mercadoria, sabe onde existe um comprador discreto, entrará em contato com ele. Não sei o que obteremos com isso, há muitas possibilidades de que seja algo de grande valor. Afinal, era um navio mercante. Pôs-se a rir cruelmente, com os olhos cor de ferro, a boca torta, com um gesto que Olivia não teria reconhecido. Não havia nem um vestígio da amabilidade e a 32

alegria que ela teria esperado. - Por que não deixar que pelo menos uma vez, outro faça o trabalho? Disse. O sol do entardecer projetava uma paleta de cores no céu poente e a água que corria sob a proa do Wind Dancer havia se tingido de dourado e rosa. Um intenso aroma de comida procedia dos fogões reavivados da galera. A aspereza abandonou Anthony do mesmo modo que tinha surgido. Estava lembrando sua promessa ao membro mais recente de sua tripulação. - O que há para jantar, Adam? - Perna de cordeiro assada. Respondeu o velho à contra gosto. E o que pegamos da mesa dos espanhóis. Um bom sortido de bolos e um pouco de queijo manchego8. - Então jantaremos em uma hora. Minha Bela Adormecida já deverá estar acordada. Saudou Adam e abandonou o tombadilho superior. Adam sacudiu a cabeça. Seu senhor levava tantos homens em seu interior que Adam se surpreendia como podia mantê-los separados, cada um em seu próprio compartimento. Tinha muito a ver em como havia crescido. Adam sabia, mas seguia se surpreendendo, nutria por aquele homem uma verdadeira estima, o criou e o serviu desde que chegou ao mundo em uma noite endemoniada, isso por volta de vinte e oito anos atrás.

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Região central da Espanha (Mancha).

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Capítulo 3 Olivia despertou com as forças renovadas depois de uma sesta reparadora e por um instante não soube onde estava, até que o canto de uma gaivota e o penetrante aroma de sal marinho lhe refrescaram a memória. Sorriu lentamente ao sentir como uma leve pontada de excitação percorria toda sua pele. A fadiga havia feito que duvidasse do mundo mágico que a rodeava, mas já não estava cansada e este estranho novo mundo a maravilhava. A filha de lorde Granville era cúmplice de piratas. Alguém poderia dizer que havia sido sequestrada por um deles e estava retida em um navio em alto mar. Poderia dizer isso e seria verdade. Mas neste momento ela não queria estar em nenhuma outra parte e seu único desejo era viver mais aventuras. O encontro com o galeão espanhol só tinha aberto o seu apetite pela pirataria. “Tenho mais em comum com Portia do que imaginava”, pensou Olivia sufocando a risada. A sobrinha ilegítima de seu pai tinha afeição por militarismo e havia contraído matrimônio em um campo de batalha, vestida com calças folgadas e uma espada na cintura. Olivia começava a gostar deste comportamento tão pouco convencional. Até então sempre havia pensado que Portia era única em sua espécie e fazia o que tinha vontade. O comportamento de Portia não tinha nada que ver com o das pessoas comuns. Mas talvez não fosse isso. Talvez sua singularidade também houvesse influenciado na maneira de se comportar de suas amigas. Ou, talvez, Olivia não fosse uma pessoa tão normal como acreditava, embora até agora não houvesse se dado conta. Sorrindo, Olivia retirou a colcha e se sentou na cama. Sentia-se faminta. De repente, sentiu um maravilhoso aroma de carne assada que lhe deu água na boca. Inspecionou o camarote com o olhar, perguntando-se o que poderia descobrir sobre o senhor do Wind Dancer. Nem por um momento lhe ocorreu que poderia estar invadindo sua intimidade quando começou a inspecionar o camarote. Na mesa, havia algumas cartas de navegação, junto a um sextante e um compasso. Observou os mapas com atenção para entender os cálculos escritos pela mesma mão firme que havia esboçado as linhas de suas costas. A sua mente matemática era fascinada por cálculos, ainda que requeresse certo estudo para entendê-los. Examinou os livros das estantes embutidas. Uma coleção interessante. Poesia, filosofia, alguns de seus textos clássicos favoritos. Dava a impressão de que o senhor do navio era um intelectual. Olhou o tabuleiro de xadrez colocado em uma pequena mesa debaixo da janela. Parecia que alguém estava jogando uma partida, ou talvez, resolvendo um problema. Olivia se inclinou sobre as peças, franzindo o cenho. Moveu o bispo branco até o rei quatro, e ficou de pé refletindo sobre o tabuleiro. Em seguida, assentiu com satisfação. Tinha acertado. Era inevitável que as brancas fizessem cheque mate em dois movimentos. “Não era um problema especialmente difícil”, pensou. 34

Cantarolando entre dentes, Olivia se virou para a mesa onde estavam as cartas de navegação. Sem pensar, abriu uma gaveta sob a mesa. Havia um montão de papéis com a face escrita virada para baixo. Os pegou e os dispôs sobre a mesa. Eram desenhos, esboços a lápis. Parecia que o senhor do Wind Dancer era um desenhista que encontrava modelos para satisfazer seu talento onde olhasse. Nesses desenhos aparecia quase toda a tripulação. Contemplou fascinada toda a série. Reconheceu algumas das faces que antes havia visto no convés. Jethro, o timoneiro, aparecia várias vezes. Em alguns desenhos, os homens estavam trabalhando no navio, costurando velas, atando cabos, encarapitando-se aos mastros. Em outros estavam jogando, dançando, rindo, escutando a um de seus companheiros tocar o alaúde, com as costas apoiada no mastro. E havia três ou quatro em que os homens nus estavam de pé sob uma bomba, com a água deslizando pela pele e um sorriso no olhar. Olivia havia passado muito tempo entre textos e ilustrações da antiguidade grega e romana para sentir-se turvada pelos nus masculinos. Mas em sua opinião, o artista tinha um grande talento para a anatomia. A forma humana lhe intrigava, a julgar pelo número de pequenos esboços de uma mão, um pé, um tornozelo, delineados em escassos traços e entretanto, capazes de captar a expressão na inclinação de uma cabeça ou o gesto de um olhar. - Geralmente, quando não deixo meu trabalho à vista de todo o mundo, é porque reservo isso só para mim. Olivia não ouviu ele abrindo a porta. Levantou a vista sobressaltada e os desenhos revoaram em cima da mesa, inclusive um ou dois caíram no chão. O senhor do Wind Dancer permaneceu de pé na porta do camarote com uma expressão em que havia desaparecido sua habitual faísca. Franziu o cenho com um gesto de contrariedade no olhar. - Rogo-lhe que me desculpe, não era minha intenção bisbilhotar - Disse Olivia ruborizando-se. - A gaveta não estava fechada com chave, nem nada parecido. - Não, porque meus homens não têm o costume de violar minha intimidade. Disse bruscamente. Carregava duas tinas de madeira das quais surgia um gotejo de vapor. Entrou no camarote, fechou a porta com o pé a suas costas e deixou os baldes no chão. - Queria lavar o cabelo, trago água quente. - Obrigada. Olivia passou as mãos pelos cabelos. Sentia-se envergonhada por ter sido pega bisbilhotando seu quarto e não sabia como arrumar as coisas. - Sinto muito ter mexido em suas gavetas. Eu... eu simplesmente senti uma irresistível necessidade de saber mais coisas sobre você. Não era minha intenção me intrometer em seus assuntos. 35

Ele a seguia contemplando com ar irritado. - Podia ter me perguntado o que quisesse, ou não lhe ocorreu isso? - Não estava aqui. Olivia encolheu os ombros e lhe dirigiu um sorriso de desculpa. - E quando lhe perguntei algo, você não foi muito explicito. - Por isso, simplesmente você seguiu seu primeiro impulso. Olivia concordou, franzindo ligeiramente o cenho até que suas duas grossas sobrancelhas castanhas se uniram em um só risco. - Parece que ultimamente me deixo guiar por meus impulsos, como quando saltei para o Galeão. Nunca teria dito que sou uma pessoa impulsiva. Phoebe é a mais impulsiva das três. - As três? Perguntou Anthony elevando a sobrancelha de modo que sugeria uma interrogação. - Phoebe, Portia e eu. Todas nós estamos relacionadas ainda que seja indiretamente. Somos amigas íntimas. Acrescentou, pensando que para Anthony não interessaria as ramificações de seu complicado trio. A simples amizade parecia mais fácil de entender. Talvez ela estivesse certa, porque ele não inquiriu mais detalhe. Ele se virou de costas para abrir uma gaveta. - Gostou de meus desenhos? - São muito bons. disse Olivia com indecisão, ainda envergonhada. - E os temas? Perguntou ele, virando-se com várias toalhas nas mãos - O que opina do conteúdo? Sem dúvida estava zombando dela; não podia dissimular a ironia na leve careta da boca nem no brilho do olhar. - Observei que a anatomia é um dos assuntos preferidos de artistas e desenhistas - Disse Olivia olhando-o fixamente nos olhos sem perder a compostura Conheço bem os artistas do Renascimento e não espero ver folhas de parreira, se você se refere a isso. Ele deu uma gargalhada e desapareceu a expressão de aborrecimento. - É obvio, as mulheres eruditas são menos afetadas diante da verdade nua, do que as que estão em casa costurando. - Eu não sei c-costurar - Confessou Olivia. - Por mais estranho que pareça, eu já supunha - Respondeu Anthony deixando as toalhas sobre a mesa e tirando uma banheira redonda de madeira de sob a cama. Não há água quente o suficiente para que se banhe como é devido, mas se ajoelhar-se aqui, posso lhe lavar o cabelo. Em seguida tenho que trocar a bandagem da ferida da parte anterior da coxa. 36

Olivia vacilou. - Por que tenho a perna enfaixada? - Era a pior de suas feridas . Ajoelhou-se ao lado da banheira, fazendo gestos com o dedo. - É um corte profundo que se encheu de cascalho e sujeira quando você caiu pela ravina. Vi-me obrigado a costurá-lo, talvez por isso possa arder. Olivia tocou a bandagem entre as dobras da camisola. Estava muito acima. - Posso arrumar isso sozinha . Disse. - E eu p-posso lavar o cabelo. - Deve ir com cuidado com o machucado na parte posterior da cabeça. Será mais fácil se a ajudar, porque sei onde está - Respondeu ele tranquilamente. - Além disso, Adam logo nos trará o jantar e eu estou faminto. Venha. Desembrulhou uma barra de sabonete de uma das toalhas. - Verbena . Disse. - Aposto qualquer coisa que pensava que o sabão de um pirata seria feito de gordura de porco e cinzas de madeira. Olivia riu, não pôde evitar. - Creio que sim. Mas não acho que você seja um pirata como os outros. Não é o suficientemente sanguinário e ri muito. Os piratas têm uma barba negra e frisada e usam facões entre os dentes. OH, e bebem muito rum – Ela acrescentou. - Eu de minha parte prefiro um clarete decente e um bom brandy - disse Anthony solenemente, agitando uma toalha. - E sou um cabeleireiro aceitável, além de um bom ajudante de quarto, começamos? Parecia não restar outra alternativa. Olivia se ajoelhou ao lado da banheira, com as dobras da camisola ondulando a seu redor. Anthony lhe estendeu uma toalha sobre os ombros e retirou a cabeleira da nuca, jogando-a para atrás enquanto ela inclinava a cabeça. A água quente lhe fez sentir uma sensação maravilhosa, mas não tão maravilhosa como os dedos dele movendo-se suavemente por sua cabeleira, evitando com destreza o machucado que ela tinha notado ao girar a cabeça sobre o travesseiro. O aroma da Verbena inundou a cabine e a água quente se deslizou pela cascata negra e espessa que formava seu cabelo. Olivia entreabriu os olhos e se deixou levar. - Está pronto. O som de sua voz quebrou o silêncio. Olivia elevou a cabeça apressadamente e a água escorreu pela nuca, empapando a gola de sua improvisada camisola. - Isso não foi muito inteligente de sua parte - observou Anthony, recolhendo o seu cabelo com as mãos e escorrendo-o sobre a banheira. Enrolou a toalha como um turbante ao redor da cabeça. - Mais valeria que trocasse este... este... Como chamam este objeto que usa? perguntou com um olhar interrogativo. - Sua c-camisola - Respondeu Olivia, levantando-se lentamente. - Talvez Adam já tenha aprontado minha roupa.

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- Está ocupado na cozinha, mas tenho várias camisolas. Minha tia as borda especialmente para mim. Tem um conceito muito estranho de minha pessoa - Disse abrindo uma gaveta. - Têm uma tia? - Exclamou Olivia. - Os piratas não têm tias. - Bom, pelo que sei, não fui fruto da imaculada concepção, assim, embora seja pirata, sim, eu tenho... Ah, este ficará bem. Se me lembro bem, tem rendas deliciosas nas mangas. Agitou outra volumosa peça. - E uma faixa esmeralda, já que estamos nos vestindo para jantar. Selecionou uma elegante gravata verde de seda - Não a necessitará para recolher o cabelo esta noite. - Não - conveio Olivia em um sussurro. Seguia tentando equiparar uma tia que fazia bordados, com o senhor do Wind Dancer. - Onde vive sua tia? - Não muito longe - Respondeu de maneira esquiva enquanto sacudia a nova camisola e o estendia sobre a cama. Abriu outra gaveta e pegou um cofre de madeira. Em seguida se virou para Olivia com ar especulativo. - Quer se deitar na cama para que troque seu curativo ou prefere ficar de pé? Como quiser. Olivia voltou a tocar a bandagem. - Estou segura de que posso fazê-lo eu mesma. - Não - disse ele sacudindo a cabeça. - Tenho noções de medicina, Olivia, como lhe disse antes. Não há razão para que se envergonhe. - C-como pode dizer isso? Uma coisa era quando estava inconsciente, mas agora é diferente... - Não vejo por que. Tenho meu chapéu de médico. É obvio que seria diferente... muito diferente... se não o usasse. Mas lhe prometo que não terei nenhum problema para separar, como o diria? Qualquer reação masculina diante de seu corpo, são práticas puramente medicinais. - Terá... terá alguma reação masculina? Olivia soltou a pergunta de forma inesperada, surpreendendo-se por sua audácia, ainda que parecesse que fosse outra pessoa quem a tinha pronunciado. Anthony sorriu lentamente. - OH, sim - Disse com delicadeza. - Sem dúvida alguma. Mas, como lhe disse, não neste momento. Colocou o cofre em cima da mesa e levantou a tampa. Logo empurrou um tamborete com o pé e se sentou, estendendo as mãos para Olivia. Atraiu-a para si e passando as mãos pela cintura a fez girar até que ficou de costas. - Bem, por que não recolhe a saia até onde lhe seja cômodo? Só preciso poder desfazer a bandagem. 38

- Mas esta na parte alta da cocha - protestou Olivia com um fio de voz, pegando a saia com as duas mãos e levantando-a lentamente. Sentiu entre suas pernas o frescor da brisa que entrava pela janela. - É o suficientemente alto? - Um pouco mais. - Mas... verá as minhas nádegas! - Exatamente, e que belas nádegas - Disse rindo. - Não, não... Não escape. Peço perdão, mas não pude resistir. Prometo não olhar nada que não deva ver, mas preciso chegar ao ferimento. - OH! - Exclamou Olivia com desgosto e resignação. Elevou a saia ao mesmo tempo que uma rajada de vento penetrava no camarote, lhe pondo arrepiada, ainda que talvez sua confusão não fosse só provocada pelo ar frio. Anthony abriu o alfinete de segurança que segurava a atadura e a desenrolou. Seus dedos roçaram a pele, o que trouxe à Olivia vívidas lembranças de um estranho sonho, embora desta vez fosse plenamente consciente de todos seus sentidos e estava em estado de alerta. Deu um coice como se algo a tivesse picado quando notou suas mãos na parte anterior da coxa. - Fique quieta - disse ele com tranquilidade, sustentando os quadris com as mãos. - Não posso fazê-lo sem toca-la. Agora vou limpar a ferida, porei um unguento e a voltarei a enfaixar. Esta curando bem e amanhã poderei tirar os pontos. Olivia apertou os dentes e tentou simular que estava em outro lugar, fazendo qualquer outra coisa, para não ter consciência daquele momento, de pé, com a saia recolhida, esperando os solícitos cuidados íntimos de um estranho. Porém ao final o perigo havia passado. Anthony apertou a atadura ao redor da coxa e fechou o alfinete de segurança. - Já pode baixar a saia. Olivia deixou que o tecido escorregasse até os tornozelos e deu um passo atrás para afastar de seus joelhos. Tirou a toalha da cabeça e o cabelo molhado caiu sobre a gola úmida e pegajosa da camisola, fazendo-a tiritar. - Por que não se lava e se troca? - sugeriu Anthony. - Há água no outro balde. Deixe um pouco para mim quando tiver terminado. A pirataria é uma ocupação terrivelmente suja. Acrescentou alegremente, dirigindo seus passos para a mesa onde estavam as cartas de navegação. Olivia lançou uma olhada à banheira e ao fio de vapor que saía do balde. Passou uma mão pela gola molhada da camisola. Ela se fixou na roupa limpa, na brilhante faixa esmeralda. - Estarei pronta em quinze minutos - Disse. - Tome o tempo que necessitar - Disse ele. Estava inclinado sobre a carta de navegação com um sextante na mão. - Avisarei quando tiver terminado - Ofereceu-se ela. 39

- OH, espero me dar conta - Observou amavelmente. Olivia engoliu saliva. - Ficará aqui? - É obvio. Mas lhe darei as costas. Dou-lhe minha palavra de honra – Ele respondeu contendo a risada. - Honra? Não é um homem de honra. É um pirata e um ladrão, e desenha pessoas nuas quando estas não se dão conta, e estou certa de que matou alguém. Não é um cavalheiro. C-como se atreve a falar de honra? - Alguma vez ouviu falar de honra entre ladrões, Olivia? - Inquiriu ele sem se virar da mesa. Seguia contendo a risada. - Prometo que só verá minhas costas. Mas ande depressa, rogo-lhe isso. Se não a água estará fria quando for minha vez e necessito urgentemente de banho e roupa limpa. Olivia vacilou e logo se aproximou da banheira com uma sensação de impotência e resignação. Dava do mesmo modo que se virasse. Não veria nada que não tivesse visto antes. “Mas então usava o chapéu”, lembrou. Fosse qual fosse o chapéu que usasse agora, não coroava a cabeça de nenhum médico. Verteu a água quente na banheira e tirou a camisola pela cabeça. Lançou um olhar rápido para ele, mas este seguia trabalhando com esmero nas cartas, cantarolando para si mesmo. Submergiu apressadamente uma pequena toalha na água quente, a esfregou com o sabonete e a passou pelo corpo. Teve uma sensação tão boa que quase se esqueceu de que não estava só. Então ouviu um movimento a suas costas e segurou com força a toalha para cobrir-se, com uma exclamação indignada nos lábios. Mas ele tinha se deslocado em linha reta até o tabuleiro de xadrez que tinha debaixo da janela e lhe dando as costas. -Vejo que solucionou o problema -Observou ele com despreocupação. - Não era muito difícil. - Então por que não terminou o jogo? - Perguntou ela secando-se o mais rapidamente possível. - Estava a ponto de terminá-lo quando me chamaram - Respondeu ele com um ligeiro gesto. Segurou várias peças da caixa de madeira que estava ao lado do tabuleiro e as dispôs nas casinhas. - Vamos ver como você resolve este. Olivia deslizou a camisola limpa pela cabeça. Ouviu um suspiro de alívio e Anthony levantou a cabeça e a contemplou. Seus olhos ocultavam seu enigmático sorriso. Aproximou-se dela e a segurou no rosto com as mãos, logo passou seus dedos pela massa de cachos negros que emolduravam o rosto, penteando e acariciando seu cabelo. - Já lhe disse que sou um cabeleireiro aceitável. - Riu e acariciou sua boca com o polegar. - Têm uma pele deliciosa. Suave como um creme. E seus olhos são deslumbrantes. Negros e suaves como o veludo. 40

Olivia cravou seus olhos nele. Era a primeira vez que alguém lhe dizia algo assim. - Está...? Está tentando me seduzir? - Ainda não. Tornou a rir e lhe beliscou o nariz. - Nunca me dedico a essas coisas quando estou faminto. Olivia deu um passo atrás, olhando-o do mesmo modo que deviam fazer os cristãos antes de enfrentar aos leões. - Acho que você é um conquistador - Declarou ela. - E não permitirei que me seduza assim de qualquer jeito. - Não? - Disse ele elevando uma sobrancelha. - Bem, no momento se trata só de uma questão acadêmica. Ele virou-se de costas para ela e tirou a camisa pela cabeça. Tinha as costas da cor do ouro polido. Era alto, magro e esbelto. Olivia sentiu uma estranha sensação na base do ventre. Desviou o olhar, pegou a faixa esmeralda e a atou na cintura. Ouviu o tinido da fivela de seu cinturão e sem querer voltou a lhe dar uma olhada. Ele jogou o cinturão ao chão e com um movimento suave baixou as calças pelos quadris e as tirou. Olivia ficou boquiaberta. - Disse que estava habituada às formas masculinas. Disse ele. - Sem folhas de parreiras. - Sim! Sobre o papel ou esculpidas em bronze. Olivia tentou dizer algo, mas parecia ter a língua de presa. Ele se inclinou para a banheira salpicando o rosto com água. Tinha as nádegas suaves e lisas, tão bronzeadas como as costas; as coxas, cobertas de pêlos loiros; os músculos, tensionados nas pernas e as panturrilhas. E entre as pernas, Olivia não resistiu e observou a sombra escura de seu sexo. - O corpo humano é uma das maiores maravilhas da criação – Disse Anthony com o tom de um mestre que ilustra ao seu aluno. - Em todas as suas manifestações, homens e mulheres magros, gordos, altos, baixos. Toda linha e toda curva é bela. Ele virou-se enquanto falava e massageava o corpo com a toalha ensaboada que Olivia tinha utilizado. A jovem reconhecia um desafio imediatamente. Procurou não desviar o olhar, ainda que, sem dúvida, se o quisesse, não poderia deixar de contemplar esse perfeito exemplar de beleza humana. Cada centímetro de seu corpo havia estado em contato com o sol. O cabelo loiro se espalhava ao redor dos mamilos e sob o ventre, onde lhe cobria o sexo. Permaneceu nu diante dela. Eles estavam sozinhos no camarote e, entretanto, ela se deu conta com um sobressalto, que só ocultava sua consternação, de que ele não estava excitado. 41

Em vez do inevitável horror virginal ante a vista de um homem nu, a reação de Olivia foi de confusa decepção. Não lhe parecia atraente? Até então, havia se comportado como se ele se agradasse dela, mas talvez fosse muito inexperiente para compreendê-lo. Sentiu que se ruborizava, ainda assim não afastou os olhos dele. - Prefere jantar no convés? - Perguntou tão despreocupadamente como se estivessem em um salão. - Faz uma noite esplêndida e a brisa secará o cabelo. Para consolo de Olivia, voltou a lhe dar as costas. A visão de suas costas era uma vista muito menos perturbadora. - Poderia pegar uma camisa do armário? Continuava sem poder pronunciar uma palavra, mas por sorte, as camisas eram outro assunto e um motivo de distração. Ele havia enrolado uma toalha na cintura quando se virou para pegar o objeto. - Obrigado. Anthony colocou os braços pelas mangas e deixou a camisa desabotoada; abriu outra gaveta para procurar um par de calças limpas. - Então, no camarote ou convés? Deixou a toalha de um lado e pôs a calça. Olivia observou que não usava roupa interior. Os homens estavam acostumados a usar calções debaixo das calças. Sabia pela roupa estendida no varal de sua casa. Abotoou a camisa, mas a deixou aberta no pescoço, depois colocou a parte inferior dentro das calças. Abaixou-se para recolher o cinturão e o atou à cintura de novo, onde pôde ater a adaga em sua bainha. - No convés. Finalmente Olivia havia conseguido falar, agora que o mundo havia tomado proporções mais ordenadas. - De acordo. Dirigiu-se para a porta e chamou Adam, que apareceu quase imediatamente, como se tivesse estado esperando detrás da porta. - O jantar se estragará - Resmungou. - Por que demoraste tanto? - Jantaremos no convés - Disse Anthony ignorando a queixa. – Diga ao jovem Ned para limpar o camarote enquanto estamos lá em cima... OH, e abriremos aquele clarete de 38, Adam. - De acordo - Murmurou o marinheiro entrando no camarote. - O que celebramos? - Temos algo para celebrar - Respondeu Anthony. - Sim? - Repetiu Adam, franzindo o cenho. Dirigiu um olhar intencionado a Olivia. - Pelo que vejo já não necessita de sua roupa. - Peguei isto - Disse Olivia com toda a dignidade que pôde. - Mas q-quando 42

desembarcar , eu necessitarei de minhas roupas. - E quando será isso? - Murmurou Adam, pegando uma garrafa e dois copos do armário. - Aqui têm as taças. Estendeu a garrafa e as taças para Anthony, que as segurou docilmente. - Quando? - Perguntou-se ela ao passar ao seu lado, recolhendo a volumosa saia para cruzar a soleira da porta. - Quando o que? - Inquiriu Anthony seguindo-a e deixando a porta do camarote aberta, onde se ouvia Adam rebuscando pratos e talheres no armário. - Quando poderei desembarcar do Wind Dancer? - Disse ela com impaciência. - Quando finalizará meu sequestro? - OH, acredita que a sequestrei? - Perguntou ele enquanto subiam pela escada para dirigir-se ao convés. – Você caiu pela ravina e caiu inconsciente diante dos pés de um de meus vigias. Nós a socorremos e curamos as feridas e a isso você chama de sequestro! - Vocês sabem quem eu sou, poderiam ter avisado e alguém teria vindo me recolher. O mundo real voltava a intrometer-se sem seu consentimento, forçando a retirada da magia do país das maravilhas. - Mas como pode ver não tenho cartão de visita. Os piratas não costumam relacionar-se com a nobreza local - Explicou Anthony com solenidade. Os seus olhos cinzas brilhavam divertidos, vencendo o involuntário tom de recriminação de Olivia. - OH, isso é um absurdo - Declarou a jovem subindo para o convés superior. Sequestram-me e me trouxeram para o alto mar. Minha família deve pensar que estou morta, e se algum dia voltar, eu terei arruinado minha reputação. Embora isso não tenha nenhuma importância – Ela acrescentou. - Não tenho intenção nenhuma de me casar e os únicos que se preocupam com este tipo de coisas são os futuros maridos. Anthony escutou com atenção esta enxurrada de palavras enquanto desarrolhava a garrafa e vertia o espesso vinho cor rubi nas duas taças que sustentava em sua mão livre. Cheirou a fragrância do vinho com o cenho franzido, assentiu e ofereceu uma taça a Olivia. - Acredito que o voto de celibato não esteja incluído também o voto de castidade. Não são termos sinônimos. Contemplou-a por cima da borda da taça. Olivia bebeu um gole mais longo do que pretendia e se engasgou. Anthony lhe deu um suave golpezinho nas costas. - Tome com calma. É um vinho muito bom para beber de um gole só como se fosse cerveja. - OH... OH, não era minha intenção - Protestou Olivia. - Engasguei-me.

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- Ah, estou vendo. Assentiu com a cabeça e se apoiou no corrimão, contemplando o céu estrelado. - Que noite mais linda! Depois que ele mencionou o assunto da castidade, Olivia bebeu um gole mais moderado. O céu era totalmente azul, com a lua crescente no horizonte e a franja larga e difusa da Via Láctea por cima deles. O timoneiro dirigia a embarcação e o Wind Dancer, fiel a seu nome, parecia jogar com o vento sobre o mar em calma. - Guiam-se pelas estrelas? - Um tema de conversa menos inquietante, hein? - Conduzem o navio guiando-se pelas estrelas? - Repetiu ela com decisão. - Depois do jantar a ensinarei - Disse atraindo-a para seu lado no corrimão, fora da vista de Adam e dos outros dois marinheiros que subiam para o convés com uma mesa, cadeiras e um cesto com pratos e talheres. Adam estendeu uma toalha branca como neve sobre a mesa, acendeu uma lanterna e dispôs dois pratos. - Podem sentar-se. Vou trazer a carne. - Lady Olivia... Anthony retirou uma cadeira com uma cerimoniosa reverência para que ela pudesse sentar-se. Olivia não pôde evitar fazer uma pequena inclinação de cabeça, segurando para não rira ao pensar em seus pés descalços e em sua estranha indumentária. O senhor do Wind Dancer sabia exatamente como fazê-la mudar de humor. Com uma palavra, um gesto, um sorriso, conseguia lhe tirar a resposta que queria. E ainda que em parte a incomodava essa manipulação, em seu foro íntimo se sentia deslumbrada. Adam colocou sobre a mesa uma travessa de carne de cordeiro assada e cortada em rodelas, acompanhada de alhos e ramalhetes de romeiro, uma tigela de batatas assadas com sua pele em brasas por causa do fogo e uma salada de alface e cogumelos. - OH! Disse Olivia, - Nunca estive tão faminta. - Coma devagar. Aconselhou Anthony. - Não comeste nada nos últimos três dias. Poderá se sentir mal. - É impossível que me faça mal. Disse Olivia, cravando uma fatia de cordeiro com a ponta da faca. – O aroma está delicioso, Adam, é um gênio. Pela primeira vez, a expressão do velho se suavizou e sua boca desenhou um leve sorriso. - O patrão tem razão. Disse asperamente. - Faz dias que não come nada. Coma com calma. Olivia agitou a cabeça para negá-lo e pegou um grande pedaço de carne. Sabia 44

que estava tão apetitosa como cheirosa. Comeu uma batata coberta de manteiga e, muito faminta para se preocupar com a sutileza de pegar o guardanapo que tinha no colo, limpou a gordura do queixo com o dorso da mão. Anthony encheu as taças e se dispôs a observá-la. Havia algo inegavelmente sensual no prazer com a qual devorava o jantar. Pensou na forma exuberante e despreocupada com a que tinha saltado aquela manhã do Wind Dancer ao Dona Elena para unir-se ao combate. Era como se Olivia Granville, afastada de tudo o que a tinha protegido e encerrado até então, houvesse descoberto uma nova identidade. Ele se perguntou se ela se comportaria com o mesmo prazer na cama. Esboçou um sorriso ao pensar em sua promessa de permanecer solteira. Era uma intenção absurda para uma moça de sua estirpe. E, entretanto, ao examinar sua expressão e fixar-se na firmeza de sua boca e na resolução de seu queixo, pensou que talvez o obteria. Estava convencido de que Olivia Granville pensava por si mesma. - O que está olhando? - Perguntou Olivia, sentindo-se repentinamente observada. - OH, simplesmente estava me deleitando com seu prazer - Disse de modo indiferente, se reclinando na cadeira e levando a taça aos lábios. - Nunca tinha visto uma donzela de bom berço comer com tanta avidez. Olivia se ruborizou. - Pareço-lhe voraz? - Não - Respondeu ele, negando-o com a cabeça e inclinando-se para pôr outra batata no prato dela. - Perguntava-me que outra coisa pode devorar com tanto entusiasmo. Olivia passou um pouco de manteiga sobre a batata e observou como ela se derretia. - Livros. Disse, - Devoro livros. - Sim, acredito que seja. - Têm uma biblioteca considerável em seu camarote. Onde estudou? Olivia se sentia satisfeita pelo fato de ter exposto astutamente uma pergunta que lhe daria alguma pista sobre a vida do pirata. Anthony se limitou a sorrir. - Sou autodidata. Olivia o olhou fixamente. - Não acredito. Ele encolheu os ombros. - Como quiser – Ele respondeu preenchendo sua taça. - Quer que lhe mostre como nos guiamos pelas estrelas? Parecia uma proposta muito interessante para seguir investigando. Olivia 45

assentiu com entusiasmo. - Siga-me. Pôs-se de pé sem soltar a taça e foi situar-se atrás do timoneiro. Deslizou uma mão ao redor da cintura de Olivia e a atraiu para si para que apoiasse as costas em seu peito. - Vê a estrela polar? Olivia tentou seguir a lição, mas, pela primeira vez, sua percepção mental parecia confusa. Só era consciente do corpo que tinha detrás dela, a efusão do braço na cintura, o fôlego a vinho esfregando sua bochecha quando lhe mostrava as constelações. As estrelas pareciam fundir-se e ela se sentiu estúpida enquanto tentava entender conceitos que de tão ordinário lhe teriam parecido perfeitamente simples. A mão que lhe estreitava a cintura se desviou para seu seio e ela exalou um rápido suspiro. Mas ele não disse nada, simplesmente continuou explicando tranquilamente sua lição com a mão pressionando a suave turgidez de seu seios. - Gostaria de uma sobremesa? - OH, sim - Disse Olivia quase saltando para se livrar da mão que a aprisionava. - O que há? - Bolo de ruibarbo. Adam pôs o bolo na mesa com uma jarra de creme. - Meu Deus, que apetite - Murmurou quando viu os escassos restos que ficavam na mesa. - Estava delicioso. Olivia se sentou e pegou a faca para cortar o bolo. O coração pulsava muito depressa e se deu conta de que sua voz soava muito aguda quando perguntou do modo mais informal que pôde. - Quer um pouco de bolo, Anthony? Ele retornou à mesa. - É curioso, mas teria dito que a fascinação pela astronomia manteria sua atenção durante mais tempo. Mas, é obvio que ninguém faz o bolo de ruibarbo como Adam. Olivia se serviu de um grande pedaço de bolo sem responder. Tinha a sensação de ter cortado com tudo o que até então havia tido sentido para ela. E não sabia como interpretar. A única coisa que sabia era que o sangue corria precipitadamente pelas veias e, apesar da confusão, sentia-se mais viva que nunca.

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Capítulo 4 - Então, o que diz a mensagem? O homem que perguntava aproximou uma brasa acesa ao cachimbo e o acre do intenso aroma de tabaco invadiu a taberna. - Se nos interessar vender o que selecionamos, ele estará em Anchor por volta do final de semana. - E como ele sabe que fizemos uma seleção? O homem que fazia as perguntas era jovem, tinha o cabelo negro e a tez morena. Vestia um traje de seda azul turquesa e o cabelo, era estilo Cavaleiro, caía em elaborados cachos reluzentes pela brilhantina até os ombros. Aspirou seu cachimbo e o local ficou envolto em fumaça e observou seu interlocutor com seus olhos verdes e frios. - Duvido que seja um segredo, senhor. A mensagem chegou no dia seguinte pela manhã. Pensei que lhe interessaria saber - respondeu o outro encolhendo os ombros. - Certamente que quero saber! disse, e sua voz soou como um grunhido. – Necessitamos de clientes, imbecil! E como sabemos que não é uma armadilha? O outro homem encolheu de ombros e acendeu seu próprio cachimbo cheio de um tabaco ainda mais forte. - Não sei, senhor. Creio que isso é coisa sua. O nosso é selecionar. O jovem homem ficou calado diante desta verdade. - Não veio ninguém farejando por aqui? Nenhuma pergunta incomoda? - Não, senhor. Essa noite foi muito escura e a tormenta aumentava cada vez mais. O navio pode ter naufragado sozinho. Mas a ilha inteira pensa que foi um naufrágio provocado - acrescentou. - Ainda que não se possa demonstrar. - E quem quer que seja o comprador, sabe que se trata de um acidente provocado - disse o jovem refletindo. - Sabia com quem tinha que entrar em contato? Quem trouxe a mensagem? - Não deu nenhum nome, senhor. Estava coberto com uma capa e usava um capuz. Era uma noite muito escura - Adicionou o homem com atitude reflexiva. Mas era um ilhéu, falava como eles. - Mmm. Taberneiro, sirva-me uma caneca de cerveja preta - Pediu o jovem ao homem que estava do outro lado do bar. - Têm razão, senhor - Interveio o dono de Anchor, que tinha escutado uma conversa que para ele não guardava segredos, e com um golpe deixou sobre a mesa, em frente ao cliente uma enorme caneca transbordante de cerveja. - Estava esperando meus barris - Disse com uma voz queixosa pouco convincente. - Têm alguma notícia

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de quando vão chegar? - Os terá quando chegarem a mim - Respondeu o outro bruscamente, agarrando a caneca pela asa. Deu um longo gole e ficou olhando as vigas enegrecidas do teto e os espirais de fumaça que saíam de seu cachimbo. A mais de uma semana que esperava uma carga da costa francesa, e agora já custava acreditar que não tinha ocorrido nada ao navio. Até esse momento, sempre tinha podido confiar em seu capitão, mas o contrabando estava longe de ser um negócio confiável. Esta era a razão pela qual, os que necessitavam de ganhos mais seguros e eram capazes de voltar as costas aos escrúpulos morais, aumentavam os benefícios do contrabando provocando naufrágios. Para Godfrey o lorde Channing, ele nunca preocupou com os escrúpulos morais. Tinha clientes para a mercadoria de seu contrabando, como George, em Anchor, que já havia pago muito bem, por seu tardio encargo. Se os barris não chegassem, teria que enfrentar uma situação desagradável. Aqueles homens não tinham paciência. Olhou o taberneiro com olhos diferentes e não gostou nada do que viu. O rosto daquele homem, era o de um boxeador, muito orgulhoso de sua bebida, tinha o nariz quebrado devido aos golpes; os olhos, injetados em sangue, e a pele avermelhada salpicada de veias arrebentadas. Tinha mãos enormes ocupadas agora com um barril de cerveja. A inquietação provocou em Godfrey um ligeiro tremor. Se a insatisfação dos clientes da ilha se unissem a seus protestos, a vida poderia ser bem mais desagradável. Mas ainda lhe restava uma esperança. Se o interesse pelos frutos obtidos do naufrágio era autêntico e não se tratava de nenhuma armadilha, então havia uma maneira de sair disso. Inclusive depois de que os mesmos provocadores do naufrágio tivessem cobrado sua comissão, ainda ficariam consideráveis benefícios para o cérebro pensante que se escondia atrás de tanto músculo. - Então irá ao encontro, senhor? - Perguntou o proprietário do local. Godfrey não se dignou a dar uma resposta - Eu poderia indicar quem é senhor - Continuou George dedicando um ardiloso olhar a Godfrey. - Farei qualquer coisa para lhe ajudar, senhor. Godfrey não se deixou convencer por sua generosa oferta. Com um golpe seco deixou sobre o balcão a caneca de cerveja vazia e o cachimbo ainda fumegante e se pôs em pé olhando ao taberneiro com repugnância. - Eu me encarregarei de meus assuntos. O taberneiro tocou uma mecha com gesto insolente. - Então, honorável senhor, posso contar logo com o brandy? - Maldito ingrato! Terá seu brandy. Godfrey deixou uma moeda sobre o balcão e fechou a porta dando uma 48

pancada. Um homem que durante a conversa havia estado sentado junto à grande lareira se pôs de pé e saiu depois de Godfrey. Coxeava muito e se apoiava em uma bengala ao andar, mas apesar de seu defeito conseguiu apanhar Godfrey antes que este montasse em seu cavalo. - Permita-me umas palavras, lorde Channing - Disse em voz baixa. - Como sabe meu nome? - Perguntou Godfrey dando a volta. O homem que tinha se dirigido o olhou com um sorriso malicioso que chegava aos olhos brilhantes e miúdos. Em seu rosto se desenhavam as profundas rugas dos que conheceram a dor. A princípio Godfrey pensou que se tratava de um velho. Encarreguei-me de averiguá-lo - Respondeu o homem, e sua voz era a de alguém muito mais jovem do que aparentava. - Os naufrágios e o contrabando não são as melhores maneiras de aumentar nossa fortuna - Observou dando pé a conversa. O coração de Godfrey começou a pulsar mais depressa. Iam deter-lhe? Ficou olhando fixamente seu interlocutor. - Não se preocupe, não falarei - Disse o homem afogando uma desagradável gargalhada. - Mas creio que posso lhe mostrar uma rota mais segura para a fortuna. - Não o entendo. - Não, ainda não. Mas demos um curto passeio e lhe explicarei isso. Godfrey voltou a atar as rédeas no poste para os cavalos. Aquele estranho personagem tinha algo quase hipnótico, havia algo em seu olhar que tinha um grande poder de atração. Tampouco este era um homem dado aos escrúpulos morais. - Desculpe minha lentidão ao andar - Disse o recém-chegado começando a coxear pela ruela. - O que foi o que lhe passou? - Um duelo - Respondeu Brian Morse, em voz baixa e sinistra. - Tenho um plano que satisfará as necessidades de ambos, senhor, se você dignar-se a me escutar alguns minutos. Em Anchor, o último cliente falava em sussurros. - Creio que seu navio com contrabando se extraviou - Disse olhando esperançosamente sua caneca de cerveja agora já vazia. - Deve ser o nosso amigo que fez isso com ele, não é, George? Começou a passear a caneca por cima do balcão. - Se quiser outra, pague antes, Silas - Disse o taberneiro. Com um sorriso, o aludido procurou no bolso e pinçou uma moeda. Ele a colocou sobre o balcão com um ar de quem esta doando um sangue que lhe é vital. O taberneiro pegou a caneca e a trouxe cheia de cerveja, enquanto enchia outra para si mesmo. 49

- Sim - Disse, limpando a espuma dos lábios depois de dar um comprido gole. Certo que foi nosso amigo. E nos dará mais trabalho que... - E fez um gesto de desprezo assinalando para a porta pela qual havia saído com Godfrey para trapacear com esse jovenzinho! - Já sabe o que penso... - Disse o cliente olhando fixamente as garrafas que se alinhavam atrás do balcão. - Quer saber o que penso? - Pois sim, se quiser dizer-me. - Creio, George, que deveria dar as ordens ao nosso amigo em lugar de dar a esse almofadinha. - Sim, talvez sim - Respondeu o taberneiro. - Mas me diga Silas, é melhor tratar com um bobo e ambicioso ou com um homem perigoso e inteligente como nosso amigo? Isso é o que me pergunto a todo momento. - Prefiro não ter com o lado desagradável de nosso amigo - Disse Silas assentindo com a cabeça em atitude solene. - E sempre mais fácil passar a perna em um bobo. - Sim, é mais fácil amedrontá-lo. Acredito que com nosso amigo jamais poderíamos fazer tal façanha – Não. - Disse Silas movendo a cabeça energicamente. E de todas maneiras, ultimamente nosso amigo não esta muito metido no negócio do contrabando, não é? Antes não zarpava um só navio da ilha para a costa da França sem que ele soubesse, mas agora tem coisas mais importantes que fazer, creio eu. Ficou olhando um momento sua caneca de cerveja antes de retomar a conversa: - Certamente, se alguém lhe pedisse um barril de brandy ou um recorte dessas rendas de Valencia para dar de presente a sua esposa, seguro que o conseguiria. Mas agora não se dedica a esse negócio - Disse, e o olhou inquisitivamente. – Acredita que nosso amigo pode ter causado os naufrágios? É um negócio mais rentável que o do contrabando. - Sim, poderia ser, mas ninguém sabe. Esse tipo não abre a boca nem para respirar - Manifestou George, que golpeou um lado do nariz e piscou um olho. - De todos os modos, aposto o que for, que nosso amigo vai atrás da mercadoria deste senhor. É um tipo muito inteligente e certamente não deixará que ninguém faça o trabalho por ele. - Sim, poderia ser - Concordou Silas. Os dois homens deram um gole depois de confirmar seu acordo a respeito e consumiram em um silêncio contemplativo. - Por que não desce agora? está com dificuldade para manter os olhos abertos. O pirata se reclinou no encosto de sua cadeira e com uma taça de brandy entre as mãos ficou olhando a Olivia com um leve sorriso. Olivia reprimiu um bocejo. Realmente, estava com muito sono. A mesa estava recolhida e, enquanto Anthony saboreava o brandy, ela tinha adormecido embalada pela música do vento que batia nas cordas e pelo suave vaivém que o fluxo noturno 50

causava no navio. - É uma noite perfeita - Disse Olivia olhando o céu. - Em terra nunca vemos as estrelas assim . - Não, nunca. - Quando voltaremos para a ilha? - Se o vento continuar soprando a nosso favor, veremos terra amanhã ao meio dia. - E seguirá soprando a nosso favor? Anthony encolheu seus ombros e sorriu. - É difícil saber. O vento é uma dama muito caprichosa - Respondeu, e amavelmente perguntou ao timoneiro. - Que te parece, Jethro, soprará o vento a nosso favor? - Ao amanhecer amainará. - O que vou dizer em casa? - Perguntou Olivia apoiando o queixo entre suas mãos com os cotovelos dobrados. - Como vou explicar? - O que lhe parece se nos ocuparmos desse problema quando chegarmos? Anthony se inclinou para frente e passou a ponta de um de seus dedos pela bochecha da moça. – Está tão ansiosa para se livrar do êxtase que se apoderou de você, Olivia? - Não - Respondeu ela movendo a cabeça negativamente - Não. Mas isto é um sonho e algum dia eu terei que despertar. - Sim, colocando dessa maneira, sou obrigado a concordar. Mas não se faz necessário que desperte antes de amanhã. - Creio que seria bastante absurdo despertar tendo em conta que ainda estou sequestrada - Observou Olivia seriamente. - Precisamente por isso... vá para a cama agora. Olivia empurrou sua cadeira para trás e se levantou com hesitação. - Eu gostaria de dormir sob as estrelas. - Terá frio. - Inclusive com mantas? -Inclusive com elas. Olivia continuou com sua atitude dúbia, olhando Anthony que, sentado comodamente, fazia girar o brandy no interior da taça de cristal. Ele sustentou o olhar com um profundo sorriso nos olhos e algo mais que Olivia não foi capaz de interpretar. Como uma espécie de promessa. Olivia percebeu um tremor na barriga e uma estranha tensão nas coxas. Deu a volta para a escada que conduzia ao convés principal. - Boa noite. Mas não houve resposta. 51

O camarote estava limpo e arrumado, e alguém acendeu o lampião que, pendurando sobre a cama, projetava um suave resplendor dourado sobre a brunida madeira e sobre as vivas cores dos tapetes turcos que cobriam o chão. As janelas estavam fechadas e corridas as grossas cortinas de damasco. Olivia as destrancou e abriu as janelas. A noite era muito fresca e bela para as ter fechadas. Colocou-se de costas à entrada do camarote. Haviam feito a cama com cobertas limpas e a colcha com uma dobra convidava a deitar-se nela. Passou os dedos por debaixo da faixa verde que lhe rodeava a cintura, desatou, dobrou-a e o voltou a guardar no armário embutido no canto. Quando começava a desatar a fita do pescoço da camisola seu olhar caiu com no tabuleiro de xadrez. Agora se lembrava, Anthony lhe havia exposto outro problema. Aproximou-se para examiná-lo, sem deixar de jogar com a fita de seda entre os dedos enquanto olhava as peças com o sobrecenho franzido. Sem dúvida para este não teria uma solução tão fácil como para o anterior. Um profundo bocejo a pegou de surpresa e desapareceu seu interesse pelo problema. Pela manhã, com a mente acordada, resolveria em um abrir e fechar de olhos. O problema que não resolveria em um minuto era que peça usaria para dormir. Na camisola improvisada viu agora mais um vestido e considerou que não podia exigir dupla função tendo em conta que o necessitaria pela manhã. Tinha dormido nua desde que havia chegado ao Wind Dancer e Olivia, depois de pensar, não viu nenhuma razão para não fazer o mesmo esta noite. Tirou a camisola pela cabeça, a dobrou tão cuidadosamente como havia dobrado a faixa e o guardou; em seguida, subiu sobre o beliche pelo lado de madeira se enfiou na cama. Notou as cobertas frias e o atrito na sua pele em meio ao leito lhe resultou numa sensação maravilhosamente familiar. Deitou-se de lado e ao fechar os olhos se deu conta de que o lampião ainda seguia aceso. O que fazer? Estava muito cansada para se incomodar com aquele débil resplendor, que já se apagaria sozinho assim que terminasse o óleo... Ao despertar, o quarto não estava completamente às escuras. Além disso, não se encontrava só na cama. Algo pesado a oprimia contra o fofo colchão de plumas. Olivia investigou um pouco mais e notou que era um braço o que pesava sobre sua cintura. E uma perna alheia se entrelaçava com a sua. Imóvel, e tensa pelo desconcerto, pôde ouvir a respiração profunda e compassada de seu companheiro de leito. Foi mais à frente em sua investigação. Ele estava tão nu quanto ela. - A despertei? - Perguntou o pirata com voz sonolenta. - Está na minha cama! - Na realidade é minha. Inclusive meio adormecido, Olivia percebeu a risada em sua voz. - Mas estou dormindo nela - Objetou a moça. 52

Olivia se perguntou por que não reclamava diante daquele atropelo a sua intimidade. Por acaso voltava a tratar de um truque de magia, mas todas e cada uma das fibras de seu corpo tinham plena consciência da poderosa presença física que descansava a seu lado. Não se tratava de um estado de transe, era a pura realidade, e a realidade não apresentava mais que fascinação. - Pois foi minha cama durante três noites... ou esta é já a quarta? -murmurou. - Esta seria a quarta - Disse ele em um sussurro. O fôlego de Anthony lhe acariciou a nuca e o braço com o qual lhe rodeava a cintura se moveu de tal maneira que sua mão ficou sobre o ventre de Olivia. O estômago da moça se contraiu involuntariamente. Tentou retirar a mão com tão bons resultados como os de uma formiga que quisesse mover uma montanha. Entretanto não levou a cabo sua intenção com verdadeiro convencimento. - Você não dormiu aqui nas noites anteriores - Protestou ela. - Segundo a opinião do médico que a atendeu, estava muito doente para dormir acompanhada - Respondeu seriamente. - Agora o parecer do médico é distinto. A mão sobre o ventre de Olivia permaneceu imóvel. Transmitia calor e, curiosamente, a jovem não se sentia ameaçada. Olivia notou a outra mão do pirata nas costas, movendo-se para cima das omoplatas, lhe agarrando a nuca com força, introduzindo-se entre o cabelo, lhe percorrendo a cabeça. Foi uma sensação maravilhosa, estranhamente conhecida, como se já a houvesse tocado desse modo anteriormente. - Se deixe levar - disse ele com amável autoridade. - Só têm que permanecer quieta e sentir. Anthony acomodou os lábios contra o sulco que se formava na nuca de Olivia e a mão que descansava sobre seu ventre subiu até conter seus seios. Os mamilos da moça se endureceram como se tivessem submersos em água fria. Olivia sentiu que voltava a deslizar-se no mundo de sonhos no qual havia vivido os últimos dias, por onde sua mente navegava à deriva e seu corpo não era mais que uma forma sensível flutuando entre plumas. Os dedos lhe acariciaram a curva dos quadris, dançaram sobre suas coxas e brincaram nas pequenas covas das curvas. Sentiu o corpo de Anthony em todo seu comprimento apertado contra o seu, e imaginou tão vividamente como se o tivesse diante. Os diminutos mamilos, tão diferentes dos seus, minúsculos botões na enorme extensão de seu peito, a cova do umbigo em seu ventre côncavo, a linha mais escura de cabelo atraindo seu olhar para o sexo. Então, algo que até aquele momento havia se mantido inativo, desenfreou-se. Olivia notou a dureza da ereção pressionando com força contra o sulco que formavam suas coxas. Travessa, atrevida, deliciosa... palpitava nos lugares secretos de seu corpo. Então ela ficou rígida e contraiu as pernas. 53

- Jamais. Não vou casar-me jamais. - Uma decisão digna de elogio - Murmurou o pirata com sua boca entre o cabelo da moça enquanto deslizava sua mão entre as coxas. - A compartilho. Então Anthony acariciou a face interior de uma das coxas nuas da jovem até que voltou a notá-la relaxada e percebeu que seu corpo se afrouxava novamente contra o seu. - Mas não podemos fazer se não vamos nos casar - Protestou Olivia. - O celibato não é o mesmo que a castidade - Lembrou Anthony, aproximando a língua da orelha e mordiscando o lóbulo. – Já discutimos isso. - Mas... poderia fi-ficar grávida - Murmurou Olivia, perguntando a si mesma como era possível que tais considerações carecessem de todo sentido de obrigação. Então teríamos que nos casar. - Me assegurarei de que isso não aconteça - Disse Anthony, e ela notou em sua voz que ria. - Ainda é ingênua, apesar de todos seus conhecimentos. A experiência intelectual não pode substituir a realidade, minha flor. Olivia não respondeu. Foi incapaz de fazê-lo. Anthony a colocou de barriga para cima e ela viu o rosto do pirata à pálida luz das estrelas, que penetrava pela janela ainda aberta. Ele se inclinou para beijá-la nos lábios e Olivia proferiu um leve suspiro contra os dele. Eram lábios maravilhosamente suaves, macios, mas ao mesmo tempo musculosos. A língua de Anthony apertou com força para que autorizasse a entrada e os lábios de Olivia a deram. Tinha gosto de vinho e brandy, sal marinho que haviam salpicado o Wind Dancer, ao vento que enchia as velas. Ela apanhou sua língua com repentina avidez e sustentou seu rosto para penetrar até o mais fundo de sua boca. A solidez do corpo de Anthony contrastava com a morbidez do de Olivia. Ela enredou os dedos nos cabelos do pirata, que liberados da fita negra que o prendia, loiro como as moedas de ouro, caía-lhe sobre os ombros. O rosto de Anthony era um berço de luz sob o resplendor da lua que penetrava pela janela quando Olivia afastou o cabelo para trás e sustentou seu rosto entre suas mãos. - Estou sonhando - Disse Olivia. - Não, não é um sonho. Então Anthony separou as coxas da moça com um joelho e abriu caminho entre elas. Olivia notou que seu corpo se abria e que uma onda liquida invadia a parte baixa de suas costas antecipando a felicidade. As mãos de Anthony se deslizaram sob suas nádegas, para elevá-la. A súbita penetração a deixou paralisada durante um instante, mas logo só houve aquela maravilhosa plenitude liquida e seu corpo abraçado ao de Anthony. Ela passou suas mãos pela dourada cascata do cabelo dele, apanhou sua boca entre os dentes, elevou seus quadris para dar resposta às firmes 54

arremetidas de seu corpo. - É um milagre - Disse Anthony. - É um sonho - Respondeu Olivia. - Mas um sonho que vou sonhar sempre. - Eu também - Respondeu ele, retirando-se até o limite do corpo de Olivia. - Tenho que sentir o que sinto? Olivia acariciou as nádegas de Anthony até chegar às musculosas e tensas coxas enquanto ele continuava pairando sobre ela. - Em benefício da investigação intelectual? - Isso acredito. Anthony se moveu lentamente, penetrando de novo nas profundidades de Olivia. Logo tocou a pequena e dura protuberância cuja existência a jovem desconhecia até então. Esfregou-a, pressionando-a e a acariciou enquanto se movia no interior de Olivia. Olivia já não era Olivia. Dissolveu-se em infinitas partículas. Perdeu-se na Via Láctea. Acreditou chorar. Segurou-se ao corpo que era sua única conexão com a realidade. Segurou-se a aquele corpo e este a sustentou, firme, quente, seguro, até que voltou a si mesma. Anthony a abraçou. Ele soube, soube desde o instante em que a moça chegou a sua porta sobre a água, soube que Olivia Granville ia ser a proprietária de sua vida de uma maneira incompreensível e inexplicável.

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Capítulo 5 Começou a correr pelo corredor que se estendia frente a ela, pareceu-lhe incrivelmente longo. Não conseguiria chegar ao final antes que ele a apanhasse. O ouviu atrás, com um andar quase lento em comparação com seus passos acelerados. Ele a chamou, com um tom sutilmente provocador: - Corre, coelhinha, corre - Ela ofegava; a respiração entrecortada lhe feria o peito, sentia a garganta seca pelo medo e o desespero. Conseguiria apanhá-la, como sempre, justo ao chegar à última janela, antes da porta de ferro maciço que dava aos quartos familiares do castelo. Estava a ponto de chegar à janela quando ouviu que ele acelerava o passo. Então a pegou pela cintura e a sustentou no ar. Ela esperneou, o golpeou com suas perninhas cobertas em meias soquete. Ele riu mantendo-a no ar, tão afastada dele que os esforços da menina eram como os de uma mosca apanhada em uma teia de aranha. - Não deu o bom dia a seu irmão, coelhinha - zombou ele. Que descortesia. Qualquer um diria que não se alegra de me ver esta manhã. Em seguida a deixou sobre a grossa pedra da soleira da janela, com o que a teve a sua mesma altura. Ela olhou fixamente aquele odioso rosto e estremeceu com um terror indefeso. O homem lhe agarrou os pulsos e os reteve nas costas, e ela sabia que se abrisse a boca para gritar a amordaçaria com o lenço e ela se sentiria como se asfixiasse. -Vamos ver o que temos por aqui... - Disse ele em um sussurro, quase cantando, introduzindo a mão livre por debaixo da saia... Olivia realizou um grande esforço para se liberar da pegajosa teia de aranha daquelas repugnantes lembranças e se encaminhou para os cordatos e brilhantes raios de sol da realidade em que despertava. Abriu os olhos de repente. O coração lhe pulsava rapidamente e ofegava como se ainda continuasse correndo para salvar a vida. Sentou-se abraçando os joelhos. Tremia e o suor se secava sobre a pele. Estava sozinha no camarote, mas o travesseiro que tinha ao lado ainda conservava a forma côncava da cabeça de Anthony. O sol entrava em torrentes pela janela aberta e pouco a pouco o pânico foi retrocedendo, o coração diminuiu o ritmo dos batimentos, a respiração se normalizou. Mas não podia sacudir o pânico, ou o terror latente do que tinha sido mais que um pesadelo, a recriação de uma realidade que há muito tempo havia sido sepultada. Sobre o mármore da cômoda viu uma bacia com uma jarra de água, e afastou as cobertas e se levantou. Doía-lhe todo o corpo, dos pés à cabeça, como se acabasse de perder uma luta corpo a corpo. A água da jarra estava quente. Na saboneteira havia uma barra de sabão de Verbena, e ao lado várias toalhas dobradas.

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Olivia verteu água na bacia e se lavou. Ao passar a esponja entre as pernas, estremeceu-se consciente da terrível lembrança que sua noite de amor havia liberado. Depois da noite de amor com Anthony, sentia-se invadida pela mesma amargura que havia atormentado sua vida quando seu meio-irmão saía, assobiando, deixando-a tremendo sobre a soleira da janela. Todas às vezes era a mesma coisa, durante o horrível ano em que Brian Morse viveu no Castelo de Granville. A feria fazia estragos nela com suas mãos exploradoras, e lhe dizia quase num sussurro e com um tom amável, porém absolutamente ameaçador que se dissesse uma única palavra a mataria. Em seguida saia, assobiando, deixando-a sobre a soleira da janela como um objeto qualquer sem nenhum valor ou interesse. - Que idade devia ter? Oito ou nove anos, pensou Olivia. Tinha se convencido tão profundamente de que cumpriria sua ameaça que havia impedido a si mesma recordar o que tinha ocorrido. A jovem se sentiu enjoada. Era uma conhecida e velha náusea. Apoiou as mãos sobre a cômoda esperando sentir-se melhor. Sua própria nudez a preocupou como não a havia preocupado até então, e se afastou da cômoda dando uma massagem na garganta. A noite anterior, antes de deitar-se na cama, tinha pendurado a camisola que lhe serviu de vestido no armário. Abriu de repente a porta do armário e tirou a camisola. Só após ter se vestido sentiu segura outra vez. Aproximou-se da janela e olhou o mar. Já não viu a imensa extensão de água lisa e ininterrupta; frente a ela viu terra. A encurvada forma da Ilha Wight. Estavam perto de casa. Anthony tinha dito que se o vento soprasse a seu favor veriam a ilha ao redor do meio-dia. Olivia se pôs de costas à janela, abraçando a si mesma como se tivesse frio embora o sol esquentasse o camarote ao projetar-se sobre o chão de carvalho onde apoiava seus pés nus. Toda a felicidade parecia ter se filtrado por sua alma. Sentiu-se manchada, violada, e de certo modo indigna. Era um antigo e conhecido sentimento parecido com as horríveis lembranças que a partir daquele momento não a deixaria em paz. Deteve seu olhar no tabuleiro de xadrez. Em uma tentativa para distrair sua mente do torturante furacão emocional que a invadia, Olivia se concentrou no problema que na noite anterior havia sido incapaz de resolver. E mais uma vez, como sempre fazia foi obrigada a recorrer a uma ginástica mental para aliviar da tensão que se encontrava, por um momento afastou de si mesma. - E ai, já encontrou uma solução? Olivia deu meia volta para ouvir a suave voz de Anthony. Seu coração voltou a pulsar depressa e ela não se deu conta da expressão que fez ao olha-lo era como se tratasse de um monstro, pálidos como cera, com seus grandes olhos negros como duas covas em sua tez cinzenta. - O que houve? Perguntou Anthony aproximando-se, e em seu rosto se

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desvaneceu o sorriso com o qual havia chegado; sua voz carecia do habitual tom de diversão. - Aconteceu alguma coisa? -Não. Disse Olivia sacudindo a cabeça. Ergueu as mãos como se quisesse proteger-se dele e em seguida as deixou cair ao lado do corpo. - O problema de xadrez. Disse devagar. - Estava concentrada nele. Virou-se de novo para o tabuleiro, mas em seguida notou que algo lhe cravava nas costas quando Anthony se aproximou por detrás. O pirata se inclinou e a beijou na nuca, e Olivia não pôde reprimir um grito. -Olivia, o que houve? Ele colocou as mãos sobre seus ombros e ela se tencionou com repugnância, ficando rígida e olhando para o tabuleiro. Talvez se não se movesse se não dissesse nada, ele partiria. Anthony olhou a cabeça inclinada de Olivia. O que podia ter acontecido? Havia despertado com Olivia entre seus braços, sentindo a suavidade de seu corpo amontoados contra o dele. Tinha tido uma maravilhosa sensação de plenitude, e sua mente adormecida havia repassado uma a uma as delícias da noite passada. Olivia dormia profundamente quando ele a tinha abandonado a cama sem nenhum desejo de fazê-lo... Isso fazia umas três horas... Então, o que tinha acontecido? Anthony havia percebido a sensação de asco de Olivia e a vontade da moça de afastar-se dele. - Torre branca em bispo A3. Peão, bispo ou rainha negra em cavalo A3. Disse Olivia fracamente sem mover as peças. - Sim. Disse ele tirando as mãos dela. Isso é perfeito. O alívio que Olivia sentiu quando o pirata a deixou foi notório, mas continuou sem levantar os olhos do tabuleiro. - Quanta falta para chegarmos a terra? - Chegaremos ao nosso ancoradouro pela noite - Respondeu Anthony. Tentou pôr as mãos de novo sobre os ombros da moça, porém, mais uma vez ela se esquivou, ao fim as deixou cair ao lado de seu próprio corpo. – Tem certeza que não quer me dizer o que aconteceu? - Não ocorreu nada. Disse Olivia movendo as peças de xadrez sem emoção nenhuma na voz, incapaz ainda de olha-lo nos olhos. – Será que minha roupa já está pronta? - Já tem um tempo que vi Adam dando os últimos retoques. Você estava dormindo na hora do café pela manhã, não quis lhe acordar, então agora vim para lhe dizer que comeremos ao meio dia se não tivermos tarefas pendentes. A mesa estará preparada no tombadilho9 superior. 9

Superestrutura erguida na popa de um navio.

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Suas palavras foram quentes e lembraram Olivia seu caminho pelo Dona Elena... Aquela excitação... Aonde a tinha levado... O quão faminta havia se sentido. Mas não conseguiu transmitir nenhum afeto através de sua resposta. - Obrigado. Anthony esperou um instante e em seguida disse: - Virá, então? - Sim... Sim, dentro de um instante. Ele voltou a duvidar e o silêncio se estendeu tenso como uma corda de alaúde10. Anthony saiu do quarto e se dirigiu ao convés com o sobrecenho franzido. Tinha a sensação de tê-la ofendido de algum jeito. Não entendia. Mas isso era ridículo. Estabeleceu-se uma grande sintonia entre eles, entre corpo e mente, complementando um ao outro. Anthony havia sentido e sabia que ela também. Havia notado desde o primeiro momento em que ela apareceu frente a sua porta. E de repente era como se aquela conexão tivesse sido cortada bruscamente. Talvez Olivia tivesse se arrependido de ter feito amor com ele? Arrependia-se de ter deixado de ser virgem? Tinha medo das consequências que pudessem vir ocorrer e o culpava por isso? Não seria uma reação tão estranha, entretanto Anthony teria jurado que a reação de Olivia não ia ser tão típica. Anthony subiu para o tombadilho superior e ficou detrás de Jethro, olhando primeiro as velas e depois mais à frente, para a corcunda que formava a ilha. Agora já se distinguia levemente o verde das colinas, a brancura cremosa das paredes dos penhascos. Uma ordem sua, e os homens se reuniram junto à plataforma, soltaram as folhas que seguravam a gávea11 e, quando caiu, recolheram-na no gancho. Olivia ficou no convés inferior contemplando a operação, que foi levada a cabo com absoluta fluidez e eficácia. Cada um dos movimentos respondia a uma ordem, e a coreografia a lembrou a maneira em que se encontra a solução a um problema de xadrez ou quando conseguia entender uma formula matemática especialmente complicada. A mesa estava preparada no tombadilho superior igual tinha estado para o jantar, e Anthony, ao vê-la subir pela escada de corda, abandonou sua posição no leme e se aproximou dela. Sua expressão era séria e havia desaparecido o brilho de seu olhar. Olivia se sentou à mesa. Havia ovos cozidos em uma terrina12, pão de trigo e um pedaço de manteiga; um pote de mel, um presunto de cor rosada e uma jarra de cerveja. Apesar da tortura interior, Olivia tinha fome. 10

Instrumento de cordas dedilhadas de origem árabe, com larga difusão na Europa da Idade Média ao Barroco.

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Nome específico da vela redonda que pende da verga de gávea do mastro grande.

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Vasilha larga e funda, de louça ou barro. 59

Anthony se sentou em frente a ela. Virou o rosto procurando o sol e o vento, e fechou os olhos durante alguns segundos. - Por que arriaram a vela? - Perguntou Olivia tentando manter uma voz tranquila, fingindo interesse, como se não tivesse nenhuma razão para que estivesse tensa. - A gávea é a primeira vela que se vê da terra. Disse o pirata em um tom neutro. - Não quero que nossa aproximação atraia a atenção de ninguém. Anthony segurou a jarra de cerveja e a levou para frente para encher o copo. Levantou os olhos, encontrou-se com os de Olivia, mas esta evitou a desconcertada interrogação de seu olhar. A jovem pegou um ovo cozido e o golpeou ligeiramente contra o canto da mesa para quebrar a casca. - Querem se aproximar em segredo porque são piratas ou devido a guerra? Perguntou tratando de adotar também um tom neutro. Anthony encolheu os ombros. - Nenhuma coisa nem outra. - Mas está do lado do rei - Insistiu ela. - Disse que meu pai era o carcereiro do rei. Ele a olhou através de seus olhos entrecerrados. - Não tenho tempo para esta guerra. O país esta imerso em um banho de sangue há quase sete anos, irmãos contra irmãos, pais contra filhos. E para que? As ambições opostas de um rei e alguém chamado Cromwell. Disse, e soltou uma breve gargalhada, quase desagradável. - Sou pirata, contrabandista, mercenário. Vendo meu navio e meu talento ao melhor licitante. O tom amargo com o qual pronunciou estas palavras e a cínica declaração gelou os ossos de Olivia. Quase com desespero disse: - Como vou voltar para casa? Os dedos de Olivia tremeram ao retirar a casca do ovo, que escorregou por cima da mesa. O recolheu ruborizada. - O que está acontecendo? - Perguntou Anthony com calma. Os olhos encheram de novo de doçura e a amargura abandonou seu semblante. Olivia se limitou a sacudir a cabeça. Como podia falar de algo que havia sido trancado sob chave dentro de si mesma tanto tempo? E como podia falar disso com o homem que a fez lembrar-se da violência que havia sofrido e as duras penas tinha se esquecido de e agora ela se tornara tão real como tinha sido durante o horrível ano que havia vivido em sua infância? - Se não quer chamar a atenção, Como vou voltar para casa? Repetiu ela retirando o último pedaço da casca do ovo.

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Anthony cortou presunto. A dor lutava contra a raiva, e a raiva venceu porque até onde podia recordar sempre havia se protegido contra a dor do desprezo. Se ela queria que as coisas fossem assim, ele não pensava lutar para ganhar sua confiança. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Olivia Granville podia entrar e sair de sua vida e não deixar rastro sequer. Bem, pela primeira vez tinha se equivocado. O instinto havia falhado. Tal como tinha dito Adam, sempre há uma primeira vez. Deixaria que a pequena inocente voltasse para sua calma anterior, a sua vida privilegiada. Olivia não sofreria nenhuma consequência, disso estava completamente seguro. - Posso lhe oferecer uma fatia de presunto? - Perguntou friamente. - Obrigada. Anthony a deixou sobre o prato e no mesmo tom frio de voz disse: - Um homem de minha tripulação tem família na ilha e a levará a terra, onde alguém os irá procurar e os acompanhará a casa. A história que contar não ficará muito afastada da realidade. Tropeçou no desfiladeiro, perdeu pé e caiu pela ladeira. Jake Barker, o granjeiro, a encontrou, a levou a sua casa e lá lhe atendeu. A senhora Barker tem experiência médica. Tem mais filhos do que sou capaz de contar. Um sorriso flamejou nos olhos de Anthony durante um segundo. Logo se desvaneceu e continuou no mesmo tom frio. - Dirá que durante vários dias perdeu a memória não se lembrava do que lhe aconteceu. Quando recuperou a consciência, eles a levaram para casa. Certamente expressará convenientemente seu agradecimento aos Barker por sua atenção e sua amabilidade, e acredito que dirá para lorde Granville que os recompense. Parecia que estivesse dando uma lição de maneiras porque não confiava que Olivia fosse capaz de reconhecer estes deveres por si só. Sentiu medo daquele tom glacial, mas não podia fazer nada para melhorar o ambiente. Era incapaz de encontrar as palavras adequadas. Era como se a pele tivesse encolhido sobre seu esqueleto e tivesse ficado pequena. - Meu pai não esta em casa. “Mas podiam ter ido buscá-lo”, pensou. Assim que tivessem se dado conta de seu desaparecimento, Phoebe teria mandado buscá-lo, de modo que podia ser que agora estivesse em casa. E por mais difícil que fosse enfrentá-lo e lhe mentir, não seria pior que ficar com o pirata. Olivia não sabia quem era este homem. O dono do Wind Dancer tinha se transformado novamente. Não podia imaginá-lo rindo ou mostrando sua ternura. Seu rosto havia mudado. Da pele morena se sobressaíam às maçãs do rosto e o queixo. Aquele cabelo loiro, recolhido outra vez em um rabo com o laço, mostrava de relance a dureza de seu rosto sob o sol radiante. Neste homem não havia nem um pouquinho de afeto. Nem um rastro do seu humor habitual. - Bem, então acredito que você ou a esposa de seu pai cumprirão com estas obrigações. Anthony levantou a jarra de cerveja até aos lábios. Seu tom tinha sido ofensivo. 61

Olivia desejou esvaziar o conteúdo de seu próprio copo sobre aquele rosto frio e cínico. Retirou sua cadeira para trás e se levantou. - Desculpe-me. Disse, depois saiu do tombadilho superior com a cabeça alta e as bochechas ruborizadas pela raiva. Anthony olhou por cima do corrimão para a ilha, cuja forma ia definindo cada vez mais, e acreditou distinguir o extremo mais ocidental das perigosas rochas denominadas Needles. Estavam se aproximando dos redemoinhos de St. Catherine Point; entretanto, em um dia ensolarado de verão como aquele, as ocultas rochas não representavam nenhuma ameaça. Tinha um encontro em Anchor com o cérebro que havia detrás dos naufrágios. Deu um pequeno gole em seu copo de cerveja. Era um cérebro ou somente um homem ambicioso e depravado tocado pela fortuna? Um cínico sorriso se desenhou em seus lábios. Se aquele homem era um bobo ambicioso seria fácil ludibriar. Porém se tratar de um cérebro ardiloso... Será farinha do mesmo saco. Tinha perdido o interesse por Olivia. A moça o desapontou. Ou talvez fosse ele quem a havia desapontado. Dava na mesma. Não devia permitir que os parênteses, por mais prazeroso que fossem influíssem nas decisões. - Terminei com o vestido. Não estou nada acostumado a estes objetos. Disse Adam interrompendo o devaneio de seu senhor segurando o vestido de Olivia. Olhou com desdenho a obra que não considerava satisfatória. Sinto muito, mas não posso fazer muito mais por ele. - Estou certo de que Lady Olivia te agradecerá. Disse Anthony com uma voz distante. - Bom, ele está aqui. Adam falou olhando Anthony com os olhos da experiência. Então, que é que está acontecendo? Pensava que ao encontrar a dama tudo seria radiante e cheio de doçura? - Leve o vestido para a dama, Adam. Na ordem de Anthony, havia um certo receio que Adam captou, ainda que detestasse havê-lo feito. Vacilou. - O que é que vai mal? - Eu pensei que sabia tudo - Disse Anthony contemplando a ilha. Logo encolheu os ombros. - O que é que eu queria? Pensei que... Ora, estava equivocado. Acrescentou, e em seguida proferiu uma breve gargalhada. - Sempre há uma primeira vez, não é, Adam? -Se você o diz... -Eu pensei que foi você quem o disse. Afirmou Anthony com brutalidade, mas suas palavras caíram no vazio porque Adam já descia pela escada de corda para dirigir-se ao convés principal.

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Olivia ficou de pé frente à mesa onde estavam as cartas de navegação. Olhou atentamente as notas que Anthony havia realizado ao lado dos mapas, tratando de entendê-las. Tinham a ver com o sextante e as bússolas, só até aí podia chegar. A ilha estava desenhada nos mapas, assim como outros pedaços de terra que para ela não significavam nada. A água estava pintada em diferentes gradações de azul sobre as quais tinha indicadas cifras. Deixou-se perder no quebra-cabeça. Era seguro, ordenado, absorvente. Ao abrir porta, estava tão concentrada que demorou um momento em dar-se conta. - Fiz tudo o que estava ao meu alcance em relação a seu vestido. - Certamente deve ter ficado perfeito, Adam. Disse Olivia ficando de costas às cartas de navegação e outorgando a suas palavras todo o calor do qual foi capaz. - Duvido que vá pensar o mesmo ao vê-lo. Adam deixou o vestido e as anáguas sobre a cama. Olivia se aproximou para vê-los. - Parece que foram cortados. Disse duvidosamente. - Ao cair pela ladeira não ficou muito tecido para poder fazer remendos. Olivia notou a decepção nas palavras de Adam e pegou as peças lamentavelmente cortadas. - Não, c-claro que não. Fez maravilhas, Adam. Pelo menos poderei ir para casa com um aspecto meio decente estas palavras foram ditas com um luminoso sorriso. Adam assentiu. A moça estava muito nervosa e lhe faltava muito pouco para que os nervos a traíssem. Sem dúvida nunca tinha se encontrado em uma situação tão extrema. Provavelmente isso explicava a lúgubre expressão de Anthony. Fazia bastante tempo que o senhor do Wind Dancer não tinha aquele aspecto. - Então coloca isso e vejamos como fica. Disse o homem girando-se em volta de um dos armários. - Quanto resta para chegar, Adam? - Deus te abençoe, nós não estamos indo para terra. Respondeu, e voltou com os sapatos que Olivia calçava quando caiu em suas mãos -.Os sapatos resistiram, mas as meias ficaram convertidas em farrapos. Creio que terá que se arrumar sem elas. - Isso não importa. Disse Olivia impacientemente tirando os das mãos-. Por que não vamos desembarcar? Adam a olhou em silêncio. Não sabia o que Anthony lhe havia contado sobre o ancoradouro que sérvia de refúgio ao Wind Dancer, e não pensava em lhe revelar o segredo. É obvio, Anthony havia dito que a levaria a terra, recordou Olivia. - Talvez se trate de uma caverna? - Perguntou com apresso. - Não posso dizer nada. Disse Adam movendo a cabeça, e abandonou o quarto.

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Olivia, novamente só, apoiou os joelhos no assento da janela contemplando como a ilha se distinguia cada vez melhor. Quando descesse do Wind Dancer não voltaria a ver o pirata. Tal como devia ser. Tal como necessitava que fosse. Afastou-se da janela e se dirigiu à cama para olhar de perto sua roupa remendada. Bastava. Quando tirasse a camisola do pirata e se visse vestida com sua própria roupa, voltaria a sentir que era ela mesma. O que havia ocorrido entre ela e o pirata deixariam de existir. Então começou a tremer. Em outra ocasião já havia tentado que deixasse de existir uma coisa que tinha acontecido. Tirou a camisola e se vestiu com sua própria roupa. Vestido e anáguas chegavam à meia panturrilha, mas Adam era muito habilidoso com a agulha e os remendos eram quase invisíveis. Introduziu os pés descalços nos sapatos. Notava-os estranhos, quase artificiais, depois de tanto tempo andando descalça... Tão livre tão perdida no êxtase. Dirigiu-se outra vez à janela e se pôs de joelhos para ver como se aproximavam da ilha, cuja forma se distinguia cada vez melhor. Pôde ver St. Catherine's Point. Frequentemente passeava pelo caminho do penhasco e chegava justo até em cima daquele ponto. Mas não fazia isso há muitos dias, mesmo antes do naufrágio, Phoebe e ela haviam almoçado no St. Catherine's Hill. Subiu por conta própria pela encosta até ao topo da colina, de onde podia ver a divisa da magnifica vista do canal e da costa de Dorset. Diria a Phoebe à verdade sobre o que havia acontecido? Era quase impossível imaginar que não poderia guardar segredos da mulher que era sua amiga há tanto tempo. Uma pessoa que compartilhava sua vida em seus mais íntimos detalhes. A porta se abriu atrás de Olivia e Anthony entrou. - Devo fechar a janela e correr as cortinas. Disse com voz neutra e fria. - Sinto muito, mas terá que ficar aqui. O lugar ao qual vamos é segredo. Ninguém que não pertença à tripulação deste navio pode conhecê-lo. Quase parecia que a acusava de traição. Era muito mais fácil abandonar-se a uma emoção como a raiva que a falta de emoção que ela não podia explicar. - Sei que tem que ser algum lugar sobre o caminho do penhasco onde caí. Respondeu. - Insulta-me ao imaginar que poderia lhe trair revelando o lugar no qual ancoram. Anthony se encolheu de ombros com um gesto de indiferença e se inclinou por cima dela para fechar a janela. Olivia escapuliu imediatamente do assento da janela, driblando o braço de Anthony e afastando-se dele. Era como se não suportasse o ter por perto; um músculo se contraiu na face de Anthony e lhe tremeu uma pálpebra, mas como Olivia não o olhava não se deu conta de nenhum destes detalhes. Anthony correu as cortinas e o quarto ficou em penumbras. 64

- Ancoraremos assim que anoitecer. Esfregou a isca do isqueiro e acendeu o abajur de óleo suspenso em cima da cama. - Tenho que tirar os pontos que lhe dei na perna. Deixaria que seu médico tirasse, mas a família de granjeiros que lhe atendeu nestes últimos dias não poderia saber costurar a ferida nem tão pouco teriam tido dinheiro para pagar um médico. Fariam perguntas. - Não tem muita lógica que confie o suficiente em mim para que minta a respeito deste navio e que, em troca, insista em manter em segredo o lugar no qual ancoram. Anthony havia tirado do armário o cofrinho de madeira. Falou com um tom próximo à indiferença. - Confio em seu instinto de sobrevivência. Custa-me imaginar correndo o risco de ser a origem do escândalo que se formaria se soubesse a verdade sobre seu desaparecimento, por muito que diga que não se importa com sua reputação. Mas podem fazer o que quiser, o que sabe não pode me prejudicar enquanto não saiba também onde encontrar a mim e a meu navio. Olivia pensou que mesmo que pudesse explicar por que as coisas haviam mudado entre eles, não serviria de nada. No olhar do pirata não restava nenhum pingo de perdão, nem de compaixão, nem de compreensão. Olivia o tinha ofendido e isso bastava. Mas como podia ter se equivocado tanto com ele? Entretanto, para ser fiel à verdade, Olivia sabia que ele devia sentir o mesmo respeito a ela. Ela havia mostrado a Anthony uma pessoa que não existia, uma pessoa capaz de abandonar-se ao êxtase e sucumbir à paixão. Por isso o havia decepcionado. - Venha - Disse abrindo o cofre e tirando uma tesoura fina - Não demorará nada. Olivia levantou o vestido e as anáguas, e desta vez não teve que reprimir a excitação nem correu o perigo do desejo. Tratava-se de solucionar um problema que, tal como Anthony havia dito, não ia levar mais que alguns minutos. Anthony fechou o cofrinho dando um golpe. - Adam ficará aqui para certificar de que não se sinta tentada a abrir as cortinas. - Não necessito de carcereiro. Protestou Olivia. - Não olharei se não o quer. Anthony se deteve junto à porta - Se você não confia em mim, como quer que eu confie em você? Olivia não encontrou uma resposta e se virou para lhe dar as costas. Adam entrou com um grande cesto de costura. Sentou-se impassivelmente na janela e começou a costurar. Ao cabo de um momento, Olivia retornou as suas reflexões sobre as cartas de navegação. O Wind Dancer foi seguindo a costa, escondido sob o penhasco, pelo profundo 65

canal que só conheciam os marinheiros da ilha. Protegido pelas sombras do crepúsculo passou pelo St. Catherine's Point. Enquanto o sol ia submergindo no horizonte, o navio passou frente a pequenas baías desertas empurradas por uma leve brisa. Depois desapareceu no penhasco. Olivia notou que havia cessado o movimento. Ouviu o chiar das cadeias o atirar a âncora. Adam havia recheado o abajur de óleo várias vezes durante as horas que haviam passado no camarote. O homem não tinha iniciado nenhuma conversa e Olivia tampouco se sentiu inclinada a fazê-lo. Examinou os mapas minuciosamente até que foi tão fácil interpretá-los como a qualquer marinheiro experiente. - Creio que teríamos que nos preparando para subir ao convés. Disse Adam rompendo o longo silêncio e deixando de lado o trabalho que tinha entre mãos. Olivia o seguiu até o convés. A noite era muito escura e só se via uma lânguida lasca de céu e o brilho de alguma ou outra estrela. Quase parecia que estavam no interior de uma caverna. O ar da noite era quente e estava um pouco rarefeito, resultava muito diferente da fresca brisa que se respirava em mar aberto. Mas mesmo assim era um ar doce, e pôde detectar nele a fragrância das armênias, da erva que crescia no alto do penhasco, das madressilvas e dos trevos. Talvez não tivessem tocado terra, mas esta não estava longe. - Está preparada? - Perguntou o senhor do Wind Dancer tão perto de Olivia que esta, ao girar a cabeça, encontrou-se com o intenso olhar de seus profundos olhos cinza. A moça se sentiu presa em uma onda de tristeza, de remorso, do desejo pelo que tivesse podido ser. - Perdoe-me. disse involuntariamente. - Por quê? Soou frio, inflexível. Sem pronunciar outra palavra mais, Olivia se limitou a inclinar a cabeça. - Podem saltar por cima do corrimão? - Sim. - O bote a espera abaixo. Sinto muito, mas terá que enfaixar os olhos até que desembarque. Olivia não respondeu nada. Que importância tinha o que fizesse ou deixasse de fazer? Dirigiu-se ao corrimão e olhou para baixo, onde tudo era uma enorme escuridão que envolvia o pequeno bote de um só mastro que se balançava. - Vou? Sua voz carecia de toda inflexão. - Sim. Anthony não a ajudou a passar por cima do corrimão nem a baixar até o bote. Ela o olhou, e o que viu foi uma tez pálida na escuridão e olhos brilhantes como gelo 66

cinza. Então Anthony desatou o lenço que usava ao redor do pescoço, apertou-o fortemente e o lançou ao bote. Um dos tripulantes o recolheu. Olivia notou o calor do lenço enfaixado sobre os olhos. O aroma de Anthony era tão intenso que seu estômago se contraiu. Inspirou profundamente em meio da suave escuridão e então abriu um espaço, um espaço delimitado no qual o êxtase era tão intenso, tão claro, que o horror do passado desapareceu. Sentiu o corpo de Anthony contra o seu, sua solidez contrastando com sua própria morbidez. Seus lábios. Sentiu-se desfalecer, enjoou-se, segurou-se a beirada da madeira sobre o qual estava sentada. - Está bem, senhorita? Aquela voz preocupada a fez voltar em si. - Sim, obrigada. Chegaremos logo? - Dentro de pouco. Olivia ouviu o ameno chapinho dos remos afastando do Wind Dancer. De repente o vento soprou mais fresco e ouviu que a tripulação içava uma vela. Ao cabo de pouco perdeu todo sentido da orientação, também do tempo. Alguém começou a cantarolar uma canção suavemente e outra pessoa se acrescentou ao canto. Era uma melodia doce. Depois as vozes calaram. A proa do bote encalhou na areia e Olivia notou uma sacudida. - Já posso tirar isso? Olivia pôs as mãos no lenço. -Sim, senhorita. Desatou a venda e piscou na penumbra que os envolvia. Não tinha nem ideia de onde estavam, salvo que era uma enseada. O mar se via negro; as paredes de pedra se elevavam por três lados. Mas pôde ver outra vez o céu e a massa de estrelas. Não havia nem rastro do Wind Dancer, o qual não era surpreendente nem muito menos já que haviam navegado bastante no bote. Os homens saltaram fora do barco e a levaram para a praia. Comportaram-se com muita amabilidade quando a ajudaram a descer. - O caminho é costa acima, senhorita. - Não importa, conseguirei. Disse Olivia sorrindo ao homem que se havia dirigido a ela e que parecia nervoso. - Mike, quer que o esperemos? - Não, esta noite dormirei em casa. Disse o homem chamado Mike, que começou a cruzar a praia dirigindo-se para uma magra linha branca no desfiladeiro. Por aqui, senhorita. O cocheiro nos está esperando lá em cima. Olivia o seguiu. Ia apertando o lenço de Anthony, que tinha guardado no fundo do bolso de seu vestido.

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Anthony examinou atentamente a imagem que lhe devolvia o espelho de seu camarote. Arrumou-se o encrespado bigode que tinha decidido luzir e franzindo o cenho pegou um lápis preto para pintar as sobrancelhas. - O que te parece, Adam? Vou fazer o acerto? Disse estas palavras com o marcado sotaque dos ilhéus. -Sim. Respondeu Adam secamente e alcançou a ponta da boina. A história da garota acabou, não? Anthony não respondeu. Estava ocupado ajeitando a boina para tratar de esconder todo seu cabelo. - Creio que meu aspecto de rufião13 é bastante acreditável. Observou. - Não te parece que os dentes pintados de negro é um bom detalhe? - Acreditava que tinham dito que esta era diferente. - Maldito seja, Adam! Não estou com nenhuma vontade de falar sobre isso! - Ela o tocou profundamente, não é? Adam não se afetou com a brutalidade de seu patrão. O havia criado desde que tinha nascido, havia-lhe trocado as fraldas, dado mamadeira, havia-lhe cuidado durante a horrível fuga de Bohêmia depois da batalha da Montanha Branca. Havia lhe devolvido são e salvo para a família de seu pai na grande mansão que possuíam em Strand na cidade de Londres. Tinha visto como os tinha obrigado a atender o menino que haviam repudiado... - Adam, que todos os demônios o persigam. Está dormindo! Dê-me esse batom. Tenho que maquiar o nariz, para que pareça que tenho várias veias roxas. Adam segurou o frasco com batom que Anthony havia posto debaixo do nariz. - Quer se converter em um palhaço? -Não, só em um homem que gosta de beber. Ande depressa. É mais hábil que eu com este cosmético. Adam levou a cabo o que lhe pedia e, em efeito, deu-lhe um toque artístico. Ao terminar, o colorido rosto de Anthony brilhava como uma maçã vermelha. - Quem você levará para que vigie à sua volta? - Sam... Mas espero que não haja nenhum problema. Esse homem quer vender sua mercadoria. Eu tenho dinheiro para lhe pagar. Por que teriam que surgir problemas? - A menos que seja uma armadilha. - Não me perseguirão. O naufrágio não foi coisa minha. - Outras coisas sim. Disse Adam asperamente, enroscando de novo a tampa do frasco de batom. 13

Indivíduo que vive à custa de prostituta, a quem simula proteger; gigolô, brigão.

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- Sei o que faço Adam. - OH, sim. É um jogo perigoso, não lhe digo isso porque sei. Anthony deu a volta devagar. -Prometi a Ellen, Adam, e não penso em voltar atrás. Meu pai a traiu; eu não penso fazê-lo. - Não servirá muito para Ellen se terminar balançando na forca. - Isto não ocorrerá. - Seu pai pensava o mesmo. Disse Adam sombriamente. E tampouco pensou que estava traindo Ellen... Pelo menos não a princípio. Em sua mente tudo eram pensamentos elevados. Estávamos juntos no convés do Isabelle, tão seguro e convencido de estar cumprindo seu dever e de atuar corretamente como você estão agora, e já viu como terminou o assunto. - Meu pai lutava por motivos religiosos, por alguns ideais. Disse Anthony acompanhando estas palavras com uma breve gargalhada. -Era um cruzado. E traiu à mulher que o amava, primeiro por esses ideais, e logo por... Sua voz definhou e em seguida voltou com toda sua potência. - Mas eu luto por um interesse próprio, Adam. É um dono muito mais fácil de contentar, não te obriga a escolher. Cubro minhas próprias costas e tomo as decisões que me convêm. Não danço ao som de outros, mas sim ao que marco eu mesmo. Anthony pôs a mão sobre o ombro do velho e sorria quando se virou para partir. - Nisso consiste minha segurança. - Se você diz isso. Disse Adam, porém a porta já estava fechada. O velho se deixou cair pesadamente no assento que havia debaixo da janela. As cortinas voltaram a estar recolhidas; a janela, aberta. O ar estava imóvel e nele flutuavam as fragrâncias noturnas que desprendiam as paredes do penhasco cujo amparo se guardava zelosamente o segredo do ancoradouro onde estava ancorado o Wind Dancer. Por volta de vinte e oito anos, o pai de Anthony, Sir Edward Caxton, havia embarcado em Dover impulsionado por alguns ideais em companhia de um grupo de jovens corajosos como voluntário do exército protestante do rei Federico de Boêmia; estavam dispostos a lutar na guerra contra o imperador católico, Fernando. Adam havia acompanhado sir Edward como criado pessoal. Os ideais daqueles jovens conduziram a uma morte sangrenta no massacre da Montanha Branca. O pai de Anthony conseguiu fugir do campo de batalha, mas não da vingança do imperador. Os representantes de Fernando deram com ele e o assassinaram enquanto ele lhes impedia a entrada em seu próprio quarto, onde sua esposa estava dando a luz a seu filho. Aqueles homens viram o parto, foram testemunhas de como a mulher dava a 69

luz; depois lhe cortaram o pescoço e a abandonaram com o bebe envolto em sangue entre suas pernas, unido ainda a sua mãe pelo cordão umbilical que seguia pulsando. Não imaginaram que o menino pudesse viver. Mas não se deram conta de que Adam estava ali, escondido atrás das cortinas da janela. Este não pôde fazer nada para ajudar Sir Edward ou Lady Elizabeth, mas sim pôde pegar o menino, lhe limpar a boca e o nariz e lhe insuflar vida com seu fôlego. Socorreu-lhe e o levou a Londres para seus avôs. Os avôs o repudiaram. O nascimento ilegítimo do menino e o fato de que o pai tivesse abandonado suas obrigações familiares em nome de alguns ideais bastou para isso. Fecharam a porta para Adam e para o menino e os ameaçaram soltando os cães caso não se fossem. Adam recorreu então à única pessoa no mundo que acreditou que podia fazer algo pelo filho bastardo de Edward Caxton, Ellen Leyland, a filha de um fazendeiro do lugar que amou Edward Caxton. Ele também a amou a sua maneira, mas permitiu que a moça seguisse os mandatos de seu zelo religioso. E no meio do esplendor da guerra se esqueceu dela, e em seu lugar encontrou os prazeres ilícitos que lhe oferecia a cama de Lady Elizabeth de Boêmia. Ellen se encarregou do filho de seu marido. Na pequena aldeia de Pescadores de Keyhaven, em Hampshire, ensinou com determinação Anthony a ler, lhe ensinou matemática, introduziu lhe o conhecimento dos filósofos; e o levou a seu próprio caminho de aprendizagem. Com a ajuda de Adam o animou a que se abrisse caminho entre os homens que ganhavam a vida com o mar, os contrabandistas ou os pescadores, fosse como fosse. Anthony sempre soube qual era sua história, que a família de seu pai o repudiou que não havia no mundo um lugar legitimo para ele, e aprendeu as duras lições da sobrevivência. Quão mesmo aprendeu o que significava ser querido por Adam e por Ellen, a quem os chamava de tios diante de todo mundo. -“Anthony demonstrou que esta perfeitamente capacitado para a sobrevivência”, refletiu Adam levantando-se e dando um coice ao ouvir o rangido de suas joelhos. Capacitado, sim; mas não era muito ortodoxo. Havia muitas pessoas que adoravam Anthony Caxton, mas também existiam aquelas que queriam o vê-lo enforcado.

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Capítulo 6 Uma carroça puxada por um robusto pônei esperava no caminho. O garoto, de uns doze anos, segurava as rédeas, desceu de seu assento com um salto quando viu Olivia, que subia a última costa atrás de Mike, apareceu no alto do penhasco. - Está tudo bem Billy? Perguntou Mike amavelmente, dirigindo-se para ele pela erva daninha que os separava. - Sim. Meu pai disse que é para você ir tomar uma taça de vinho com ele esta noite. Disse o moço olhando curiosamente Olivia através de seu tufo de cabelo negro e revolto. - Se o senhor não se importar. - De acordo. Não me espere até manhã. Mike respondeu com tranquilidade, enquanto se virava para oferecer uma mão a Olivia. - Permita-me que a ajude senhorita. Isto deve estar sujo. Acrescentou com um sorriso de desculpa. - Esta amanhã utilizamos a carroça para levar galinhas ao mercado. - As penas de galinha não me incomodam. Disse Olivia tomando a mão que lhe era oferecida e subiu à carreta. Foi uma sorte que não se incomodasse porque o chão estava coberto de penas e a carreta desprendia um forte aroma de gado. - Eu prefiro mais o cheiro de porco. Observou. - OH, sim. Levamos os leitões ao mercado esta manhã. Disse o moço esfregando o assento com a manga de sua camisa. - Deram-nos um bom preço por eles. Mike se sentou na carroça ao lado de Olivia. - Não estamos longe, senhorita. Falou. - Volto para casa? - Sim. O patrão nos ordenou que a acompanhássemos até a porta. Disse que devemos manter a boca fechada, e que devemos deixar a senhorita falar. Falou com um olhar de preocupação. - Sim, de acordo. Tranquilizou-lhe. - Sei exatamente o que devo dizer. - Melhor, então. Eu não sou muito falador. Concluiu Mike com alívio. O moço estalou a língua e o pônei começou a mover-se lentamente cruzando o penhasco para um estreito caminho. Olivia não tinha nem ideia de onde estavam nem de que direção iriam tomar. A atadura nos olhos a havia desorientado e à medida que a carreta avançava pelo caminho, o chão lhe parecia mais duro e difícil de dobrar sob seus pés; talvez isto se devesse aos cinco dias do suave balanço que tinha passado no 71

mar. Procurou a estrela polar, mas haviam entrado algumas nuvens do mar que cobriam o céu. Ao cabo de pouco tempo começaram a ver algumas cabanas ao longo do caminho. - Ali esta a estalagem, senhorita. Disse Mike, assinalando em direção a uma débil luz a meio quilômetro de distância. - A estalagem de Chale? - Sim, senhorita. Calculo que encontraremos a casa de lorde Granville à esquerda. - Vire à esquerda no cruzamento. Disse Olivia. Agora que estava perto de casa, não podia pensar com clareza. Estaria ali seu pai? Seria muito mais fácil se tivesse tempo para refletir, falar com Phoebe, antes de enfrentá-lo. Olivia sabia que teria que explicar a verdade a Phoebe. Não podia manter em segredo o que havia acontecido. Mas não contrariava nada do que havia recordado, não podia fazê-lo. Ao passar diante da porta aberta da estalagem, ouviram-se grandes gargalhadas, e Mike lançou uma olhada ofegante para a luz que convidava a entrar. Ao deixar atrás a estalagem, o caminho voltava ficou às escuras. No cruzamento, Billy tornou girar o pônei à esquerda. As cercas eram altas e o caminho, muito estreito, mas em poucos minutos chegaram à entrada de pedra que conduzia à casa de lorde Granville. A grade permanecia fechada durante a noite e Mike saltou da carreta para tocar do sino. O guarda apareceu na porta de sua guarita, com uma lanterna na mão. - Quem é? - Sou eu, Peter. Respondeu Olivia inclinando-se a um lado da carroça para que ele pudesse vê-la. - Abre a porta. - Que me pendurem se...exclamou o homem para ouvir a inconfundível voz de Olivia. Elevou a lanterna para iluminar seu rosto. – Que eu seja pendurado! repetiu, desta vez em voz alta, e se apressou para abrir o grande portão de grade. Deixou-a aberta e Billy conduziu a carroça com destreza para o interior, saudando alegremente a seu caminho. - Vamos até a porta principal? Inquiriu Billy ao ver as luzes da casa. - É obvio Bobo. Disse Mike lhe dando um suave peteleco. - O que acha que estamos fazendo aqui? -Não sei ninguém me contou nada. Murmurou Billy. –Senhorita é a única palavra que captei. - Sim, é a única coisa que tem que saber. Confirmou Mike sem notar a 72

contradição. -Na porta principal esta bom. Olivia falou precipitadamente, mesmo sem meias pensou que a porta da cozinha seria a melhor opção para entrar. Billy parou a carroça diante da porta principal. As janelas estavam iluminadas, mas a mansão tinha um ar mais bem desolado, como se a vida cotidiana tivesse ficado em suspense. Mike saltou da carroça e ofereceu educadamente a mão para Olivia, que saltou sobre o cascalho e permaneceu alguns segundos sem mover-se, duvidando. Não seria fácil representar o papel da filha pródiga voltando ao lar. Em seguida ergueu orgulhosamente o queixo e se dirigiu com passos firmes para a porta. Elevou o trinco e o golpeou com autoridade. Ouviram-se alguns passos, alguém abriu a fechadura e logo a porta se abriu de par em par. Bisset, o mordomo, apareceu recortado pela luz do abajur que estava atrás dele. Olhou atentamente Olivia como se fosse um fantasma. -Sim, Bisset, sou eu. Olivia deu um passo para a entrada. - Onde esta Lady Granville? Mas não teve necessidade de fazer mais perguntas; Phoebe descia impetuosamente pelas escadas. - Quem é? Quem é Bisset? - Perguntou. -Sou eu. Disse Olivia correndo para as escadas com uma grande necessidade de sentir o calor dos braços de sua amiga, a segurança do lar. -OH, Olivia! Onde estiveste? Estava desesperada. Phoebe a acolheu entre seus braços, sem poder evitar que lágrimas de alívio deslizassem pelas faces. - O que ocorreu? Olivia a abraçou. - Meu pai retornou? - Não, ainda não. Phoebe deu um passo atrás para olhar Olivia aos olhos. - Onde demônios se meteu? Olivia se lembrou de Mike e Billy. Recordou amargamente a ordem do pirata de recompensá-los por seu trabalho, como se ela não soubesse como tratar aos serventes. - Logo conto, Phoebe, mas tenho que agradecer a ajuda desta gente. Foram muito amáveis comigo. Fez um gesto a Mike, quem havia se afastado da porta e permanecia vacilante na penumbra atrás da luz do abajur. 73

Phoebe entendeu imediatamente o que exigia a situação. Igual a Olivia, não necessitava que ninguém a lembrasse suas obrigações como senhora da casa. Controlando mal sua impaciência, dirigiu-se para a porta. - Por favor, entrem um minuto. Bisset parecia completamente aniquilado, mas se colocou a um lado para que Mike entrasse no vestíbulo. Mike fez uma reverência espasmódica. - Mike Barker, senhora. Phoebe inclinou amavelmente a cabeça em sinal de boas-vindas e se virou para Olivia. Pegou a chave da caixa forte de Cato de seu bolso e se dirigiu para o estúdio de seu marido, com Olivia pisando seus calcanhares. - O que lhes dou? - Perguntou a Olivia abrindo o caixa forte - Não sei o que ocorreu, como posso...? - Cinco guinéus - Interrompeu Olivia. Podia perceber a impaciência na voz de sua amiga e sabia que Phoebe não poderia controlar-se muito mais tempo. Phoebe estendeu as cinco moedas de ouro a Olivia, que as segurou sem dizer uma palavra e voltou à entrada. - Mike, por favor, agradeça a sua família por tudo o que fizeram por mim. Sei que meu pai ficará muito agradecido quando retornar. Mas por favor, rogo que aceite estas moedas para sua mãe. Ajudarão a pagar os remédios. - OH, sim - Murmurou Mike, olhando fixamente as moedas brilhantes na palma da mão. Parecia uma soma generosa para contar uma história e pedir emprestada uma carroça. Mas o senhor sempre pagava seus favores e havia muitas bocas que alimentar em sua família. Mike guardou as moedas no bolso. Billy havia se aventurado até a porta de entrada e contemplava maravilhado o vestíbulo quadrado com um chão de madeira de carvalho e brilhantes adornos de bronze e estanho. Havia uma enorme chaminé em uma das paredes com a grelha cheia de talos e brotos de malmequeres cheirosos em vez de troncos de madeira. Ao fundo, uma ampla escada com um corrimão laboriosamente esculpido se curvava para cima. Billy se deu conta de que os pilares da escada tinham forma de cabeça de leão. Toda a granja de sua família cabia naquele cômodo, e, entretanto não tinha nenhum indício de que a habitação se pudesse chamar assim, desempenhasse uma função domestica. – “Isto é o que significa ser rico!”, pensou com uma mescla de inveja e desaprovação. Captou o olhar de lince do homem vestido de negro que tinha aberto a porta. Chega Billy! - Exclamou Mike girando-se bruscamente. Não havia visto o intercâmbio, mas conhecia seu irmão pequeno - Temos que ir, senhorita. Inclinou a cabeça, saudou com uma reverência Phoebe e se apressou a sair, levando a rastros Billy atrás dele. Phoebe se virou para Olivia. Por um momento sua preocupação superou sua 74

urgente necessidade de saber o que havia ocorrido. - Parece exausta- Disse. - Não me surpreende - Sorriu cansadamente Olivia. Phoebe se dirigiu com voz enérgica ao mordomo. -Bisset, peça a sua esposa que prepare um ponche e o suba aos aposentos de Lady Olivia. E logo envia alguém para que avise ao sargento Crampton. Tem que saber que Lady Olivia retornou sã e salva. Bisset se retirou com uma inclinação de cabeça e se dirigiu às dependências da cozinha com um passo um tanto menos contido que de costume. Estava ansioso por conhecer a impressão da senhora Bisset ante um acontecimento tão inesperado. Lady Olivia parecia um despropósito e ia meio vestida, pelo que havia podido entrever o escandalizado mordomo. E, entretanto, além das olheiras não parecia apresentar nenhum outro efeito adverso pelo ocorrido. Quando Bisset abandonou o cômodo, Phoebe tomou a mão de Olivia e quase a levou arrastado para cima. Uma vez no quarto de Olivia, fechou a porta e apoiou as costas nela, observando sua amiga com expressão carrancuda. - Agora, Olivia, por Deus, me conte o que aconteceu. Olivia se sentou na cama e olhou com surpresa suas pernas nuas. Na comoção que tinha criado retornar a seu entorno cotidiano, havia esquecido quão desonroso devia parecer seu traje. - Machuquei-me. C-caí pelo barranco e durante um tempo não soube quem era. Bati a cabeça. Tocou a nuca onde ainda continuava doendo de vez em quando. - O pai de Mike me encontrou e me levou a sua granja, e sua esposa cuidou de mim até que lembrei quem era... Quem sou. - Por que será que não acredito? - Perguntou Phoebe Olivia suspirou. -Porque nem tudo é verdade. Encontrou-se com o olhar indignado de sua amiga e lhe dirigiu um sorriso de desculpa. - Estava tentando contar para você uma mentira. Continuou Olivia. - Meu pai e Giles têm que acreditar. Tem que me ajudar a aperfeiçoar os detalhes. - Fizeram-te mal? “Vamos por partes”, pensou Phoebe. - Sim, isso é certo. Caí pelo barranco, fiquei inconsciente e estava cheia de feridas, mas sempre soube quem era, ainda que não soubesse o que estava acontecendo. Acho que foi à beberagem... O que me confundiu.

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- Beberagem? Uma droga? Alguém te drogou? Horrorizada, Phoebe tapou a boca com as mãos. -Era puramente medicinal - Disse Olivia lentamente. Fazia-me sentir muito confusa e a maior parte do tempo não sabia se estava acordada ou sonolenta. Mas quando ele decidiu que já não o necessitava, deixou de me dar. - Ele? Quem? Phoebe elevou as mãos em um gesto de frustração. -Olivia, quer fazer o favor de começar pelo inicio antes que eu fique louca com toda essa história. Afastou-se da porta e se aproximou à cama. Ficou quieta observando Olivia e sentiu uma pontada de medo, tão forte como as que tinham sentido durante os dias em que não sabia nada de seu paradeiro. Havia algo que não ia bem. Parecia que só havia retornado o corpo de Olivia. O espírito, a pessoa, havia mudado de um modo indefinível. - Que te aconteceu? Perguntou com um sussurro angustiado. Olivia levantou o olhar. -Não estou completamente certa. Sinto-me mudada. -Parece outra... Phoebe falou analisando a amiga sentada a sua frente. - E não respondeu a minha pergunta. - Acredita em feitiços, Phoebe? -Não, acredito em remédios e na física, no nascimento e na morte, no amanhecer e no entardecer - Disse Phoebe sem rodeios. - Não há lugar para encantamentos ou superstição... Não se lembra de o que ocorreu a Meg? Meg, a curandeira, uma amiga de Oxford, havia sido acusada de bruxaria depois da morte de um menino a quem havia tentado curar. A lembrança daquele dia horrível nunca poderia apagar da memória de Olivia e de Phoebe. - Não falo de bruxaria. Disse Olivia. - Mas acredita em... Em paixão, na... na... na atração, no mistério da atração? Phoebe não respondeu imediatamente. Sentou-se sobre o baú de cedro aos pés da cama. Como podia não acreditar nessas coisas? Ela mesma havia sido vencida pelo amor e o desejo, uma combinação devastadora, imprevisível, mortificante. Contra toda razão, contra toda lógica, de forma totalmente inesperada, uma manhã de inverno havia caído rendida de amor e de desejo aos pés do Marques de Granville. E agora vivia em função deste sentimento. - Conheceste alguém? Perguntou, resignada que Olivia fizesse rodeios para lhe contar a história. -Alguém que a atraiu para si... Alguém que... Olivia, pelo amor de Deus, do que estas falando? Se concentre, não fique enrolando. 76

- Estou tentando. Disse Olivia, mas por alguma razão lhe custava falar diretamente de Anthony. Tinha a impressão de que qualquer coisa que dissesse seria errônea, ou não lhe faria justiça ou a faria parecer uma desequilibrada enlouquecida pela paixão. Não tinha certeza por que precisava lhe fazer justiça, mas... mas, de algum modo, assim era. - Não sei seu sobrenome. Não me quis dizer. - Por que não? - Perguntou Phoebe abruptamente. - Porque ele... Bom... Não vive segundo a lei... respondeu Olivia. Logo sacudiu a cabeça desdenhosamente. - Mas agora não importa, nunca mais voltarei a vê-lo. - Pois claro que importa! Exclamou Phoebe. - Ainda não me explicou nada que faça sentido. Das três amigas, sempre tinha parecido que Olivia era a que tivesse menos probabilidades de deixar-se tentar pelas paixões da condição humana. Suas duas amigas haviam sucumbido à tentação, enquanto ela encontrava tudo o que necessitava no estudo. “até agora”, refletiu Phoebe, sempre pensando que chegava até o fundo do problema. Olivia tirou as sandálias e flexionou seus pés descalços. Não podia culpar Phoebe por estar zangada. Tampouco ela encontrava muito sentido no que dizia. A razão pela qual nunca voltaria a ver Anthony não tinha nada a ver com suas atividades ilegais. Mas possivelmente podia espraiar-se neste ponto para explicar a Phoebe o ocorrido. - Rufus era um foragido quando ele e Portia se conheceram - Declarou Phoebe. - E isso não foi nenhum um obstáculo para eles. Era certo. Rufus Decatur, Conde de Rothbury, não tinha sido sempre um modelo de respeitabilidade. - Mas Portia não é filha de meu pai. Disse Olivia com voz baixa. Portia e seu pai haviam vivido sempre às margens das rígidas convenções da sociedade. Não tinha sido até sua morte quando ela se pôs abaixo da proteção de lorde Granville. Phoebe entendia o argumento de Olivia, mas o deixou de lado no momento. - Conte-me tudo, agora mesmo! Exigiu. Olivia contou tudo menos o que Brian lhe fez na infância... Ou o que ela o havia permitido fazer. Era uma vergonha intima que nunca revelaria. -E assim, depois de finalizar suas atividades, devolveu o navio ao porto e ordenou que me trouxessem para casa. Disse com um leve encolhimento de ombros. Phoebe escutou surpreendida. Olivia sempre tinha estado tão convencida, tão segura de que nunca cairia nas artimanhas de um homem... E, entretanto havia sucumbido a essa paixão sem o mais leve protesto.

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- Possivelmente as drogas a afetaram. Sugeriu Phoebe. - Está acostumado a ocorrer com os preparados mais potentes. Sabe o que ele te deu? Olivia negou com a cabeça. Não importava a explicação que Phoebe encontrasse para seu êxtase. Invalidava tudo o que na realidade havia sentido e, contra toda lógica, ela não queria esquecê-lo. Inclusive quando tratava de não pensar nisso, quando sentia retorcer-se suas entranhas pelo que havia feito lembrar, continuava querendo manter parte da aura dourada daquela aventura. Bateram na porta e a senhora Bisset entrou com o ponche. Deixou-o na mesa e contemplou Olivia com aspecto sério. - Quer que chame o médico, Lady Granville? Lady Olivia não parece encontrar-se muito bem. - Não, deu um golpe na cabeça, mas eu mesma cuidarei dela, obrigadoreplicou Phoebe. A governanta vacilou, mas a experiência de Lady Granville com as beberagens e as ervas era bem conhecida. Sua senhora não sabia como levar uma casa, mas ninguém punha em dúvida suas outras aptidões. - Muito bem, minha Lady. - Isso é tudo, senhora Bisset. Indicou Phoebe ao ver que continuava no quarto com evidente curiosidade. - Sim, senhora. A governanta fez uma reverência e abandonou o cômodo. Olivia não pôde evitar sorrir. - Há um ano não teria sido capaz de derrotar à senhora Bisset de qualquer jeito. Nunca lhe fazia caso. - Não. Assentiu Phoebe, momentaneamente esquecida da situação de Olivia-. E agora se dirige para mim me chamando Lady Granville e não simplesmente Lady Phoebe. Creio que tenho maior ascendência sobre ela desde que nasceram os meninos. A observação fez Olivia rir, que por um momento esqueceu sua melancolia. Ainda que só um instante. - Meu pai não deve saber nada disto, Phoebe. Disse com seriedade. - Não, não, Por Deus! Exclamou Phoebe. - Não lhe faria nenhum bem. Quer voltar a ver esse homem? Perguntou lançando um sério olhar a Olivia. - Não! Olivia sacudiu a cabeça com energia. - Foi... Foi... Quase uma fantasia, um sonho. Acabou, Phoebe, e não quero pensar mais nisso. O mais importante agora é que meu pai não se inteire. Phoebe vacilou. Havia algo de falso em sua negação. Mas Olivia estava muito cansada e não se atreveu a pressioná-la mais. Phoebe lhe ofereceu o ponche.

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- Precisa dormir Olivia. Amanhã voltaremos a nos falar. - Sim - Disse Olivia abraçando sua amiga com uma urgente necessidade. Desejava que tudo fosse como antes e por um momento, enquanto se abraçavam, pensou que era possível. Phoebe saiu do quarto e Olivia se sentou na cama, bebendo o ponche. Sentiu uma sensação de bem-estar. Deixou a xícara vazia e se levantou para despir-se. Ao tirar o desvencilhado vestido notou um vulto no bolso. Pegou o lenço do pirata e quase sem pensar o escondeu sob o travesseiro, logo se enfiou na cama e dormiu. Godfrey, lorde Channing, entrou em Anchor, uma taberna no pequeno povoado de Niton, justo em cima da baía de Puckaster. Entreabriu os olhos para ver se reconhecia a alguém no meio dos azuis espirais da fumaça de cachimbo, mas unicamente distinguiu os clientes habituais com os copos na mão, fumando e quase todos em um silêncio que poderia parecer taciturno se não fosse porque os habitantes da ilha não estavam acostumados ser muito sociáveis e só falavam quando tinham alguma coisa que dizer. Ao que parecia, essa noite de sexta-feira ninguém tinha nada que comentar. Godfrey se aproximou do balcão. Apoiou-se de costas sobre os cotovelos com ar desenvolto e voltou a inspecionar o cômodo. Era um desses aldeãos antissociais que seria o comprador de sua mercadoria? Parecia improvável, já que nenhum dispunha de recursos para adquirir o gênero que Godfrey havia conseguido de maneira duvidosa. - Sim, senhor? O dono da taberna havia falado atrás dele e Godfrey se sobressaltou. Virou-se para o balcão. George o observou com um olhar malicioso. - O que deseja senhor? - Quem é o homem que me quer ver? - Ainda não sei. Disse o taberneiro. - O que deseja? - Cerveja preta. Ao que parecia não tinha alternativa teria que seguir com o jogo. O taberneiro elevou a garrafa forrada de couro e encheu a jarra. - Três xelins. - Desde quando? - Perguntou Godfrey. - Sempre custa um xelim14 e meio. - Subiu o preço. Há escassez de fornecimentos. Disse o taberneiro de forma 14

xelim é a vigésima parte da libra esterlina.

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expressiva. - Não sou eu quem encomenda a cerveja. Gritou Godfrey. O taberneiro se encolheu de ombros. - Ainda temos algumas provisões de brandy. Godfrey quase não pôde controlar sua raiva. A insolência daquele homem era intolerável e, entretanto não encontrou uma resposta inteligente. - Estou esperando o navio. Disse enterrando o nariz no copo. - Um pouco tarde, não? - Maldito seja! Já sabe que sei! Apertou os dedos no jarro. O homem soube que estava desesperado, ele viu que se pudesse levar a mercadoria sairia facilmente daquele lugar. Mas agora o Godfrey viu uma saída, uma solução permanente para suas necessidades econômicas. E então... Então o taberneiro de Anchor e outros tipos teriam que tomar cuidado com ele. - Então talvez tenha que comprar provisões em outra parte, senhor. Disse o taberneiro. Mas necessito que me devolva urgentemente meu dinheiro, é obvio. Godfrey ignorou o comentário. Deliberadamente, virou-se de costas e continuou examinando a clientela da taberna. Antes morto que voltar para pedir ajuda a George. - O homem que está esperando, esta sentado naquele canto. Disse George finalmente quebrando o silêncio. - Diria que faz mais de uma hora que o espera. Godfrey se encolheu de ombros com um gesto de aparente indiferença. Sabia que teria que recompensá-lo por essa informação; George tinha um preço. Mas se o negócio desta noite fosse bem, não lhe custaria pagá-lo. Olhou fixamente o homem que George havia indicado e imediatamente se sentiu desiludido. Um cliente com ar de rufião, vestido grosseiramente como um pescador, com um bigode mirrado e gordurento e o rosto enxuto. - Ali? Perguntou com incredulidade, procurando finalmente uma resposta. O homem não parecia nem sequer poder pagar sua bebida. - Sim. - Como se chama? O recompensarei bem se me disser seu nome. - Não estou acostumado a responder a tudo o que me pergunta-respondeu o taberneiro. Godfrey se afastou do balcão, segurou o copo e se dirigiu para seu possível cliente. - Posso lhe convidar a outra taça? - Ofereceu. O homem elevou o olhar. Tinha os olhos injetados em sangue e ao sorrir deixou a exposto dentes repulsivamente pretos. - Que Deus o benza senhor. É muito amável. Tomarei um gole de brandy. Diga 80

a George que se assegure de que seja o da garrafa especial, não essa beberagem que tenta dar aos que não conhecem algo melhor, que esses não somos nós, é obvio. Lançou um olhar lascivo a seu interlocutor e lhe pareceu uma piscada conspiratória. Godfrey estremeceu, mas se conteve. Calculava o que George lhe cobraria por uma dose de seu melhor brandy. Entretanto, com aparente bom humor, solicitou a bebida ao taberneiro. - Duas taças de brandy, George. O melhor que tiver. Disse elevando a voz. - Sente-se, senhor - Falou o homem indicando o tamborete. - Não se pode fazer negócios de pé. Godfrey arrastou o tamborete com o pé e se sentou. A serragem que cobria o chão estava encharcada de cerveja e de outras coisas que Godfrey preferia não averiguar. Um cão sarnento mastigava um osso a seus pés e grunhiu com o pêlo arrepiado quando ele afastou o tamborete de algo particularmente desagradável e se aproximou muito ao osso. O taberneiro deu um chute no animal quando foi colocar sobre a mesa as duas taças de brandy. O cão se agachou com o osso entre dentes. - Um xelim a taça, senhor. - É um assalto a mão armada! - Não há estoque, senhor. Respondeu o proprietário retomando a mesma melodia de momentos atrás. - Aqui tem George. Disse seu companheiro rebuscando no bolso e deixando um par de moedas de prata sobre a mesa. Mas logo nos preencha a taça sem encargo. O taberneiro pegou as moedas sorrindo satisfatoriamente ao ver o dinheiro. Era um sorriso cordial, uma expressão que Godfrey não havia visto nunca em seu rosto. - De acordo, amigo. O outro homem concordou e provou do brandy. Sacudiu a cabeça com aprovação e o taberneiro regressou ao balcão. - Agora, jovem, falemos de negócios. O que me oferece? Godfrey bebeu um gole de brandy, tentando pensar o que era o que lhe perturbava nesse desanimado personagem. Não tinha nenhum ar autoritário, mas, entretanto, sentado ali com uma casaca imunda e descosturada, dava a impressão de controlar tudo o que acontecia a seu redor. - Sedas... Algumas pinturas. Disse Godfrey dando golpezinhos com o dedo sobre a mesa cheia de mancha. Veludos e bordados dos Países Baixos. - A seda e a água salgada não são uma boa combinação. Pelo que sei, a mercadoria procede de um naufrágio provocado. Algo brilhou intermitentemente na profundidade dos olhos cinzas. Um brilho 81

frio e desagradável. - Estavam metidas em cofres. Disse Godfrey, evitando o tom defensivo, mas incapaz de evitá-lo. Viajavam protegidas. O outro homem sacudiu a cabeça. - E creio que foram tiradas dali a toda pressa. Seu olhar voltou a emitir um brilho e sua voz tinha um toque quase sarcástico. De novo, Godfrey conteve sua irritação. No momento se sentia impotente, obrigado a aguentar os insultos que lhe lançasse essa criatura nojenta e de baixo calão. Mas tudo mudaria. - É o negócio. Disse friamente. - Um negócio que suponho que já conhece. Seu interlocutor não respondeu. Voltou a beber um gole de brandy e dirigiu o olhar ao balcão da taberna, elevando uma mão para George, quem assentiu e se aproximou com uma garrafa de brandy para preencher as taças. - Algo mais, além disso? Perguntou ao homem quando George saiu. - Têm chá? Prata? Cristais? Porcelana? Era um navio mercante, não? - Sim. Disse Godfrey aguçando o olhar. Boa mercadoria. Tivemos sorte. - Sem dúvida. Murmurou o outro homem. Uma lástima que a sorte de alguns seja a desgraça de outros. Era mais do que estava disposto a aguentar. Godfrey fez gesto de levantar do tamborete ante a afronta. Logo voltou a sentar-se e encolheu de ombros. - Estou disposto a compartilhar minha boa sorte, senão não estaria aqui. - Certo, certo, jovem. Disse o homem com um tom repentinamente conciliador, quase lisonjeador, de modo que Godfrey começou a sentir-se confuso, como se estivesse de pé sobre areias movediças. Prefiro dar uma olhada na mercadoria. Continuou o homem. - Tenho por regra não comprar nada sem vê-lo antes. - Quantas peças esta interessado em comprar? Godfrey esqueceu a confusão. O coração pulsava cada vez mais depressa ao ver o caminho aberto. O outro homem encolheu de ombros. - Depende do que veja. Só compro o que eu gosto. Se tiver artigos que eu goste, posso ficar com muitos. Como disse, depende. -Toda a remessa... Balbuciou Godfrey tentando conter sua alegria. -Para toda a remessa. Disse com decisão. - Peço mil. O outro homem se limitou a elevar uma sobrancelha. -Se valer a pena, comprarei. Godfrey se deteve um momento para pensar. Agora já não estava tão seguro. 82

Esse homem de aspecto miserável podia ter realmente os meios para comprar toda a mercadoria? O medo percorreu a coluna vertebral. Por acaso se tratava de uma armadilha? - Não se preocupe jovem senhor, não o trairei. Sua voz era suave, pausada, e seu olhar, subitamente claro e, ante a surpresa de Godfrey, inclusive juvenil. E de novo teve a sensação de que não era o que parecia. - Quando deseja ver a mercadoria? Perguntou obrigando-se a falar de forma firme e segura. -Amanhã a meia-noite. Nos encontraremos na baía de Puckaster. O homem se levantou, empurrando a um lado o tamborete. Ficou de pé durante um minuto, com as mãos embainhadas nos bolsos de suas calças cheias de remendos, olhando fixamente Godfrey. -Não esperarei mais de um quarto de hora. Venha sem companhia. Eu também estarei só. - Como sei que posso confiar em você? Perguntou Godfrey. O homem se encolheu de ombros. -Do mesmo modo que eu confio em você, suponho. Logo se virou e saiu da estalagem. Godfrey o viu partir. Parecia andar curvado, mas não podia dissimular sua altura nem esconder a fortaleza flexível e elástica de seu corpo esbelto. Quem era? O que era? Não o que parecia a primeira vista, isso é obvio. A expressão de Godfrey escureceu. Odiava mistérios e este era um perigoso quebra-cabeça. Se não sabia com quem estava tratando, se o subestimava, podia lhe levar a ruína. Devia controlar sua impaciência e negociar com muito cuidado. Elevou a vista e captou o olhar do taberneiro, que o estava observando com um gesto perverso, como se lesse seus pensamentos. Deliberadamente, Godfrey deixou de lado o olhar de desafio do taberneiro antes de sair a grandes passos da taberna. Seu cavalo estava no estábulo da parte de atrás. O recuperou e cavalgou até o castelo de Carisbrooke com a mente agitada. Aquela pequena olhada o havia convencido de que aquele homem, apesar de sua aparência pouco prometedora e por muito desagradável e insolente que fosse, seria capaz de conseguir o dinheiro necessário. Era a única coisa que lhe importava. Os guardas do portão o detiveram quando subia pela rampa que conduzia à entrada arqueada do castelo. Abriram os portões e o deixaram entrar. Dirigiu-se diretamente a seus aposentos na residência do governador. Seu quarto ficava ao lado do quarto sob vigilância em que se alojava o rei. As três tentativas de fuga do monarca haviam esgotado a paciência do governador, do coronel Hammond, e do Parlamento. Sua Majestade tinha sido 83

deslocada para perto de seus aposentos na casa de Condestable era um lugar mais seguro e mais fácil de vigiar. Entretanto, seguia recebendo a corte em uma grande sala situada junto a seu antigo quarto. Godfrey, lorde Channing, era um dos secretários do governador. Um cargo que, ainda que não lhe reportasse muito dinheiro, oferecia-lhe prestígio, um alojamento descente e a manutenção de seus cavalos, um gasto considerável para que qualquer nobre que se prezasse. Era um descendente de uma antiga família orgulhosa de seu status, mas sem um xelim nos cofres, totalmente arruinada. Entretanto, tais favores, não eram suficientes para um jovem tão ambicioso como Godfrey. Estava aflito pelas dívidas. O estilo de vida que considerava próprio de sua estirpe e posição era ruinoso. Só a roupa custava uma pequena fortuna, e embora o contrabando e os naufrágios provocados aliviasse em certa medida sua situação financeira, os negócios e seu próprio desespero o haviam deixado a mercê de homens como o taberneiro de Anchor e clientes potenciais como o vilão ao qual tinha tido que aplacar essa noite. Quando entrou em seu quarto, ainda fervia o sangue pela insolência que havia tido que suportar. - Parece que viu o diabo. observou Brian Morse. Estava sentado na mesa diante da chaminé com um pergaminho nas mãos. Moveu a vela para iluminar o rosto de Godfrey. - O negócio não prosperou? Godfrey se encolheu de ombros e encheu uma taça de estanho com o vinho da jarra forrada de couro que estava sobre a mesa. Deu-se conta com acrimônia de que em sua ausência a quantidade de líquido havia diminuído. Sem dúvida, Brian Morse tinha bebido um gole a sua saúde. - O homem é um rufião - Observou. Brian riu entre dentes. - Todos nós somos, meu amigo? Não o somos? Perguntou bebendo um trago de sua própria taça. - Estava redigindo uma carta para seu futuro sogro. Sinalizou o pergaminho que estava sobre a mesa. - Necessita de palavras justas para captar sua atenção. E quando lhe apresentar a minha irmã menor, deve ter algo para lhe oferecer. Conhecer os poetas gregos pode ser de grande ajuda... Saber jogar xadrez... Deleitar-se com o teoremas de Pitágoras. Elevou uma sobrancelha de modo inquisitivo Godfrey se sentou em um tamborete ao lado do fogo, estendendo suas botas para a chaminé. - Sou um homem de ação. Afirmou com um toque de complacência. -Não tenho estudos... não tive tempo. - Pois é melhor que se dedique a isso. Disse Brian com aspereza - Porque lhes 84

asseguro , esta preciosidade não se apaixonará por um homem que presuma ser ignorante. Godfrey franziu o cenho. - Se há algo que detesto é uma intelectual muito faladora. - Esta é muito rica e bastante apetitosa, pelo que posso lembrar. Brian moveu os lábios e desenhou um sorriso evocativo. - Tem o nariz um pouco largo, é o nariz dos Granville, e gagueja, principalmente quando está eufórica. Mas um homem se acostuma a tudo com os incentivos adequados. Godfrey o olhou ironicamente à luz da vela. - É obvio, quando estiver casado com a herdeira, não me esquecerei de você. - Bom, suponho que não esperava que o ajudasse em troca de nada -disse Brian estalando a língua com reprovação - Irá me compensar muito bem. Necessito uma módica renda e por outro lado tenho uma conta pendente. Ver a filha de Cato casada com um homem de sua... como o diria?... de sua indefinida moralidade, servirá a ambos os propósitos. Brian se pôs de pé apoiando as mãos no extremo da mesa. Segurou a bengala. - Leia a carta, faça as mudanças que considere necessárias, mas conserve a essência. Confie em mim, conheço bem os Granville. Escreva de sua mão e faça com que a enviem. - Minha família e minha linhagem são dignos de uma Granville. Disse Godfrey categoricamente. - OH, sim, moço, não duvide disso. Mas você, amigo, não a merece –Brian sorriu enquanto caminhava puxando da perna para a saída da porta. - Vou partir. Não voltarei a aparecer pelo Castelo. Eu não gostaria de me encontrar com meu padrasto. Ele pensa que estou morto e enterrado em Rotterdam. Estarei em Ventnor, na estalagem do Gull. De lá arquitetarei nosso plano nos mínimos detalhes. Godfrey estava muito zangado para se despedir de seu convidado. Tinha estado a ponto de enviar Brian para o inferno. Mas havia oferecido um pacto benéfico, e nem sempre podia escolher seus sócios. Adam deu uma olhada no rosto de Anthony quando o patrão saltou do bote ao convés do Wind Dancer, mas decidiu morder a língua. Anthony estava zangado. Não era seu costume descarregar o mau humor em seus homens, mas todos sabiam manter-se afastados dele quando seus olhos tinham uma expressão tão fria e distante como aquela noite. - Brandy, Adam - Disse brevemente quando passou ao seu lado ao dirigir-se para a escada. - Quer comer algo?

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-Não. Adam encolheu de ombros e foi procurar a garrafa. Anthony entrou no camarote e ficou de pé durante um minuto diante da pálida luz da lua que entrava pela janela aberta. Deu um profundo suspiro e pensou sentir o perfume de Olivia. Estúpido! Tolices sentimentais! Arrancou o gorro de um tapa e o jogou sobre o banco, baixou a janela. Aproximou-se do espelho e com uma careta tirou o bigode. A dor enchia os olhos de lágrimas mas dissipava suas emoções. Molhou um pedaço de tecido na água e em seguida na vasilha de sal que Adam havia preparado e limpou a tintura preta dos dentes. Começava a parecer com si mesmo. Tirou o ruge com água e sabão. Estava se despindo quando Adam entrou com uma garrafa de brandy. - Sam diz que marcou um encontro para amanhã. - Certo. Levarei Sam e algum outro homem para me cobrir às costas. Ainda que não creio que esse bastardo tente algo manhã; ele precisa de vender a mercadoria. Esta desesperado como um rato faminto, embora tente ocultá-lo. Colocou o brandy em um copo e o bebeu de um gole, em seguida o encheu de novo. - Deixou um gosto desagradável na boca, não é? - Como um esgoto. Preciso saber quem é. - Certamente George de Anchor saberá. - Duvido. Esta desesperado e é um safado, sem vergonha, porém não é nem um idiota. Anthony fez uma pausa e encolheu os olhos. - Perigoso sim, tolo não. Murmurou. Não divulgará seu nome por toda a ilha. Apostaria qualquer coisa que tem algo que ver com o castelo. Existe algo em seu aspecto que lembra um cortesão. Anthony fez uma careta com os lábios. - Então encontrará com ele - Disse Adam com resolução, recolhendo a roupa suja. - Quando visitar a corte. - Um incentivo a mais para me apresentar a velada que o rei vai oferecer no dia de amanhã. Declarou Anthony - Agora vá, Adam, estou igual um cão raivoso Adam abandonou o cômodo imediatamente e sem mediar palavra. Anthony se sentou no banco baixou a janela e contemplou a lua prateada sobre a água negra do canal. - Malditas mulheres!

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Capítulo 7 - É perfeita - Disse Phoebe com verdadeira admiração, elevando a vista depois de uma detalhada inspeção no trabalho artesanal que Antony realizou no ferimento de Olivia. Só três pontos e a ferida se fechou em uma fina linha. Terá uma cicatriz, mas nem se notará. Perguntou-lhe que tipo de linha usou. Ele comentou sobre isso? Perguntou com a curiosidade de um herbanário15. - Não, nem eu o perguntei. Olivia se afastou de Phoebe recostando-se sobre as costas. Ficou deitada com o braço sobre os olhos, tentando controlar a pontada de emoção enquanto a lembrança intensa, voluptuosamente sensual, inundava cada poro de sua pele. Phoebe a olhou franzindo o cenho. - Disse que não queria voltar a vê-lo. - E não quero. Foi um interlúdio mágico, Phoebe. Só devia durar até que eu retornasse para casa. Já se quebrou o feitiço. - Não acredito. Observou Phoebe secamente. Olivia se sentou, com os olhos em chamas. - Estou c-confusa, Phoebe. Não sei como nem por que ocorreu, o único que sei é que nunca voltará a ocorrer. Poderíamos deixar de falar disso? Uma batida na porta de entrada, soou violento e apressado, reverberando por toda a casa. - Meu pai? Disse Olivia. - Sim. Phoebe se dirigiu apressadamente para a porta do quarto. - Necessito de tempo, Phoebe - Disse Olivia imperativamente - Não deixe que suba ao meu quarto. Diga... Diga a ele que estou me vestindo e que d-descerei para vê-lo. - Primeiro o levarei para ver os meninos – Phoebe falou enquanto saía com toda pressa. Correu pelas escadas, subindo a saia por cima dos tornozelos. A voz enérgica de Cato parecia encher toda a casa. - Cato... querido. Phoebe deu um tropeção no ultimo degrau e caiu sobre os braços espectadores de seu marido, que tinha previsto que tropeçaria ao ver quão depressa descia pelas escadas. 15

Aquele que cultiva e vende plantas esp. ervas medicinais;

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- Olivia esta sã e salva - Disse quando pôde recuperar o fôlego. - Giles me disse isso – Respondeu olhando para a figura robusta do sargento que estava parado ao seu lado. Irei vê-la imediatamente. Está lá em cima? - Está se vestindo para descer. Acredito que esta se banhando; não pode vê-la imediatamente. Mentiu Phoebe. - Está bem, Cato. acrescentou quando viu que ele parecia aborrecido. -Então, esperarei disse ele. Parte de sua preocupação se dissipou ao contemplar sua esposa. Inclinou o rosto e a beijou na boca. - E como esta meu descabelado Robin? perguntou, dando um passo atrás sem deixar de tocá-la no rosto. - Senti sua falta...- Sussurrou ela com os olhos brilhantes. E continuou respondendo a pergunta de seu marido. Charles cresceu tanto desde que você partiu que nem o reconhecerá. - Só estive fora por duas semanas. Protestou Cato. - OH, você precisa de ver, ele come muito. Cato voltou a pensar que aquele momento era mais importante que qualquer coisa. - Acredita que Olivia se encontre bem para me acompanhar na visita aos Barker? Giles averiguou onde vivem. -Se não montar a cavalo... - Disse Phoebe pensando na ferida que Olivia tinha na coxa. - Creio que não haverá nenhum problema. Cato franziu o cenho. - Parece-me estranho que Olivia não se lembre onde vivem. - Um golpe na cabeça pode causar uma grande confusão. Respondeu Phoebe. Quando ela se lembrou de quem era, não acredito que pensasse em outra coisa se não em voltar para casa. E acho que naquele momento ela deveria estar mais preocupada com isso do que com qualquer outra coisa. É normal ter essa reação, ainda mais quando acontece este tipo de acidente. Cato refletiu sobre isso, enquanto olhava distraidamente para os cabelos de Phoebe eles tinham se desprendido de suas forquilhas16, como sempre, e usava a gola de renda do vestido dobrado na nuca. Enquanto falava arrumou-lhe a gola sem pensá-lo. - O médico a viu? Phoebe elevou o queixo. -Acho que tenho o talento necessário neste campo, senhor. Ou não o pensa assim? 16

Neste caso forquilha seria nos dias atuais os palitos que são usados no cabelo.

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-Não me atreveria a lhe contrariar. Disse ele com ar risonho movendo as mãos para descarregar sua responsabilidade. - Não deseja ver os meninos enquanto Olivia se veste? - O bebê está acordado? -Se não o estiver, logo o estará. Vou buscá-los. Cato, sorrindo, observou como ela corria escada abaixo. Os bebês eram um mistério para ele. Estava satisfeito com Nicholas, o menino começava aos quatorze meses dar seus primeiros passos e já balbuciava algumas palavras, mas continuava preocupado com a fragilidade do pequeno Charles, o quinto filho de Cato, que tinha nascido pouco depois que se mudaram para a ilha. As mães de seus outros filhos nunca haviam tentado captar seu interesse pelos progressos diários deles. Em troca, Phoebe tinha outro caráter, uma maneira singular de ver o mundo. Desde o começo, havia deixado claro que tinha que implicar-se na educação de seus filhos, gostando ou não. Cato se deu conta de que, geralmente, gostava de saber sobre a rotina diária de seus filhos. - Iremos à casa dos Baker, meu lorde? -Dentro de um momento, Giles. Depois que eu falar com Lady Olivia. Não há pressa. Cato elevou uma sobrancelha. -Não... não, senhor – Giles falou desconsoladamente. Não gosto de perder o tempo. - Comestes senhor? - Perguntou Bisset, que havia permanecido vacilante ao fundo da sala e agora se aproximava. - Não, cavalgamos desde o amanhecer. Mas comerei simplesmente um pouco de pão com queijo em meu estúdio... e uma cerveja, por favor. O mordomo fez uma reverência e Cato se retirou para seu santuário. Um montão de papéis lacrados o aguardavam em sua escrivaninha, esperando sua volta. Segurou-os e deu uma olhada. Reconhecia a letra de quase todos. Uma missiva de Cromwell, outra do governador Hammond, outra do diretor do castelo de Yarmouth. Entretanto, a última estava escrita com uma letra que não reconhecia. A virou. O selo do lacre levava a marca de um brasão que não lhe era familiar. Pegou o canivete justo no momento em que a porta se abriu. - Aqui está, meu lorde. Phoebe entrou trazendo nos braços um bebê rosado e roliço que chupava os punhos. Com sua mão livre agarrava um outro menino com um pouco mais de um ano, quase dois anos com calças curtas. O pequeno conde de Grafton olhou solenemente seu pai por um instante como se não soubesse o que fazer, logo soltou a mão de sua mãe e avançou com um alegre risinho e com os braços levantados. Cato o pegou em seus braços e o balanço no ar. O menino deu um chiado alegre e inclinou a cabeça para que seu pai pudesse o beijar na bochecha. 89

- Charles estava completamente acordado e, como seu irmão, estava de muito bom humor. Phoebe acariciou a cabeça do bebê. - Cumprimente seu pai, pequeno. Cato deixou no chão o maior e herdeiro e pegou o bebe, tal como se esperava dele. O bebe sacudida de cabeça entre seus braços e custou há Cato um minuto reconhecer que o estava pegando de um modo natural. Phoebe observava com atenção. Tinha proposto a Cato que aprendesse a tratar os bebês e mordeu a língua para não dar nenhum conselho mal-humorado. - Olivia diz que descerá em seguida. Cato sacudiu a cabeça. O bebê havia agarrado o dedo de seu pai e o surpreendeu com a sua força e determinação. Estendeu a mão para a escrivaninha e deu a Nicholas seu enorme selo. O menino se sentou e se pôs a examiná-lo com atenção. Phoebe sorriu e olhou com curiosidade as cartas que estavam sobre a mesa. - Algo importante? - Ainda não as abri. Não reconheço a letra de uma delas. Tentou liberar seu dedo, mas Charles o segurou com força. - Foi um combate duro? - Mais pesado que qualquer outra coisa. Os partidários do rei não se rendem facilmente. Temo que haverá outra tentativa de resgatar a Sua Majestade na ilha. Olhou por cima da cabeça do menino e sorriu ligeiramente. - O que significa que terei que ficar por aqui para trabalhar junto com o coronel Hammond. Todos os monárquicos da ilha estão sob suspeita. Se desejarem, você e Olivia podem visitar a corte no castelo. O coronel e sua esposa nos enviaram um convite do mais cordial para assistir a uma velada17 esta noite. Talvez as divirta. Phoebe enrugou o nariz. Não tinha tempo nem interesse pelas trivialidades da vida cortesã e sabia que Olivia se aborrecia com os jogos de salão tanto quanto ela. - Creio que participará um poeta - Acrescentou Cato vendo sua expressão. Conhecia sua aversão pelas reuniões formais. - Talvez o achem divertido, embora com franqueza não creio que o senhor Johnson seja um poeta muito bom. Mas poderiam falar de métrica e dos múltiplos atrativos da prosa e da rima. Seu sorriso era até certo ponto adulador. “Este passatempo poderia tirar Olivia de sua melancolia”, pensou Phoebe, ainda que só fosse para irritá-la. 17

O mesmo que sarau, uma reunião onde há leituras de poemas, peças de teatro e canções.

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- Sim, é obvio. Uma velada não será tanto sacrifício. Cato se pôs a rir. - É muito complacente, minha esposa. Disse-lhe dando o menino - Depois que ver Olivia, iremos visitar os Barker e assim poderei expressar minha gratidão como é devido; em seguida poderemos esquecer este desgraçado assunto. Como se fosse tão fácil! Olivia tinha um longo caminho que percorrer, dissesse o que dissesse, antes de poder esquecer seu encontro com o pirata. Phoebe estendeu a mão para ajudar Nicholas a ficar em pé. Ele resistiu a largar o selo e Cato amavelmente o pegou e ofereceu em troca uma aborrecida pluma de ganso, que Nicholas contemplou imediatamente com aprovação. - Convencerei Olivia de que nos acompanhe até ao castelo. Assegurar-me-ei de que se sinta com forças para sair. Cato voltou a suas cartas quando a porta se fechou atrás de sua esposa e seus filhos. Rasgou o lacre do selo que não havia reconhecido e abriu o pergaminho. Godfrey, lorde Channing secretário do coronel Hammond, apresenta seus elogios a lorde Granville. Sua posição como oficial da casa real lhe proporcionou certa informação sobre Sua Majestade que acredita que a lorde Granville interessará. Lorde Channing lhe roga encarecidamente a sua senhoria que lhe conceda uma entrevista no lugar e o momento que melhor lhe convenha. Estava assinada com várias rubricas ao estilo da antiga corte. Cato franziu o cenho tentando lembrar se conhecia esse homem. Os recentes combates haviam mantido o Marques afastado do castelo de Carisbrooke nas últimas semanas, pelo que era possível não conhecia. Mas o nome lhe resultava familiar. “Os Channing eram uma velha e respeitável família com imóveis em Wiltshire”, pensou Cato. Mas por que este homem que tinha informação sobre o rei não se comunicava diretamente ao governador Hammond? Uma questão inquietante e que valia a pena averiguar. Alguém bateu à porta e Cato deixou a carta sobre a mesa. Foi abrir a porta com prontidão. Contemplou sua filha com consternação. Ainda que sempre estivesse pálida, hoje tinha um aspecto fantasmagórico. Parecia frágil e gasta em excesso. A rodeou com o braço e a atraiu para si, lhe acariciando suavemente o cabelo. - Pobre de minha filha. Deve ter passado muito mal. Vem, senta-se. Arrastou uma cadeira até ao seu lado e se sentou sobre a escrivaninha, examinando-a com inquietação. - Pode me explicar o que ocorreu? Ou estas muito cansada? - Não, não, é obvio que não. 91

Olivia sorriu vacilante antes de embarcar-se na história que havia idealizado com Phoebe. - Phoebe me disse que quer que te acompanhe quando for visitá-los -Disse ao final de seu relato - Creio que, se você tiver com forças, seria uma gentileza - Disse Cato. - São pessoas simples - Repôs Olivia-. De poucas palavras. Esperava que tivessem recebido instruções de Anthony para não falar mais do que o imprescindível. - Mas de espírito generoso. observou Cato. - Que sorte para todos que a encontraram. Sacudiu a cabeça sem tirar os olhos do rosto pálido de Olivia. - Fiquei louco de preocupação desde que recebi a mensagem de Phoebe. - Sinto muito. - Disse Olivia inadequadamente. - Querida, não é culpa tua que caísse por um precipício. Inclinou-se e lhe acariciou a bochecha com a ponta do dedo, em seguida se virou para ouvir que se abria a porta para dar lugar a Bisset com uma bandeja de comida e cerveja. Aliviada de poder escapar do interrogatório de seu pai por um instante, Olivia se pôs a arrumar um vaso de rosas amarelas no manto da chaminé enquanto atrás dela Bisset se apressava a dispor a comida de seu senhor. Não queria ir de visita casa dos Barker; era uma lembrança muito próxima, muito repentina. Conheciam Anthony. Com um sorriso, lembrou que ele havia lhe contado que a mãe de Mike tinha tantos filhos que nunca tinha sido capaz de contar todos. Certamente Anthony tinha passado muito tempo com eles. Conheciam-no bem. Mas se fosse poderia evitar perguntas comprometedoras, assegurar de que, para seu pai, o incidente estava fechado para sempre. - Quando quer ir, senhor? - Perguntou ela quando Bisset abandonou o cômodo. - Assim que terminar de comer. Não demorarei muito; não é um lanche muito apetitoso, mas não almocei. Disse Cato cortando o pão e o queijo-. Phoebe diz que não pode montar a cavalo, direi a Giles que sele um pônei. Bebeu um gole de cerveja. -Vou procurar o chapéu e o casaco e estarei lá em baixo em dez minutos. Cato assentiu com a boca cheia e Olivia o deixou desfrutar de seu almoço improvisado. Subiu a seu quarto, apertando o passo diante da porta aberta do quarto dos meninos onde Phoebe falava com uma das babás. Não queria falar dessa visita com Phoebe. Ainda não. Com o chapéu de palha na mão, dirigiu-se para a janela de seu quarto, da qual dava pra ver o jardim e, ao longe, o mar, para os Needles. O sol estava em seu ponto 92

mais alto, destacando o brilho azul e transparente do mar. Mas, entretanto, não era um azul tão imponente como o do mar aberto. Os Barker deviam saber onde estava ancorado o Wind Dancer. Mike trabalhava no navio. De repente foi invadida por uma sensação parecida com a que havia tido quando estava com os olhos enfaixados com a gravata do pirata. Quando se despediram com frieza, apesar de tudo, ela havia se sentido afligida por um instante ante a consciência física de seu corpo, por tudo o que haviam compartilhado. De repente, pareceu-lhe que podia cheirá-lo e senti-lo, ouvir sua voz, perceber o brilho de seu olhar, a curva de sua boca. O ventre revolveu quando, de repente, sucumbiu ao poder da lembrança física. Sentiu uma pontada de dor na ferida da coxa. A granja dos Barker ficava isolada, retirada ao final de uma garganta que se utilizava para o gado. O núcleo habitado mais próximo eram uma série de casa de campo disseminadas em uma pequena aldeia pela que haviam passado por Volta de uns dez minutos, antes de girar pelo caminho que conduzia à casa. Olivia, sentada junto à Giles, que levava as rédeas do pônei, pensou que essa solidão era o mais adequado para um pirata que quisesse ir e vir livremente em segredo. Olhou atentamente Cato que cavalgava junto à carroça. Ele captou seu olhar e perguntou ansiosamente: - Muito cansada? - Não, absolutamente, senhor. É agradável estar ao ar livre. Ele sorriu, tranquilizado, e Olivia voltou a consumir-se em seus pensamentos. A granja estava animada. Os meninos se derrubavam sobre o lodaçal coberto de palha e brincavam com as galinhas e com uma ninhada de cachorrinhos. Dois cães amarelados correram a toda pressa para a carreta, ladrando freneticamente. - Quietos! Fora! Uma mulher saiu da casa e perseguiu os cães com o pau de uma vassoura. Fugiram uivando para o celeiro. - Senhora Barker? - Inquiriu Cato amavelmente, sem descer do cavalo no momento. - Sim, senhor. Observou-o cautelosamente antes de fixar-se na carroça, no condutor e na passageira. Olivia se fez encarregada da situação e saltou da carreta. Avançou para ela, lhe estendendo a mão. - Senhora Barker, é meu pai, lorde Granville. Veio lhe agradecer pessoalmente sua amabilidade.

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Ela entendeu imediatamente. - Não era preciso. Disse a mulher, tomando a mão que lhe tinha oferecido Olivia. Era uma mulher de generoso contorno e olhos radiantes e inteligentes que destacavam como pequenas e brilhantes groselhas no rosto roliço. - Era o que teria feito qualquer bom cristão. Cato apeou do cavalo. - Estou em dívida com você, boa mulher. - Não, senhor. Sua dívida está mais que saldada. respondeu fazendo uma reverência. - Não esperava uma recompensa, mas não posso dizer não já que se é esse seu desejo. Inclinou a cabeça para Giles, que permanecia na carroça do pônei. - Bom dia, senhor. - Bom dia, boa mulher. - Posso lhes oferecer um copo de vinho de sabugueiro, Senhor? Não havia nenhum tom de servilismo na pergunta da senhora Baker ao oferecer a hospitalidade de sua granja ao Marques de Granville. - Obrigado. Aceitou Cato com um sorriso, consciente de que sua negativa teria constituído em uma grave ofensa. - A jovem conhece o caminho. Disse de modo casual, fazendo um gesto a Olivia para que a seguisse. Uma grande cozinha quadrada ocupava o primeiro andar da granja. A luz estava acesa, as panelas ferviam alegremente a fogo lento e um intenso aroma de pão recém feito saía do forno situado entre os tijolos da chaminé. A estadia estava tão quente quanto o forno. Parecia haver meninos por toda parte, bebês engatiando, meninos com calças curtas que davam seus primeiros passos e meninas maiores que ajudavam nas tarefas doméstica. - Têm uma família numerosa, boa mulher. Observou Cato, tentando não tropeçar com uma menina que ao pareceria tinha caído adormecida no chão. - OH, sim, senhor. Meu marido, o senhor Barker, gosta de poder dispor de mãos suficientes que se encarreguem de tudo na granja e na pesca sem ter que contratar ninguém de fora. Disse placidamente, enquanto tirava uma jarra do armário. - Está aqui? Eu gostaria de lhe cumprimentar e agradecer pessoalmente o que fez por minha filha. Disse Cato apoiando-se no canto de uma mesa de pinheiro maciço. O apoio parecia um pouco inseguro mas era preferível a ficar de pé e tropeçar com um corpo suave. - Não, senhor. Está fora desde a alvorada até o anoitecer, chova ou faça sol. Chegará a qualquer momento com os potes de caranguejos do mar. Isso é o que estava fazendo quando encontrou sua filha sob o penhasco.

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Deixou dois copos de estanho sobre a mesa e os encheu de vinho. Estendeu um copo a Olivia. - Isto lhe dará força, querida. Disse suavemente. Olivia segurou a taça com um sorriso agradecido. A mãe de Mike tinha controlado a situação e não havia nada que pudesse levantar as suspeitas de lorde Granville. Olivia notou um puxão nos joelhos. Um decidido bebê estava tentando ficar de pé com a ajuda de sua saia. Deixou a taça na mesa e se inclinou para lhe dar a mão. O bebe se levantou com um ruído de alegria. Ela se ajoelhou sobre o chão de pedra lhe pegando as mãos para evitar sua queda, quando viu algo que a fez estremecer. Um menino pequeno estava brincando com um navio de madeira a alguns passados dela. Parecia uma replica exata do Wind Dancer. O bebê se segurou a sua mão lhe pedindo claramente que o ajudasse a andar, e ela satisfez seus desejos guiando seus vacilantes passos para onde estava brincando seu irmão. Ouviu como Cato falava com a senhora Barker interessando-se pela granja e a pesca de seu marido. Nenhum dos dois se fixava nela. - O que é? - Perguntou sentando-se no chão junto ao menino com o bebê no colo. - É uma fragata. Informou o menino burlando de sua ignorância. Estou içando as velas. Tirou das finas cordas que serviam de cabos e içou a gávea. - Veja? - Quem lhe fez isso? Um de seus irmãos? - Nosso Mike .Disse ele. Está embarcado em um navio parecido. - OH! assentiu Olivia. -Tem nome seu navio? - Chama-se Dancer. - Que nome tão bonito. Para onde navega? - Cruza o mar até a França, geralmente. - Está ancorado na ilha? - Sim. O menino começou a girar o leme. - Em um minuto vou fazê-lo navegar pelo lago de patos. - Aí é onde está ancorado? - Em um lago de patos? – Inquiriu o moço sem poder conter a risada - Está louca? - Bom, não sei muito sobre navios - Disse Olivia. Posso ver como o faz navegar? 95

Olivia deixou o bebê no chão e seguiu o menino para fora da cozinha atravessando a granja para dirigir-se ao lago. O pequeno se pôs de cócoras na beira da água, mordendo o lábio inferior, e empurrou suavemente seu precioso brinquedo para que se deslizasse sobre a água de cor verde. Uma suave brisa encheu as velas e o pequeno Wind Dancer se afastou até que um pato insensível se pôs em seu caminho. O menino adentrou na água, levantando as pernas das calças, deu um descuidado tapinha sobre o bico e voltou a deixar que o navio seguisse seu caminho. - Onde está ancorado, então? - Perguntou Olivia quando o menino voltava a ficar a seu lado. - Em um canal. Um canal. Claro. Os penhascos da ilha estavam salpicados de profundas ravinas que os ilhéus denominavam «canais». Eram estreitas línguas de água que desapareciam sob o penhasco e em muitos casos não podiam ser vistos desde mar ou do topo. Tinha ouvido que os contrabandistas os utilizavam para descarregar seu tesouro em segredo. E agora lembrava da sensação de falta de ar e a franja prateada de céu que era o único que tinha conseguido ver do convés do Wind Dancer quando haviam ancorado. A fragata do pirata estava tempo de trabalho em um canal. Um canal próximo de onde ela havia caído para o abismo. - Quando papai não necessita do Mike envia uma mensagem ao senhor para lhe informar que pode ir ao Dancer. Outras vezes o senhor envia uma mensagem ao nosso Mike. Às vezes vai durante um mês ou mais -Acrescentou o menino, pegando um pau e empurrando seu barquinho para afastá-lo de uma planta que flutuava no lago. Olivia estava familiarizada com a maneira de pensar dos meninos e compreendia que para ele brinquedo era tão real quanto o verdadeiro navio. - Como se enviam as mensagens? - Ouviu-se dizer. -Deixam-nos em Catherine's Down. Na capela, conforme ouvi dizer. Há uma bandeira. Uma rajada de vento fez derrubar o barquinho e o pequeno perdeu interesse na conversa. Entrou de novo no lago para resgatar sua embarcação. Parecia ter esquecido a presença de Olivia, Mas sem dúvida tinha bom ouvido, observou ela. Em uma família tão prodigaliza e em uma casa tão pequena não era de se estranhar que um menino preparado ouvisse coisas que não devesse, coisas cuja importância desconhecia. Olivia voltou à casa, onde Cato tinha apurado sua taça e estava preparado para partir. Ao entrar, ficou momentaneamente cegada pela escuridão do interior. - Mike construiu um bonito navio de madeira. Observou - Estava olhando quanto seu irmão o fazia navegar pelo lago. - Sim, trabalha bem com as mãos, nosso Mike. Respondeu a senhora Barker, 96

endurecendo seu olhar ao colocar os olhos em Olivia, que permanecia na soleira da porta. - Ajuda seu pai a pescar? Inquiriu Cato. - De vez em quando. Mas no geral trabalha como mão de obra nos grandes pesqueiros que saem de Ventnor. Dirigiu-se para a porta. Seus convidados estavam a ponto de partir e ela tinha trabalho a fazer. Cato saiu para o curral da granja e Olivia seguiu seus passos. O menino continuava brincando com seu navio no lago. Olivia deu um salto e subiu na carroça enquanto Cato montava seu cavalo. - Obrigado de novo por sua amabilidade, senhora. - De nada, senhorita. A senhora Barker não sorriu e lançou um furtivo olhar para onde brincava seu filho. - Está tudo bem. Disse Olivia em um sussurro. Não há nada que temer. Parecia que a senhora Barker ia dizer algo, mas Cato voltou a expressar seu agradecimento e se viu obrigada a girar-se para o Marques. Abandonaram a granja, quase sem pronunciar palavra durante o caminho de volta para Chale. Olivia respondia de vez em quando às observações de seu pai, mas estava compenetrada em seus próprios pensamentos. Então o Wind Dancer estava ancorado em um canal. O mais provável é que não teria nenhum caminho que o conduzisse até lá do topo do penhasco, dessa maneira poderia manter oculto o navio. Olivia sabia que os ancoradouros da ilha adentravam na terra e que, face à erosão do terreno onde ocorrera sua queda, era quase impossível acessar diretamente a essas passagens do topo. Agora sabia como enviar uma mensagem a Anthony. - Phoebe comentou algo sobre a possibilidade de participar a uma recepção do rei esta noite no castelo? Perguntou Cato ao ajudá-la a descer da carroça diante da porta principal. - Gostaria de participar. Mas podemos deixá-lo para outra ocasião, é obvio, se está muito cansada. Mas não será necessário que fiquemos muito tempo. - Phoebe mencionou isso. É claro que os acompanharei - Disse sorrindo. Para ela significava um esforço mas parecia fazer feliz Cato - Acho que prometeram a participação de um poeta, senhor. - Temo que não terá seu talento. Disse Cato. Mas é tudo o que posso lhe oferecer no momento. - Phoebe se contentará com qualquer poeta disponível. Disse Olivia fiel à verdade. Cato então começou a rir e se virou para Giles para lhe fazer uma pergunta.

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Olivia entrou na casa. Agora sabia como fazer contato com o senhor de Wind Dancer. Mas queria sabê-lo? Pra que tentar saber seu paradeiro? É obvio que não. Não tinha nenhuma intenção de voltar a ver o homem que havia se despedido dela de uma modo tão frio e indiferente, que havia se negado a escutar suas vacilantes e inarticuladas desculpas, e por outro lado ele tinha deixado claro que não queria voltar a vê-la. Simplesmente possuía uma informação útil. Sua única satisfação era saber que o senhor do Wind Dancer não gostaria que ela a tivesse em seu poder.

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Capítulo 8 - Este vestido lhe cai muito bem - Observou Phoebe quando, ao cair a tarde, Olivia entrou no salão embelezada com um vestido de seda laranja debruado com rendas negras que ressaltavam a perfeição de seu cabelo negro e seu rosto pálido. Phoebe sempre sentia uma pontada de inveja diante do infalível sexto sentido de Olivia para vestir-se, ela nunca parecia deter-se a pensar em sua roupa nem em seu aspecto, mas sempre sabia exatamente o que melhor lhe sentava. Phoebe, que tinha um gosto um pouco irregular, confiava firmemente nos conselhos de sua amiga nesses mistérios. Olivia esboçou um esvaído sorriso ao ouvir o elogio. O vestido tinha sido um presente de seu pai para seu décimo sétimo aniversário, mas havia tido poucas oportunidades de usá-lo nos dezoito meses seguintes. Uma velada no castelo de Carisbrooke e uma audiência com o rei, embora estivesse prisioneiro, parecia uma ocasião ideal. - Tem certeza que quer sair esta noite? Perguntou Cato olhando para a filha que ainda demonstrava estar debilitada de alguma forma. - Talvez seria melhor deixar para outra noite. - Não, senhor. Tenho vontade de conhecer o rei. Olivia respondeu-lhe. Não era certo, mas não podia suportar a ideia de passar uma noite sozinha absorta na melancolia. - A diversão é um bom remédio. Disse Phoebe. Ela mesma havia tentado persuadir Olivia para que ficassem em casa porém sem êxito. Não teremos que ficar mais de uma hora, não é? Cato negou com a cabeça. - Não. Vamos, então. Havia enganchado uma récua18 de cavalos rápidos à carruagem ligeira que Cato reservava para Phoebe, já que sua esposa não era uma amazona perita. Por sorte, nos meses de verão, o caminho ficava seco e as distâncias na ilha eram suficientemente curtas para que a viagem em carruagem fosse uma alternativa perfeitamente razoável ao cavalo. Havia uma distância de sete milhas até Carisbrooke e, com aqueles cavalos, a viagem iria durar pouco mais de uma hora. Olivia sentiu o primeiro indício de interesse ao subir pela rampa que conduzia à porta da entrada. Não havia visitado o castelo nos meses que haviam passado na ilha, embora seus grandes muros no alto da colina nos subúrbios de Newport eram visíveis das colinas pelas quais estavam acostumadas a passear ela e Phoebe. Descenderam da carruagem após o acolhimento do guarda e foram escoltadas 18

Tropa.

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para o pátio principal. A residência do governador era uma casa de campo isabelina situada no centro de uma praça forte. «O castelo se eleva sobre um aterro e soldou por toda parte, mas não tem nada que ver com o castelo de meu pai em Yorkshire», pensou Olivia. Tinha um ar muito mais amável, ainda que seus muros e recintos fortificados o tornavam inexpugnável e sua presença dominava toda a ilha. Cruzaram o pátio para a porta que dava ao grande salão, e o coronel Hammond se apressou em ir a seu encontro para saudá-los. A suas costas, se abanava uma mulher com um vestido de cor amarela indiscretamente chamativa que parecia dar um tintura esverdeado a seu pálido rosto. Tinha um rosto anguloso e um nariz bicudo, e seu leve sorriso deixou à exposta uma boca quase desdentada. Cato apresentou sua mulher e a sua filha ao governador e a sua esposa. O escrutínio da senhora Hammond foi cortante e não especialmente ameno. - Estamos muito contentes de lhes saudar, Lady Granville. Seu marido de vez em quando aparece por aqui, mas até o momento não tínhamos tido a oportunidade de lhe conhecer. Não havia nenhuma possibilidade de interpretar mal a recriminação. Phoebe torceu o gesto de repente. - Fiquei muito ocupada com meu trabalho e meus filhos, senhora. - Ah, uma mãe devota. Que formoso. A senhora Hammond dirigiu sua atenção a Olivia. - Lady Olivia, confio em que possamos lhe oferecer uma companhia divertida esta noite. Deve se aborrecer muito, isolada naquela casa em... em Chale, não é? Tão longe de nossa pequena comunidade. - Ao c-contrario, senhora. Sorriu Olivia. Passo a maior parte do tempo na companhia dos grandes filósofos. Não há nada comparável a esse estímulo. O suspiro de Cato foi praticamente inaudível. Sua esposa e sua filha esfolariam à senhora Hammond na primeira oportunidade. Phoebe já estava se preparando para devolver a investida. - Gostaria de apresentar Lady Granville e Lady Olivia a Sua Majestade, senhora Hammond. Disse suavemente. - Seriam tão amável de...? Fez uma reverência à senhora, ignorando o olhar indignado de Phoebe ao ser interrompida de um modo tão cavalheiresco. - É obvio. A atitude de Lady Hammond melhorou visivelmente diante desta solicitação amável. - Por aqui, Lady Granville... Lady Olivia. Verei se o rei pode lhes receber. Afastou-se por entre a multidão, afastando as pessoas a seu passo com um floreio de seu leque.

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- Velha presunçosa desdentada - Murmurou Phoebe - Qualquer dia tropeçará em sua própria petulância. Olivia sorriu abertamente. Começava a sentir-se melhor. O rei Carlos estava sentado diante da chaminé, onde apesar da boa temperatura da noite de verão estava com o fogo aceso. Tinha a cabeça apoiada no alto do encosto de uma cadeira e sustentava uma taça de vinho na mão enquanto escutava com aparente bom humor o homem que estava falando com ele. Entretanto, percebeu a presença da senhora Hammond com evidente celeridade. - Ah, senhora; que velada mais agradável. Desviou o olhar por volta das duas jovens que acompanhavam à esposa do governador. - Não acredito ter tido o prazer... A senhora Hammond fez as apresentações. Olivia e Phoebe fizeram uma reverência. O rei parecia cansado mas esboçou um sorriso excepcionalmente afável. - Em épocas mais felizes, lorde Granville era um de meus mais fiéis servidores. disse com um suspiro. Mas as coisas nos fugiram do controle. Me expliquem como se encontram na ilha. Parece agradável, estava acostumado a passear a cavalo mas... Voltou a suspirar. Seus primeiros dias de reclusão, o coronel Hammond lhe havia dado certa liberdade, mas após de suas desafortunadas tentativas de fuga, tinha revogado todos seus privilégios. - Muito agradável, Sir - Disse Phoebe, disposta a cumprir com seu dever. Olivia não ouvia nada. Estava observando fixamente um homem que estava do outro lado da sala, um cavalheiro cuja cabeça se sobressaía por cima da multidão. O pirata estava vestido com sedas de cor dourada; usava o cabelo loiro solto e encaracolado até os ombros, e uma pérola negra cravada no alfinete que lhe caíam até a gola. A multidão se afastou a seu redor e pôde vê-lo com clareza. O cinto onde guardava a espada era de pele finamente trabalhada e o punho estava incrustada de pedras preciosas. Não era a mesma espada que havia utilizado para se apoderar do Dona Elena. A súbita lembrança fez palpitar com força seu coração. Observou-o atentamente, incapaz de lhe tirar os olhos de cima. O que estava fazendo ali? Moveu a mão enquanto conversava e ela viu o grande anel de ônix em seu dedo anelar. Aquelas mãos longas e finas, tão habilidosas na vela, tão fortes no leme de seu navio, tão frias e hábeis sobre sua pele nua. OH, Meu Deus, como isso podia estar acontecendo com ela? O rubor lhe acentuou nas bochechas e em seguida empalideceu. Sua pele coçava como se tivesse disparado em uma nuvem de mosquitos. 101

Uma súbita dor no tornozelo a fez voltar para a realidade. Estava na presença do rei e não podia ignorar Sua Soberana Majestade como se fosse um rapaz de quadra. - Minha enteada, Lady Olivia, acredita que a ilha a ajuda a concentrar-se em seus estudos, Majestade. Disse Phoebe voltando a dar um chute em Olivia sem que ninguém notasse. Olivia tremia como uma folha e parecia não estar em seu juízo perfeito. - Estudos, Lady Olivia? Perguntou o monarca languidamente. O que estuda? - Mm... mm... O rei se pôs a rir com amabilidade. - Sua madrasta não é imparcial, pelo que vejo. O rigor do estudo acadêmico não é para jovenzinhas. Preferem dedicar-se a atividades mais leves, o sei bem. Olivia se viu obrigada a responder. - É obvio, Sir. C-como todas as mulheres, tenho menor capacidade mental. As complexidades do pensamento analítico não são próprias de meu sexo. - É certo que as mulheres não podem compreender os aspectos mais complexos da lógica e do discurso - Respondeu o rei, olhando distraidamente a seu redor. Era evidente que havia perdido interesse na conversa. Phoebe e Olivia fizeram uma reverência e se retiraram. - O que te aconteceu? - Perguntou Phoebe. -Vamos ao tocador19... Preciso ir ao tocador... urgentemente. Olivia abriu caminho entre a ruidosa e fedorenta multidão sem ter nem ideia do que fazia enquanto mergulhava por entre essa multidão cujo perfume se confundia com o aroma de suor e a sebo. O calor da chaminé fazia com que lhe rodasse a cabeça. Ouviu a risada de Anthony. Parecia atrai-la para o outro lado do cômodo. Tudo o que rodeava o homem que estava em pé entre a multidão enchia a enorme sala ,elegantemente vestido, lembrava-lhe a graça e a atitude despreocupada que tanto a havia cativado em alto mar. E agora quase não lembrava a raiva e a dor de sua partida. Enquanto tentava abrir caminho para ir a seu encontro, ele girou ligeiramente a cabeça e a olhou diretamente. Seus olhos cinzas resplandeciam como o mar de verão, brilhando de alegria e, por um instante, perguntou-se por que havia sentido medo e repulsão ao ir ao seu encontro. Anthony havia se precavido de sua presença desde o instante em que ela havia entrado no salão. Teria preferido evitar um encontro que, não obstante, havia previsto que cedo ou tarde seria inevitável. Era natural que a filha de lorde Granville 19

Recinto do século XVI onde as mulheres poderiam retocar sua maquiagens, arrumar suas perucas, seus corpetes sem a visão masculina por perto.

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participasse de um ato social do governador. E aqui estava, com seu deslumbrante vestido laranja, e ele tinha de encontrar a melhor maneira de tratar a situação. Olivia ia a seu encontro com um propósito definido, mas tinha que detê-la. Não podia aproximar-se e reconhecê-lo em publico naquela sala cheia de inimigos, espiões e rumores. “Seria muito esperar que me ignorasse”, supôs Anthony. Embora depois de havê-lo desprezado daquele modo, não era uma esperança muito descabelada. Está velada era sua primeira visita formal a corte. Precisava falar pessoalmente com o rei agora que havia concretizado seus planos para o resgate e a única forma de acessar o monarca era frequentando a corte. Seu papel era singelo, tinha que simular ser um dom ninguém, um escudeiro com delírios de grandeza, um janota 20 coquete, mas bem bobo. Havia muitos como ele que revoavam ao redor do rei tirando partido do triunfo alheio. Era um papel que Anthony sabia interpretar com perfeição. O rei havia sido advertido da situação e Anthony esperava que alguém o apresentasse. E Olivia Granville estava a ponto de complicar as coisas grandemente. Prestou toda sua atenção à dama que estava a seu lado, lhe dirigindo um sorriso tímido mas incitante. - Permite-me encher sua taça de malvasia21, senhora? - Obrigado, senhor, parece que já bebi a que tinha nas mãos. Sua conversa é tão interessante que não tinha me dado conta. sorriu estupidamente, incapaz de pensar baixou o influxo de seus olhos quentes e alegres e seu falso sorriso. Anthony pegou a taça, roçando ligeiramente seus dedos. A dama se estremeceu. Anthony se virou de costas antes que Olivia o alcançasse. Olivia recuperou a compostura. Tinha que andar com cuidado, seguir seu exemplo, valer do engano. Quem quer que fosse aqui, no grande salão da mansão do governador na presença do rei, não era o senhor do Wind Dancer. Olhou ao seu redor e viu que Phoebe, estava de pé onde ela a tinha deixado, observando-a com uma expressão desconcertada. Olivia não parecia dirigir-se às escadas que conduziam ao tocador, mas lhe dirigiu um sorriso tranquilizador. Anthony estava trocando a taça vazia por outra cheia em um mostrador situado em frente a chaminé. Entre ele e Olivia se interpunham três homens que pareciam perdidos em uma conversa. Olivia passou por seu lado. Quando Anthony se virou para retornar ao seu lugar, ela olhou ao seu redor como se procurasse a alguém na multidão, tropeçou de lado e deu de bruços com o pirata. A taça que sustentava em sua mão se derramou sobre o vestido de Olivia. 20

que ou quem chama a atenção pela elegância em se vestir.

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casta de videira de uvas doces, de que existe certo número de subvariedades.

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- OH, olhe que você fez ! - Exclamou ela lhe lançando um olhar convincente Ficará manchado, com certeza. - OH, me perdoe. Imploro que me perdoe, senhora. Deixou a taça no mostrador que estava a suas costas, estalando a língua. - Que estupidez a minha. Não sei como pôde acontecer. Pegou um lenço do bolso e o estendeu com gesto exagerado. - Me deixe que a seque... OH, que estupidez a minha... Não é próprio de mim. Aprecio ser... OH, que vestido mais formoso... que elegância... Estou envergonhado, senhora. Absolutamente envergonhado. Esfregou suavemente o vestido com o lenço. - Esperemos que o vinho branco não manche. Olivia escutou com incredulidade a fileira de palavras, os suspiros e os risinhos afogadas que as acompanhavam. Não parecia ele mesmo. Inclusive sua voz tinha um tom mais agudo. - Não se preocupe, senhor. Disse ela, puxando sua saia para que ele deixasse de esfregar infrutiferamente o lenço na mancha de umidade. - OH, sim que me preocupo. Espero que não tenha estragado. Lamentou ele. Arruinar um vestido tão encantador seria quase um crime. - Imploro que não se mortifique, senhor. Disse Olivia com desespero. Se soubesse que sua artimanha teria o efeito de convertê-lo em um bobo falador, nunca a teria usado. Finalmente ele se levantou e por um instante tropeçou com seus olhos. A ruidosa multidão pareceu desvanecer-se e ambos permaneceram unidos, sozinhos. Logo Anthony esboçou uma florida reverência. - Edward Caxton a seu serviço, senhora. Disse-lhe. - Nunca me senti tão envergonhado. Como posso reparar minha estupidez? Os olhos de Olivia emitiram um brilho. Assim na presença do rei, Anthony havia se convertido em Edward. - Rogo-lhe isso, me diga como posso reparar meu engano. Insistiu. - Se pudesse lhe tirar o vestido, poderia... OH, mas claro, aqui seria impossível... Olivia sacudiu a cabeça. - Chega! Murmurou. - Protesto, senhora, feriste-me no mais vivo - Respondeu solenemente, levando a mão ao coração. – Nega-me a obter uma reparação por minha estupidez. Olivia não sabia se chorava ou se ria. - Confie em mim, senhor, não foi nada. - OH, que amável por sua parte. suspirou ostensivamente. - Mas sei por 104

experiência própria que estas negativas costumam querer dizer o contrário. Recordo que algo parecido me aconteceu faz alguns dias. Ele a contemplou com um sorriso fátuo e um brilho irônico no olhar. Olivia abriu seu leque com uma sacudida de pulso. Sua voz era fria e uniforme. - Participa frequentemente às recepções do rei, senhor Caxton? - Quando tenho que fechar algum negócio - Respondeu com o mesmo sorriso e o mesmo olhar em seus olhos. “Negócios? É obvio, negócios de mercenário.” Olivia lembrou o cinismo com que havia confessado que, vendia seus serviços ao melhor licitante. Talvez aqui o rei era o melhor licitante? - E seu trabalho exige que pareça idiota? - Perguntou ela em voz baixa atrás do leque. O brilho dos olhos de Anthony se intensificou. - Senhora, protesto. Não é muito amável de sua parte – Murmurou - Mas posso suportar qualquer dardo envenenado se proceder do arco de uma dama tão encantadora. - Olivia... Olivia, está tudo bem? Dói-te a cabeça? A vi dar um tropeção. Phoebe estava de repente a seu lado, contemplando o desconhecido que estava falando com uma altivez mal perceptível. Anthony lhe dedicou outro insípido sorriso e retomou suas lamentações. - Que idiotice a minha... Temo-me que tudo foi por minha culpa. Que estupidez. Estava... - Phoebe, me permita que te apresente ao senhor Edward Caxton –Interrompeu Olivia com firmeza - Senhor C-Caxton, Lady Granville. Anthony fez uma reverência tão exagerada que quase encostou os joelhos com a cabeça. - Lady Granville, encantado. Pena que tenhamos tido que nos conhecer nestas circunstâncias. Fez um gesto pesaroso para assinalar o vestido de Olivia. Phoebe lhe devolveu a reverência automaticamente mas lançou um olhar inquisitivo a Olivia. Algo estava acontecendo. Olivia estava a ponto de perder a calma e Phoebe não entendia que um tal senhor Caxton, com seu néscio sorriso, fosse o causador. Era inegável que parecia atraente, com sua figura imponente e seu cabelo dourado, mas Olivia não tinha muita paciência com os néscios e este parecia um tolo de marca maior. “Sem dúvida, a agitação de Olivia se devia a ter que aguentar semelhante companhia”, raciocinou Phoebe. Tinha tido que ir urgentemente ao tocador e havia sido interrompida por esse idiota. Impunha-se o resgate. - Estava procurando um poeta que animasse um pouco a velada. Meu marido 105

me prometeu que estaria aqui, mas ainda não o encontrei. Talvez poderiam me indicar se o viu, senhor? Anthony inclinou a cabeça e esboçou um sorriso desconcertado. - Como diz, querida senhora? -Phoebe é muito boa poetisa. Explicou Olivia friamente - Meu pai a fez vir com a promessa de que haveria um poeta com o qual podia falar. Embora já lhe advertiu que não é muito bom. - Um mau poeta é melhor que nada. Declarou Phoebe, olhando a seu redor como se o homem que procurava tivesse que usar uma marca de identificação. - Aquele homem ali, que usa um casaco negro um pouco gasto e o cabelo murcho. Tem um ar místico e absorto. Poderia ser ele? Anthony seguiu a direção que lhe assinalava o leque. - Acredito que é lorde Buxton, senhora. Está mais interessado na cria de gado que na poesia. Na realidade, surpreender-me-ia se soubesse escrever seu próprio nome. Riu de sua própria observação. - Parece estar muito informado, senhor. Conhecem todos os convidados? Perguntou Olivia, agitando languidamente o leque. - Não vejo nenhum poeta, senhora. Respondeu Anthony com outro irritante sorriso. - Direi a meu marido que encontre o poeta imediatamente - Afirmou Phoebe Vem, Olivia? Estou certa de que o senhor Caxton nos dispensará. Lançou um frio olhar ao cavalheiro em questão. - Tenho que ir ao tocador - Disse Olivia - Dirigia-me para lá quando... quando... tropecei com o senhor C-Caxton. Reunirei-me contigo em um instante. Phoebe olhou Olivia com preocupação. - Encontra-se bem? Quer que a acompanhe? Phoebe vacilou, mas Olivia não parecia encontrar-se mal. Cumprimentou o senhor Caxton inclinando a cabeça e partiu com passos resolvidos na procura de seu marido. - O que está fazendo aqui? Quem é você? - Perguntou Olivia em um murmúrio. - Edward Caxton encantado em conhecê-la, Lady Olivia. Talvez alguma tarde poderia ir visitar Lady Granville? - Como mequetrefe ou como pirata? - Perguntou Olivia em um murmúrio irado - Senhor Caxton ou senhor do Wind Dancer? - Talvez deveria esperar para ver o que acontece - Murmurou ele, lhe dando as costas quando um oficial da casa real apareceu a suas costas. 106

- Sua Majestade ficará encantado de lhe conceder audiência, senhor Caxton. Anthony fez uma reverência a Olivia, com o olhar zombador. - Espero voltar a vê-la senhora. Em seguida se foi, abrindo caminho entre a multidão a grandes pernadas com o cabelo brilhante sob a luz do abajur. Olivia lançou um olhar a seu redor, tentando guardar a compostura e dar a entender que havia ficado conversando normalmente. A senhora Hammond apareceu diante dela. - Lady Olivia, não sabia que conhecia o senhor Caxton. Seu rosto anguloso escondia olhos afiados e cortantes. - Não, é obvio que não o conhecia - Repôs Olivia - Foi um acidente... derramou sua taça de vinho sobre meu vestido. Tenho que me retirar e tentar limpar a mancha. - Minha criada a ajudará. A esposa do governador segurou Olivia pelo cotovelo e a acompanhou até uma pequena escada ao fundo da sala. - O senhor Caxton vive na ilha, senhora? Perguntou Olivia aparentando indiferença. - Aloja-se em Newport, mas entendi que sua família vive em New Forest, perto do canal de Solent. - Está ao serviço do rei? A senhora Hammond se pôs rígida. - Todos estamos a serviço do rei, Lady Olivia. - Sim, c-claro. Olivia lançou um olhar afligido a seu vestido. - Espero que a mancha saia. Incomodar-me-ia muito estragar este vestido, é um de meus preferidos. Subindo as escadas...? Obrigado, senhora Hammond. Não é necessário que me acompanhem. Escapou da mão que lhe oprimia o cotovelo, recolheu os babados da saia e subiu quase correndo pelas escadas. Ao sair do tocador ao cabo de vinte minutos, voltava a sentir-se dona da situação. Deteve-se no alto das escadas de onde podia ver toda a sala. O rei seguia sentado em sua cadeira rodeado de impacientes cortesãos, mas não havia nem rastro de Anthony. E tampouco via Phoebe. Entretanto, seu pai estava conversando com um jovem de cabelo escuro e tez morena, vestido com um traje de seda, casaca escarlate e faixa. O cabelo encaracolado e brilhante chegava até os ombros e, ao falar, apoiava a mão no punho de sua espada. Pareciam estar engajados na conversa. Onde estava Phoebe? De repente, Olivia se sentiu fora do lugar, como se todos 107

se esquecessem dela e ninguém mais a interessasse. Logo viu Phoebe apoiada no soleira de uma janela ao outro lado da sala. Estava falando animadamente com um homem baixo, mas bem gordo, com um aspecto corado e jovial. Não tinha pinta de poeta mas parecia atrair a atenção de Phoebe. Olivia foi a seu encontro. -Estranha-me que não tenham comentado suas impressões com o coronel Hammond, lorde Channing - Estava dizendo Cato. Godfrey roçou os lábios com a língua em um gesto nervoso. -Não quero faltar a respeito para o governador, meu senhor, mas ele está mais interessado em feitos do que em impressões ou opiniões. E pensei que você estaria mais disposto a escutar minhas observações sobre as atitudes do rei. Cato sacudiu a cabeça lentamente. Era certo. - Dizem que o rei parece transtornado? - Sim... e tem mudanças de humor. Um dia parece abatido, já no dia seguinte está cheio de otimismo. explicava Godfrey ao espectador. -Estou convencido de que recebe alguma informação que nós não conhecemos. Quando os escoceses cruzaram a fronteira, ficou especialmente animado, e sei de boa fonte que não foi o coronel Hammond quem o informou sobre os movimentos da tropa. - Mmm... Cato sacudiu a cabeça de novo. Fazia tempo que suspeitava que o rei recebia informação sobre os partidários da monarquia em terra firme. - Informarei ao coronel Hammond sobre suas impressões. Lançou um olhar ao jovem, perguntando-se o que era que lhe desagradava nele. Talvez tivesse os olhos muito juntos. Mas não lhe podia culpar por isso. - Parece que gozo do favor do rei. Disse Godfrey. - Se pudesse me aproximar dele, poderia descobrir dados mais concretos. Se o sugerir ao coronel que minha tarefa deverá concentrar-se no monarca... Cato refletiu sobre a questão. - Acredita que seria um bom espião? Perguntou. -Acredito sim. Eu seria um excelente espião, meu senhor - Disse Godfrey convencido. Brian Morse havia comentado que lorde Granville não tinha tempo para bobagens. Gostava de pessoas que iam direto ao ponto e falavam e atuavam com decisão, e não tinha tempo para a falsa modéstia. - Falarei com o coronel Hammond. Disse Cato com um tom decidido. Enquanto isso, mantenha os olhos e os ouvidos bem abertos... - Não duvide, meu lorde. Godfrey vacilou antes de esboçar uma tentativa de sorriso. - Perguntava-me, meu lorde, se... 108

- Sim o que? - Se poderia me apresentar a Lady Olivia. Disse Godfrey de uma só vez. Eu gostaria de conhecê-la, senhor. Cato acariciou o queixo. - Parece uma exigência razoável. Observou. Olhou a seu redor. - Ah, está ali com Lady Granville. Abriu caminho para ela, com Godfrey lhe pisando os calcanhares. Godfrey havia ficado observando Olivia durante toda a velada. Brian Morse tinha razão. Era uma peça suculenta, sem dúvida, apesar do nariz dos Granville. Uma herdeira como ela faria muito mais em sua cama que solucionar seus problemas econômicos. Tinha causado uma boa impressão em Granville, e com a ajuda de Brian poderia seguir lhe proporcionando pequenas intrigas com os quais conseguiria ganhar a confiança do Marques. Somente tinha que conquistar sua filha. Não seria muito difícil. Godfrey sabia que era considerado um cavalheiro elegante e encantador, bem vestido e respeitavelmente atraente. A herdeira dos Granville não parecia estar comprometida. Seria uma campanha fácil. Seguiu o Marques com passos decididos. Phoebe não notou sua chegada. sentia-se feliz com seu poeta. Embora preferia versos mais floreados e sentimentais, podia falar das complexidades da rima e o método com qualquer um, e por volta de semanas desejava manter este tipo de conversa. Nos primeiros tempos que se passaram em Hampton Court, quando o rei havia se alojado ali com a autorização do Parlamento, alguns dos melhores poetas do país haviam visitado o palácio, mas em Carisbrooke escasseavam este tipo de delicadezas. Olivia se mantinha à margem da conversa; simplesmente se sentia afortunada por ter encontrado um lugar discreto no qual não se via obrigada a conversar com um desconhecido. Percorreu a sala com o olhar temendo e desejando ver reaparecer Anthony. Para ele, era perigoso ficar ali. A que estava brincando? Caxton era seu verdadeiro nome ou só um apelido? chamava-se Anthony ou Edward? Era certo que tinha um imóvel terra adentro? tinha se referido a uma tia... uma tia que lhe bordava as camisolas. Parecia tão absurdo, tão improvável. - Olivia, minha querida... Olivia se sobressaltou ao ouvir como a voz de seu pai interrompia suas reflexões. Ele sorriu. - Assustei-a? - OH, estava muito longe daqui. Disse ela, dando uma olhada ao indivíduo que acompanhava Cato. - Permita-me que a apresente a Godfrey, lorde Channing.- Disse Cato. 109

Olivia sentiu um primeiro arrepiou de repulsão. Soltou rapidamente a mão que ele oferecia, ainda assim fez a reverência adequada e deu as respostas que se esperavam dela. O que havia nesse homem? Havia algo... uma lembrança... que a enchia de terror. Eram seus olhos. Tão frios e verdes, inclusive quando sorria. Frios e calculadores. Tinha visto esse olhar anteriormente, não eram os mesmos olhos, mas sim a mesma expressão. E sua boca, essa leve inclinação... Era uma boca cruel, e a conhecia desde há muito tempo. - Fiquei toda a velada esperando que alguém me fizesse a honra de nos apresentar. Dizia Godfrey, ainda sorrindo. Tenha a certeza que numa tarde dessas irei lhe visitar... - Sim... Bom, deveria comentar isso a minha madrasta - Disse Olivia assinalando Phoebe, que havia dado as costas a seu poeta ao ver aproximar-se seu marido. - Lorde Channing, não é? - Disse Phoebe com um sorriso. Deu um olhar a Olivia e se sentiu preocupada imediatamente. Olivia estava mais pálida que nunca. - Não há uma vida social muito intensa em Chale - Disse Phoebe com tom indeciso. - OH, não espero diversão, senhora. garantiu-lhe Godfrey – Contentarei-me desfrutando de sua companhia. Phoebe olhou com surpresa seu marido, que se limitou a encolher os ombros. -É obvio, ficaremos encantados de recebê-lo, senhor. Disse com educação. - Até então, Lady Olivia, Lady Granville, senhor... Godfrey fez uma reverência e se retirou sentindo-se satisfeito por seus progressos. Brian. Lembrava a Brian. A sala parecia dar voltas e Olivia levou a mão à garganta. - Cato, devemos partir.- Disse Phoebe rapidamente. - Olivia ficou muito tempo de pé. -Sim, é obvio. Pedirei que nos tragam a carruagem. - Que aconteceu? disse Phoebe quando seu marido desapareceu - Parece que viu um fantasma. “Como se o tivesse visto”, pensou Olivia. Brian Morse estava morto, assassinado pela espada de lorde Granville. Phoebe tinha visto como aconteceu. Godfrey Channing não tinha culpa de ser levemente parecido, mas para ela qualquer um que tivesse aqueles olhos e aquela boca personificava a maldade. Olivia suspirou profundamente. Era ridículo e desatinado pensar assim. Não teria feito está associação antes daquela noite de amor que havia passado com Anthony tivesse desenterrando aquele pesadelo. Devia voltar a enterrá-la, senão o veneno mancharia tudo. Já havia feito suficiente mal. 110

- A carruagem está preparada - Reapareceu Cato - Encontra-se melhor Olivia? - Sim, muito melhor. Só foi um instante de debilidade. Respondeu Olivia, tomando seu pai pelo braço livre. - Por qual razão lorde Channing tinha tanto interesse em nos conhecer? Perguntou Phoebe a Cato agarrada a seu outro braço. Não pretenderá Olivia, não é? - Talvez tenha essa ideia - Disse Cato enquanto chegavam à carruagem no pátio. - Não! - Gritou alarmada Olivia. Não me interessa esse pretendente. Virou-se para olhar seu pai enquanto a ajudava a subir à carruagem, com seus olhos profundos e escuros baixou a luz das tochas. - Então não tem mais o que dizer. Disse Cato tranquilamente - Com sua idade, minha querida, terei que te tirar muitos pretendentes de você. É você quem tem que decidir como tratá-los. - Eu te ajudarei. Disse Phoebe, apoiando sua mão no braço de Olivia - Não há com que preocupar-se. -Não, claro. Concordou Cato, montando a cavalo ao lado da carruagem. É natural que tenha pretendentes, Olivia. Olivia se deixou cair sobre as almofadas de pele. Não estava sendo razoável; claro que podia rechaçar a petição de mão de lorde Channing, se era isso o que o pretendia. Mas certamente acrescentava outra preocupação a uma situação já complicada.

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Capítulo 9 Brian Morse se apoiou na parede em seu canto habitual em Anchor. esfregou a coxa e ao mover o braço a profunda ferida debaixo das costelas pareceu expandir-se e palpitar. A dor não o abandonava. Nem a dor nem a sensação de derrota. Estava nas profundas rugas de seu rosto, em sua deficiência, no sofrimento que sempre o acompanhava. Ninguém havia esperado que sobrevivesse depois que a espada de Cato o tivesse abatido, e ele mesmo teria preferido morrer naqueles meses de agonia. Mas de um modo ou outro havia conseguido sobreviver. Ao cabo de muitos meses, seu corpo se recuperou, não de um modo definitivo nem absoluto, mas havia se curado. Levou a taça aos lábios, sem deixar de olhar a porta. Estava esperando Godfrey Channing para que lhe informasse sobre quanto avançava em seu plano. As bodas de Channing com Olivia era uma perspectiva agradável. Um homem com grande ambição e escassa moral. Um homem perigoso. O suficientemente preparado para ocultar seu verdadeiro caráter e conseguir seu objetivo. Mas ao fim se mostraria tal como era. Então, seria muito tarde para que os Granville pudessem remediá-lo. E logo, OH, logo... Olivia pagaria seu preço pela arrogância e o orgulho de Cato Granville eles passariam desta para a melhor. Era uma vingança bela e sutil. A porta se abriu e Godfrey entrou. Tinha trocado o traje avermelhado e escarlate por um traje de montar e tinha o ar de um homem satisfeito consigo mesmo. Localizou imediatamente Brian entre a fumaça azulada de meia dúzia de cachimbos de argila e se aproximou a grandes pernadas pelo chão cheio de serragem. Brian sinalizou a jarra de cerveja sobre a mesa e assentindo em sinal de agradecimento Godfrey levantou a taça e a levou aos lábios. - A velada transcorreu conforme o planejado? - Perguntou Brian por cima da beirada de seu copo. - Acho que sim. Godfrey deixou a jarra e se sentou no tamborete. - Granville ficou interessado no que eu tinha para dizer e quer que eu espione o rei. Brian sacudiu a cabeça. - Irei dando dados sobre o progresso da rebelião dos monárquicos e a marcha dos escoceses, que pode ir comunicando ao rei de forma sutil. Em seguida simplesmente conta a Granville o que sabe o rei. Acreditará que é muito útil. E se for útil a Granville, ele abrirá as portas de sua casa. Torceu a boca em um sorriso cínico. - E o que tem pra me contar sobre minha coelhinha? - Coelhinha? - Repetiu Godfrey assombrado.

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- Olivia, minha irmã menor. Chamava-a assim carinhosamente quando era menina. Era uma coelhinha encantadora. Especialmente quando fugia de mim. O sorriso apareceu de novo. - Pareceu-me bastante atraente - Disse Godfrey. - Não me verei obrigado a fechar os olhos quando estiver na cama. Deu uma tosca gargalhada e voltou a beber da jarra. - Faz anos que não a vejo. Murmurou Brian. - Deve ser uma mulher feita agora. Continua gaguejando? - Não percebi. A verdade é que não falou muito. Mas meu interesse por sua boca tem pouco a ver com o que possa sair dela. Voltou a rir. - Melhor que ela não saiba. Já lhe disse isso, é preparada. - OH, logo aprenderá que há coisas mais importantes que os livros - Disse Godfrey levianamente. A terei muito ocupada para que se interesse por essas bobagens. Voltou a beber da jarra e lançou um olhar ao relógio em forma de caveira que pendurava no cinturão. - Bem, é melhor que vá. Tenho um encontro a meia-noite. - Seu cliente? - Sim - Disse Godfrey um pouco surpreso - O que sabe dele? Brian sacudiu a cabeça. - Nada. Simplesmente ouvi sua conversa com George sobre um possível cliente para sua mercadoria... justo antes que você e eu puséssemos em marcha nosso negócio. E um encontro a meia-noite... disse encolhendo de ombros. Godfrey recordou o episódio. - Sim, têm razão. E quando tivermos fechado o acordo, terei os bolsos cheios. - O espero em Ventnor em dois dias, terei informação para você. Brian se apoiou de novo na parede, entreabrindo os olhos. -Visitarei Lady Olivia amanhã. disse Godfrey por cima do ombro quando se dirigia para a porta. - Ah, sim, meu pequeno e ilustrado coelhinho. Disse Brian sorrindo para si mesmo. Recomendo que primeiro se dedique a ler algo. Só para ter alguma coisa que conversar. Godfrey fez uma careta ao partir, ainda que estivesse disposto a escutar de bom grado um homem que conhecia tão intimamente os costumes e inclinações dos Granville. Exatamente a meia-noite, Anthony desceu pelo estreito e íngreme caminho que 113

levava para a baía de Puckaster para ir ao encontro de Godfrey Channing. Não restava nada da elegante e brunida seda, os babados franzidos, a pérola negra ou o anel de ônix. Voltava a usar o disfarce de pescador: um bigode murcho sobre uma dentadura artisticamente enegrecida, o rosto pintado como na ocasião anterior, a boina de lã embainhada sobre os olhos e a espada do cinto era a arma comum ao modo de vestir do pirata. Deixou dois homens atrás dele no penhasco com o encargo de que lhe guardassem as costas. Quando os passos do pirata se desvaneceram no caminho coberto de areia, Sam murmurou a seu companheiro: - Às vezes penso que o patrão não está bem da cabeça. Por que enviou Mike onde vive a moça para que fizesse um plano da casa? - Mike sabe medir o terreno. Respondeu o outro chupando uma fibra de erva. É o melhor homem que podia enviar, asseguro-lhe isso. - Sim, mas por que tinha que enviar alguém? Isso é o que eu gostaria de saber. Sam entreabriu os olhos para olhar para a baía por entre os matagais onde estavam ocultos. O patrão havia alcançado a praia e permanecia de pé, com as mãos embainhadas nos bolsos, olhando o mar, com uma postura tão despreocupada como se passeasse à luz da lua. - Não é próprio do patrão tornar-se louco por uma mulher - Observou o companheiro de Sam - Umas vão e outras vêm, é sua maneira de agir. - Sim - Conveio Sam, avançando lentamente - Acredito que esse é nosso homem. Parece que vai sozinho. Não tire o olho do caminho enquanto eu os vigio. O outro homem começou a descer lentamente pelo caminho, e Sam tirou o facão do cinturão sem deixar de vigiar a praia. Anthony não se virou quando intuiu que Godfrey se aproximava pela areia. Seguiu olhando o mar, assobiando suavemente entre dentes. Só os que o conheciam bem teriam reconhecido em sua forma de colocar os ombros e na inclinação da cabeça, que todos seus músculos estavam tensos, que cada centímetro de sua esbelta figura estava preparado para enfrentar qualquer problema. Godfrey tossiu ruidosamente. - Bonita noite, não? Senhor. Observou despreocupadamente o pescador, sem tão sequer virar-se. - Que mais interessa? Disse Godfrey - Está só? Esse era um fantoche cruel a quem não importava a beleza. Os lábios de Anthony se encresparam em uma careta. - Tão só quanto você - Limitou-se a dizer. Godfrey deu uma olhada a seu redor. A praia estava deserta sob a luz da lua cheia. - Temos que subir. 114

- Então tome a dianteira - Disse Anthony virando-se pela primeira vez e o brindando com seu enegrecido sorriso - Vejamos o que pode me oferecer. - Tem o dinheiro? Quero vê-lo antes de lhe mostrar o que tenho. - Não é muito crédulo, não é? Senhor. Anthony procurou no bolso de sua suja calça e pegou um saquinho de couro. - Aqui há quinhentos guinéus. Terá o resto no momento da entrega. Os olhos de Godfrey lançaram um brilho ao calcular o saco na palma de sua mão. Desatou a corda de couro e olhou em seu interior. O ouro brilhava. - Terá que carregar a mercadoria - Disse. Anthony se aproximou e pegou o saco. -De acordo. Mas olhemos primeiro o que me oferece, senhor. Godfrey avançou pelo caminho do penhasco. Anthony seguiu seus passos. Quase não podia conter seu desprezo. Depois da velada em Carisbrooke sabia quem enfrentava. Sempre havia alguém disposto a contar intrigas, especialmente se eram mal intencionados. Sabia muito mais dos negócios de lorde Channing do que o cavalheiro teria gostado de revelar. Era um homem que, apesar de estar afligido pelas dívidas, aspirava ter o poder e a influência que necessitava para ser rico, mas os Channing, mesmo que pertencessem nobreza, não tinham dinheiro, já que gerações de estupidez e avareza haviam levado todas suas posses. O atual lorde Channing tinha certa astúcia para alimentar sua avareza. Parecia planejar os negócios com cuidado e contratava a outros para que assumissem os maiores riscos, mas sua astúcia ia acompanhada de uma absoluta falta de respeito pela vida humana... a não ser, é obvio, que se tratasse da própria. Pegava tudo o que podia, onde podia e de quem podia. Anthony vivia fora da lei, mas este homem era um inseto a seus olhos. Godfrey virou à direita quando chegaram à parte baixa do penhasco. O caminho desnivelado era pedregoso, mas parecido a uma garganta por onde transitavam as cabras. Seguiu andando com cuidado, enquanto Anthony o seguia como se passeasse sobre uma macia extensão de grama. Sam e seu companheiro se mantinham a distância, movendo-se como fantasmas na escuridão do penhasco. Godfrey se deteve no meio do caminho e esperou que Anthony o alcançasse. - Se desarme. Não sou tão estúpido para lhe mostrar minha mercadoria enquanto usa uma espada. Anthony se encolheu de ombros e desatou o cinturão, deixando-o no chão. - O que mais tem? Anthony se inclinou e pegou uma faca de sua bota. Deixou-a ao lado da espada. Logo estendeu as mãos com outro encolhimento de ombros. 115

Godfrey assentiu. - Por aqui - Disse virando-se para o ravina e abrindo caminho través das parreiras e a erva daninha. Anthony seguiu seus passos. Entraram em uma caverna, negra como a boca de um lobo. Godfrey pinçou na entrada, esfregou o pederneira na isca e acendeu um pequeno abajur. Godfrey o sustentou no ar para lhe mostrar as caixas e os fardos empilhados contra a parede. - Dê uma olhada - Disse levando a mão ao punho da espada e tirando o fio um ou dois centímetros de sua capa. O sorriso de Anthony não foi especialmente amável ao reconhecer o som, mas estava de costas para Godfrey e este não pôde captar sua expressão. Anthony examinou a mercadoria. Estava em boas condições e seria bem vendida no leilão de Portsmouth. Desprezava os provocadores de naufrágios, mas era muito pragmático para deixar passar a ocasião. Mais tarde, quando Godfrey Channing já não fosse útil, deixaria bem claro que não gostava de sua maneira de fazer as coisas. No momento, utilizara-o. E a causa do rei sairia beneficiada. Pegou uma parte de giz de seu bolso e se moveu entre os fardos, marcando suas preferências com uma cruz. - Ficarei com estes quatro baús, as sedas estampadas, os dois fardos de tecidos de veludo, as rendas de Bruxelas, a caixa de porcelana de Delft e a outra de cristal veneziano. O resto é lixo. A irritação aprofundou o tom do pescador. Godfrey não notou a ligeira mudança na pronúncia das vocais. Nesse momento, só sabia que era um tipo com o qual podia fechar um trato. - Mil guinéus – Disse - O trato eram mil guinéus. - Só se ficasse com tudo isso. Pagarei oitocentos guinéus pelo que lhe tenho dito. Nem um pêni22 a mais. Oitocentos guinéus eram oitocentos guinéus. - Trato feito - Disse Godfrey esfregando as mãos - Como levará a mercadoria? - Isso é coisa minha, senhor. - Outra vez havia falado o pescador. Já não estarão aqui pela manhã. - E o pagamento? Como resposta, Anthony lhe atirou o saquinho. Godfrey, pegou de surpresa, tentou pegá-lo e falhou. Caiu no chão com um ruído surdo. Agachou-se e o pegou do chão, sem notar o sorriso irônico e o olhar depreciativo do pescador. - O resto lhe será entregue amanhã em Anchor ao meio-dia. Certamente George estará esperando sua parte. Já que seu navio ainda não chegou... 22

Tem o mesmo significado de xelim, seria centavos nos dias de hoje.

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O pescador deu uma gargalhada, não precisamente benevolente. A mão de Godfrey apertou com força o punho da espada. Nada teria lhe agradado mais que cravá-lo imediatamente. - Quando levará a mercadoria? - Perguntou raivosamente - Eu estarei aqui. - Ao amanhecer, creio. respondeu cansativamente o pescador - Embora não é necessário que esteja presente. Meus homens conhecem seu encargo. “Deve ser uma da noite”, calculou Godfrey. “Amanhecerá dentro de quatro horas. Está noite não dormirei”. - Aqui estarei - Afirmou. Pensa que sou tão estúpido para lhe deixar recolher a mercadoria sem nenhuma vigilância? - Como quiser. O pescador se encolheu de ombros e se dirigiu para a entrada secreta da caverna. - Pode ficar aqui para vigiar, se assim o desejar. Mesmo que meus homens não ficarão de braços cruzados, assegurou-lhe isso. Trabalham rápido e em silêncio e terão terminado por volta das seis. Mas não gostam que os sigam. E não têm tão boas maneiras como eu. Vale mais que não se intrometa. E saiu, deixando Godfrey só na caverna com seu arrebatamento de cólera e seus quinhentas guinéus de ouro. Anthony recuperou as armas e se dispôs a subir pelo caminho. Sam e seu companheiro apareceram de repente na escuridão a alguns metros da caverna. - Saberão encontrá-la de novo? - Sim, senhor. - Ao amanhecer, então. Necessitaremos dez homens, provavelmente três navios. A mercadoria está marcada com uma cruz. - Teremos algum problema? - Não acredito. O pobre homem é muito avarento para pôr em perigo o acordo. Mas fiquem atentos. - Sim, senhor. Retorna ao navio? Anthony sorriu e deu uma palmada no ombro de Sam. - Não, ainda não, amigo. E não tem por que preocupar-se. Andarei com olhos abertos. - Assim espero - Murmurou Sam - Mike está esperando ali acima, creio. - Isso espero. Anthony riu e se apressou a subir pelo caminho a grandes pernadas. Mike estava esperando no caminho. Dois pôneis pastavam tranquilamente na relva do topo do penhasco. 117

- Conseguiste, Mike? - Perguntou Anthony desabotoando o cinturão onde levava a espada. - Sim, senhor. Desenhei um plano. A senhorita tem o quarto em um lado da casa. Mike desenrolou uma folha de papel. - Olhe, aqui. O desenho da casa de lorde Granville em Chale era uma obra de arte, com todas as janelas e as portas claramente marcadas. - Aqui há uma árvore. Uma magnólia - Disse assinalando a árvore diante da janela em questão. - Que sorte - Murmurou o pirata, arrancando o bigode com uma careta de dor Está completamente certo de que é seu quarto? Eu não gostaria de invadir o quarto de lorde Granville e sua esposa. Deixou o puído bigode no bolso de suas calças e pegou um lenço e um cartucho de papel com sal. - Milly me disse, senhor. Trabalha como criada na casa. Conheço-a desde que era menina e ficou encantada de me oferecer um copo de cerveja na cozinha e de conversar um momento. - E os cães? A voz de Anthony se apagou ao esfregar com sal os dentes tingidos de negro. - Um par de sabujos, mas estão na cozinha toda a noite. Se despertarem toda a família os ouvirão. Anthony voltou a deixar o lenço no bolso e examinou o mapa. - A cozinha está na parte traseira. - Sim. Aqui - Sinalizou Mike. - Então não me ouvirão. Dobrou o mapa e voltou a rebuscar em seu bolso. Pegou um livro fino e o ponderou por um instante na palma da mão, com meio sorriso no rosto. Logo o colocou na capa anterior e o colocou no bolso junto ao lenço. Pegou as rédeas de um dos pôneis. - Guarde as espadas. Estarei aqui antes do amanhecer. - Não deveria lhe acompanhar, senhor? Vigiarei. Anthony sacudiu a cabeça e montou escarranchado23 sobre o pônei. - Isto é coisa minha, Mike. Não se preocupe, irei com cuidado. Me espere aqui ao amanhecer para recolher o pônei. 23

Com as pernas abertas

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Sorriu torpemente, despediu-se com uma saudação e se afastou ao trote. Deixou seus arreios na porta da casa de lorde Granville, o atando as patas para que não escapasse. Logo voltou a estrada para observar os obstáculos que se interpunham em seu caminho. A grade estava fechada; o alto muro de tijolo não representava nenhum problema para um homem acostumado a subir pelo mastro de sua fragata. Em um instante escalou o muro e aterrissou sobre a macia terra do jardim de lorde Granville. Tudo estava escuro e tranquilo à sombra do muro, só o canto de um pássaro e o zumbido dos insetos na erva daninha rompiam o silêncio da noite. Anthony se aproximou da casa entre as árvores. Não havia nenhuma luz acesa; só as volutas de fumaça que saíam da chaminé da cozinha davam certeza de que havia alguém em casa. Seguindo a grama, rodeou a casa sem fazer ruído. A magnólia era uma árvore venerável repleta de folhas grossas e brilhantes. Um galho forte chegava quase até a janela de Olivia. E a janela estava devidamente entreaberta. Anthony agarrou uma das copas e começou a subir pela árvore com presteza. Em poucos minutos estava sentado na soleira da janela do quarto da jovem. O quarto estava fracamente iluminado pela luz da lua e as cortinas que rodeavam a cama estavam abertas para deixar passar o ar fresco da noite. Mesmo assim, Olivia havia se destampado. Estava deitada na cama de costas para janela, com a camisola enrolada até a cintura, deixando a parte baixa de seu corpo completamente nua à luz da lua. Anthony sorriu. Pegou o livro de seu bolso e pegou o mapa. O dorso do papel estava em branco. Extraiu o lápis que sempre levava em seu outro bolso e voltou a dar uma olhada para a cama. Franzindo o cenho, riscou um desenho da jovem adormecida; umas linhas precisas esboçaram sua imagem no papel. O movimento do cabelo, a curva da coluna, o ondulação da cintura e a curvatura das nádegas, as longas pernas entrelaçadas, os pés magros e também os rosados calcanhares. Examinou seu trabalho com ar crítico, comparando-o com a modelo, e em seguida dobrou o desenho. Pegando o livro da soleira da janela, colocou o desenho entre suas folhas. Sentou-se na janela e se desprendeu das botas. Em seguida deslizou silenciosamente para o quarto, tentando não fazer nenhum ruído ao aproximar-se da porta e girar a chave. No centro do quarto havia uma pequena mesa, com um livro aberto ao lado de um montão de folhas soltas. Olivia tinha estado traduzindo um fragmento de Ovídio antes de ir para cama. Leu a tradução sem poder evitar sua curiosidade. Não era o trabalho de uma aficionada. Todas as palavras estavam cuidadosa e inteligentemente escolhidas para transladar o sentido do original. Olivia Granville era uma excepcional mulher de letras. Anthony se aproximou sigilosamente à cama. Deixou o livro com o desenho sobre a mesinha de noite e se sentou na beira. Olivia se agitou e resmungo algo em 119

sonhos. Ele lhe acariciou suavemente a pele nua, sem quase roçá-la com a ponta dos dedos. retorceu-se como se tivesse sido picado por um molesto mosquito. Anthony sorriu e continuou acariciando-a. Olivia se agitou, estendeu as pernas e se virou de costas. Logo, de repente, sentou-se na cama, com os olhos totalmente abertos, ofuscada, com a boca aberta a ponto de emitir um chiado. Anthony lhe tapou rapidamente a boca. - Shh, minha flor. Sou eu. Ela tentou escapar de sua mão, empurrando-o, retorcendo-se aterrorizada enquanto tentava escapar das repugnantes carícias que haviam atormentado seu sonho. - Não, não, não - Disse Anthony afundando o rosto em seu cabelo, segurando-a com força quando ela tentava afastá-lo e estreitando seu rosto contra o peito dela. - Perdoe-me. Não sabia que a assustaria assim. Cale-se, meu amor, silêncio. E gradualmente suas palavras invadiram a névoa do pesadelo. Pouco a pouco, Olivia se deu conta de que era Anthony, e não Brian. As carícias haviam sido afetuosas, sensuais, amáveis. Não tinham nada que ver com a crueldade depreciativa e áspera do passado. O terror se desvaneceu paulatinamente de seus olhos, e seu corpo encontrou a tranquilidade entre seus braços. Anthony afroxou sua mão, notando sua rendição, e lhe dirigiu um sorriso de arrependimento. Olivia se limitou a observá-lo, com os olhos ainda totalmente abertos, e o terror no fundo do olhar. - Não era minha intenção assusta-la - Disse ele, lhe retirando um cacho da testa - Devia estar profundamente sonolenta. Só queria lhe dar prazer. Instintivamente, Olivia segurou a coberta e se cobriu até a cintura. Cruzou os braços, tremendo ligeiramente. - Pensei... Pensei... - O que pensou? - Perguntou ele acariciando a curva de sua bochecha. Ela sacudiu a cabeça. - Só era um pesadelo. Mas parecia tão real... Suavemente, ele lhe pegou as mãos e as afastou de seu corpo. - Que humilhante eu ser objeto de um pesadelo! Seguia sorrindo com atitude arrependida, mas nos olhos tinha um ar inquisitivo. Olivia percebeu o olhar. Se fez silêncio por um instante e em seguida disse: - Que demônios está fazendo aqui? Meu pai está em casa. 120

- Não tem porque inteirar-se de que estou aqui. Anthony lhe segurou o queixo para que virasse seu rosto para ele. - Beije-me e saberei que não sou produto de um pesadelo. - Não! Olivia tentou escapar de sua mão. - Não têm nenhum direito de se aparecer aqui... entrar pela minha janela ccomo... c-como Romeu... e esperar que eu seja sua Julieta. - Acredito que Romeu não passou da janela - Observou Anthony. Mas se afastou dela, apoiando as mãos nos joelhos. - Sem dúvida, não se parece com Romeu - Disse Olivia - Por que está vestido assim? Tem o rosto pintado? - Tinha que fechar um acordo. Não tive tempo de limpar a pintura. - Mas quem é? - Perguntou ela. - Um pirata... um contrabandista - Respondeu sorrindo. - E um homem que se apresenta diante do rei pretendendo ser um bobo vestido de dândi. E se olhe agora... - Observou ela lhe assinalando com a mão - Quem se supõe que é agora? - Um pescador. - Um pescador? Olivia o observou, momentaneamente derrotada. - Quantas pessoas você é, Anthony... ou talvez deveria lhe chamar Edward? - Embora lhe custe acreditar, só uma - Disse simplesmente - E para você sou simplesmente Anthony. Mas agora, estou aqui na qualidade de médico. Aproximou-se dela e retirou as cobertas. - Vire e me deixe ver como está a ferida na coxa. - Completamente curada - Disse ela agarrando fortemente a coberta - Phoebe se encarregou disso. - Mesmo assim, prefiro julgar o progresso de meu trabalho por mim mesmo. Seus olhos se obscureceram e colocou suas frias e fortes mãos sobre as suas tentando agarrar a coberta. - Por que é tão vergonhosa comigo, Olivia, depois de tudo o que compartilhamos? Não lhe respondeu, mas repetiu em voz baixa: - Por que vieste? - Para lhe curar a ferida e lhe devolver isto.

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Soltou as mãos, sem poder dissimular a desilusão nem o pingo de frustração em seu olhar. Aproximou-se da mesinha de noite e alcançou o livro que havia trazido consigo. - Deixou seu Tosquio no navio. - OH! Era o livro que estava lendo quando caiu pela ravina. Abriu-o e entreviu a folha dobrada entre suas folhas, com o plano na parte de cima. - Quem fez este plano? - Mike. Queria estar seguro de não equivocar de janela. Sem dar-se conta, Olivia virou o mapa e ficou observando o desenho. - Sou eu! Desenhaste-me enquanto estava adormecida! C-como ousaste! -Não pude resistir - Respondeu ele - Já conhece minha paixão pela anatomia. - É desprezível! - Exclamou Olivia - Espiando e se introduzindo na vida das pessoas. Desprezível! Anthony se limitou a elevar uma sobrancelha. Levantou-se da cama e começou a andar pelo quarto, assobiando entre dentes. Inclinando a cabeça, examinou os quadros na parede; correu um dedo pelos lombos dos livros da estantes; segurou suas escovas de marfim e o pequeno espelho de mão com pérolas incrustadas. - Meu Deus, por um instante havia esquecido que levava o rosto pintado. Importa-se que use sua toalha? Sem esperar resposta, pegou sabão, toalha e água para tirar a pintura da cara. - Estou muito mais apresentável agora não acha? Deixou o espelho e se virou para ela com um sorriso que exigia aprovação. Olivia disse a si mesma que não devia rir. Havia estado observando como perambulava pelo quarto, perguntando-se por que era tão difícil envergonhá-lo. E agora ele a contemplava como um lobo espectador. Anthony riu brincando enquanto lia seu pensamento como tantas vezes havia feito até então. Seu olhar pousou no tabuleiro de xadrez junto à chaminé vazia. - Jogamos uma partida de xadrez? - Perguntou de modo casual. - Como? - Uma partida - Disse ele - Uma atividade sem malicia, diria eu, já que o tabuleiro se interporá entre nós sem perigo algum. Pegou um peão branco e outro negro do tabuleiro e se aproximou à mesa, escondendo-os nas costas. - Escolha - Ordenou estendendo seus punhos fechados ante ela. Sem atrever-se a articular uma palavra, Olivia o tocou suavemente a mão direita. Ele abriu os dedos para mostrar o peão branco. 122

- Brancas saem - Disse. - E brancas ganham - Declarou Olivia desentupindo-se. Jogar a xadrez em plena noite! Era uma loucura, mas se sentia excitada. E estranhamente, parecia-lhe natural fazer este tipo de coisas com o pirata. Aproximou-se do tabuleiro de xadrez, sentindo a suavidade e a frescura do chão sob seus pés descalços. Colocou o peão branco em sua casinha. Anthony acendeu as velas em um candelabro de dois braços que estava em uma pequena estante ao lado do tabuleiro de xadrez. - Antes de começar, continua doendo a ferida? Olivia vacilou. - Algumas vezes notou uma pontada. Se andar rápido, sinto-a tirante, como se me estirasse a pele. Ele se sentou e a atraiu para si. - Chapéu de médico, prometo-lhe isso. Não há razão para que se sinta envergonhada. - Não estou com vergonha - Disse Olivia em honra à verdade. - Então...? Olivia pensou no desenho que ele havia feito. Era tudo muito absurdo. Aproximou-se dele e se virou, subindo a camisola. Sentia o frescor de seus dedos ao roçar a ferida. - Está curando - Disse desapaixonadamente, deixando cair as mãos. Olivia baixou a camisola de uma sacudida. -Já tinha dito isso. Phoebe está cuidando disso. Ele deu uma gargalhada. - Sabe o que faz, não? - Atreveria a dizer que sabe tanto de ervas quanto você - Replicou Olivia Embora não seja perita em cirurgia. - Deveria discutir alguns assuntos com ela um dia desses. Olivia deu meia volta para olhá-lo. - E exatamente como propõe fazê-lo? Ele voltou a rir. - Com um pouco de ingenuidade. Tenha fé, minha flor. - Que tipo de flor? - Perguntou sem querer. - OH, não sei - Repôs ele sorrindo com desinteresse - Algumas vezes é uma orquídea. Está noite no Castelo era uma orquídea exótica, com seu novo vestido e sua maquiagem de noite. Mas outras vezes, é uma margarida ou um malmequer bem 123

selvagem. Olivia pensou que era um elogio mas ao vê-lo sorrir com sua habitual dissimulação, não soube que pensar. -Joguemos - Disse ela sentando-se do outro lado da mesa. -É obvio - concordou ele alegremente - Façamos algo divertido e seguro. Olivia o observou com desconfiança, mas parecia manter uma expressão serena. Moveu peão quatro dama. Anthony lhe lançou um olhar rápido e divertido elevando as sobrancelhas. Era uma abertura pouco comum. Ele imitou sua jogada. - Peão quatro bispo dama - Disse Olívia, colocando mãos à obra. Apoiou-se no encosto da cadeira e observou sua reação. Anthony conhecia a tática que ela estava usando. Se não a detivesse a tempo, encontrar-se-ia apanhado e exposto a uma morte lenta. - Ganhaste as brancas - Declarou de novo Olívia. - Eh? Anthony moveu o peão três rei. Sem pausa para pensar Olivia contra-atacou com cavalo três bispo rei. - As brancas levam vantagem, e eu nunca perco - Disse ela - Inclusive se jogo com negras. - Que jovenzinha mais arrogante - Observou ele, respondendo com outra jogada. E logo seguiram a partida em silêncio. Até que Olivia movendo a torre disse em voz baixa: - Xeque-mate em três movimentos. A menos que o queira deixar em pranchas. Anthony examinou o tabuleiro. Observou-o durante um momento. Tinha cheirado a derrota umas jogadas atrás e pensava que havia feito o impossível para evitá-lo. Mas ela o havia vencido. Era inegável. E para sua surpresa havia incomodado perder. Golpeou ligeiramente o rei com seu dedo longo e delgado. Recostou-se na cadeira e a contemplou. - Ainda pensa que sou arrogante? - Perguntou Olivia sem poder evitar um sorriso presunçoso. - Acredito que me deve a revanche - Repôs ele com o sorriso nos olhos. Havia algo encantador em sua petulância. - A melhor partida de três - Disse Olivia imediatamente e começou a dispor de novo as peças no tabuleiro. 124

Anthony lançou uma olhada para a janela. Começava a clarear. Logo sairia o sol. - Deixemos para depois - Disse ele levantando da cadeira - Tenho que ir. Olivia seguiu seu olhar. - OH, sim, é obvio! - Exclamou desiludida - Sei que ganharei quando voltarmos a jogar. - Iremos ver, minha flor. Segurou seu queixo com a ponta dos dedos, e com um movimento rápido, beijou-a na boca. Deu alguns passos atrás antes de que ela pudesse reagir, antes de que seus olhos se escurecessem como quando a havia acariciado antes. Olivia permaneceu imóvel. O coração lhe pulsava com força e embora o beijo houvesse sido rápido e ligeiro, continuava notando o toque de sua boca sobre a sua. E só sentia prazer. - A próxima partida será em meu terreno. Decretou ele, dirigindo-se para a janela. Sentou-se escarranchado24 na soleira. Mike ficará em contato com você. Simplesmente faça o que lhe diga. Levou os dedos aos lábios e lhe enviou um beijo, logo deslizou por cima do suporte e partiu. Olivia se aproximou da janela para observá-lo. Acreditou vê-lo desaparecer entre as árvores, mas se movia tão depressa e silenciosamente que não estava certa, Como podia pensar que ela deixaria tudo e iria correndo a seu encontro quando ele assim o quisesse? Acreditava que seus planos fossem mais importantes? É obvio que sim. Fossem quais fossem esses malditos planos. Apostava algo que eram perigosos, porque estavam fora da lei, disso estava certa. Voltou para cama. Entre as cobertas encontrou o desenho que ele havia feito. Lhe arrepiou os cabelos da nuca ao contemplá-lo. Era tão sensual! Era como se cada risco fosse uma carícia sobre o corpo que estava desenhando. Lembrou como havia sentido suas mãos sobre a pele quando fizeram amor. Voltou a colocar o papel entre as pagina de Tosquio e subiu à cama. Deslizou sua mão, baixou o travesseiro e fechou os dedos com força sobre o lenço do pirata. Adormeceu com o pedaço de tecido na mão, como havia feito todas as noites desde que havia retornado de seu sonho no Wind Dancer.

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De pernas abertas.

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Capítulo 10 - Acorda, preguiçosa. Não é próprio de ti dormir tantas horas. Phoebe entrou no quarto de Olívia uma hora depois que o pirata partiu. Trazia o bebê nos braços e dava a mão a seu filho maior. - Trago-lhe boas notícias. Olívia custou despertar. Parecia que aquela noite era impossível dormir de um puxão. Olhou Phoebe com os olhos entreabertos, perguntando-se por um momento onde estava. Mas lentamente o mundo voltou a ficar em seu lugar. O sol da primeira hora da manhã, o canto dos pássaros, o aroma de erva fresca ao evaporar o rocio da noite, a brilhante e cativante sorriso de Phoebe e o suave arrulho do bebê. Olivia bocejou. - Que notícias? Phoebe sorriu misteriosamente. -Tem três oportunidades para adivinhar. O pequeno conde de Grafton soltou a mão de sua mãe e se aproximou com passos vacilantes para o penteadeira, onde sabia que encontraria objetos brilhantes e tentadores na caixa de joias de Olívia. Phoebe afastou habilmente as tesouras e uma almofadinha com alfinetes antes de que pudesse tocá-las com suas mãos gordinhas. Então se fixou no lavabo. - O que há na toalha? Está completamente manchada de vermelho. Cortou-se? Perguntou assombrada, pegando a toalha pela ponta. -OH, estava provando o ruge - Disse Olivia - Estava tão pálida ontem noite! Mas não gostei. Phoebe lançou um olhar inquisitivo. - De onde o pegou? - De um vendedor ambulante. - Onde está? Posso vê-lo? - Caiu. - Olivia! Olivia parecia constrangida. Não sabia mentir. Pelo menos aos que a conheciam o suficiente. - Anthony esteve aqui. Disfarçado de uma espécie de pescador bêbado. O ruge é dele. Phoebe ponderou as consequências de suas palavras em silêncio, com os olhos totalmente abertos. 127

- O pirata? Esteve aqui? Em seu quarto, em plena noite? Com o Cato dormindo ao lado? Olivia assentiu. - Entrou pela janela depois de subir pela magnólia. - Meu Deus! - Exclamou Phoebe - Para que? - Jogamos uma partida de xadrez. Phoebe a olhou como se ambos tivessem perdido a cabeça. - Disse xadrez? De repente se fixou assombrada o tabuleiro. O rei negro estava caido e havia uma fileira de peças devidamente colocadas ao lado do tabuleiro. Alguém tinha estado brincando. - Acreditava que tinha dito que não queria mais vê-lo. - Sim, foi que eu disse - Disse Olivia, escondendo as mãos sob a colcha – Devolveu-me o livro... que estava lendo quando caí pelo penhasco. Deixei no navio sem querer. Phoebe se sentou sobre o baú, aos pés da cama, com o bebê em seu colo. - Deixa ver se eu entendo. Este... este pirata, a quem você não esperava voltar a ver, sobe até sua janela em plena noite de improviso para te devolver um livro e jogar uma partida de xadrez? - Parece inacreditável - Conveio Olívia - Mas ele é uma pessoa um pouco especial. - Há algo que não quer me contar? - Perguntou Phoebe com um olhar bem duro - Não pode fingir comigo, Olívia. Sabe que não pode. Faz muito tempo que nos conhecemos. Olívia estava consciente de que não podia dizer a Phoebe que o pirata e aquele dândi petulante chamado senhor Caxton eram a mesma pessoa. Se Anthony estava tramando algo contrário às ideias de Cato, era melhor que Phoebe não soubesse. - Só tento entender o que está ocorrendo, Phoebe - Disse ela lentamente Pegou-me de surpresa, não esperava voltar a vê-lo. Já te contei que no navio parecia estar vivendo um sonho, um sonho do qual agora despertei. Desabafou-se com impaciência e se sentou na beira da cama, procurando as palavras mais adequadas. Mas quando o tornei a vê-lo, me senti estranha... como se estivesse sonhando. Imagina jogar xadrez em plena noite com um homem a quem...? Encolheu de ombros sentindo-se indefesa. - A mim parece que jogar xadrez com um foragido sob o teto de seu pai em plena noite é fruto de uma mente doente - Disse com aspereza. Contemplou Olivia com o cenho franzido - Isso foi tudo o que fizeram? - Sim - Disse Olivia - Isso foi tudo. Além de nos roçarmos e o beijo nos lábios. 128

Seu olhar pousou no livro que continha o desenho. Não pensava mostrá-lo a Phoebe. - Não gosto disso. Parece-me uma imprudência - Disse Phoebe com franqueza. - Fala como uma dissimulada e age como se fosse minha irmã mais velha Queixou-se Olivia - Não estava acostumada a falar assim. Você também foi imprudente, não sei se já esqueceu. Que foi feito daquela jovem que fugiu cavalgando a procura de meu pai e se ocultou em seu navio sem seu conhecimento? Phoebe retirou um cacho que lhe cobria os olhos. - Suponho que tem razão... Não quero parecer dissimulada, mas não posso evitar me preocupar, Olívia. Nunca fez nada parecido... - Isso é fato - Disse Olívia sorrindo a contra gosto - Nunca tive oportunidade. - Parece tudo tão frívolo... OH, querida, o que te deu na cabeça? Sem cerimônia, Phoebe deixou ao bebê no colo de Olívia e se apressou a consolar Nicholas, que tinha perdido seu precário equilíbrio e tinha caído golpeando a cabeça contra o pé de uma cadeira. Olívia segurou o pequeno Charles e se pôs a lhe fazer cócegas nos pés enquanto esperava que terminasse o pranto e os beijos de consolo. - É possível que volte a jogar a xadrez com ele - Disse ponderando a questão, quando Phoebe voltou a prestar atenção. Phoebe sacudiu a cabeça. - Não quero parecer afetada ou temerosa, de verdade. Mas é uma loucura, Olívia. E se Cato ficar sabendo? - Não saberá - Disse Olívia com uma confiança que na realidade não sentia Não, a menos que você conte. - É obvio que não vou contar. - Disse Phoebe indignada, pegando outra vez Charles do colo de Olívia. Olívia lhe dirigiu um sorriso conciliador. - Em qualquer caso, qual era essa notícia? Parecia que Phoebe não estava disposta a perdoá-la, mas logo deu um suspiro. - Adivinha. Olívia pensou que estava cansada de jogos, mas Phoebe já havia aguentado bastante e seria pouco amável de sua parte rechaçar a adivinhação. - Retornará a Londres com meu pai e voltará a ver todos seus poetas. - Não... não - Disse Phoebe com impaciência - É algo que agradará às duas. Olivia refletiu e logo esboçou um sorriso. - C-quando chega? Os olhos azuis de Phoebe voltaram a brilhar, recuperando seu acostumado bom 129

caráter. - Sabia que adivinharia se pensasse um pouco. Portia passará alguns dias conosco. Rufus enviou uma mensagem de Londres. Fechou um acordo com o Exército, munições e coisas assim, e precisa reunir-se com o governador Hammond e com Cato. Ficará alguns dias no castelo, mas Portia se instalará aqui conosco. - Virá com seus filhos? - Nunca vai a nenhuma parte sem eles - Respondeu Phoebe enquanto beijava seu filho nos braços - A mim também pareceria impossível. - Claro. Olivia se surpreendia que suas duas amigas se tornaram tão devotamente maternais. Em Phoebe parecia um sentimento mais natural, mas no caso de Portia era um mistério. Uma mulher que estava acostumada a ser feliz cavalgando ao lado de seu marido e que quase sempre seguia usando calças e uma espada no cinto, tinha se convertido em uma mãe abnegada, que não fazia distinções entre seus filhos e os dois filhos ilegítimos de Rufus Decatur. - Quando chega? - O dia menos pensado. Cato acredita que vai haver outra tentativa de deslocar o rei para a França, e parece que Rufus tem informação de fontes do Exército que pode ser de certa utilidade. Olivia assentiu, mas sua mente estava em outra parte. Era isso o que fazia Anthony? Maquinar um plano para que o rei escapasse para a França? Uma ação que o situava em oposição direta ao Marques de Granville, que tinha jurado manter o rei em lugar seguro. “Meu Deus”, pensou. “Agora entendo o que está tramando.” Como já havia suspeitado a noite anterior, o rei, ou seus partidários, eram os que solicitavam os serviços dos mercenários. E onde deixava esta situação à filha do Marques de Granville? Observou Phoebe... tão serena, tão segura de suas próprias lealdades. O bebê começou a choramingar. - Acredito que tenho que ir trocar Charles - Disse Phoebe - Vamos comer no campo. Dar-nos o ar e Nicholas pode brincar de correr por aí. Tem muita energia. Apressou-se para a porta quando o bebê se pôs a choramingar. - Vamos, Nicholas. Estendeu a mão ao filho e herdeiro do Marques. O pequeno conde não estava disposto a abandonar seus jogos com um colar de pérolas, mas finalmente sua mãe conseguiu convencê-lo com a promessa de lhe dar um cubinho de açúcar. Olivia recolheu as pérolas e as devolveu a caixa de joias, logo se aproximou à janela que dava ao mar. Desde o St. Catherine's Hill, justo detrás da casa, podia ver o Canal e os navios que chegavam até o quebra mar. No alto da montanha estava a 130

capela de St. Catherine, onde se deixavam as mensagens que iam e vinham do Wind Dancer. O senhor utilizaria esse meio de comunicação para avisar a sua companheira de xadrez através de Mike. Mas pelo mesmo meio, ela podia enviar sua própria mensagem. Olivia Granville não podia estar sempre à inteira disposição de um homem. Quando estivesse disposta a jogar xadrez, ela mesma o comunicaria. E também averiguaria exatamente que estava tramando com seus jogos na corte. Godfrey, lorde Channing, chegou cavalgando até a porta principal da mansão de lorde Granville em Chale exatamente às quatro da tarde, a hora habituada para visita. Desmontou e entregou o cavalo ao servente que havia saído a toda pressa ao ouvir o som dos cascos sobre o caminho de cascalho da porta da frente. Godfrey alisou a casaca de seda azul pavão e sacudiu uma imaginária bolinha de pó da calça verde lima. Sabia que tinha boa aparência. Seu vestuário representava um bom gasto de seu orçamento, mas havia reservado de seu tesouro um fardo de seda pintada especialmente elegante, um corte de veludo estampado e um cilindro de renda de Bruxelas. “Pelo menos vale quinze guinéus”, pensou. “Servirá para renovar o armário”. Dirigiu-se a bom passo para a porta, onde lhe esperava uma figura imóvel. - Lorde Granville não se encontra em casa neste momento, senhor, - Venho visitar Lady Granville. Creio que está me esperando. Bisset duvidava. Lady Granville e Lady Olivia acabavam de retornar fazia alguns minutos de um lanche ao ar livre. Haviam voltado com um aspecto tão desalinhado quanto os meninos. - Creio que Lady Granville ainda não retornou, milord - Disse diplomaticamente. - Bisset, quem está na porta? A alegre voz de Phoebe arruinou a discrição do mordomo. - Lorde Channing, senhora. Não sabia que estava esperando visita. - Não esperava ninguém. Disse Phoebe, aproximando-se dele - Boa tarde, lorde Channing. Temo que nos pegou despreparadas. Acabamos de retornar do campo e não estamos prontas para receber. Está franqueza teria parecido uma descortesia vindo de outra pessoa, mas Phoebe era capaz de dizer a verdade sem ofender. Godfrey fez uma ampla reverência. -Imploro que me perdoe, senhora. Voltarei em um momento mais oportuno Disse sorrindo ao endireitar-se de novo. - Somente desejava apresentar meus respeitos a você e a Lady Olívia.

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Phoebe vacilou. Parecia uma grosseria deixar o homem voltar a Carisbrooke sem lhe oferecer nem sequer um refresco. Havia prometido a Olívia que a ajudaria a enfrentar os pretendentes que, como havia advertido Cato, amontoar-se-iam em sua porta. Valia mais não se demorar com o primeiro. - Rogo que entre, senhor, embora deverá desculpar nosso aspecto. Posso lhe oferecer um copo de vinho? Godfrey entrou na sala com presteza. - Obrigado, Lady Granville. - Bisset, nos traga o vinho ao salão. Por aqui, lorde Channing. Godfrey a seguiu, notando com assombro que havia descosturado a prega da saia e parecia ter erva no cabelo. - Olívia, olha quem veio nos visitar. Disse Phoebe em voz alta e clara enquanto conduzia seu visitante até o salão. Lorde Channing cumpriu o prometido. Olívia estava sentada com Nicholas em um banco sob a janela, trançando uma fileira de margaridas com um montão de flores cortadas no regaço. O menino, que se apoiava nela, estava meio adormecido e chupava o polegar. De sua boca caía um gotejo de suco de groselha, que também havia manchado o vestido de musselina pálido de Olivia. “Ela traz o cabelo solto até os ombros e parece ter margaridas enredadas”, observou Godfrey assombrado. “E além disso estão murchas”. - Boa tarde, Lady Olívia - Disse cumprimentando-a com uma reverência da porta. Olívia perdeu a respiração quando seus gélidos olhos verdes se colocaram nela. Sua fina boca esboçou um sorriso. Não detectava nenhuma amabilidade nele, só ameaça. Embora dissesse a si mesma que era uma ridícula, podia ouvir a voz provocadora de Brian, via seus olhos contraídos percorrendo seu corpo e procurando uma nova forma de atormentá-la. Havia se sentido como uma mariposa a ponto de perder as asas quando Brian a olhava desse modo, e agora se sentia exatamente igual. Se levantou, procurando não despertar o menino. Uma chuva de margaridas caiu de seu colo. -Temo que tenha nos p-pego despreparadas, lorde Channing. Era óbvio. Godfrey viu que estava descalça e que sua saia estava cheia de mancha de grama. Havia algo ofensivo em toda a cena. Estas duas mulheres de nobre ascendência, vestidas como se fossem camponesas em uma manhã de maio, com o cabelo despenteado, as bochechas curtidas pelo sol, os vestidos manchados. “Parecem leiteiras”, pensou com uma careta de desgosto. Mas segundo Brian Morse, está leiteira em particular tinha uma dote de algumas centenas de milhares de libras. - Acho encantador seu traje de ficar em casa, senhora. Sorriu e voltou a fazer uma reverência. 132

- E de quem é o menino? - Meu - isse Phoebe aproximando-se rapidamente para pegar seu filho - O conde de Grafton... Bisset, diga a Sadie que venha buscá-lo e o leve ao quarto de brinquedos. - Sim, senhora. Bisset dispôs a bandeja com o decantador de vinho e uma taça sobre a mesa e abandonou o aposento com passos majestosos. Fez-se silêncio por um instante, e logo OlÍvia se obrigou a dizer algo. - Quer um copo de vinho, senhor? - Sim, obrigado. Olivia decantou o vinho, consciente de que ele estava olhando seus pés nus. Sentiu-se tão vulnerável como se não usasse roupa. Tremeu imperceptivelmente a mão ao lhe oferecer o copo; os dedos de lorde Channing roçaram ligeiramente os seus e de repente sentiu frio. - Obrigado, Lady Olivia. Sorriu e levou a taça aos lábios. A chegada da babá para recolher o menino deu a Godfrey a oportunidade de examinar sua presa mais atentamente. Com efeito, não estava muito arrumada, mas desprendia algo inegavelmente sensual. Seu cabelo negro e grosso, seus enormes olhos negros, sua quente boca cor rubi. Decididamente, não teria nenhuma necessidade de fechar os olhos ao possuir Lady OlÍvia. Sentiu uma agradável queimação nos rins. - Parece-lhe interessante a vida em Carisbrooke, lorde Channing? -Perguntou Phoebe, procurando desesperadamente um assunto de conversação. - Sou secretário do governador, senhora. É um cargo interessante e bem remunerado. - Deve passar a maior parte de seu tempo com o rei - Disse Phoebe. - Com efeito, tenho a honra de ficar na companhia de Sua Majestade em muitas ocasiões - Respondeu ele com complacência - Mas quando posso, desfruto de meus livros em solidão. - OH, têm uma boa biblioteca? - Perguntou Phoebe lançando um olhar indignado a Olívia, perguntando-se por que deixava recair nela todo o peso da conversa. - Interessa-me os filósofos, senhora. - Gregos ou romanos? Perguntou Olivia, interpretando corretamente o olhar de Phoebe. Tinha se retirado outra vez ao banco abaixo da janela e dizia a si mesma que não devia ser tão estupidamente fantasiosa. Que ameaça podia representar lorde Channing?

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-Acho especialmente ilustrativa as obras de Platão. Respondeu Godfrey com solenidade, confiando que ela não iniciasse uma conversa exaustiva sobre o assunto. Havia lido algo mas não o suficiente para satisfazer a uma verdadeira intelectual. Embora duvidasse de que uma mulher, por muito que dissesse Brian, pudesse chegar a uma verdadeira erudição. Provavelmente Olívia só tivesse um conhecimento superficial, ainda que se considerasse muito instruída. - Que obras em concreto? Perguntou Olivia - A república, suponho, mas também... Para sorte de Godfrey, a pergunta ficou no ar quando de repente a porta se abriu para dar acesso a um autentico torvelinho. Havia meninos e cães e uma jovem delgada com um cabelo assombrosamente ruivo e uma massa de cachos, vestida com calças e casaca. Houve gritos de alegria, abraços e beijos, e um dos vira-latas, uma grande cadela mestiça, pôs-se a saltar e ladrar saudando todos os que estavam na sala, incluindo lorde Channing. Godfrey lhe deu um chute quando foi cheirar avidamente seus tornozelos e a cadela retrocedeu com o pêlo arrepiado. - Juno, o que aconteceu? A jovem ruiva se agachou imediatamente para ver o que havia acontecido e lhe alisou o pêlo da nuca. Seus olhos verdes pousaram em Godfrey para lhe lançar um olhar tão zombador que ele quis estrangulá-la. -Juno não lhe fará nenhum dano. A menos, claro, que seja você quem queira fazer dano a ela - Disse friamente. - Portia, me permita que a apresente a lorde Channing. Phoebe se afastou do barulho que faziam os meninos. - Lorde Channing, Lady Decatur, condessa de Rothbury. Portia o cumprimentou friamente com a cabeça, com a mão ainda na cabeça da cadela. Godfrey esboçou uma reverência superficial. Nunca havia visto uma mulher assim. Conhecia, é obvio, Rufus Decatur, conde de Rothbury. Era um homem com um passado turvo. Mas continuava sendo um aristocrata. O que fazia com esta paródia de mulher? Virou-se para Phoebe. - Terei que me despedir, Lady Granville, e lhe deixar com seus convidados. - OH, tão cedo? Murmurou Phoebe educadamente, embora lhe estendeu a mão. - Já abusei muito de sua hospitalidade. Respondeu ele, beijando sua mão antes de fazer uma reverência a Olívia. Lady Olívia, espero poder lhe apresentar meus respeitos em outra ocasião. Olívia lhe devolveu a reverência mas não respondeu. Não lhe ocorria nada para

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evitar que retornasse. Até que não fizesse uma proposta formal, não tinha outro remédio se o receber. Godfrey esperou que ela respondesse, embora foi em vão. Deu-se conta de que parecia ridículo ficar esperando com a mão na maçaneta da porta, e com uma breve inclinação de cabeça abandonou o salão. - Que indivíduo mais desagradável. Observou Portia. - Sim, não é? - Conveio Olívia imediatamente. Dá-me calafrios. - Ainda que seja um fantoche. Falou Phoebe - Ele parece inofensivo. - Meu pai acredita que quer me fazer a corte - Disse Olivia a Portia. Portia se pôs a rir a gargalhadas. - Então só posso elogiar seu encargo. Não sabe, é obvio, que jurou manter o celibato. “Celibato mas não castidade!” As palavras ligeiramente provocadoras do pirata martelaram em sua cabeça, e bobamente sentiu que ruborizava. Deu um olhar a Phoebe, quem voltava a ter um ar de seriedade incomum nela. Portia captou seu olhar e revirou os olhos. - Detecto que ocultam um segredo. - Olívia teve uma aventura. Disse Phoebe em um murmúrio, consciente da proximidade dos meninos. - OH, parece interessante. Portia examinou o rosto redondo e sério de Lady Granville e elevou as sobrancelhas de um modo inquisitivo - Parece que não aprova, querida. Observou atentamente Olivia e viu a confusão e a tristeza em seu rosto. - Acredito que cheguei bem a tempo - Observou e se virou para os meninos Luke, Toby, levem Alex e Eve ao jardim e façam Juno correr. Os dois meninos maiores obedeceram alegremente, e as três mulheres ficaram relativamente tranquilas. - Bem... - Disse Portia sentando-se no braço de uma cadeira - Sou toda ouvidos. Rufus Decatur e Cato estavam engajados em uma conversa andando pelo terraço. Os meninos, Juno e os dois cães dos Granville passaram como uma exalação diante das portas de cristal do salão. Rufus se deteve para lhes lançar um olhar paternal enquanto cruzavam o terraço para dirigir-se para as árvores. - Luke... Toby... não saiam do jardim - Ordenou-lhes - E procurem que Eve não 135

se meta em problemas. Obteve uma saudação como resposta e riu amavelmente. - É um verdadeiro torvelinho. Sempre lhe ocorre algo. Parece que os problemas a perseguem. - Como a mãe - Observou Cato. - Talvez tenha razão. Os dois homens olharam para a porta aberta do salão. As três mulheres estavam sentadas em círculo, com as cabeças enlaçadas, tão absortas no que se estavam dizendo que não eram conscientes de que tinham público. - Eu gostaria de saber do que estão falando - Murmurou Rufus. - OH, assuntos domésticos, provavelmente... a dentição dos meninos, problemas com os criados, complicadas pontas de renda - Disse Cato afogando a risada. Rufus riu diante de tal desatino. - O soldado, a poetisa e a intelectual. Que trio. - Um trio inseparável - Comentou Cato antes de voltar para sua anterior discussão - Assim, então, falemos da ilha e da nova tentativa de tirar o rei daqui. - Sim, entre os soldados sempre correm rumores, mas este parece certo. - Mas ninguém sabe me dizer quem existe por trás. Rufus negou com a cabeça. - Só ouvi que é alguém respeitado e bem relacionado, uma espécie de foragido. Fala-se dele com o respeito que se reserva aos heróis populares como Guilherme Tell ou Robin Hood. Encolheu-se de ombros. Houve um tempo em que também tinha está reputação. - Mas está na ilha? - Alguns dizem que sim e outros não. É um mistério. Cato sacudiu a cabeça. - Um mistério que nem a rede de informadores de Giles Crampton foi capaz de resolver. Bem, só resta observar e esperar. E manter o rei sob vigilância. Tenho um espião no palácio, o secretário de Hammond... Godfrey Channing. Conhece-o? Rufus confirmou sua negativa com um gesto. -Já ouvi o nome. - Parece ter certa habilidade para manter os ouvidos e os olhos bem abertos. E sabe interpretar o humor do rei. Já sabe que o estado de ânimo do monarca é um fiel reflexo do que ocorre. Se estiver alegre e otimista significa que está tramando algo.

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- Sim - Conveio Rufus - Não é que seja tão ignorante, mas sim pensa que dissimular não é digno de sua posição. Pensa que segue negociando com os escoceses? - Estou seguro. E Channing mencionou que o rei sabia quando os escoceses haviam cruzado a fronteira, por algum modo lhe chega informação. E de algum lugar sai o dinheiro. Há alguém que financia os grupos rebeldes... os soldados recebem seu pagamento. - Os soldados assalariados lutam com mais entusiasmo e não importa muito quem paga nem por que lutam - Observou Rufus - Enquanto os soldados do Parlamento não obtêm nenhum pagamento e se amotinam, os partidários do rei lutam com a barriga cheia e o bolso repleto. Cato assentiu. - Quando acho que o final está próximo, algo volta a interromper tudo. - Ainda resta muita estrada por percorrer - Disse Rufus com certo tom de cansaço - Diria que sete anos de derramamento de sangue já foram suficientes não? Era uma pergunta retórica.

Anthony examinou o tesouro da caverna empilhado na adega do Wind Dancer. - O que acha que Ellen iria gostar, Adam? - As rendas. - Se lhe der de presente as rendas, ela as utilizará para me bordar mais camisolas. - Às vezes são úteis. Ficavam bem na garota - Comentou Adam com diversão. - Como deve ser - Respondeu Anthony - Mas voltando para Ellen... - A seda é muito luxuosa para seu gosto. Preferirá um bom fardo de lã ou algo parecido. Não é uma mulher ostentosa... Embora não lhe faria feio um pouco de brandy ou uma boa garrafa de madeira. - Bem, isso é fácil. E um par de garrafas de Borgonha. Possivelmente gostaria de um xale de cachemira para resguardar das correntes de ar no inverno. - Talvez. Irá visitá-la agora? - Você também me acompanhará, suponho. Adam parecia satisfeito. - Não sabia se ia me pedir isso. - OH, pelo amor de Deus, homem! Quando irei visitar Ellen sem ti?

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Adam se limitou simplesmente a encolher de ombros, recolheu os presentes para Ellen, e seguiu Anthony fora do Wind Dancer. Um bote com dois marinheiros a remos golpeava suavemente o lado da fragata. Anthony saltou ao barco e pegou os vultos que trazia Adam, que o seguiu com muito menos agilidade. Os marinheiros remaram com força para a entrada do canal. Na entrada, içaram a vela e se mantiveram perto das rochas até chegar a uma enseada, onde encalhou o bote em uma pequena praia de areia. O penhasco se elevava imponente em três de seus lados, quase pendurado em cima da praia para ocultá-la do topo. Anthony pegou os presentes e saltou à praia, avançando para ajudar Adam a descer do barco e passar com cautela entre as ondas até alcançar terra firme. - Retornaremos esta noite, patrão. Os marinheiros se dispuseram a empurrar o bote outra vez para o mar. - Sim, mas não venham até que seja de noite. Adam soprou e ofegou subindo pelo caminho quase invisível que conduzia até o topo do penhasco. Passaram ao lado de um vigia que estava agachado de joelhos, olhando o mar. Como seus companheiros apostados ao longo do caminho, este levava um flauta doce com a qual advertia o Wind Dancer da aparição inesperada de qualquer visitante que se aproximasse por terra ou por mar. - Bom dia, Ben. - Bom dia, senhor. O vigia lhe dirigiu uma tímida saudação. - Mike está acima com os pôneis. Anthony o saudou e continuou subindo. Cavalgariam cruzando a ilha até Yarmouth e dali navegariam pelo canal de Solent, passando pelo castelo de Hurst em seu banco de areia, e subiriam pelo rio Keyhaven. A casa de Ellen ficava na aldeia que levava o mesmo nome que o rio. Era ali onde Anthony havia crescido e tinha se familiarizado com os navios quase ao mesmo tempo que tinha dado seus primeiros passos, aprendendo o ofício dos marinheiros sempre que Ellen o exímia dos ensinos que, insistia, o filho de um cavalheiro, ainda que fosse ilegitimo, devia adquirir. O contrabando era uma atividade prospera em toda a costa de Hampshire, assim como na ilha de Wight, e Anthony havia começado no negócio de um modo natural. Ao cabo de um ano havia ganho suficiente dinheiro para comprar sua própria embarcação, e pouco depois, os homens que se dedicavam a isso de um modo precário e pouco eficaz, haviam unido suas forças sob sua liderança. A aquisição do Wind Dancer havia acontecido rapidamente, e o pirata tinha feito o mar em busca de um jogo mais lucrativo. No que dizia respeito à família de seu pai, não existia. A família de sua mãe desconhecia que havia nascido. Anthony Caxton havia seguido seu próprio caminho e tinha crescido sozinho. Os que contavam com sua amizade sabiam ser afortunados, e 138

pela mesma razão, os que ganhavam sua inimizade aprendiam a lamentá-lo. Chegaram ao pequeno povoado portuário de Yarmouth depois de uma cavalgada de uma hora. O castelo se elevava como um sentinela na nascente do rio Uar diante do castelo de Hurst em terra firme, ambos os edifícios fortificados vigiavam a entrada do canal de Solent. No momento mais gélido de suas operações de contrabando, Anthony, seguindo o costume local, estava acostumado a deixar sua mercadoria no extremo do saliente de Hurst. Deixaram os pôneis na taberna de King Charles e desceram até o cais. Um pescador de cabelo grisalho os estava esperando em um pequeno barco de vela ancorando no cais. Levantou-se ao ver que se aproximavam. - Chegou a tempo, senhor. - Não o farei esperar, Jeb, se puder evitá-lo. Anthony dirigiu um sorriso ao homem que havia lhe ensinado pela primeira vez os segredos das marés e os perigos da precipitação para um marinheiro que tivesse que navegar pelas águas traiçoeiras do canal de Solent. Saltou ao bote, estendendo a mão a Jeb enquanto este subia ao cais. Adam seguiu os passos de Anthony e ocupou seu posto no barco. Jeb se despediu enquanto Anthony içava as duas velas, logo pegou o leme e fez virar o bote de face ao vento para rumar para o castelo de Hurst e o rio Keyhaven.

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Capítulo 11 Ellen Leyland estava agachada limpando as ervas daninha de sua horta de aspargos. Ao se levantar para secar o suor da testa, viu surgir dois homens pela curva que traçava o estreito caminho. - Anthony... Adam... que surpresa tão agradável - Disse colocando-se a correr pelo caminho para abrir o portão. Não os esperava. Tem alguma notícia, Anthony? - Acredita que só venho te visitar quando tenho alguma notícia para dar? Admoestou-a inclinando-se um pouco para beijá-la na bochecha morena. – Considera-me tão pouco? - OH, vamos, vamos - Disse ela lhe dando um tapa carinhoso. - Adam, querido, como vai? - Bem, obrigado, Ellen. Adam fez uma pequena inclinação com a cabeça. Uma vez, muito tempo atrás, compartilhou o leito com Ellen, quando compartilharam também a paternidade do filho de Edward Caxton. Ellen não tinha tempo para fazer distinções entre classes sociais, e tanto em sua juventude quanto na idade adulta tinha tido amigos e amantes cada vez que a vida os havia apresentado, mas nos últimos anos havia diminuído seu interesse pelo alvoroço que chegavam com as relações sexuais, e tinha dedicado todas suas energias, não só emocionais, mas também físicas, à paixão pela causa do rei. - Entrem - Disse andando vivamente diante de ambos pelo caminho - Tenho alguns pãezinhos recém tirados do forno. E uma deliciosa torta de frango. - E brandi madeira e um estupendo Borgonha para acompanhá-lo - disse Anthony deixando as garrafas forradas de couro sobre a gasta mesa de pinho. Olhou com carinho a pequena cozinha que durante sua infância havia sido o cenário de tantas penas e alegrias. Como sempre, estava impecável, com as fontes de porcelana alinhadas no aparador Gales e as chaleiras de cobre reluzentes penduradas de seus ganchos. - Imagino que Adam preferirá cerveja. Por favor, Anthony, quer pegar pra mim uma das jarras que tem a suas costas? Anthony se virou para pegar uma das jarras do aparador e se dirigiu à dependência contígua à cozinha onde Ellen estava acostumada guardar a cerveja. Ellen, por sua vez, estava ocupada servindo a comida na mesa. - Sente-se, Adam.

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Adam afastou um pouco o banco da mesa e se sentou com um suspiro de satisfação. Havia sido uma longa navegação. O vento havia soprado contra e haviam tido que virar pelo canal de Solent. - Aqui tem amigo - Disse Anthony sorrindo e deixando a jarra de cerveja em frente a Adam - Estes dias o noto um pouco enferrujado. - Tome cuidado com sua língua, jovem Anthony - Disse Ellen em tom de reprimenda - E abre esse Borgonha. Anthony soltou uma gargalhada e fez o que lhe dizia. Comeram e beberam com a cordialidade e o bem-estar dos companheiros que se sentaram à mesa juntos muitas vezes ao longo dos anos. Adam não teria considerado oportuno comer com seu patrão se tivesse estado a bordo do Wind Dancer, mas nesta cozinha não se faziam distinções sociais. Ellen esperou que terminassem para tocar no assunto que ocupava um plano preferencial em sua mente. - Diga-me Anthony, viu o rei? - Sim, ontem a noite - E apoiou os antebraços na mesa, agora já limpa, tamborilando com os dedos na superfície - Consegui lhe passar o ácido nítrico para que possa cortar as grades da janela. Ellen deu sua aprovação assentindo com a cabeça. Na segunda vez que o rei havia tentado fugir não havia ocorrido a ninguém verificar se poderia passar entre as grades de sua janela. A torpe tentativa havia resultado num fracasso humilhante. Para a terceira tentativa haviam proporcionado ácido nítrico para cortar as grades, mas eram tantas as pessoas que intervinham no plano que os detalhes deste haviam chegado inevitavelmente aos ouvidos do coronel Hammond. A organização desta quarta tentativa tinha sido entregue a um perito. Anthony não havia deixado nada nas mãos do azar. A pedido de Ellen, o pirata estava servindo à causa do rei desde que explodiu a guerra. Fazia o que fazia por Ellen, não pelo monarca, com quem se preocupava muito pouco. Entretanto, a lealdade de Ellen pelo rei Carlos era completamente absorvente e nos últimos seis anos a maior parte dos benefícios de Anthony haviam se destinado a financiar o exercito real, e, naquele momento, Anthony dedicava a formidável experiência que havia adquirido planejando seus empreendimentos de pirataria e contrabando para organizar a fuga do rei para a França. - Como viu o rei? - Perguntou a mulher com inquietação - Acha que está muito desmoralizado? - Menos do que imaginava - Disse Anthony, e bebeu um gole de vinho - Ainda está negociando com os escoceses mediante Livesay. E ao que parece continua acreditando que o Parlamento desconhece essas negociações. - Mas você não acha que seja assim, não é? - Não. Perdoe-me, Ellen, mas o rei se engana nesta questão tanto como em muitas outras. Os lábios da mulher se esticaram. 141

- Se não quer levar a cabo este projeto, Anthony, não vou lhe recriminar por isso. Então Anthony sorriu, e com um ar ausente moveu a taça sobre a mesa. - Sim o faria. Meus sentimentos não têm nenhuma importância, Ellen. Faço-o por ti. Não tenho nenhum interesse especial no resultado desta guerra, exceto que quanto antes termine, antes poderei retomar a vida que eu gosto. Ellen se levantou e se dirigiu para a dependência contígua à cozinha de onde retornou após poucos minutos com uma vasilha cheia de groselhas cozidas e uma jarra cheia de um espesso creme amarelo. - As colhi está amanhã. Anthony se deu conta de que sua atitude indiferente havia preocupado Ellen e de que ela não desejava continuar a conversa. Serviu-se um pouco de fruta e creme. - Antes de partir, reforçarei com pregos a porteira do curral das cabras. Senão, o próximo vendaval vai arrancá-la do lugar. - Obrigada. Ellen aproximou a vasilha de Adam, que havia participado pouco da conversa. Estava acostumado a desempenhar um papel de observador mais que de participante em tais assuntos. Anthony deu conta das groselhas e desculpando-se saiu. Não demorou em chegar na cozinha o ruído dos golpes de martelo. - Se parece muito a seu pai em tantas coisas... - Disse Ellen - Não entendo como pode ser tão diferente precisamente nisto. Edward era um homem de paixões e ideais, mas apesar de equivocar-se em muitos acreditava firmemente neles. Anthony parece não acreditar muito em nada... OH, não há ninguém mais leal, nem melhor amigo que ele... -acrescentou ao ver que Adam franzia o cenho - Mas no que se refere a convicção... parece que não tem nenhuma. - Pense que ele sabe o que a convicção fez com seu pai - Disse Adam - E foi a convicção que conduziu os Caxton a abandonarem Sir Edward e seu filho. Só um bebê inocente, carne da sua carne, abandonado à morte sem que lhes importasse o mínimo. A convicção pode ser algo cruel, segundo o ponto de vista com o qual se olhe. Ellen suspirou. - Sim, suponho que seja assim, mas às vezes quando o olho vejo claramente a que se refere. O mesmo encanto selvagem e dissoluto. E Ellen voltou a suspirar. - Sim, esse encanto vai lhe dar problemas um dia destes. Tenho até medo só em pensar... - Disse Adam com tom misterioso. O olhar de Ellen se tornou mais penetrante.

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- Conte-me. Adam o resumiu em umas poucas palavras. - A filha de lorde Granville! Ellen o olhou horrorizada. - Mas Granville está absolutamente comprometido com o Parlamento. Anthony não pode ter nenhuma relação com sua filha. Ela o trairia por seu pai. - Não tire conclusões precipitadas - Disse Adam - Anthony jamais participaria a ela de seus segredos. É muito ardiloso e prudente. deteve-se e franzindo o cenho disse-: Além disso, neste caso não se trata do passatempo ao qual nós estamos acostumados, Ellen. - Ah, não? - Uma moça tem caráter - Disse Adam - Não acredito que rivalize. De repente parece que tudo terminou entre eles e ao cabo de um segundo ela o deixou plantado e Anthony ficou com cara de funeral. - OH, Meu deus - Disse Ellen com impotência, mas recuperou em seguida seu rosto sorridente ao ouvir os passos de Anthony aproximando-se - Obrigado, Anthony. - Não há de que - Disse o jovem no limiar da porta, com as mãos nos quadris e olhando-os interrogativamente - Estou certo de que se divertiram com seu breve intercâmbio de impressões. Terão analisado em detalhe a situação, não é assim? - OH, Meu deus - Voltou a dizer Ellen - Não poderia... bom, não poderia procurar alguém mais idôneo, Anthony? Ao ouvir estas palavras, Anthony soltou uma gargalhada. - Não é questão de idoneidade, querida Ellen. Mas não se inquiete, a dama não está, como se diz, desesperada por entrar em minha cama. Ao dizer estas palavras uma sombra cruzou seu semblante, uma sombra que não passou despercebida a seus companheiros. Foi recolher a jaqueta que ao chegar havia pendurado em um gancho e a pôs por cima de um ombro. -Vamos, Adam, faz tempo que teríamos que estar a caminho. Ellen os acompanhou até o portão. Anthony se inclinou para beijar Ellen e então soltou o assunto que havia motivado sua visita: - Tenho a sua disposição uma considerável quantidade de mercadorias. Pode mandar recado a nosso contato em Portsmouth? O Wind Dancer chegará ao porto de Portsmouth depois de amanhã e me proponho realizar o leilão no dia seguinte. - Mandarei uma mensagem está tarde. Tome cuidado, querido.

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Ellen os viu afastar-se pelo caminho em direção ao rio, logo se apressou a recolher o casaco e se dirigiu sem perder um minuto para a paróquia para mandar sua mensagem. - Desculpe por incomodá-lo, milord. Na manhã seguinte, Cato ergueu a vista do café da manhã para ouvir o familiar e solene tom de Giles Crampton da porta. - O que ocorre, Giles? - Uma carta do coronel, milord - Disse Giles, e entrou na habitação inclinando a cabeça a modo de saudação às três damas que estavam sentadas a mesa - Acredito que aconteceu alguma coisa - Disse em tom confidencial. - Sente-se e tome o café da manhã. Cato sinalizou uma cadeira uma vez que pegava a carta. Giles voltou a saudar com a cabeça às mulheres ao sentar-se à mesa. Conhecia as três desde há muito tempo, no caso de Olívia, desde que era uma menina, e apesar das maneiras diferentes que mostrou, encontrava-se perfeitamente cômodo em sua companhia. - Quer um pouco de presunto, Giles? - Perguntou Olívia aproximando a travessa de madeira lavrada. - Obrigado, Lady Olivia. Giles cravou uma fatia de presunto, cortou pão, serviu-se ovos e se dispôs a comer. Phoebe indicou com um gesto a um dos criados que servisse cerveja ao militar com a jarra que havia no aparador. - Maldita seja - murmurou Cato sem levantar os olhos da carta. - O que aconteceu? - Perguntou Phoebe. - Uma incitação de Londres. Temo que também precisem de seu marido, Portia. Cato olhou sua sobrinha enquanto voltava a dobrar a carta. - Bem, eu ficarei aqui, se não se importar - Disse Portia com um sorriso. - Você e sua tribo - Respondeu Cato com outro sorriso - Ficaremos fora uns dias, não serão muitos. Cato puxou para trás a poltrona de madeira lavrada no qual estava sentado. Imediatamente, Giles deixou a faca sobre a mesa e também se levantou. - Não, não, Giles, termine seu café da manhã - Disse Cato indicando com um gesto que voltasse a se sentar - Tenho que fazer alguns, preparativos. Demorarei uns quinze minutos. Giles voltou a tomar assento, mas ficou claro a suas companheiras de mesa que estava inquieto por partir e que só a instrução de Cato o retinha à mesa. 144

- Cogumelos picantes, Giles? - Perguntou Portia, passando uma vasilha cheia de cogumelos que desprendiam um aroma dos mais apetitosos. Sua mão alcançou a colher, pairou por cima desta e em seguida disse: -Não, obrigado, Lady Rothbury. Desculpe Lady Granville. Deixou a faca, voltou a lhes dedicar uma leve inclinação de cabeça e saiu apressadamente da habitação, sem dissimular seu alívio por poder seguir seu senhor. - Ah, Giles - Disse Portia ao lembrar como este havia conseguido encontrá-la na Escócia depois da morte de seu pai, como sua franca atitude para a magricela garçonete que era ela naquele tempo a havia convencido da sinceridade com a qual seu tio lhe oferecia amparo - Não estaria aqui se não fosse por ele. - Não posso imaginar Cato sem Giles; faz parte dele, por assim dizê-lo - Disse Phoebe - Às vezes me preocupa ver que Cato, quando se trata de assuntos militares, o primeiro que faz é perguntar a opinião de Giles e, entretanto me sinto mais tranquila quando o tem montando a seu lado... Lembro-me quando o rei escapou do sítio de Oxford e... Deteve-se e seguiu o olhar de Portia. Olívia, com uma expressão em seu rosto tão distante como se estivesse concentrada em um texto completamente indecifrável, não parava de lubrificar manteiga sobre uma fatia de pão de trigo. A manteiga era tão dura que havia formado uma montanha. - Olívia? - Mmmm? Olívia levantou a vista e com a faca conseguiu aplanar o montão de manteiga. -Parece que está perdida, querida. Portia estendeu o braço para alcançar a jarra de cerveja e encher o copo. - Tenho que jogar uma partida de xadrez - Disse Olívia - Posto que meu pai vai ausentar-se, acredito que será o momento oportuno. - Vai encontrar com o pirata - Confirmou Phoebe. - Sim. Prometi uma partida de revanche - Olívia sorriu e ergueu seu copo Phoebe, não se preocupe. Se meu pai não estiver aqui, não tem com que preocuparse. - Pois claro que me preocupo! - Exclamou Phoebe - Esse homem é... é... - Um delinquente - Acrescentou Portia delicadamente. Phoebe não disse nada. Não lhe preocupavam tanto as atividades do pirata como o fato de que aquela relação não tinha nenhum futuro para Olívia. Phoebe não via mais que uma perspectiva cheia sofrimento. Encolheu ligeiramente os ombros olhando Portia e viu no efêmero cintilar de seu olhar que a havia compreendido. - Diga-nos querida, então por que quer ir jogar uma partida de xadrez com esse pirata? 145

- Porque devo - Respondeu Olívia - E agora poderei jogá-la sem correr riscos já que meu pai estará longe. - Esta certa de poder jogá-la sem correr riscos? Portia reclinou os cotovelos sobre a mesa e olhou Olívia de perto, deixando bem claro ao que se referia. Olívia lhe devolveu o olhar. - Creio que essa decisão só interessa a mim. Fez-se um breve silêncio que Olívia se encarregou de interromper: - Em seu caso, decidiram por vocês mesmas. - Acho que o terceiro membro de nosso pequeno círculo pôs-se a voar Observou Portia - Venha, Phoebe, não fique com essa cara tão sombria. - Estou preocupada - Disse Phoebe simplesmente. Olivia retirou a cadeira para trás. - Não é minha intenção preocupá-la - Disse, e ficou de pé com a mão apoiada no encosto de sua cadeira, como se parte da confiança que tinha em si mesma evaporou-se - Mas não quero ir sem... sem ter chegado a um acordo. Houve um momento de silêncio e então Phoebe colocou a mão no bolso e deixou uma mecha de cabelo trançado, agora já sem brilho, em cima da mesa. Portia procurou dentro de sua blusa e pegou o seu. Deixou-o junto ao outro. Olivia também encontrou seu anel de cabelo e o colocou sobre a mesa. - Obrigado - Disse. Nenhuma das três disse mais nada ao pegar de novo as respectivas mechas de cabelo. Olivia voltou a guardar a sua no bolso. Esboçou um leve sorriso ao olhá-las e abandonou a sala. - Tem que deixar Olívia ir - Disse Portia enquanto Phoebe olhava seu anel de cabelo, que agora sustentava na palma da mão. - Terá que tomar sua própria decisão. - Eu sei. Mas sempre foi a menor. A que temos que proteger, a que temos que cuidar. - Creio que a partir de agora vai se encarregar disso ela mesma. Portia voltou a colocar a mecha de cabelo dentro da blusa. - Más é a filha de Cato. Sinto-me responsável por ela. Portia sacudiu a cabeça. - É nossa amiga, Phoebe. Isso é o primeiro e o mais importante. Olivia escreveu a mensagem para o pirata. Era bem sucinta: Se desejar jogar uma partida de revanche, estarei a sua disposição esta noite ou amanhã de noite. Irei buscá-lo no portão as seis em ponto.

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Olívia polvilhou um pouco de areia para secar a tinta e sorriu para si mesma. Tinha dado com o tom decidido e contundente que a interessava. Já era hora que Anthony soubesse que seu adversário naquele torneio sabia muito bem o que queria. Olívia imaginou sua surpresa ao descobrir que também sabia onde encontrá-lo. Além disso, ia descobrir que Olívia tinha várias perguntas comprometedoras que lhe fazer e que não pensava conformar-se com as respostas evasivas de sempre. A jovem jogou um xale grande por cima dos ombros, abandonou o quarto e saiu de casa. O caminho que levava a St. Catherine Hill era muito íngreme, mas o vento que soprava do mar a ajudava. Quando chegou ao alto da colina, virou-se e contemplou a enorme superfície resplandecente. Estaria lá o Wind Dancer? Haveria alguém observando se por acaso chegava algum sinal da ilha? Virou-se para a capela, que era pouco mais que um montão de pedras soltas que formavam um pequeno pilar que coroava o topo. Entendeu a razão pela qual o senhor o tinha escolhido como ponto de contato. Era um lugar proeminente que devia ver-se desde muitas milhas ao redor, tanto da ilha como do mar. Olívia se ajoelhou para examinar atentamente as pedras. Na base, entre as duas primeiras filas, abria-se um pequeno espaço. Era um oco quadrado, quase como uma despensa. Deslizou uma mão no interior e encontrou uma bandeira branca fortemente enrolada em um pau. A pegou e em seu lugar deixou a mensagem. Logo hasteou a bandeira por cima da capela introduzindo o pau entre as pedras. A bandeira ondeou garbosamente graças à brisa marinha. Agora só era necessário que alguém a visse. Olívia fez um movimento de aprovação com a cabeça e, com o vento contra, desceu pelo caminho disposta a esperar os acontecimentos. Anthony estava sentado com as costas apoiada contra o mastro, desenhando um par de gaivotas em plena briga sobre a cabeça de um peixe, quando Mike chegou remando com seu bote até o Wind Dancer. O ilhéu subiu pela escada de corda e saltou ao navio. - Havia uma mensagem, senhor... na capela. Não pude lê-la. É letra ligada e não a entendo - e dizendo isto estendeu a Anthony o papel dobrado com um gesto de preocupação. Anthony o abriu e deu um pequeno assobio. - Como? demônios...? E olhou Mike, com as sobrancelhas arqueadas e o olhar interrogador. - Vi que a bandeira ondeava, senhor. Pensei que precisavam de mim, que talvez zarpássemos ou algo assim. Mas ao ver a letra, então me dei conta de que não era sua. E ao dizer isto puxou do lóbulo da orelha. Sabe do que se trata, senhor? - OH, sim - Disse Anthony em voz baixa - Sei perfeitamente de que se trata. O que ignoro por completo é como demônios ela descobriu sobre a nossa capela. 147

Então voltou a apoiar a cabeça contra o mastro, fechando os olhos sob o sol que caía totalmente sobre as verdes e frias profundidades do ancoradouro no qual estavam ancorados. - Alguém deu com a língua, Mike. Mike puxou outra vez a orelha mais bruscamente. - Não fui eu, senhor. - Não, não pensei em você. Anthony abriu os olhos e seu agudo olhar cinza resultou inquietante. - Mas alguém o fez . Disse e a seguir se pôs de pé com um ágil e elegante movimento. Tenho coisas a preparar. E um trabalho para você, Mike. - Uma calça - Disse Olívia - Eu gostaria que me emprestasse uma de suas calças, Portia. As saias se levantam com o vento e se enredam com qualquer coisa. - O que quiser, tesouro - Disse Portia amavelmente - Agora mesmo busco uma. Também vai precisar de uma casaca. E saiu do quarto de Olivia com o passo rápido que a caracterizava. - Quanto vai demorar para retornar? - Perguntou Phoebe - Voltará pela manhã, não? Olívia deu um passo para tirar as anáguas antes de responder. - Acredito que sim... mas pode ser que me atrase - Respondeu com certa imprecisão e um tom meditativo. Pensa no vento e a maré. - Se não houver retornado pela manhã, posso dizer à senhorita Bisset que ficou na cama, ou estudando, e que não quer que a incomodem - Disse Phoebe mostrando certa resistência. Ainda não havia se resignado a aceitar o plano de Olívia, mas dando-se conta de que não tinha mais remédio senão consentir, também poria todo seu empenho para facilitar as coisas. Olivia lhe deu um beijo. - Não se preocupe, Phoebe. Tudo sairá perfeitamente bem. Meu pai não está aqui e não terá que inventar mentiras. Se não voltar pela manhã, diga somente que fiquei na cama para trabalhar em um texto muito difícil e que não quero que ninguém me incomode. Todos acreditarão. - Sim, suponho - Disse Phoebe lhe devolvendo o beijo - Não seria a primeira vez. - Eu gostaria de saber o que pensará seu pirata de sua dama com calças Comentou Portia ao voltar para o quarto e deixar em cima da cama um par de calças cinza escura de lã e um casaco. - Creio que não pensará nada - Disse Olivia pondo as calças e metendo a blusa por dentro do cós - Não pense que sua opinião tem muita importância - Acrescentou

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asperamente. Logo colocou o casaco e o abotoou - Que estranha me sinto com estes objetos. - Parecerão quão estranhas você quiser - Disse Portia com olhar crítico - Mas te asseguro que a favorecem. - É porque tem as pernas compridas - Disse Phoebe um pouco triste, já que suas próprias deficiências nesse aspecto frequentemente eram um motivo de queixa As duas têm pernas muito longas. Eu nunca poderei pôr calças. Tenho as pernas curtas e gordinhas. - Mas não tem por que usar calças - Observou Portia - Meu pai teria um ataque. Olívia deu voltas diante do espelho. Portia estava mais delgada que ela, mas mesmo assim as calças resultavam cômodas. Puxou as laterais do casaco até que conseguiu que chegasse aos quadris, mas mesmo assim não pôde dissimular suas curvas. “Provavelmente Anthony pegaria papel e lápis”, pensou, e seu olhar se fixou involuntariamente no livro que estava sobre a mesinha de noite. - Que faço com o cabelo? Deveria pôr boina? - Não quer parecer um homem, assim não se preocupe - Disse Portia- Faça tranças e as recolha em um coque. Olivia seguiu o conselho e sujeitou as duas grossas tranças formando uma pequena coroa ao redor da cabeça. Dava-lhe um aspecto bem austero e decidiu que gostava. - Como vai sair de casa com essa roupa sem que ninguém perceba? -Perguntou Phoebe. - Da mesma maneira que o fez Anthony. Entrando pela janela e descendo pela magnólia. - OH, vá, parece ter madeira de soldado - Aplaudiu Portia. - De marinheiro - Corrigiu Olivia - Deixo a tropa para você. Acho que me seduz bem mais a Marinha. - Deve ser o atrativo da matemática. - Exato. - Dito isto Olivia se dirigiu à janela e examinou atentamente a magnólia com certa insegurança. - É obvio, se não voltar esta noite, terei que subir pela magnólia para entrar. Será mais difícil. - Fique ai fora até que esteja escuro e eu me ocuparei de que a porta lateral fique aberta esta noite. Se efetivamente for, e voltar antes do amanhecer, pode entrar pela porta - Disse Phoebe com tom otimista - Mas, me diga, quanto pode durar uma partida de xadrez? Portia estremeceu sem dizer nada. Olivia olhou o relógio situado sobre o suporte da chaminé.

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- São seis e quarenta e cinco. Estou indo. - Tome cuidado - Disse Phoebe. - Boa sorte - Desejou Portia. Olivia esboçou um rápido sorriso, respirou profundamente e se enveredou nas copas superiores da magnólia. Ao chegar ao galho mais próxima do chão teve que saltar, mas a terra estava macia e sua aterrissagem ficou escondida pelas copas arqueadas da árvore. Cruzou o prado, correndo de arbusto em arbusto para esconderse atrás deles, e pensou pra quem nunca praticou a arte de esconder-se, parecia uma perita. Anthony chegou e partiu na escuridão, mas naquela tarde de inícios de verão ainda brilhava o sol e a ponto esteve Olívia de encontrar-se com dois jardineiros que regavam os canteiros. Agachou-se atrás do grosso tronco de uma faia e ali esperou que o ritmo de seus batimentos se acalmasse e que os dois homens se afastassem um pouco. No momento em que estes ficaram de costas a ela, cruzou os dedos e saiu em disparada para chegar ao outro lado da menor clareira sem esconderijos que a separava de um sebe. De lá foi fácil. Agora ninguém podia vê-la da casa, e em ambos os lados do caminho se alinhavam os carvalhos. Resguardando-se atrás das árvores alcançou o portão. Ainda estava aberto; o porteiro não o fecharia até a noite. Ouviu os meninos do porteiro brincando de correr pelo jardim traseiro da casinha em que viviam, mas não viu ninguém uma vez que a porta de entrada estava aberta para que entrasse o ar fresco da noite. O coração lhe pulsava muito depressa quando se encontrou no caminho, então se aproximou do muro, olhando para cima e para baixo. Haveria alguém? A princípio não ouviu o frágil assobio, confundido com o animado cantarolar dos pássaros que os acompanhava em sua busca de um galho onde passar a noite. Então o ouviu, baixo mais agudo, procedente da alta cerca do outro lado do caminho. Olívia correu para os arbustos e se introduziu por um buraco entre as copas. Mike segurava as rédeas de um par de cavalos. Sua reação diante do modo de vestir da moça se limitou a algo parecido a um murmúrio: - Por todos os Santos! Olívia o saudou com um sorriso. - Vamos montar, não? - Sim, senhorita, até a baía. O navio nos espera. O homem a ajudou a montar na cela do menor dos dois cavalos e montou no outro. Quando chegaram ao topo do penhasco, Olívia viu o estreito caminho que serpenteava até a praia, muito mais abaixo de onde eles estavam. Pensou que era o mesmo caminho pelo qual ela havia subido aquela desventurada noite em que abandonou o Wind Dancer. Que diferente se sentia nesta ocasião. 150

Mike atou os cavalos e abriu caminho descendo pelo atalho, muito íngreme e abrupto. Olívia tropeçou um par de vezes e um montão de areia e de pedras caiu como uma avalanche pelo penhasco. O pequeno veleiro estava na areia e dois homens estavam sentados junto a ele. Ao ver Mike e a Olivia chegarem à praia ambos ficaram de pé de um salto, e empurraram o veleiro para a água. - Nos perdoe, senhorita, mas o patrão nos disse que devemos vendar seus olhos outra vez. Olívia olhou Mike sem poder dar crédito a seus ouvidos. Este levava na mão um pedaço de tecido. - Como? - Perguntou indignada. - São ordens de nosso patrão, senhorita. Mike começou a apertar o pano entre suas mãos. Vacilou, recordando o que lhe haviam dito. O olhar de seu patrão havia sido particularmente agressivo. - Disse que se você não gostasse, era, para dizer assim, o preço que devia pagar por ser tão curiosa. De maneira que havia subido as apostas. Era aquele um jogo para dois? Devia fazer essa concessão no momento ou abandonar o assunto de uma vez? Partir da praia e deixar que o maldito capitão do Wind Dancer jogasse todos seus jogos sozinho? - Me dêem a venda - Disse, e a arrebatou das mãos do Mike - Porei isso no bote. Mike não dissimulou seu alívio. - Se me deixar que a leve nos braços alguns passos, senhorita, não molhará os pés. Então a levantou com toda facilidade e a deixou no bote, onde os dois homens estavam preparando a vela para içá-la. Sorriram para Olívia amigavelmente. Mike empurrou o bote mar adentro e embarcou de um salto. Olhou Olívia em atitude de quem espera algo e esta vendou os olhos. A jovem ia sentada em silêncio ouvindo o chapinhar da água em contato com a quilha do barco. Um dos dois homens começou a cantarolar, e os outros dois não demoraram para acrescentar-se ao ameno e rítmico cantarolar que acompanhava os suaves saltos causados pelo movimento da água. Curiosamente, essa sensação de cegueira pareceu sensual a Olivia... era como se percebesse os aromas, os ruídos e o movimento com muita mais intensidade. Como nas ocasiões anteriores, resultou-lhe difícil saber quanto tempo haviam ficado navegando. Pareceu muito com a outra noite e não resultou mais curto agora. Certamente se dirigiam para o oeste, posto que sentia os raios do sol poente sobre uma de suas bochechas. Logo notou uma mudança de direção e já não sentiu mais o sol. O ar era pesado e quente, o que lhe fez pensar que haviam entrado no canal que utilizavam como ancoradouro. Agora estavam remando e o ruído chegava muito amortecido. 151

Então um dos companheiros do barco emitiu uma espécie de ronco parecido ao de um mocho e imediatamente obteve um assobio como resposta, fino como a chuva. - Demoramos pouco. Disse Mike, e os outros mostraram seu acordo com uma espécie de grunhido como resposta. Agora, senhorita, seria melhor que tirasse a venda. Olivia desatou o pedaço de pano que lhe tampava os olhos. Apesar da suavidade da luz, durante um instante se deslumbrou. Logo distinguiu a elegante silhueta do Wind Dancer em frente, ancorado e balançando-se delicadamente no meio do estreito corredor de água que havia entre as paredes do penhasco. Não restava duvida de que a parte central do canal era muito profunda, o bastante para que coubesse a fragata. O ancoradouro estava completamente escondido e as paredes do penhasco se elevavam em ambos os lados deixando ver somente um pedacinho de céu na parte mais alta. O estreito canal continuava mais à frente do navio, mas se estreitava cada vez mais. Os remadores levaram o bote até o lado do navio e então Mike o amarrou a uma argola da popa. Olivia elevou o olhar e viu Anthony apoiado na amurada olhando para a parte inferior da escada de corda. - Fique onde está, Olívia. Disse de cima. - Vou subir - Respondeu ela. Segurando a parte do pano, aceitou a mão que Mike lhe oferecia para ajudá-la a subir pela escada, que ia balançando de forma alarmante ao lado do navio à medida que ela subia, e teve que lembrar que em uma ocasião saltou a uma rede de abordagem sobre o mar aberto, que se estendia a muitos pés debaixo dela. Entretanto, graças às calças a ascensão foi mais fácil. Anthony lhe ofereceu uma mão, mas ela a desdenhou e saltou sozinha pela amurada, seguida de Mike e dos remadores. Com um gesto de desprezo, sacudiu o pedaço de pano que havia coberto seus olhos, o qual foi parar contra a bochecha do pirata. Anthony o pegou com uma das mãos. - Incomodou, não é? - Disse ele em um tom satisfeito. - Olho por olho, dente por dente? - Perguntou ela. - Precisamente isso - Respondeu ele e seus olhos brilharam. - Vamos jogar xadrez? - Por qual outro motivo teria se incomodado em me deixar uma mensagem? Disse em tom de brincadeira - Se não se importa voltar para o bote, nos poremos a caminho. - A caminho de onde?

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Foi impossível para Olívia dissimular sua surpresa e ouvir si mesma manifestando-a. - Espere e verá, minha flor. Ele a olhou calmamente com o mesmo brilho de antes nos olhos. Sem dizer uma palavra, Olívia voltou a agarrar-se à corda, desceu pela escada e se sentou de novo no bote. - Eu em seu lugar andaria com mais cuidado - Murmurou Adam quando Anthony se apoiou na amurada a seu lado. Anthony ficou observando a ocupante do bote como se estivesse avaliando o caráter de um imprevisível felino. - Talvez tenha razão. Mas acredito que eu também dou trabalho. - Vêm ou não? - Gritou Olívia de baixo. Anthony dirigiu um sorriso a Adam. - Uma vez mais, talvez não. Anthony subiu no corrimão e depois desceu pela escada até o bote. Assobiando suavemente, segurou a amarração e o desatou da argola. Logo se sentou, segurou os remos e utilizou um deles para afastar o bote do navio. Remou com força, sem deixar de assobiar, dirigindo-se ao fim do canal entre as paredes do penhasco. - Aonde vamos? - Perguntou Olivia olhando por cima do ombro de Anthony enquanto este remava. Parecia que fossem desaparecer entre aquelas paredes em seu ponto mais estreito. - Espere e verá. E está foi sua desesperadora resposta. No instante em que verdadeiramente pareceu que iam estatelar contra a parede do penhasco no ponto mais longínquo do canal, Anthony deixou descansar os braços e olhou Olívia pensativo. - Diga-me, como descobriu o segredo da capela? - Uma pergunta de cada vez -Disse ela, cruzando suas mãos sobre a saia. - Siga. - Pensa em resgatar o rei? A resposta não chegou imediatamente, e Anthony continuou assobiando entre dentes, tal como estava acostumado a fazer, com o cenho franzido e o olhar no navio ancorado atrás da moça. - E se fosse assim? - Perguntou ele finalmente. - Então nada - Disse Olívia encolhendo os ombros. Mas não estou louca e não penso permitir que me trate como se estivesse. 153

- OH, acredite em mim, isso nunca me ocorreu - Disse categoricamente. - É essa sua intenção? Por isso se fez passar por um estúpido parasita da corte, para passar despercebido? Assim ninguém suspeitará que é capaz de planejar algo mais complicado que um passeio pelo penhasco? - Confio que nenhuma outra pessoa saiba interpretar meu pequeno jogo - Disse Anthony com uma risada discreta. - Certamente ninguém mais o interpretará. Só eu, porque eu o conheço. - Ah, sim? - Perguntou Anthony, e se apoiou nos remos, olhando à moça fixamente à mortiça luz do estreito. - Sei o que é... ou pelo menos, sei o que não é - Corrigiu Olívia. - Como chegou a descobrir a capela? - Não respondeste a minha pergunta. - Creio que sim. Olívia entendeu que em ausência de uma negação, havia que pressupor uma afirmação. - Um menino pequeno. Estava tão entusiasmado com seu navio de brinquedo que lhe escaparam algumas coisas enquanto brincava. - Ah, um dos meninos de Barker - Disse ele, e pegou de novo os remos - Era um risco previsível, mas um risco que considero razoável - E franziu o cenho olhando Olivia - Qual é o ponto de vista da filha de Granville sobre este assunto? - Não sei - Disse Olívia - Não perguntei. O sorriso travesso de Anthony se manifestou em todo seu esplendor.

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Capítulo 12 Anthony fez virar o bote na estreita passagem. - Sabe nadar? - Não - Respondeu em seguida Olivia com um movimento de cabeça - Não, porque eu fui criada em Yorkshire. E lá ninguém sabe nadar. De fato, eu não havia visto nunca o mar até que cheguei aqui. - Então já é hora de que aprenda. - Acreditava que íamos jogar xadrez. - Isso também. Então Olívia viu a fenda no penhasco. Era um arco muito estreito. O bote penetrou nela com um só impulso dos remos e de repente se encontraram em uma pequena baía de areia, aberta ao mar, mas protegida por três lados graças a uma espécie de saliência que se formava na parte inferior da parede do penhasco. Olívia contemplou a enorme bola de fogo do sol poente que afundava no mar justo atrás das rochas de Needles. Depois da estreita passagem era como voltar a encontrar-se em mar aberto. Anthony sorriu ao captar o prazer encantado de Olívia e remou até a praia. - Com a roupa que veste, arrumarei para que chegue até a areia sem ajuda Comentou Anthony. - Você gosta? A moça se pôs de pé e o barco balançou perigosamente. - Tem suas vantagens - Disse ele pragmático - Mas em geral a prefiro nua. Como sabe, eu gosto de utilizar modelos nuas. Olívia começou a ter a sensação de que as coisas estavam escapando de suas mãos. A princípio tudo lhe fez pensar que mantinha aquele encontro sob absoluto controle, mas agora já não estava tão segura disso. - Não tenho nenhuma intenção de posar para você – Afirmou - Nem nua nem de nenhuma outra maneira. - Tire os sapatos e as meias três - quartos antes de colocar os pés na água Disse em tom instrutivo como se não a tivesse ouvido. Olívia fez o que ele disse, mas notou que seus dedos se moviam torpe mente. -Também deveria subir as calças. Mordendo o lábio inferior, Olivia enrolou as calças até os joelhos. O pirata lhe estendeu a mão e a moça saltou à água, que era pouco profunda. A água estava deliciosamente quente e notou que a areia do fundo, repleta de sulcos, era ao mesmo

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tempo macia e dura sob a sola de seus pés pouco acostumados. Caminhou até a praia enquanto Anthony puxava o bote até encalhá-lo na areia. - O que é tudo isto? - Disse Olívia com um gesto de incredulidade diante da coleção de objetos que viu sobre a areia. - Um tabuleiro de xadrez - Sinalizou Anthony - E o jantar. Espero que você goste de frango assado. E mantas e almofadas para passar uma noite sob as estrelas. O frango parecia totalmente indigesto salvo para uma raposa, embora se diria que pelo menos o haviam depenado. - Isso é o que vai cozinhar? - Sou um perito - Garantiu-lhe o pirata - Encontrarei gravetos e troncos jogados pela maré. Recolherei também as lascas para acender um fogo. Olívia vacilou. Contemplou o sol poente; notou os raios sobre o rosto e a areia sob os pés. E lentamente voltou a ver-se enredada no novelo do sonho. Começou então a percorrer a pequena praia com as calças enroladas notando o ranger da areia sob a pressão de seus dedos. Recolheu pedaços de madeira com o mesmo cuidado com o qual qualquer outra mulher teria escolhido sedas bordadas, e voltou triunfante. - Olhe, tenho alguns gravetos e outros pedaços maiores para depois -Disse, e deixou cair a lenha que levava nos braços. Enquanto isso, Anthony havia disposto várias pedras plainas formando um fogão e havia trespassado o frango em um longo pau que ia servir como espeto. Preparou o fogo, esfregou os gravetos com uma pederneira e, ao cabo de poucos minutos, as chamas brilhavam e o frango assava em cima das pedras. -Agora vamos jogar nossa partida de xadrez - Disse, e logo em seguida colocou o tabuleiro sobre outra pedra plaina e se sentou com as pernas cruzadas frente às brancas - Você, me parece, têm que perder nesta partida. - Ah! - Exclamou Olívia, sentando-se sobre a areia - Nunca perco. Nem sequer quando concedo a revanche. - Desta vez perderá - Disse ele seguro de suas palavras - E depois a ensinarei a nadar. Em troca, você posará para mim. A desenharei, sentada tal como está sobre a areia, com o cabelo recolhido... mas sem roupa. Olívia o olhou, e em seu rosto se refletiu o resplendor do fogo. - Se ganhar, eu lhe direi o que pode ou não pode fazer. - Sempre que te darei esse direito - Disse ele serenamente, e agora seu olhar se tornou sério ao encontrar-se com o dela - Sempre, Olivia. E a moça soube que assim seria. Com Anthony, ela nunca perderia o direito sobre seu próprio corpo, sobre suas próprias respostas. Somente ela decidiria. - Mova - Disse ela.

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Anthony moveu o peão a quatro rei. - Vamos, que típico - Disse Olívia com uma espécie de cacarejo, e respondeu com o convencional movimento que correspondia. - Reservo as surpresas para mais tarde - Murmurou Anthony. Uma hora mais tarde, quando o sol começava a esconder-se atrás do horizonte, disse em um sussurro quase imperceptível: - É mesmo um demônio, Olívia. Teria jurado que tinha um par de jogadas. - Ofereço um empate - Disse a moça sorrindo - Aceite enquanto está em condições de fazê-lo. - Não têm mais alternativa que um empate. Sinalizou ele dizendo a verdade. Não têm mais possibilidades de ganhar do que eu. - OH, esperava que não se desse conta. - Não acrescente o insulto à injúria - Disse Anthony, inclinando-se para o lado para virar o frango - E não se esqueça de que resta ainda uma partida. - Por que iria querer se submeter à tortura de uma nova derrota? -Perguntou Olívia fingindo surpresa em um tom zombador. - Que vaidosa vêm a ser! Acredito que chegou o momento de um pouco de água fria. Disse, e inclinando-se a segurou pelas mãos e a manteve a seus pés . -Tire a roupa, vou lhe ensinar a nadar. Anthony começou a despir-se. Olivia o observou um momento, e lentamente, movendo os ombros, se livrou do casaco e desabotoou a camisa. -Permita-me ajudá-la. Sem roupa, Anthony se aproximou dela e tirando suavemente a camisa deixou os ombros nus. O ar fresco acariciou os seios de Olívia e seus mamilos se ergueram. Ele a olhou com a interrogação pintada nos olhos. As mãos de Anthony se dirigiram aos botões das calças de Olívia, mas devagar, lhe dando tempo. Olívia dirigiu seu polegar para a boca de Anthony e o tocou. Ele desceu as calças até a altura dos quadris, roçando levemente a pele com suas mãos. Olívia deu um passo ao lado para despojar-se daquela peça e ficou nua sobre a areia, sentia cada milímetro de sua pele primorosamente sensível e no ventre o tremor da espera, que suavizou seus quadris. Anthony aproximou o corpo da moça ao dele. Com as mãos lhe percorreu sem pressa as costas, lhe dando tempo novamente para que se retirasse. Mas Olívia já não necessitava de tempo. Deslizou uma mão pela barriga do pirata. Os músculos de seu abdômen se contraíram e sob o toque de sua mão notou que o sexo do pirata cobrava vida. Ela se apertou, desfrutando, contra o calor de sua pele, da firmeza de seus músculos e, graças a leve brisa que soprava do mar, notou com mais intensidade sua própria nudez. - Talvez nadar deveria esperar - Murmurou Olívia, lambendo a pequena fenda que se formava na base do pescoço de Anthony, saboreando o sal e o mar. 157

- Pode-se fazer ambas as coisas - Disse Anthony em voz baixa contra a face de Olivia, aproximando seus lábios até a suave linha dos lábios da moça. Depois introduziu a ponta de sua língua na orelha dela, que se retorceu de prazer. - Anda, venha. Ele a pegou pela mão e a levou para dentro da água, onde as pequenas ondas quebravam contra suas panturrilhas; então a estreitou em um forte abraço que a manteve imóvel, apertada contra todo seu corpo, e ao mesmo tempo introduziu profundamente a língua na boca da moça enquanto ela gemia levemente colada a seus lábios. Agora sim tinha urgência nas mãos de Anthony percorrendo o corpo de sua amada, e essas carícias tinham a ferocidade da paixão. Olívia sentiu um arrepiou ao notar o frescor da noite sobre sua pele quente. Sob os dedos dos pés rangia a areia molhada e os mamilos endureceram em contato com o peito de Anthony. Este pôs as mãos sobre suas nádegas, que se contraíram em contato com as palmas, o que levou Anthony apertar tão intensamente que Olívia notou o sexo do pirata esfregando-se contra sua coxa. Ela se moveu ligeiramente, abrindo as pernas para lhe permitir a entrada, e com sua mão o guiou para dentro. - Rodeie meu pescoço com os braços. Olívia obedeceu com entusiasmo. Ele a segurou por trás dos joelhos e a ergueu até que os pés perderem o contato com a areia e então ele se deslizou em seu interior. Seu abraço agora rodeou as nádegas da moça, que se apoiavam nas palmas dele. Fugazmente Olívia disse a si mesma que daria na mesma estar em público; se alguém chegava a vê-los, contemplaria dois amantes nus entre as ondas e unidos em flagrante sensualidade. Então chupou o lábio inferior de Anthony e o sorveu como se fosse uma ameixa madura, logo o mordeu, pequenas e provocadoras dentadas enquanto se deixava levar por seus quadris. Então ele ficou muito quieto, imóvel no interior de Olívia, enchendo-a, convertendo-se em parte dela. E muito antes que ela estivesse preparada, ele afrouxou seu abraço e ela escorregou pelo corpo dele com um pequeno suspiro de decepção. Anthony riu docemente ante a expressão de Olívia enquanto ela o olhava com um ar de surpreendido protesto. - Não se preocupe, minha flor, o melhor ainda não chegou. A tomou pela mão de novo e se afastaram um pouco mais da borda. Quando a água lhe cobriu a parte superior das coxas, Anthony tornou a abraçá-la. Rodeou a cintura com um braço e com a outra mão levantou um pouco o queixo e a olhou longamente. Olivia lambeu os lábios e seus olhos escuros sustentaram o olhar de Anthony, que viu a própria paixão refletida nas aveludadas profundidades de seus seres. Seria esta paixão que meu pai sentiu por Elizabeth de Bohêmia? Meu pai não teve em conta as consequências que comportaria perseguir aquela paixão e pessoas inocentes sofreram essas consequências.

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Anthony fechou sua mente a uma reflexão que sempre suportava amargura. Tinha Olívia aqui. Não formava parte de seu passado, não a culpava pelos desenfrenhos de seu pai. E fossem quais fossem os fantasmas que a haviam açoitado após seu último ato de amor, o desejo que se expressava em seus olhos e a ânsia de respostas deixavam bem claro que, ao menos no momento, aqueles haviam se desvanecido. Anthony a beijou e a moça fechou os olhos. Sua mão foi percorrendo o corpo de Olívia, do queixo até o perfil de seus seios que afloravam na água, que refrescava e golpeava docemente a parte inferior de seu corpo. Delicadamente lhe retorceu os mamilos, que foram endurecendo entre seu polegar e seu indicador, e foi aumentando a pressão até que ela gemeu e estremeceu. O palpitante calor do corpo de Olívia contrastava com as frescas lambidas da água do mar. Anthony a inclinou sobre seu próprio braço que a segurava e com a mão livre acariciou o ventre suave e branco da moça. Deteve os dedos para brincar no vértice do triângulo que formavam suas coxas. Com o joelho, Anthony lhe separou as pernas para que recebessem a fresca carícia da água e seguindo o exemplo desta os dedos sondaram até o mais profundo, com insistência, até que os gemidos de Olívia se converteram em pequenos soluços de prazer. O mar, na mão de Anthony, converteuse em um instrumento para dar prazer a Olivia, e o utilizou afastando-a ainda mais da praia, onde flutuou sobre seu braço, com o corpo aberto, abandonada a dupla carícia. Olívia se deixou levar, com os olhos fechados, e agora era somente um ser sensível carente de vontade, fundida com a água que a sustentava e a explorava com dedos íntimos e escrutinadores, indivisíveis dos de seu amante. Quase não estava consciente quando Anthony, balançando-a contra seu corpo, conduziu-a até a praia. Então a deixou caída sobre a espumosa água que se formava na borda. A areia se movia debaixo de seu corpo sob o rítmico vaivém das pequenas ondas. A moça elevou os quadris e ele penetrou em seu interior com toda sua energia para possuí-la tão absolutamente que deixasse de ter consciência de si mesma, alheia ao corpo que a enchia e que a tomava enquanto jazia presa entre este, a movediça areia e o mar, abandonada sem remédio ao selvagem gozo da consumação. E lentamente as ondas do desejo se foram retirando e ficou somente o som das ondas do mar, e Olívia estremeceu nos braços de Anthony enquanto ele a abraçava contra seu corpo. -Que aula de natação mais estranha - Disse ela em um sussurro. Ele riu delicadamente, pôs-se de pé e a ajudou a levantar-se. -Vem, ande depressa. Estas palavras desorientaram Olívia, que ainda tinha um pé no mundo no qual havia se dissolvido. Anthony a tomou pela mão e a obrigou a entrar na água outra vez. Rapidamente sacudiu a areia que tinha grudada nas costas, com gestos íntimos mas sem atrasar-se neles, e limpou todos os cantos e fendas de seu corpo.

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- Não se entretenha - Disse em tom autoritário. Encontrarás toalhas junto ao fogo. Vou nadar. A fez voltar-se para a praia deu-lhe um tapinha amistoso de ânimo e Olívia voltou a si. Então correu para a praia, saltando entre as pequenas ondas. Os dentes chiavam e tinha a pele arrepiada. No ar flutuava o delicioso aroma de frango assado, ouviu o rangido da pele do animal tostando e o vaio da gordura ao cair sobre as brasas, e Olívia sentiu uma fome voraz. Uma fome magnífica, uma sensação maravilhosa, estimulada pela luta entre a sonolência que chega depois do ardor e o estimulo físico da água fria e o ar da noite em sua pele molhada e nua. Encontrou as toalhas, tal como havia indicado Anthony. Segurou uma e secou o corpo energicamente, olhando o mar, olhando como o nadador abria a água com suas poderosas braçadas. Esperou se por acaso a negra nuvem da repugnância se apoderava dela. Mas os vestígios do recente gozo permaneciam imaculados. Aproximou-se mais do fogo, para esquentar as panturrilhas, e viu Anthony sair da água e correr para a praia, salpicando água ao sacudir o cabelo. Olívia o olhou. Amava cada uma das linhas de seu corpo, os pequenos promontórios de seus mamilos, a planície dura e lisa de seu ventre, seu sexo agora apaziguado entre o ninho de cachos loiros que, molhados, pareciam negros e a extensão musculosa e macia de suas coxas. - Chega, chega! - Disse Anthony rindo, e estendeu a mão para alcançar uma toalha e secar-se com energia mas superficialmente - Com isso basta para fazer ruborizar qualquer homem. - Ora, ora - Caçoou Olivia - Acreditava que era você quem adorava o corpo humano, fosse gordo, magro, curvado ou reto. As criações mais maravilhosas. Não foi isso o que disse? - Sim, e é completamente certo - Disse ele, lhe arrebatando a toalha molhada que a envolvia e passeando seus olhos pelo corpo da jovem, lhe percorrendo cada centímetro de pele. Olívia se pôs a tremer e Anthony pegou outra toalha. - Vai pegar um belo resfriado! Começou a esfregá-la com a toalha, sacudindo-a e lhe dando voltas como se tratasse de uma boneca de pano, inclinando-a por cima de seu antebraço para lhe secar as costas e as nádegas e depois as coxas, de cima abaixo. Quando considerou que já estava completamente seca, jogou a toalha de lado e pegou uma manta, com a qual a envolveu para abrigá-la. - Assim está bom. Agora esta pronta para ser colocada na cama.

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-Pensei que fosse me desenhar - Disse a garota e se agasalhou com a áspera lã da manta. -Pela manhã, quando o sol a esquentar. E dito isto puxou algumas lenhas mais para o fogo. A pele do frango estava tostada e rangia ante ao fogo. – Daqui a pouco estará preparado. - OH, estupendo. Tenho uma fome de lobo. Disse Olívia sentando-se junto ao fogo, bem agasalhada com a manta. Anthony abriu uma cesta e pegou uma barra de pão, queijo, uma garrafa de vinho e um par de taças de estanho. As encheu de vinho, de uma cor amarela pálida, e partiu alguns pedaços de pão. - Está noite comeremos com os dedos. - Não temos mais remédio. Disse Olívia pegando a taça e o crocante pedaço de pão, que cheirava como se o tivessem acabado de tirar do forno. - Não vai se cobrir com uma manta? - Não faz frio. Respondeu ele com um de seus leves e secretos sorrisos. - Então não poderá se queixar de que meus olhos se regozijem em seu corpo. Murmurou Olívia mascando um bocado de pão e queijo. Anthony respondeu soltando uma gargalhada e se sentou junto ao fogo. Com a ponta de sua adaga cravou o frango. O resplendor do fogo lhe dançava na pele, muito queimada pelo sol, e iluminava a ossuda curva que desenhava sua coluna e mandava um magro feixe de luz à escura e secreta sombra do fim de suas costas. Olívia, envolta em sua manta, bebia vinho e o olhava sem nenhuma vergonha, desfrutando de seu corpo. De repente pensou em Godfrey Channing, pelo que pensaria se a visse assim. E pensou em Brian, e aquele pensamento a pressionou como se fosse um molar a ponto de nascer, esperando a energia necessária para despontar com dor. Anthony separou uma coxa do resto do corpo da ave, e observou a cor do suco que desprendia. - Tem frio? Não a olhou ao dizer estas palavras, mas de algum jeito percebeu a mudança que havia se operado na moça, e temeu lhe dirigir o olhar e reconhecer o asco, o distanciamento de novo em seus olhos. - Não. Respondeu Olívia, apoiando a bochecha sobre seus joelhos dobrados. Absolutamente Disse estas palavras com convicção. Só então, ao tirar aquele peso de cima, deu-se conta do medo que havia sentido. Começou a partir pedaços do frango e com sua adaga cortou o peito em deliciosas fatias que foi amontoando sobre duas grandes pedras planas.

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Comeram e beberam à luz do fogo até que a lua ficou no mais alto do céu e enviou um rio de luz prateada sobre o mar. Mais tarde, Olivia se lançou e Anthony a rodeou com seus braços entre as mantas. Tinha sono e entretanto seus olhos se negavam a fechar-se. A noite repleta de estrelas era muito bonita. Depois de ter feito amor, sentia-se tão cheia de paz e de satisfação que nem sequer a certeza de sua efêmera natureza podia estragar sua lânguida felicidade. Era como se tivessem fechado todas as feridas. Esta seria a lembrança que levaria consigo. Muitos anos depois, ainda lembraria o que sentiu deitada sob aquela áspera manta junto ao resplendor da fogueira, escutando a canção de berço das ondas ao estalarem contra a borda, com o corpo de Anthony apertado contra o seu, a cabeça acomodada na curva de seu ombro, suas pernas entrelaçadas entre as suas. Muitas mulheres... a maioria das mulheres... nunca conheceriam essa profunda felicidade, por muitos anos que vivessem. Aquela intensa paixão a acompanharia toda a vida, e valeria mais que anos e anos de desgosto e vulgaridade, mortiços, nos quais nem sequer se vislumbrava o esplendor que pode chegar a existir entre um homem e uma mulher. Por fim Olívia fechou os olhos e se surpreendeu ao notar que as lágrimas lhe escapavam entre os pálpebras. Não havia se dado conta de que chorava em silêncio enquanto falava consigo mesma para aceitar uma futura realidade em que não haveria lugar para está paixão. A filha de lorde Granville e Anthony Caxton não poderiam desfrutar um do outro no mundo real, somente no sonho que haviam tecido eles mesmos. Despertou à alvorada e se encontrou sozinha sob a manta. Levantou-se sob a luz cinzenta, sem soltar a manta que a cobria. O frio ar da manhã lhe fez sentir um arrepio. Ao longe, no leste, o sol ainda invisível desenhava uma linha avermelhada sobre o horizonte. Enquanto a contemplava, a linha se estendeu e o céu resplandeceu de cor vermelha e laranja, e em seguida a enorme bola solar se assomou pelo horizonte projetando uma brilhante luz púrpura sobre a superfície do mar. -Que belo, não é? Virou-se ao ouvir a voz de Anthony detrás. Tinha se vestido e sustentava em suas mãos um par de peixes que se balançavam pendurados pelo anzol. - O café da manhã - Disse inclinando-se para ela, para beijar o rosto que o olhava. - Tenho que... - Ali por trás tem rochas e diante, o mar - Disse ele, deixando cair o peixe na areia e agachando-se para refazer o fogo e reanimar o lânguido resplendor dos rescaldos. Olivia se pôs de pé, separando-se da manta. Alongou-se voluptuosamente, olhando como as hábeis e destras mãos de Anthony realizavam o trabalho. As chamas por fim brilharam e então ele recolheu os peixes do chão e os levou à água para laválos. 162

Olívia o observou atentamente durante um minuto, logo, ao lembrar que precisava fazer algo, dirigiu-se a um lugar que ficava escondido por uma protuberância das rochas. Quando voltou, o pescado estava assando sobre uma pedra plana colocada sobre as brasas. A moça se vestiu e se sentiu estranha vendo-se vestida. - Na outra garrafa há água, se tiver sede - Disse Anthony assinalando com a cabeça para a cesta. Olivia deu um longo gole da água doce e fresca. Desceu maravilhosamente. Era como se todos seus sentidos houvessem se aguçado, como se todas suas experiências cobrassem muita mais intensidade aqui, nesta diminuta praia sob o céu avermelhado da madrugada. - Quando chegarmos ao barco, Mike a levará para casa - Disse Anthony pegando a garrafa que Olívia lhe estendeu. Olívia ficou contemplando o mar por cima do ombro de Anthony. Não era necessário que despertassem imediatamente do sonho. Seu pai não ia voltar até alguns dias mais tarde. Phoebe e Portia encontrariam a maneira de explicar sua reclusão na cama. O contrário seria desperdiçar um tempo precioso. - Não tenho que voltar hoje mesmo. Anthony afastou a garrafa de seus lábios. - E seu pai? - Não está em casa. Não voltará até dentro de alguns dias. - E sua esposa? - Só tenho que enviar uma mensagem para que ela e Portia não se preocupar se demoro um pouco mais do que imaginava. Anthony não respondeu imediatamente. - O que é que sabem exatamente? - Sabem que estou jogando xadrez com o pirata que me sequestrou -Disse com uma pequena gargalhada - E Phoebe não aprova que jogue xadrez nem nada com um personagem tão desagradável. Portia é um tanto mais solidária, mas é porque sabe tudo sobre as paixões com desconhecidos desagradáveis. Anthony levou a garrafa de água aos lábios. “Isso é tudo o que Olivia contou a suas amigas intimas e confidentes? Às esposas do inimigo? Não mencionou o nome de Edward Caxton?” Anthony lhe devolveu a garrafa de água. - Tenho que levar o Wind Dancer até Portsmouth com a maré da manhã. Podemos retornar amanhã de noite disse enquanto virava o pescado sobre a pedra. - Estou convidada?

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Olívia teve a sensação de que, subitamente, Anthony havia ficado tenso. Ele a olhou com um sorriso que encerrava tantas promessas que qualquer indício de tensão se desvaneceu. - Mike levará uma mensagem a suas amigas. - O que tem que fazer em Portsmouth? - Tenho que atender um pequeno negócio. - Que tipo de negócio? - Perguntou Olívia, e se ajoelhou na areia, farejando sem dissimular que estava faminta. - Tenho coisas a vender - Respondeu ele oferecendo a Olívia um dos dois pescados. Ela o partiu em dois e o comeu. Nunca havia caído tão bem o pescado como agora. Certamente os piratas sempre tinham coisas que vender. E era de supor que sendo tão recente a volta de sua última navegação, Anthony ainda teria toda a mercadoria do Dona Elena. - Somente isto, senhorita? Mike ficou olhando a pequena mecha trançada que Olivia lhe deu ao chegar ao Wind Dancer. - Só isto - Disse Olívia - Mas tem que se assegurar de que seja entregue a Lady Granville ou ao Lady Rothbury. Se mandasse uma mensagem escrita, podia cair nas mãos de Bisset. Aquela mecha de cabelo não significava nada absolutamente para ele. Os aldeãos frequentemente mandavam coisas estranhas a Lady Granville, fosse como amostra de agradecimento por seus serviços ou como sugestões dos herbários de algum novo medicamento. Bisset não suspeitaria nada de um aldeão que levava algo tão peculiar a sua senhora. - Ice a bandeira, Mike, para que saibamos que entregou a mensagem e que tudo está bem - Disse Anthony sem levantar a vista dos mapas que estava riscando Estaremos no canal às dez. Se não virmos a bandeira, nos encontraremos o bastante perto para pôr Lady Olívia no bote e levá-la à costa. - À suas ordens, patrão - Disse Mike, e introduziu a frágil mecha trançada no bolso de sua casaca - Então vou. - Obrigada - Disse Olívia. Mike inclinou a cabeça e abandonou o camarote. O canal onde estavam ancorados era muito estreito para que o Wind Dancer pudesse virar e tiveram que sair dele de marcha ré. Os marinheiros cantavam ao uníssono a cada golpe de remo com o que o empurravam fora da estreita passagem. Olívia, de pé no tombadilho superior, viu que o canal ia se alargando e frente a ela vislumbrou o mar. Então saíram pela greta do penhasco e os marinheiros levaram a fragata até o grande canal. 164

Anthony estava no leme dando ordens com voz clara e firme. Olívia se virou para ver o penhasco, tentando distinguir a fenda pela qual haviam entrado na passagem, mas por muito que tentou não conseguiu ver nenhuma greta na parede. Sim havia diminutas enseadas rochosas, em uma das quais tinha passado a noite com o pirata, mas era como se o passadiço se fechasse sobre si mesmo depois da saída. - A bandeira, patrão! - Exclamou uma voz do pau de mezena. Anthony apontou o telescópio. Uma bandeira branca ondeava no alto de St. Catherine's Hill. Ele passou o instrumento a Olívia. - Parece que temos um pouco de tempo - Disse ela, observando a alegre mensagem de suas amigas. - Se é assim. Anthony deu ordem de que os remadores subissem a bordo. Os botes foram içados atrás deles, e desdobraram as velas para aproveitar o vento. Primeiro o navio desequilibrou quando Anthony o fez balançar para guiá-lo, logo se endireitou e começou a dançar por entre as ondas cada vez maiores. Olívia se sentou no convés, sob os raios de sol, fechou os olhos e abandonou seu corpo à oscilação do navio. O delicioso aroma de toucinho frito flutuou no ar e também outro aroma, este estranho e amargo. Adam chegou até onde ela estava com uma bandeja que deixou sobre o convés junto à moça. Havia pão e toucinho, um par de xícaras de porcelana, e um pequeno recipiente de cobre cheio de um líquido escuro que desprendia um intenso aroma. - O que isto é, Adam? - É café... trouxemos da Turquia. Estivemos lá faz alguns meses, e o patrão se cativou com seu sabor - Explicou o homem, e logo enrugou o nariz - Uma mistura muito forte. Eu não o suporto. - Esta criticando meu café, Adam? Anthony havia deixado o leme a Jethro e se aproximava deles. - Cada um para si, é o que eu digo - Declarou Adam, e saiu. Anthony se sentou ao lado do Olívia, encheu as duas xícaras com a espessa e negra bebida e ofereceu uma à moça. - Prove. Olívia deu um gole. Era amargo e doce ao mesmo tempo. - Acho que não gosto. - Vai tomar gosto com o tempo - Disse. Anthony pegou um pedaço de toucinho com os dedos e o pôs sobre um pedaço de pão. Logo se apoiou no corrimão e deu uma boa dentada. Olívia seguiu seu exemplo. - Quanto falta para chegar à Portsmouth? 165

- Devemos estar lá pela tarde. Quando houvermos passado Needles, então poderei abandonar meu posto no leme. Olívia se virou para ver as pontiagudas rochas cada vez mais próximas. - São muito perigosas, não é? - Sim. São. - Mais que St. Catherine Point? - Depende do tempo que esteja fazendo. As rochas de St. Catherine Point são menores e em consequência podem chegar a ser mais perigosas. Em uma noite escura certamente é mais fácil encalhar nelas que em Needles. Disse estas palavras despreocupadamente, servindo-se outro pedaço de toucinho. Olívia olhou por volta das rochas e o mar enfurecido e espumoso que as rodeava. Pôs-se a tremer. O porto de Portsmouth estava repleto de navios da Marinha. O cais estava abarrotado de marinheiros. Numerosos barcos com policiais e provisões iam e vinham entre os grandes navios, tudo isso acompanhado pelo gorjeio de gaitas de fole e o rufo de tambores. Olivia ficou em um canto do tombadilho superior enquanto Anthony conduzia o Wind Dancer até situá-lo entre outra fragata e um navio comercial, onde ancorou. Ela não sabia nada de navegação, mas não era necessário ser um perito para apreciar a delicadeza de suas manobras. Jogaram a âncora entre o fragor das cadeias, e o navio se balançou suavemente no fluxo. - E agora que acontece? - Perguntou Olívia. - O que desejas que aconteça? Anthony guiou a curva da bochecha com o indicador e Olívia percorreu com o olhar o animado porto. - Pareço um menino. O que irão pensar as pessoas se o virem comigo? - Que me dedico ao vício inglês - Respondeu ele com um sorriso - Isso não é raro entre marinheiros... passam tanto tempo no mar que... já sabe. - Não sabia que era um viciado inglês - Disse Olivia seriamente - Entre os gregos e os romanos, claro, mas... OH! Estas tirando sarro comigo. - Só um pouco - Respondeu, apoiou-se no corrimão, contemplando tranquilamente a cena - Se quiser, podemos passar a noite na cidade. - Mas não tenho nada que usar, só está roupa. - OH, acho que encontraremos algo que te favoreça se procurarmos entre os tesouros da adega. Vem, vamos olhar. disse, e se pôs em marcha com seu pausado andar. Ela o seguiu até a parte central do navio, aonde Anthony pegou um lampião.

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Acendeu-o e levou Olivia até a escura adega que cheirava a mar e ao breu com o que calafetavam a madeira. Baús, barris e fardos se empilhavam até o teto. - Vamos ver, em qual destes baús... Ah, parece-me que é este - Disse dirigindose sem vacilar para um baú reforçado com fitas de seda de ferro-. Segura o lampião. Olivia o pegou e o sustentou no alto enquanto ele se ajoelhava e abria o baú. - O que você gostaria mais? Musselina... cambraia... seda... inclusive posso te oferecer veludo - Disse revolvendo entre o montão de roupa - Se não recordo mal, no fundo há alguns vestidos longos. O que te parece este? Anthony pegou um vestido longo de musselina verde escuro. - É muito lindo - Disse Olívia examinando-o sob a luz - Acha que me servirá? Anthony se ergueu sustentando o vestido para que Olivia o visse. -A mim parece perfeito. Adam saberá fazer qualquer acerto que seja necessário. Agora necessita meias, sapatos e um xale. Voltou a revolver pelos baús, abrindo-os ao azar, até que deu com os objetos que procurava. -Ao final vai ficar mais bonita que uma princesa. Olivia trocou o lampião pelo punhado de objetos. - Jantaremos na cidade? -Sim, no Pelican, senhora. Servem pratos deliciosos. Vestida com a roupa emprestada, Olívia foi sentada na popa do pequeno bote até que chegaram ao cais. Anthony também havia se vestido para a ocasião com um casaco e calças de seda cinza, tão escuros que quase pareciam negros. Olívia sabia que estava vivendo um sonho. Estava participando de uma obra cujo texto desconhecia. Não tinha nem ideia de qual ia ser a cena seguinte. Era um mundo apaixonante e arrebatador que não guardava nenhuma relação com o mundo real. Mas haviam comprado o tempo e se deu permissão para que o sonho a apanhasse, a usasse, desdobrasse-se diante dela. Já era tarde quando retornaram ao navio, e Olívia se deu conta de que talvez houvesse bebido mais Borgonha do que era razoável. Tinha a sensação de estar flutuando entre espuma... uma deliciosa sensação que tentou descrever a Anthony, mas sem muito êxito. Em troca provocou um sorriso um pouco zombador nos dois marinheiros que remavam para devolvê-los ao navio e se perguntou vagamente e sem preocupar-se muito se suas palavras soavam diferentes de como ela as ouvia em sua cabeça. Quando o bote ficou amarrado a um lado do navio. Anthony olhou primeiro a escada de corda que pendurava e logo, com atitude avaliadora, Olívia. - Acho que não vale a pena correr o risco.

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- Que risco? - Perguntou Olívia, a quem escapou um soluço. - Não se preocupe. Venha. A ajudou a ficar de pé. O pequeno bote oscilou perigosamente. Anthony se inclinou para pôr o joelho na barriga de Olívia e subí-la mais, abraçando-a fortemente por detrás dos joelhos. Olívia se encontrou olhando os protuberantes ossos das omoplatas escondidas sob a casaca cinza. Teria gostado beijá-los, mas nem sequer tentou. Assim renunciou a isso e em seu lugar contemplou meio sonolenta e através do véu negro de seu arbusto de cabelo a água verde escura que se chocava contra os lados da fragata. Mãos a levantaram do outro lado do corrimão e a deixaram sobre o convés, sã e salva. Anthony saltou e se pôs a seu lado sem poder reprimir a risada ao vê-la. - Sinto muito, mas acho que amanhã não vai se encontrar muito bem -Disse Anthony afastando o cabelo emaranhado da face. - Agora me sinto muito bem - Garantiu-lhe Olívia. - Sim, carinho, estou vendo. Risadas abafadas percorreram o convés do navio, e Olívia sorriu alegremente a aqueles simpáticos marinheiros, cujas faces lhe resultavam já familiares. - Pode chegar andando até a cabine ou quer que a leve nos braços? - OH, acho que poderia me levar nos braços - Respondeu ela com outro menor acesso de soluço - É muito estranho, mas é como se as pernas não fossem minhas. - Então acima, vamos. Anthony a carregou por cima do ombro e desceu até a cabine com seu troféu. Olívia cambaleou no chão e dedicou um belo sorriso a Anthony. - Terá que me despir. Parece que minhas mãos tampouco são minhas. - Isso é sempre um prazer. Olívia observou com ar interrogador como as peças emprestados iam deslizando-se por seu corpo. - Estas estavam no Dona Elena? Ninguém diria que são muito espanholas. - Não, procedem de um naufrágio - Disse ele tirando-lhe a blusa pela cabeça. “Pirata. Contrabandista. Provocador de naufrágios”. Era como se ouvisse sua despreocupada voz ao dizer quão fácil era que um navio se chocasse contra a rochas de St. Catherine's Point. Exatamente como o naufrágio da noite antes que ela caísse... E na manhã seguinte, havia caído aos pés do vigia do Wind Dancer, um pouco mais abaixo na costa, a pouca distancia daquele ponto. Que fácil atrair o navio até as rochas e depois levar os restos do naufrágio ao seguro refúgio da passagem secreta. Que fácil. 168

Pirataria. Contrabando. Os que estavam fora da lei. Olívia sabia que jogavam sujo e que eram perigosos, e que aqueles que os perseguiam morriam. E sabia também que para a maioria dos contrabandistas os naufrágios eram uma atividade complementar. Sabia, era sabido por todos os ilhéus, mas não podia chegar a entendêlo. Não com o Anthony. Não podia ser que ele... Encontrava-se mal. Uma náusea como uma onda a invadiu. Em seu afã por alcançar a cômoda, empurrou Anthony. Anthony se moveu para lhe segurar a cabeça quando ela não pôde conter o vômito, mas Olívia o afastou com um gesto tão desesperado que a deixou. Tinha uma lembrança muito viva de seu próprio sofrimento do princípio e não quis acrescentar mais mortificação a Olívia. Subiu ao convés pensando no leilão que teria lugar pela manhã. À alvorada chegariam os comerciantes e os proprietários de lojas, os taberneiros e os compradores particulares. Chegariam em seus botes menores para dar uma olhada a sua mercadoria e fariam substanciosas ofertas. Pagaria a sua tripulação, as pensões e as gratificações dos homens que trabalhavam para ele, homens que eram seus amigos, e separaria o que ele necessitava para viver a vida que havia escolhido. O resto iria para a mãos de Ellen para que fosse distribuído entre os insurgentes partidários da monarquia segundo ela e o pároco acreditassem mais adequado. E com a próxima lua nova, o Wind Dancer levaria até a França o rei da Inglaterra. Anthony bocejou, se espreguiçou e desceu ao camarote. Olívia estava amontoada em um canto da cama. Anthony se despiu à mortiça luz da vela e se enfiou na cama a seu lado. Tentou aproximar-se com um abraço, mas era como se Olívia estivesse rodeada por um cerco espinhoso. Compreendeu que ao sentir-se enjoada desejasse ficar completamente só e se afastou dela. Mas não conseguiu dormir até que suas costas se apoiaram nas da moça.

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Capítulo 13 Anthony se barbeou cuidadosamente sobre o lábio superior, então deixou a navalha e pegou a toalha que Adam lhe dava. - Sabe que o faz tão bem quanto eu, Adam. - Diria bem pouco como você, isso é ruim - Respondeu o outro - Deixou um pouco de pêlo, aí, debaixo do queixo. Anthony submergiu outra vez a navalha na água quente e voltou a raspar-se. Desde que era um menino, sabia que era totalmente inútil discutir com Adam.

Os compradores chegaram quando amanheceu. Reunidos na adega, todos sabiam perfeitamente que o que compravam era de contrabando e ninguém queria saber sua procedência. Olívia ouviu a comoção. Tinha a boca seca e a cabeça a ponto de estalar e, apesar de desejar com todas suas forças, foi impossível voltar a dormir. Ouviu o ruído dos botes contra o lado do navio, pisadas no convés, as vozes, as idas e vindas pela escada que comunicava com a adega... Ao não distinguir as palavras, não sabia o que se passava exatamente, mas podia imaginar. “Anthony é um provocador de naufrágios”, pensou. Ele mesmo o havia dito, como se fosse a coisa mais natural do mundo e, fora de toda dúvida, ela soubesse, de qualquer modo. Olívia sabia que era um contrabandista e um pirata: não era, pois, o mais lógico, que de vez em quando ganhasse a vida com algum naufrágio ou outro? Se virasse a cabeça, via o vestido, os sapatos e as meias que havia usado durante as maravilhosas horas que viveu na noite anterior. A quem deveriam pertencer? Que mulher, destinada a encontrar a morte em St. Catherine's Point, deveria brilhar naquele vestido verde, naquelas meias de seda, naqueles sapatos de cetim? Voltaram as náuseas e Olívia saiu como pôde da cama, e chegou cambaleando até a cômoda, na qual se apoiou, sem encontrar alívio. Nunca havia se sentido tão mal, nunca foi tão dolorosamente consciente de todos os batimentos do coração e articulações de seu corpo. E, além disso, se sentia completamente despojada de esperança, de felicidade, inclusive das mais básicas ilusões pelas pequenas satisfações da vida cotidiana. O pêndulo do êxtase a levaram-na muito acima. Agora o inexorável movimento pendular não trazia mais que miséria, na mesma proporção que havia trazido gozo. Entretanto, já havia se sentido assim no passado; muitas outras vezes, durante sua infância. Primeiro se sentia feliz e contente, submersa em seus livros ou em seus jogos, e de repente acontecia. Sem saber nem como nem onde, aparecia a nuvem 170

negra, que colocava fim à felicidade e à alegria. Nunca soube de onde vinha, nunca o tinha relacionado com aqueles horríveis momentos nas mãos de Brian, mas agora já sabia. E desta vez era Anthony quem tinha causado a aparição da nuvem negra. Arrastou-se até a cama, meteu-se dentro e cobriu a cabeça com a colcha. Ela mesma tinha culpa do estado miserável no qual se encontrava. Desde que Brian a tocara, sentiu-se sempre culpada; agora voltava a pesar sobre ela aquele sentimento de culpabilidade. Tinha sido uma pobre ingênua, permitindo que Anthony a dominasse, por tê-lo convidado a subjugá-la, como, em outro tempo, acreditou ter propiciado as violações de Brian. Acreditava que, se houvesse feito ou dito algo diferente, aquilo não teria acontecido nunca.

Era já meia manhã quando Anthony se dirigiu ao camarote. Entrou sem fazer ruído e ficou olhando a imóvel figura que jazia no leito. Vacilou, pois não estava seguro de querer comprovar se estava acordada; então, seguindo o costume que havia adquirido quando Olivia dormia, sentou-se em sua mesa e pôs-se a trabalhar com as contas do leilão. A operação havia dado excelentes resultados. Tinha pago oitocentos a Godfrey Channing, mas em troca ele havia ganho mil e setecentos. Isso era suficiente para agradar Ellen. Outra questão diferente era se isso bastava para adoçar o amargo sabor na boca, que havia ficado após seus entendimentos com aquele jovem elegante. Mais que ouví-lo, Olívia percebeu a presença de Anthony no quarto. Suas costas ainda guardavam a lembrança de Anthony. No ar flutuava ainda seu aroma. Seu corpo amontoado e descontente ainda reagia de um modo profundamente instintivo ao sabê-lo tão perto. Devia enfrentá-lo o quanto antes. Devia sair do navio e ir para casa. Entretanto, não sabia como levantar-se. Como apresentar-se. Acreditava que não poderia suportar olhá-lo. - Beba isto, Olívia. Anthony estava junto à cama com uma xícara na mão. Olivia se cobrindo os olhos com um braço.

virou,

- Vou ajudá-la. -Parece que não há nada que possa me ajudar – Murmurou; conseguiu levantarse até apoiar-se em um cotovelo, sem abrir os olhos, por medo do que estes revelariam se ele os olhasse - Quando voltaremos para a ilha? - Ao anoitecer - Respondeu Anthony aproximando a xicara aos lábios - Minha pobrezinha, te fere tanto assim a luz, carinho? - Terrivelmente - Disse em um sussurro, agradecendo agora a desculpa dos males corporais. - Não se preocupe, à meia-noite estará em sua cama. 171

- O que é isto? - Perguntou Olivia cheirando o amargo conteúdo da xícara. - Um remédio para a ressaca.

Seu quarto estava iluminado por uma luz fraca. Alguém havia deixado uma vela acesa. Olívia, aos pés da magnólia, avaliava a subida. Tal como havia imaginado, subir seria mais difícil que descer, mas tinha subido escadas de corda, havia saltado redes de abordagem. Conseguiria. Phoebe havia dito que deixaria a porta lateral aberta; entretanto, entrar em casa subindo pela magnólia seria mais seguro. Assim não se encontraria com ninguém. Deu um pulo e segurou com os braços uma das copas inferiores, apoiando as pernas no tronco. Então, deu impulso e conseguiu ficar em cima do galho. Este oprimia sua barriga... igual ao ombro de Anthony quando a levantou para colocá-la no Wind Dancer. Então, com um movimento lateral das pernas, pôs-se escarranchada sobre o galho. O resto foi fácil. - Já está aqui, querida - Disse Portia, aproximando-se da janela, quando Olivia apareceu encarapitada na magnólia.- Você aproveitou? - Sim, muito - Respondeu Olívia, e entrou no quarto de um salto. Seu rosto ficou na sombra, ao inclinar-se para agradecer a calorosa boas-vindas de Juno - Tudo bem? - Cato e Rufus não voltaram. Phoebe e eu conseguimos nos desfazer da comida que a senhora Bisset mandou subir para você, e ficamos acordadas perto de sua cama. Ninguém nos fez perguntas embaraçosas. Portia acendeu um candelabro com uma isca. - O que aconteceu, Olívia? - Disse Portia, com um tom de voz mais agudo que o de costume. - Ontem à noite bebi muito vinho - Respondeu Olívia rindo um pouco, mas mantendo o rosto na sombra. - E nada mais? Portia pôs o candelabro sobre o suporte da chaminé. O penetrante olhar de seus olhos verdes a incomodou. Olívia se virou para a cama, afastando as cortinas. A branca e macia solidão que oferecia seu colchão de plumas era só o que desejava. Não sentia outra paixão mais intensa, mais profunda, mais reconfortante. - Não tem futuro, Portia. - Há - Disse Portia com tom de menosprezo - Como poderia ter? A filha de lorde Granville e um pirata vivendo em uma acolhedora casinha? Impossível. Por isso

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Phoebe está tão preocupada. E não é tanto por, digamos, sujos meios dos quais se serve seu pirata para ganhar a vida. O que não quer é que a firam... Oh, nem eu tampouco, claro... mas a mim resulta mais fácil ver que é você quem tem que decidir. Rodeou os ombros de Olívia. - Você entende - Disse Olívia em voz baixa. - Pois é claro - Respondeu Portia, e lhe apertou os ombros carinhosamente. Podia contar a Portia sobre o naufrágio? Não. Não podia. Era muito vergonhoso. Não podia dizer que tinha se voltado louca de desejo por um homem que não entendia absolutamente, um homem capaz de fazer algo assim. - Voltará a vê-lo? - Não sei - Respondeu Olívia. Portia, com olhos preocupados, olhou-a por alguns instantes. - Talvez fosse preferível realizar um corte limpo agora mesmo - Sugeriu. - Sim - Admitiu Olívia. Portia esperou que ela continuasse, e ao ver que não o faria, disse: - Vejo que precisa deitar. Vou deixá-la. A seguir a beijou e se dirigiu à porta. - Oh, por certo, lorde Channing veio lhe visitar. Estava vestido de seda cor açafrão - Disse Portia elevando uma sobrancelha ironicamente - E uma pluma dourada no chapéu. Um dândi de fato. Ofendeu-se bastante quando dissemos que estava ocupada com seus livros e que não queria receber visitas. Um arrepio percorreu a coluna vertebral de Olívia. - Acaba de ver um fantasma? Perguntou Portia com a mão já na porta. - Ele a faz lembrar de Brian? Depois de pensar, Portia inclinou a cabeça e disse: - Em que sentido? - Seus olhos. São pequenos, frios e duros. Seu sorriso não tem nada de sorriso. Igual ao de Brian. - Não sei. A próxima vez que o vir irei observar mais atentamente. Mas não posso dizer que eu goste. Eles dá chutes nos cães. Agora durma. Portia saiu com Juno atrás de seus calcanhares. Olívia se sentou na cama. Parecia que a cabeça ia explodir, e se sentia acossada por todos os flancos. O próprio Anthony a havia levado do bote até a baía que havia debaixo de Chale. Havia acompanhando-a até o limite da propriedade, e a tinha deixado justo na beira da horta, para que dando um rodeio pudesse franquear a grade do jardim que 173

dava na cozinha. Para seu alívio, Anthony tinha aceitado seu silêncio, e não havia perguntado a que se devia seu mau humor. Olívia supôs que o tinha atribuído às nefastas consequências da imprudência da noite anterior. Tinha beijando-a, desejando boa noite, e havia dito, com um de seus silenciosos sorrisos, que fosse em sua busca em Carisbrooke na noite seguinte, se decidisse ver o rei. Olívia não sabia se iria ou não. Não sabia se teria coragem para vê-lo de novo. A nuvem negra a envolvia. Era como se ele tivesse culpa por toda a sujeira, a ilegalidade, o imoral. Tudo o que antes lhe pareceu divertido e excitante da vida de Anthony, agora parecia de mau gosto e errôneo. Tudo referente a Anthony era dimetralmente oposto a seu pai, a suas crenças, a sua honra, à maneira de viver a vida. À maneira em que, até agora, ela havia vivido. Anthony ia tentar resgatar o rei. Ela sabia e tinha que esconder esta informação de seu pai. Manter o silêncio era ser cúmplice de um provocador de naufrágios. Cato e Rufus retornaram na manhã seguinte. - Tem bom aspecto, Olívia - Observou Cato, ao passar por ela no vestíbulo, dando-se conta de que sua tez clara tinha um tom dourado. -Tomou sol? - Levamos os meninos para comer no campo - Disse ela. - Ah, isso explica tudo - Disse sorrindo - Faz um instante falei com Phoebe e Portia. Esta noite participarão da audiência real em Carisbrooke. Você vai acompanha-las? Olívia duvidou. Talvez seu pai pudesse ajudá-la em um de seus problemas. - Iria gostar, mas lorde Channing me preocupa. - Em que sentido? - Inquiriu Cato, franzindo as sobrancelhas. - Não me agrada, senhor - Disse Olívia simplesmente - E não o quero como pretendente, mas não sei como dizer-lhe, uma vez que, na realidade, ele não me disse nada. Perguntava-me se você poderia desanimá-lo com respeito a mim. - Fica difícil desanimá-lo, se não se declarou. - Já sei. Mas, talvez se lhe disser, como por acaso, que eu não penso em me casar nunca, ele captasse a mensagem - Sugeriu Olívia. Cato sacudiu a cabeça rindo. - Perdoe-me, Olivia, se não levo isso muito a sério. Você vai ver que, com o tempo, mudará de opinião. Mas pode ficar segura de que não farei nada para pressioná-la, nesse sentido. Cato pensou no muito que Olívia se parecia com sua mãe. Sua mesma tez morena e suave, e o mesmo cabelo negro. Os olhos negros, entretanto, eram diferentes, mas aquela qualidade aveludada também era de sua mãe. De seu pai havia herdado o longo nariz dos Granville e certa determinação que se refletia na boca e no queixo, que acrescentavam distinção e caráter à sua beleza por demais convencional. - Adivinho uma interminável procissão de pretendentes - Seguiu dizendo Cato 174

com um sorriso - Tem idade de contrair matrimônio e um montão de coisas mais que a tornam muito recomendável. O último ele disse em tom de brincadeira, e Olívia não pôde evitar responder com um sorriso lastimoso. - Rechaçarei a todos, senhor – Afirmou - Mas, por favor, poderia tentar cuidar deste caso em particular? A verdade é q-que não suporto sua presença. Cato sabia que o gaguejo só escapava quando a moça se sentia pressionada. - O que ele fez a você? – Perguntou, com um tom que denotava preocupação. Olívia encolheu os ombros. -Nada... Não é mais que uma sensação. Cato olhou-a aliviado. -Veremos o que posso fazer, discretamente. Isto foi o que ofereceu, dirigindo já os passos para a porta e com a mente concentrada outra vez na questão que mais lhe preocupava. Alguém, em algum lugar da ilha, tinha informação sobre um plano para a fuga do rei. Os carcereiros estavam acostumados a ter conhecimento dos assuntos relacionados com o rei antes, inclusive, que o próprio monarca estivesse a corrente destes; mas este impenetrável segredo era completamente desconcertante. Era precisamente este assunto que o havia levado a Londres. Cromwell tinha proposto seriamente que mudassem o rei a outra prisão mais segura. Cato tinha resistido a pôr ainda mais restrições na vida do soberano, tendo em conta que não tinham nenhuma alternativa concreta e, finalmente, ele mesmo tinha se feito responsável por tomar as decisões pertinentes, segundo a aparência que tomassem os acontecimentos. Se o rei fugisse, lorde Granville seria o único responsável. Era uma carga incomoda. Olívia se dirigiu à sala, onde encontrou Phoebe e Portia no meio do bulício de seus filhos. - Chegaste a tempo - Disse Phoebe sem rodeios - Cato chegou esta madrugada. - E eu estava sã e salva dormindo em minha cama - Disse Olívia - Agradeço por... por, bem, já sabe a que me refiro. - A mecha de cabelo foi uma ideia muito inteligente... sabendo de antemão que não significava que estava pedindo ajuda - Disse Phoebe, pinçando em seu bolso para encontrar o pedaço de trança. Olívia o pegou. - Sem dúvida não pensaram... - Não, claro que não - Disse Portia com um rápido sorriso, afastando seu olhar do soldadinho de brinquedo, cuja perna quebrada estava arrumando para dar a seu impaciente filho - Phoebe só brincava.

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Olívia conseguiu esboçar um leve sorriso. - Diz meu pai que esta noite vão ao c-castelo. - Sim, sinto falta de meu marido - Disse Portia sorrindo - Você também virá, Olivia? - Perguntou Portia. Ia? E enquanto se fazia está pergunta ouviu a si mesma respondendo. - Sim, acredito que eu também irei. Os olhos azuis de Phoebe brilharam com simpatia esperando uma resposta afirmativa. - Vai distraí-la, querida. Não quero me intrometer, mas parece triste. Não foi tudo bem como esperava? - Sim, tudo foi muito bem. A única coisa que ocorre é que enfrento a realidade, nada mais - Respondeu Olívia, pegando nos braços seu irmão pequeno - Diga-me, lorde Grafton, como você esta nesta bela manhã? O menino a olhou com atitude séria, com olhos tão negros como os de sua irmã. Então jogou a cabeça para trás e explodiu em risadas, como se ela tivesse dito algo tremendamente engraçado. -Tem muito senso de humor - Disse Phoebe orgulhosamente, distraída durante um instante de sua preocupação por Olivia. Olivia não pôde evitar de rir, ao entregar seu eufórico irmão à sua mãe, que o adorava. - Como eu gostaria que Grafton nos contasse o que lhe parece tão engraçado! Olivia deu-se conta do olhar escrutinador de Portia, e se inclinou precipitadamente para abraçar Juno. - Quer jogar boliche, senhor Caxton? O rei Carlos se afastou da janela dos aposentos situados sobre o grande vestíbulo e ficou olhando o visitante sob as pálpebras inchadas. - Como quereis, Sir. Anthony estava de pé ante a vazia chaminé, com um braço em que brilhava uma manga de camisa de seda apoiado sobre o suporte. Ao menos dez homens se encarregavam de atender o rei. O coronel Hammond estava junto à porta, vigilante, passeando o olhar pelo quarto, como se esperasse que o rei desaparecesse de repente no ar. - Hammond, meu amigo, parece inquieto - Observou o rei amavelmente - Nos últimos dias o vejo perturbado. Há algo que o preocupe? O governador reprimiu seu aborrecimento com dificuldade. Se estava em marcha um plano para resgatar o monarca, então Sua Majestade devia saber perfeitamente o que preocupava seu carcereiro. 176

- O que quer que eu sinta, não há nada pelo que preocupar-se, Majestade. - Que alegria ouví-lo - Respondeu o rei docemente - Mas agora eu gostaria de jogar boliche. Senhor Caxton, me mostre sua perícia. Anthony se inclinou ante o rei e Godfrey Channing se apressou a abrir a porta. A pequena comitiva desceu as escadas atrás do rei e saiu ao pátio. - Caminhe a meu lado, senhor Caxton - Disse o rei, fazendo um gesto para que ficasse junto a ele - Conte-me coisas sobre suas propriedades. Sempre gostei muito New Forest. Anthony falou fluentemente enquanto atravessavam o pátio, franqueavam o portão posterior e chegavam à muralha exterior do castelo, espaço que o governador havia convertido em uma pista de boliche, para que seu prisioneiro real tivesse alguma distração. As redondas bolas esperavam no fundo da pista coberta de grama, e o grupo se encaminhou por volta deles sob o sol do meio-dia, enquanto o rei seguia sem soltar o braço de Anthony. Ninguém percebeu que Anthony deslizava um diminuto papel dobrado por debaixo do grosso punho da camisa de Sua Majestade. - Jogue você primeiro, senhor Caxton. O rei fez um gesto para o soldado que esperava sustentando a primeira bola. Anthony se desculpou educadamente, mas se deixou convencer. Rindo, se queixou de sua falta de habilidade, e fez muita brincadeira ao levantar a pesado bola, antes de lançá-la rodando pela amena e verde pista. Foi um tiro desastroso, que levou risadas entre os cortesãos ali reunidos. Ninguém se deu conta de que o rei metia o pequeno pedaço de papel no bolso. Ainda estavam jogando quando a senhora Hammond, com os meninos, se aproximou pela grade traseira. - Certamente Sua Majestade está ganhando, como de costume -Observou. - Temo que sou incapaz de oferecer uma boa partida a Sua Majestade, senhora Hammond - Disse Anthony reprimindo uma pequena gargalhada - Lady Granville... Lady Olivia. Fez uma reverência, tirando o chapéu com pluma. - Lady Rothbury, permita-me que a apresente ao senhor Edward Caxton. O governador se inclinou galantemente diante de Portia enquanto fazia um gesto assinalando Anthony. - Encantado em conhecê-la, madame. É um grande prazer, acredite em mim. Anthony se inclinou para a mão da mulher e a roçou levemente com seus lábios, antes de saudar os homens que acompanhavam às damas. - Lorde Granville, lorde Rothbury. Um prazer saudá-los, senhores. É uma honra conhecê-los.

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Era o inimigo, formidáveis de um a um, uma força praticamente insuperável unida. Passar a perna neles não seria uma tarefa fácil e Anthony não tinha ilusões, mas sua expressão denotou unicamente afã de ser complacente. Eles responderam à sua saudação com uma refinada inclinação de cabeça que, não obstante ,transmitia certa indiferença desafiadora, que confirmou a Anthony que estava representando bem seu papel. O pirata se afastou para um lado quando o rei, com uma leve inclinação de cabeça, se dignou a saudar os recém chegados. - Lady Olívia, que agradável tê-la aqui. Que desilusão quando ontem não a vi. disse Godfrey Channing com uma galante reverência - Confio que me permitirá uma breve conversa em privado mais tarde. Olívia só viu seus finos lábios e uma calculadora frieza nos olhos. Involuntariamente seu olhar voou até Anthony, que lhe devolveu um vago sorriso. - Ora, ora, o que é que acontecendo? Interrogou o rei com uma explosão de jovialidade. - Meu querido lorde Channing, está interessado em Olívia? Olívia avermelhou até as orelhas e se virou para Cato com olhar suplicante, mas antes que este pudesse intervir, Godfrey já havia se inclinado ante o rei e estava lhe dando uma resposta. - Nenhum homem mereceria tal nome, Sir, se não soubesse apreciar a beleza da dama. Que homem não ousaria aspirar à mão da dama com só uma palavra de ânimo? - Bem, sempre gostei das núpcias - Afirmou o rei tão jovialmente como antes. Confio que darão a meu lorde uma palavra de ânimo, não é assim, madame? Olívia ficou muda. Procurou desesperadamente uma resposta. Channing já havia exposto seu desejo da maneira mais pública possível, e o rei havia mostrado sua aprovação à petição da mão. Na realidade, o que havia feito era lhe ordenar acatamento. - Sir, minha filha acaba de entrar na sociedade - Disse Cato em um tom calmo Devemos lhe dar tempo para que se acostume à nova situação, antes que comece a navegar por este mar. O rei franziu o sobrecenho. No passado, tão jocosa atenção como a que havia dedicado à filha do Marques seria considerada o maior sinal do favor real. Seu semblante adotou certo ar carrancudo. - Bem, que assim seja. Disse virando-se de costas a lorde Granville Hammond, por hoje terminei com o boliche. Caxton, me dê o braço de novo. Anthony obedeceu mecanicamente. “Esse louco ambicioso, covarde e perigoso tenta fazer a corte a Olivia”, pensou. A expressão de seu rosto foi absolutamente neutra durante a volta, de braço com o rei até o portão traseiro, e conseguiu que fluíssem sem obstáculos suas aduladoras respostas à enfadonha conversa do soberano. Quando chegaram na grande sala, onde estava servido o jantar sobre a larga 178

mesa dos banquetes, Anthony aceitou que o rei se despedisse e cedeu seu lugar junto ao monarca. Os reis tomaram assento nos longos bancos situados em frente à mesa, e Godfrey Channing se dirigiu resolutamente para Olívia e suas duas amigas. Rufus e Cato não estavam. Anthony cruzou a sala com a determinação de antecipar Godfrey Channing. - Senhorita Olívia, permita-me lhe acompanhar à mesa? Ela se virou e, por um momento, sua expressão ficou em guarda. Seus olhos, presos de inquietação e interrogação, olharam fixamente o rosto de Anthony. - Não há nenhum motivo para ter medo - Disse em um murmúrio, captando instintivamente seu terror e confusão. Olívia queria acreditar. Queria acreditar que ele a protegeria de Godfrey Channing, queria acreditar que a protegeria dele mesmo, dela mesma. Mas como poderia proteger daquele encalacrado novelo de sonhos e decepções, se era ele mesmo quem o tinha emaranhado? Se fosse um homem diferente ao que era, um homem que não fizesse o que fazia... Mas então, de que ia servir um homem distinto se este era o que ela queria? A mão de Olivia quis dirigir-se para ele, mas a deixou cair ao lado. - Não tenho medo – Disse, voltando-se para suas amigas. Anthony se afastou rapidamente, perguntando-se por que o havia rechaçado como companheiro de mesa. Às vezes não entendia seu comportamento. Disse a si mesmo que só o que fazia Olívia era simplesmente jogar sua partida, e que se afastava dele porque era mais seguro. Isso foi o que se disse, mas de algum jeito soou falso. No olhar da moça ele viu expressamente claro muita preocupação. Talvez tivesse algo a ver com a declaração que acabava de fazer Channing. A boca de Anthony se tencionou. Teria que pôr fim naquela situação, mas como fazê-lo sem delatar a si mesmo? Godfrey Channing se aproximou das três mulheres no preciso momento em que estas chegavam à mesa. - Senhoras, permita-me que as acompanhe até o extremo da mesa. Suas palavras se dirigiram às três, mas seu olhar estava em Olívia, a quem ofereceu um braço, que brilhava numa manga de seda. - Pois claro, será um prazer ter sua companhia, senhor - Disse Portia tomando o braço antes de que Olívia pudesse sequer mover-se - Ao que parece nossos maridos nos abandonaram. - Lady Olivia... Godfrey lhe ofereceu o braço que tinha livre. - Olívia pode ir de braço comigo e você pode acompanhar Lady Granville Disse Portia com firmeza - Somos muito respeitosas no que o protocolo se refere, e as 179

damas casadas têm preferência. Phoebe dissimulou a risada ante tal absurdo e seguiu seu exemplo. Godfrey não teve mais remédio se não aceitar o fato. Cato e Rufus esperavam as suas respectivas esposas à cabeceira da mesa. Cato captou a tensão no olhar de Olívia quando esta se aproximou de braço com Phoebe. - Venha e sente-se a meu lado, Olívia – Disse, uma vez que a pegava pela mão e a obrigava a tomar assento junto a ele no banco. - Se Lady Olívia me permite isso... Godfrey sorriu e tomou assento do outro lado de Olívia. Olivia se sentou com as costas rígidas. Seu olhar se dirigiu à outra ponta da mesa, onde Anthony estava sentado, brincando com sua taça de vinho. Ele a olhou uma única vez e logo voltou para seu companheiro de mesa. Godfrey serviu à Olivia uma fatia de cisne assado. - Imploro que me permita serví-la, minha Lady... em todos os sentidos. Estou sempre e inteiramente a sua disposição. Seus finos lábios sorriram significativamente; seus olhos frios a olharam com avidez. Olívia falou em voz baixa. - Terá que me perdoar, lorde Channing, mas não tenho nenhum interesse em me casar. Meu pai o sabe. Interessam-me os livros e não me deixam tempo para o matrimônio. - Confio que seus sentimentos não estejam ainda comprometidos - Disse ele com uma voz repentinamente aguda e golpeando a taça com os dedos. - Não. Respondeu Olívia ao tempo que negava com a cabeça. - Então tenho esperança - Disse Godfrey voltando a sorrir, e a tocou na mão, quando Olívia foi pegar a faca - Estive lendo poesia de Catulo. Não entendi uma das estrofes. Talvez você pudesse me esclarecer as dúvidas. - Catulo não é um de meus autores preferidos - Mentiu Olívia com voz tediosa - Deverá me desculpar. Godfrey foi em busca de outro assunto de conversa, enquanto Olívia seguia sentada a seu lado como se fosse uma estátua de pedra, e a comida esfriava no prato. Ele aproximou sua coxa a dela, e Olívia se afastou bruscamente para um lado, como se se queimasse. Não ia ser tão fácil como Brian Morse havia previsto. Mas ao final, a conseguiria. Olhou-a de relance. Era bela. Qualquer homem ficaria orgulhoso de possuir uma mulher como aquela. Uma mulher tão rica. Se os métodos a base de amável persuasão não davam resultado, encontraria outros, mas seria sua. Godfrey centrou sua atenção na conversa que tinha lugar entre lorde Rothbury 180

e lorde Granville. Pelo menos neste terreno as táticas de Brian haviam funcionado. Lorde Granville aplaudiu várias vezes suas ardilosas observações. Cato, impaciente por tirar aquele peso de cima de sua filha, cujo silêncio ressonava como um trovão, inclinou-se por detrás dela e perguntou: - Channing, o que sabe desse tal Caxton? É um acólito relativamente recente no altar do rei. Meus homens não encontraram nada muito interessante quando o investigaram. Vive em Newport, conforme dizem. Rufus cravou um pedaço de veado com a ponta de sua faca. - Acho que é muito conhecido na ilha. - Não é mais que auxiliar - Disse Godfrey, desejoso de comunicar a informação que tinha - É dos que desfrutam alardeando de comer na mesa do rei. Parece que possui uma certa fortuna, mas procede de uma família pouco distinguida de terra adentro. Olívia o escutava. Estava bem claro que o jogo de Anthony dava seus frutos. Parecia um personagem tão insignificante que ninguém lhe prestava a mínima atenção em meio daquele ambiente tão carregado de suspeitas. “Mas como é possível que consiga verdadeiramente enganar a todos?”, perguntou-se Olívia. Tudo em sua pessoa transmitia autoridade e capacidade. Como podia ser que absolutamente ninguém captasse o malicioso brilho de diversão de seus olhos? Como não havia nenhuma só pessoa que se desse conta da aguda mente que se escondia atrás daquele semblante néscio e inexpressivo? Parece gozar do favor do rei. Disse Cato pensativo. - Às vezes, Sua Majestade gosta de ter favoritos para jogar - Disse Godfrey. Observei, especialmente quando briga com o coronel Hammond, ele perde expressamente seu tempo com qualquer João ninguém, quase como se quisesse ofender o governador. Enquanto falava, movia a cabeça com autoridade e olhava à outra ponta da mesa, onde se sentava Anthony. Este estava virado para seu vizinho de mesa. A mão de Godfrey deixou de mover-se quando levou a taça aos lábios. Seu perfil tinha algo... um não sei o que familiar... Godfrey o olhou atentamente, mas não conseguiu encontrar a referência. Lembrava ter visto Caxton antes em Carisbrooke. O rei era famoso por escolher estrangeiros insignificantes para que gozassem de seu favor. O fazia para desgostar a seus nobres carcereiros. O governador Hammond era consciente disso, como também o resto do pessoal que estava a seu serviço. Todos seguiam aquele pequeno jogo já que, a final das contas, quantos jogos de poder ficavam por jogar? Entretanto, havia algo naquele João ninguém de humilde berço que não se encaixava. Godfrey o olhou atentamente. Anthony não fazia nada fora do comum, em seus lábios se desenhava o mesmo sorriso insosso de sempre. Então, que demônios o intrigavam naquele homem? 181

O rei deixou na mesa sua taça de prata. Aborrecia lhe o jantar, aborrecia lhe a companhia e tinha algo melhor a fazer. - Vou- me retirar, Hammond. Os comensais deixaram os talheres sobre a mesa. A maioria deles não havia terminado o primeiro prato, mas todos se levantaram torpemente do banco, quando o governador afastou da mesa a cadeira do rei. Sua Majestade percorreu toda a mesa com o olhar, sem conceder a mais leve inclinação de cabeça a ninguém e logo abandonou a sala. O governador o acompanhou até seus aposentos, o quarto com vigilantes e barras nas janelas, situado na muralha norte. - Boa noite, senhor. Disse-lhe o coronel Hammond, fazendo uma reverência da porta. - Nosso rouxinol está encerrado em sua jaula, Hammond. Disse o rei como resposta, com uma breve gargalhada e olhando ao seu redor a confortável prisão que lhe albergava. - De todos os modos, estou agradecido por me tratar com tanta atenção. - Cuido de Sua Majestade seguindo os ditados de minha consciência e meu dever, senhor. Escolheu cuidadosamente estas palavras, destinadas a que o rei soubesse que o novo plano de fuga era um segredo, unicamente no que se referia a sua execução. - Boa noite, Hammond. - Senhor. O governador fez uma reverência e saiu do quarto. Os dois guardas ocuparam seus postos. Não fecharam com chave Sua Majestade, mas só um espírito poderia passar desapercebido se cruzasse a porta. - Dê-me um pouco de água quente, Dirk. Quero lavar as mãos. O ajudante de quarto se virou para o lavabo e o rei Carlos se apressou a pegar o pedacinho de papel de seu bolso. Escondeu-o debaixo do travesseiro, logo se espreguiçou e bocejou. - Sua Majestade se sente fatigado. O ajudante de quarto sustentava uma bacia em suas mãos e uma toalha pendurada de seu braço. - Sim. Mas é a fadiga do espírito, Dirk. Não a extenuação física - Disse o rei; lavou as mãos e as secou - Pode ir já. Vou meter-me na cama. - Mas sua camisola, senhor... O ajudante de quarto não sabia o que fazer depois da ordem recebida, e pegou a peça branca estendida aos pés da cama. - Deveria lhe trazer a escova. - Já basta, homem! O monarca proferiu aquelas palavras com um tom extraordinariamente áspero. O ajudante saiu do quarto fazendo uma reverência. O rei esperou até que cessou a conversa entre o ajudante de quarto, um criado do 182

governador e os guardas antes de pegar o pedaço de papel de Edward Caxton , que havia posto debaixo do travesseiro. A mensagem não se perdia em desnecessárias cortesias. Esteja preparado na próxima noite de lua nova. O mesmo dia lhe avisarei da hora exata. Queime os barrotes da janela e desprenda com a corda até a muralha. Estaremos esperando-o. O rei Carlos leu a mensagem várias vezes. Curiosamente, a ausência de circunlóquios lhe deu confiança. Havia sofrido muitas decepções por causa dos que tinham mais coração que cabeça. Sustentou o papel sobre a chama da vela e contemplou como se ondulava e logo se desintegrava. Depois recolheu as cinzas na palma de sua mão e as jogou através dos barrotes da janela, que dava às colinas que se estendiam até o mar. Caxton o libertaria. O rei sabia que Caxton não estava nas filas dos homens apaixonados que haviam malogrado suas vidas por seu soberano. Caxton era um mercenário, a quem não importava quem ganhasse ou perdesse aquela guerra. Mas precisamente nos mercenários se podia confiar, porque não permitiam que o coração dominasse a mente. O apaixonado pagaria Caxton e o mercenário executaria o plano. O rei Carlos da Inglaterra confiava nesta combinação.

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Capítulo 14 - O Wind Dancer o esperava fora da caverna de Puckaster, com Jethro ao leme. Eu levarei pessoalmente o bote até a caverna. Mike me esperará com os cavalos e me acompanhará para recolher o rei. Necessitaremos três cavalos, Mike -disse Anthony, expondo seu plano ante o grupo reunido em seu camarote. - Esperaremos que seja lua nova, senhor? - Sim, e rogaremos para que seja uma noite fechada. Anthony se inclinou sobre a mesa onde estavam as cartas de navegação. - A maré subirá por volta da meia-noite. A diversão começará às onze. O rei tentará escapar a essa hora e cavalgando a bom ritmo voltaremos a estar na caverna em meia hora. A brisa nos ajudará a empurrar o bote e estaremos de novo a bordo com o tempo justo para aproveitar a maré. Adam, prepare este camarote para o rei. - Que tipo de diversão? - Inquiriu Adam. Anthony sorriu. - Um de nossos amigos do castelo ativará uma série de pequenas explosões de pólvora nas ameias25. Supõe-se que distrairão os vigias da muralha tempo suficiente para que o rei possa descer por sua janela. Adam assentiu com a cabeça. A Ilha Wight era firmemente monárquica. Havia partidários do rei entre as tropas do coronel em Carisbrooke, assim como nas guarnições militares da ilha. Anthony conhecia a todos. - Todo mundo conhece sua posição? - Perguntou Anthony olhando seus homens. - Creio que sim. Mas Como temos que nos dirigir ao rei? A estranha pergunta fez Anthony rir. - Duvido que tenha a oportunidade de lhe dirigir a palavra, Jethro. Mas sim se for necessário, é suficiente que lhe faça uma reverência e murmure «Sua Majestade». - Meu Deus, nunca teria pensado que faria uma travessia com um rei Murmurou Sam. - Bem, se não houver mais perguntas, isso é tudo no momento, cavalheiros. Os homens abandonaram o camarote, todos menos Adam, que se dispôs a limpá-lo. Anthony tirou a indumentária que havia usado no Castelo. Vestiu-se rapidamente com calças e uma camisa e sujeitou a adaga na cintura. - irá visitar sua dama agora? - Perguntou Adam, observando os preparativos com certa consternação. - Alguma objeção? O pirata elevou a sobrancelha com ar inquisitivo enquanto calçava as botas. - Só restam três horas para que amanheça. 25

cada um dos parapeitos separados regularmente por merlões na parte superior das muralhas de fortalezas e castelos; recorte no cimo de muralha ou torre

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- É o suficiente. Anthony piscou um olho e Adam estalou a língua em sinal de desaprovação. Uma hora mais tarde estava cavalgando para Chale completamente às escuras. Olívia não o esperava e sabia que era uma imprudência apresentar-se tão tarde, mas não podia deixar de pensar na aflição de seu olhar, na forma que ela o havia rechaçado, quase como se quisesse lhe dizer algo mas que não se atrevesse. E ele a desejava. Desejava-a com uma urgência repentina que o assombrava. A única explicação era que o tempo os carregava. Quando o rei estivesse seguro na França, Granville não teria nenhum motivo para permanecer na ilha. E onde estava o Marquês, estava Olívia. A vida de Anthony transcorria onde estavam agora ambos, e quando tivesse resgatado o rei, voltaria para a única vida que havia conhecido até então, que outra coisa podia esperar? Por isso, enquanto pudesse, aproveitaria qualquer oportunidade que lhe fosse oferecida para amar Olívia. Olívia estava sentada em frente à janela de seu quarto quando Anthony deslizou às escondidas pelo escuro jardim. Havia permanecido sentada ali desde que haviam retornado do castelo. Sentia-se muito infeliz para poder dormir, e o indescritível temor que a espreitava parecia mais forte que nunca. Não notou a presença de Anthony até que ouviu um pequeno estalo na casca da magnólia. Soube instantaneamente do que se tratava e ,apesar de tudo, seu coração deu um coice de alegria. - Anthony? - Shtttt! Seu cabelo dourado emergiu entre as brilhantes folhas da magnólia e Olívia viu como seus olhos verdes lhe sorriam na distância que os separava. Ele levou um dedo aos lábios e se deixou cair na soleira da janela balançando-se desde o galho. - Ficou louco! É muito tarde - Sussurrou ela sem poder evitar um estremecimento ao vê-lo - Soltam os cães às seis. - Não são nem cinco. Atraiu-a para si. A princípio ela resistiu, sentindo a confusão, a angústia e a raiva enroscando-se por sua cabeça e seu coração. Ele lhe dirigiu um sorriso, um sorriso algo inquisitivo, e sem poder evitar, Olívia se jogou em seus braços. Agarrouse a seu corpo, estremecendo de desejo, consciente da urgência de seu desejo, do pouco tempo que tinham. O primeiro canto de pássaro do amanhecer penetrou pela janela enquanto se inclinavam para o chão. - Se ajoelhe, meu amor. A fez virar guiando-a com as mãos na cintura para que lhe desse as costas. Subiu-lhe as anáguas até a cintura, acariciou lhe os quadris e deslizou a palma da mão entre suas coxas roçando o úmido e quente sulco que se afundava em seu corpo. Ela deu um gemido e se deixou cair para frente com as mãos no chão, arqueando as costas com desavergonhada volúpia enquanto pressionava seu corpo contra o dele e se entregava a suas carícias. Com uma mão ele seguiu tocando em seu corpo até que conseguiu desabotoar a calça, libertando seu ofegante sexo. Logo sustentou com força os quadris de Olívia e

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se introduziu em seu corpo escorregadio e acolhedor, com o suspiro de alguém que por fim acha o que mais cobiça. Ela se deixou conduzir pela maré do êxtase, com as nádegas apertadas contra seu ventre, deleitando-se ao sentir a lacerante pressão dos dedos de seu amante sobre seus quadris. De seus lábios brotaram pequenos soluços de prazer e ele moveu uma mão para lhe agarrar a nuca, acariciando seu alvoroçado cabelo com os dedos. Então seus joelhos cederam e se deixou cair no chão, com o rosto apertado contra o tapete, enquanto sentia que se alagava todo o corpo de ondas de prazer. Apertou as coxas ao redor dele, retendo-o em seu interior, deleitando-se na profunda palpitação de sua carne e em seguida, quando se retirou, sentiu a viscosidade de sua semente lhe banhando as nádegas e as coxas. Anthony rodou para um lado e ficou deitado junto a ela no tapete. Estendeu a mão para lhe acariciar a bochecha e retirou uma mecha de cabelo úmido da testa. - Não sei o que me dá, minha flor. Mas quando estou contigo me sinto tão fora de controle como um moço virgem com sua primeira dama de companhia. Olívia não pôde evitar uma risada afogada. - Não sei como interpretá-lo. - Não, talvez não tenha me expessado bem. Ele se apoiou sobre o cotovelo e a acariciou ligeiramente no ombro e na parte alta do braço, roçando-a ligeiramente só com as pontas dos dedos. Olívia se pôs de lado para vê-lo. Importava na realidade quem era? Sem dúvida, seria capaz de separar esta delícia, o prodígio de seu amor, do mal que havia feito. A pirataria e o contrabando a excitavam, aceitava-os como parte da vida de seu amante. Por que o outro tinha que ser diferente? - Por que estás tão séria de repente? - Perguntou ele, lhe tocando a boca. - Está amanhecendo - Respondeu ela pondo-se de pé e baixando-as anáguas. Anthony se levantou e se abotôou as calças. -Além do amanhecer, há algo mais que a preocupa, Olívia. - Por que diz? Segurou a larga cascata negra de seu cabelo e a enroscou na mão, atraindo-a para si. - Acha que depois de tudo o que compartilhamos não me dou conta de suas mais leves mudanças de humor, das sombras de seus olhos? Há algo que a preocupa. Vi hoje no castelo. Olívia o olhou durante um minuto sem dizer nenhuma palavra. - Seu pequeno jogo parece que funciona. Ficaram falando de ti durante o jantar. Rufus, meu pai e Channing... - Disse ela com um ligeiro tremor - Enganaste a todos. 186

Acreditam que é um João ninguém. - Bem - Disse Anthony franzindo o cenho ao ouvir o tom de ressentimento que de repente havia surgido de sua voz. - Queria zombar de meu pai, mas com que propósito? Se é porque acha que faz o correto. Senão simplesmente porque parece divertido e suponho que, além disso, alguém o paga por isso. Ao fim e ao cabo é um mercenário. – “E um provocador de naufrágios!”, pensou. Virou-se para o lado com um inconfundível gesto de desprezo. Os olhos de Anthony se endureceram e, quando finalmente falou, sua voz tinha um toque amargo. - Talvez não me conheça tão bem como acha. A verdade é que ninguém me paga para fazê-lo. Na realidade, está me custando uma pequena fortuna. Tenho minhas lealdades, querida Olívia, mesmo que não pense assim. Alguém muito próximo a mim deseja que o faça. Não a desobedecerei. Olívia elevou o olhar. - Quem? Uma esposa? - Sou muitas coisas, Olívia, mas não sou de trair às mulheres. Sua voz era fria como o gelo e Olívia entendeu que havia tocado em uma ferida muito profunda. Ela observou a fraca luz que aparecia pela janela, sem saber o que fazer nem o que dizer. Parecia que ele tinha um bom motivo para atuar assim com o rei. Lealdade para alguém a quem conhecia bem. Mas na realidade a ela o que importava? Ao agir em conivência com ele, estava traindo seu pai. Traindo seu pai por um provocador de naufrágios. - Acredita em algo? - Perguntou ela silenciosamente. - Nisto. Em você. No presente - Repôs ele. Olívia se virou para ele. - Não é suficiente, Anthony. Por que tenho a impressão de que tudo o que faço com você está errado? - Gritou ela angustiada, olhando-o fixamente com os olhos escuros, procurando desesperadamente uma resposta. Mas ele não lhe deu nenhuma. Contemplou-a com o olhar distante. Quando finalmente falou, sua voz tinha um tom uniforme, quase neutro. - Só peço que você oculte o que sabe de mim. Ela assentiu. Não havia nada mais que dizer. - Obrigado. E partiu. Olívia ficou de pé no quarto vazio, com os dedos apertados sobre a boca, os olhos fortemente fechados como se de algum modo pudesse fazer desaparecer a dor, ou controlar a triste confusão que havia se apoderado dela. Logo, tremendo, deslizou 187

silenciosamente na cama.

- Como vai sua perseguição de Lady Olívia, lorde Channing? - O rei se dirigiu a lorde Channing com ar ausente, desde sua cadeira lavrada de madeira, onde estava recostado comodamente com as pernas cruzadas, uma mão pendurada no braço da cadeira e a outra acariciando sua barba bicuda, e um malicioso brilho no olhar. Aborrecia-se e procurava algo de diversão - Pareceu-me não vê-la muito satisfeita em sua, companhia ontem à noite. Continuou - Talvez seja uma conquista difícil? Godfrey se ruborizou. Nunca era agradável ser objeto dos sarcasmos do rei. Quando ele ria, outros riam com ele. Captou um par de sorrisos furtivos, alguns murmúrios entrecortados. Todos o estavam olhando, esperando sua resposta. Deu uma gargalhada pouco convincente. - A dama não se encontrava bem ontem noite, senhor. Acredito que, como muitas jovens de sua idade, é propensa a ter enxaqueca. Haverá mudado de humor na próxima vez que nos virmos, asseguro isso. Dirigiu seu olhar para Edward Caxton e uma vez mais se sentiu desconcertado pela sensação de familiaridade. Mas a refinada fisionomia de Caxton não lhe dava nenhuma pista. Em qualquer caso, parecia inclusive mais distante que de costume, como se seu dono não fosse consciente do que ocorria a seu redor. - Uma mulher volúvel, então? - Murmurou o rei, ainda com o mesmo brilho nos olhos - Tome cuidado, Channing. Uma esposa com enxaqueca pode mortificar um homem até a morte, não é Hammond? - Felizmente desconheço, Sir - Disse o governador, levantando uma gargalhada na concorrência. - Mas Lady Olívia é tão rica quanto linda. Uma boa compensação, não é, Channing? Todo mundo se pôs a rir e Godfrey não teve outra escolha que unir-se a eles. - Uma esposa sempre pode domesticar-se. Declarou, e ficou desconcertado quando o rei jogou a cabeça para atrás e deu uma grande gargalhada, como se tivesse dito algo muito engenhoso. Os outros se uniram e Godfrey permaneceu absorto, perguntando-se o que era que achavam tão engraçado nessa certeza. - Não, não Channing. São os maridos os que acabam se domesticando - Disse o rei, secando os olhos - Logo aprenderá, querido moço. Godfrey sorriu com estupidez, ocultando sua fúria. Era intolerável que zombassem dele desse modo. Sob sua insossa aparência, Anthony estava observando Channing atentamente. Compreendia como ninguém que o cavalheiro não era o melhor homem de quem rirse. Leu nos olhos de Godfrey o desgosto, seguido rapidamente de um brilho de raiva. 188

Viu uma sombra branca ao redor daquela boca fina, a leve contração nervosa de sua bochecha, inclusive quando se uniu às gargalhadas às suas custas, com uma gargalhada pouco acreditável. Anthony tinha decidido que enfrentaria Channing secretamente assim que se apresentasse a ocasião. Tinha que mantê-lo afastado de Olívia, é óbvio, mas além disso era um provocador de naufrágios e se sentia obrigado a detê-lo. Um acidente ou um sequestro seria fácil de arrumar. Podiam fazê-lo desaparecer em um navio francês de contrabando. Ainda que talvez este destino fosse muito bom para ele. O lábio de Anthony desenhou uma careta para conter sua impaciência. Não tinha nenhum desejo de ficar ali interpretando o inútil papel de cortesão adulador. Havia traçado bem seu plano; o rei estava preparado. Sua Majestade saberia o que fazer quando chegasse o momento. Só tinham que esperar a lua nova. Mas Anthony sabia que, se de repente cessasse seu adulador comparecimento ante o rei, daria o que falar. Os responsáveis pela segurança do monarca ficariam em guarda ao menor indício de que algo havia mudado. Até o momento havia desempenhado bem seu papel. Sabia que havia sido objeto de investigação. Como parte de seu álibi, havia alugado um quarto a um casal chamado Yarrow em Newport. Pelos anos que os conhecia, seu filho havia navegado sob suas ordens várias vezes, e sabia que não diriam nada. Não contariam a ninguém que seu suposto hóspede nunca havia dormido no quarto do piso de cima. O mesmo quarto não revelaria nada, além dos evidentes pertences de um latifundiário rural cuja petulância se alimentava da ilusão de ser confidente do rei. Havia muitos como ele, que agasalhavam o rei em seu cativeiro, sem ter em conta que, se Sua Majestade estivesse em liberdade, com a corte em seus palácios, nunca teria deixado passar da porta principal. O rei não tinha querido que abrissem as janelas ao seu redor e o ambiente estava aquecido. Passou zumbindo uma mosca. Anthony conteve um bocejo. Não havia dormido a noite anterior. Quando tinha deixado Olívia, era quase de dia. Havia conseguido saltar a parede antes que soltassem os cães. Haviam sentido seu cheiro e o haviam seguido até o muro, onde haviam permanecido saltando e ladrando inutilmente, ao ver que Anthony se afastava a toda pressa. Tinha pensado em deitar-se uma hora ou duas durante a manhã, mas não havia podido conciliar o sono. Entendia como era difícil para Olívia encontrar-se entre duas lealdades, mas não podia compreender a amargura que havia percebido sob suas palavras. O tinha acusado de algo mais que simplesmente opor-se a seu pai. Havia dito que tudo o que fazia estava errado. Sua observação rebatia tudo o que haviam compartilhado até o momento. Uma mudança radical da idílica noite que haviam passado na praia e em Portsmouth. Em outra ocasião, também o tinha rejeitado sem lhe dar nenhuma explicação, e continuava sem entendê-la, mesmo quando abandonou a ofensa para voltar a pensar em quando voltariam a ver-se. Mas desta vez não sofreria em silêncio. Ontem à noite ela o tinha pego de surpresa, e não havia tido tempo para lhe surrupiar nada, mas a 189

coisa não ficaria assim. - Interessa-me ouvir música, Hammond - Declarou o rei com um bocejo Cavalheiros, podem se retirar. Desejo apaziguar minha alma com um pouco de música. Seus convidados fizeram uma reverência e abandonaram o aposento quando entraram os músicos. O governador se sentou diante de Sua Majestade ao fundo da sala e esfregou os olhos fatigadamente enquanto os músicos afinavam os instrumentos. - Vigiar seu soberano está resultando muito cansativo, conforme vejo, Hammond - Observou o rei com o mesmo malicioso brilho no olhar. - Meu dever com a monarquia, o Parlamento e o reino é me dedicar de corpo e alma a proteger sua pessoa, Sir - Repôs Hammond, erguendo-se sobre a cadeira. - Uma tarefa exaustiva - Disse o rei, e desta vez Hammond não pôs nenhuma objeção. Godfrey desceu pelas escadas que davam ao vestíbulo. secou o suor da testa com o dorso da mão. Fazia um calor de mil demônios no salão do piso de cima, e o escárnio que tinha tido que aguentar havia feito misérias em seu estômago, que ardia como um forno. Abandonou a sala e ordenou a um soldado que levasse o cavalo até a guarita de entrada. Ia visitar Lady Olívia, demonstraria à zombadora corte que não era um branco fácil. Se Lady Olívia estava rodeada de suas amigas, seus filhos e todas as insidiosas defesas da domesticidade, insistiria em manter uma visita em privado. Ele havia declarado publicamente suas intenções; não havia dado nenhuma explicação por sua negativa. Era perfeitamente razoável que exigisse algo mais. Cavalgou rápido, atiçando seu cavalo com as esporas e o chicote para desafogar sua frustração. Foi à entrada principal da casa de lorde Granville, desmontou e subiu pelas escadas a toda pressa. Ia esmurrar a porta com o chicote mas se conteve, não sem certa dificuldade. Não podia se dar ao luxo de dar uma má impressão. Era um pretendente tranquilo, cavalheiresco, que se dispunha a perguntar por sua dama. Talvez devesse ter levado algo como amostra de cortesia. Olhou a seu redor. Uma roseira florescia em todo seu esplendor contornando o caminho de entrada, e não havia ninguém nas imediações naquela tarde calorosa. Godfrey voltou a descer precipitadamente pelas escadas, apressando-se a arrancar três das melhores rosas e voltou à porta. Bateu com firmeza, mas sem pressa. Bisset abriu a porta. Reconheceu o visitante e fez uma reverência. - Boa tarde, lorde Channing. Lady Granville não está em casa. - Esperava ver Lady Olívia - Sorriu Godfrey, lançando um significativo olhar a seu pequeno ramo. Bisset não tinha nenhum motivo para lhe negar a entrada. Tinha sido recebido 190

por Lady Granville e portanto devia ter a permissão do Marquês. -Lady Olívia está na horta, creio, senhor - Disse saindo para fora e assinalando um lado da casa-. Mas lá do lago, detrás da fileira de álamos. - Obrigado. Bisset, não é? - Sim, milord. Bisset voltou a lhe fazer uma reverência. - Que alguém cuide de meu cavalo enquanto estou com Lady Olívia. - É obvio, meu lorde. Godfrey deslizou um guineu de ouro na mão do mordomo e desceu jovialmente as escadas com suas rosas. Olívia apoiou as costas na macieira que lhe dava sombra. Podia ouvir o ameno chapinho da fonte no lago que havia na parte central do jardim; a horta era fresca e cheirosa, e a grama crescia exuberante a resguardo do sol. Phoebe havia ido ao povoado em missão filantrópica. Era requerida frequentemente por seus conhecimentos de herborista, sua generosidade e sua compaixão, e tanto podia dar uma mão nos estábulos ou na pecuária, como oferecer um ouvido pormenorizado na mesa da cozinha. Portia havia ido andar a cavalo com seus filhos enquanto Olívia se deleitava em sua solidão. Seu devaneio desde que havia retornado de sua aventura preocupava suas amigas, mas ela não se sentia com forças para fingir, ainda não. Supunham que o motivo era o convencimento de que sua história com o pirata era efêmera por natureza. E efetivamente, isso formava parte de sua infelicidade, mas supunha só uma pequena parte. Deu um olhar ao livro que tinha sobre o colo. Normalmente, a vida de Plutarco tinha o poder de abstrai-la, mas nesta tarde sentia em falta sua magia. Deveria ter pego um texto difícil. Talvez Platão... - Ah, encontro a minha dama sozinha, em comunhão com a natureza. De repente, uma sombra se interpôs entre ela e a luz que se filtrava pelas folhas da macieira. Olívia conhecia a voz. - Lorde Channing, Como... como...? - Pensou, elevando a vista. Sua tez bronzeada e calma de cortesão lhe dirigiu um sorriso. Era aquele sorriso o que a aterrorizava. Não tinha amabilidade, nem autentico sentimento. Seus olhos entreabertos pareciam emitir uma estranha luz no interior. Uma luz ambiciosa que despertava más lembranças. Ela se pôs de pé e o livro caiu ao chão. Ouviu dois jardineiros falarem, enquanto expurgavam o viveiro de folhas secas do lado da horta. Só tinha que chamá191

los e viriam imediatamente. Não estava só mas a assaltou um medo irracional. Ele não lhe faria mal. É óbvio que não. Não havia razão para isso. Ele não era Brian. Mas Brian tampouco tinha tido motivos para machucá-la. - Rosas para você, senhora – Disse, mostrando o ramo - Uma rosa para uma rosa. Olívia pegou as flores com um gesto automático. Contemplou-as como se não soubesse o que eram. - Obrigada – Murmurou - Deve me perdoar, lorde Channing, mas tenho que voltar para casa. - Ainda não. Agradeceria que tivesse a gentileza de me escutar –Ordenou, segurando-a pelo braço para retê-la. Olívia escapou de sua mão. - Não - Objetou ela - Ontem à noite já disse que não podia aceitar suas pretensões. Tenho que ir, senhor. Virou-se, recolhendo a saia para afastar-se dele. - Não fuja de mim, coelhinha - Disse ele agarrando-a pelo pulso, com um tom dócil e provocador. Olívia o olhou fixamente, incapaz de mover-se. As flores caíram das mãos. Era incapaz de entender o significado dessas palavras. Godfrey sorria enquanto a segurava com força pelo pulso. Estendeu a outra mão para lhe buscar o queixo, atraindo seu rosto para si. -Um beijo – Disse - Não me negue um beijo. Um beijo casto, minha coelhinha. Ele se inclinou para ela e uma boca enorme e distorcida bloqueou toda sua visão. - Brian! - Sussurrou Olivia. O pânico se apoderou dela. Arranhou o rosto com umas da mão livre e escapou de sua garra. Godfrey lançou um grito de dor e lhe soltou o queixo. Olívia se livrou da mão que segurava seu pulso e se pôs a correr, com os soluços amontoando-se no peito. Não diminuiu o passo, ainda que se desse conta de que ele a seguia, e, atravessando as árvores, irrompeu no caminho ensolarado quase sob as cascos de um cavalo que se aproximava. - Olívia! - Gritou Anthony, puxando as rédeas e detendo seu assustado cavalo a alguns metros de Olívia, que o contemplava com os olhos aterrorizados entre a despenteado arbusto de cabelo. - O que aconteceu? - Perguntou desmontando e olhando rapidamente a seu redor. Estavam fora da vista da casa em uma curva do caminho da entrada. - Brian - Ofegou ela - É Brian. - Que Brian? Quem é Brian?

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Assustado pela palidez da jovem e pela ferocidade de seus olhos, inclinou-se para acolhê-la entre seus braços. - Não está morto - Disse ela - Não pode estar morto. Enviou esta... esta... c-ccriatura. Chamou-me “c-c-coelhinha”. Só Brian me chamava assim. As palavras fluíam desconexas dos lábios de Olívia, enquanto se aferrava ao corpo de Anthony, forte como uma rocha. Ele a abraçou e lhe acariciou o cabelo, sem saber que mais podia fazer. A princípio custou a interpretar o que dizia, mas gradualmente começou a intuir o pesadelo. Um pesadelo escuro e aterrorizante que foi revelando-se sob o quente sol e o brilhante céu azul daquela tarde de verão. Ela chorou sobre seu peito enquanto ele a sustentava, acariciou-a, tranquilizou-a com pequenos sussurros e lhe beijou os olhos cheios de lagrimas até que as palavras deixaram de sair de seus lábios e se pôs a tremer entre seus braços, por fim em silêncio. - Por que não me contou isso antes? - Não p-podia. Não p-podia suportar recordá-lo. Aquela primeira vez, no navio, pela manhã, de repente, voltei a r-recordar tudo. - Meu Deus! - Exclamou suavemente, entendendo por fim o que a tinha afastado dele. - Mas não está morto - Disse ela separando a cabeça de seu peito - Entende? Deve estar em alguma parte. - Talvez só seja uma coincidência que Channing tenha utilizado suas mesmas palavras. - Não! - Gritou ela, agitando a cabeça energicamente - Não, sei que não, eu presinto. Channing inclusive se parece com ele. É c-como se tivesse voltado com o ccorpo de Channing.

Godfrey Channing estava escondido entre as árvores e observava a cena com um estremecimento de ciúmes e raiva. Só um amante acolheria assim uma mulher. Ela se abraçava a Edward Caxton como se acabasse de sair de sua cama. Não era virgem, era uma prostituta que havia se deitado com um dom ninguém, um simples escudeiro, um cretino emperiquitado sem fortuna nem linhagem. Involuntariamente deu um passo à frente para sair de seu refúgio entre as árvores. Como se tivesse percebido o movimento, Caxton elevou a vista, olhando por cima da cabeça de Olívia para as árvores. Godfrey retrocedeu apressadamente mas não pôde evitar que seus olhos se encontrassem. Foi um contato breve mas suficiente. Agora Channing sabia o que lhe resultava familiar daquele homem. Tinha visto aqueles olhos anteriormente, havia estado submetido ao escrutínio desse olhar duro, afiado e depreciativo. O homem que se fazia chamar Edward Caxton era o mesmo que havia 193

comprado sua mercadoria. Nem aquele sujo pescador era o que parecia, nem Edward Caxton era o insípido parasita adulador que frequentava a corte. E lhe havia arrebatado sua presa. Olívia deu um profundo suspiro ao perceber o súbito estado de alerta de Anthony. - Está aqui? Viu-nos? - Não se preocupe com ele. - Mas se nos viu, contará a todo o mundo. - Já me ocuparei de Godfrey Channing - Disse Anthony com ar grave - Fez mal a você? - Tentou me beijar - Respondeu ela, tremendo de novo e esfregando os lábios com a mão - Assusta-me. Conhece Brian. Com certeza. Brian deve ter explicado o que me fez; falaram sobre mim. E agora contará que nos viu juntos. Sua voz subiu de tom e Anthony a tranquilizou amavelmente. - Eu me ocuparei disso - Repetiu. - Como? Inquiriu ela contemplando-o com impotência. - Confia em mim. Fez uma pausa e logo continuou intencionalmente: - Neste caso pelo menos pode estar segura de que farei algo sem esperar uma compensação econômica. Tanto sua voz como seus olhos a desafiavam a dar uma explicação. A palidez que a havia invadido havia um instante se desvaneceu de repente, deixando Olívia fria e vazia de novo. Respondeu ao desafio com outro. - Por que você veio? Não chamará atenção? Se meu pai estivesse em c-casa, faria perguntas. Pensei que queria evitá-lo. - Sei de boa fonte que não está em casa. - Supunha isso. Deve ter espiões. - Sim. Ele a contemplou com frustração, controlando seu aborrecimento pela secura de seu tom. Parecia ter solucionado um enigma para enfrentar outro. - Isso é o que me faz parecer tão mau a seus olhos, Olívia? -Você mesmo disse que não era um cavalheiro. Não se rege por um código de honra - Disse Olívia lentamente. - Disso se trata? - Perguntou ele - Não parecia se importar até agora. - Quando estava perdida no sonho, não me importava não agir honradamente 194

Disse ela - Mas agora que estou desperta, sei que me parece importante. Honra! Seu pai havia desonrado sua mãe. Haviam tido um filho na desonra. Em nome da honra, a família de seu pai havia rechaçado um menino de tenra idade, havia abandonado-o sem o menor escrúpulo. - A honra é um luxo que nem todo mundo pode permitir-se, querida Olívia. Disse Anthony com amargura. E quando vejo toda a desonra que se inflige em nome da honra, me alegro de que esteja fora de meu alcance. - Meu pai é uma pessoa honrada - Disse ela silenciosamente - Nunca cometeria um ato desonroso. - Deixarei você aqui - Repôs ele com um tom inexpressivo - Vou ocupar-me de Channing e verei o que posso descobrir sobre Brian. Os espiões servem para algo Acrescentou com um sorriso irônico. Virou-se e montou em seu cavalo, afastando-se pelo caminho sem voltar a olhar para trás. Olívia se dirigiu lentamente para a casa. Havia acusado Anthony de desonra. Mas que outra palavra tinha para um provocador de naufrágios? O ato de pilhagem mais desprezível e covarde. A pirataria e o contrabando eram uma fanfarronice, uma ousadia; certamente, a pirataria também se considerava um ato de pilhagem, mas o contrabando não. Os contrabandistas simplesmente despojavam os odiados coletores de impostos de seus igualmente odiados tributos. Inclusive seu pai comprava brandy de contrabando. Pensou na captura do Dona Elena. Havia sido um roubo, sem dúvida. Mas os proprietários eram uns selvagens. Anthony havia libertado os escravos e tinha entregado para eles o navio. Naquele momento tinha parecido uma luta justa, uma causa legítima. Sentou-se no banco sob a janela, olhando o mar. Sentia-se vazia de toda emoção; inclusive o terror que lhe produzia Brian parecia ter se desvanecido. Nada tinha mais nenhuma importância. Havia sol mas o dia parecia cinza. O mar brilhava mas parecia desanimado. Tudo parecia inútil e sem vida.

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Capítulo 15 Brian Morse deixou sua taça de vinho quando alguém chamou à porta de seu quarto no Gull de Ventnor. - Quem é? - Channing. - Entre, jovem, entre. Não se levantou da cadeira quando Godfrey entrou no quarto, e elevou uma sobrancelha ao ver o aspecto que apresentava seu hóspede: por uma vez, lorde Channing parecia menos imaculado. O pó lhe cobria as botas e o casaco; trazia as suas meias viradas e a pluma do chapéu estava torcida porque havia sido açoitada pelo vento. Tinha sangue na bochecha. - Parece ter pressa - Observou Brian, inclinando-se para verter um pouco de vinho na taça de seu visitante. Godfrey esvaziou a taça de um gole e a voltou a preencher. - Corri como alma que foge do diabo. Aconteceu algo. - OH! - Exclamou Brian, aguçando os ouvidos. - Sua perseguição a bela Olívia tropeçou com algum empecilho? - É uma prostituta - Cuspiu Godfrey. - OH, não, querido moço. Está equivocado. Juro que é pura como a neve. - Então está cometendo perjúrio. Tem um amante. - Começa a me interessar - Disse Brian. - Conte-me tudo. Brian escutou como Godfrey desabafava acariciando ensimesmado a ferida da coxa. - Fugiu de mim para jogar-se nos braços daquele bastardo - Repetiu ao finalizar seu relato. - Por que fugiu? Assustou-a? Eu disse que você devia ir passo a passo. - Também me disse que não era virgem! - Mmm. Estou surpreendido, tenho que confessar. Sempre foi uma criatura muito tímida. - Disse seu nome - Lembrou Godfrey. - Antes de escapar correndo, disse seu nome. A expressão de Brian perdeu todo seu ar de diversão. - Por quê? O que lhe disse? Você lhe disse que eu estava aqui? - Não, é óbvio que não. Não sou estúpido - Disse Godfrey sacudindo a cabeça. - Tentava abrandá-la, provocá-la um pouco. Você contou-me que estava acostumado a se dirigir a ela com um apelido carinhoso quando era menina. 196

Chamava-a «coelhinha», para que se sentisse cômoda. - O que fez? Brian se pôs de pé, e não pôde evitar um gesto de dor quando todo seu peso recaiu sobre sua perna ferida. - Idiota! Eu não lhe disse que a chamasse assim, não é? Godfrey também tinha caráter e estava de mau humor, mas instintivamente deu um passo atrás e se afastou de Brian Morse, que brandia sua bengala e parecia que ia usá-la. - Não vejo nisso nada de mau - Murmurou mal humorado. - Nada de mau? Era um nome privado. Só eu o utilizava - Disse Brian furioso. - Podia tê-lo esquecido. Passou muito tempo. - Impossível que o tenha esquecido - Disse Brian com sombria convicção. Pôs tudo a perder com sua lábia incontrolada. Voltou a sentar-se, olhando fixamente a lareira vazia, tentando pensar se podia retomar seu plano. - Se nos desfizermos de Caxton... - Isso é fácil - Disse Godfrey com impaciência - Primeiro vim vê-lo, mas quando voltar a Carisbrooke ordenarei que o detenham. Brian se virou para observá-lo com ceticismo. - Como? - Porque não é o que parece. É o mesmo homem que me comprou a mercadoria. E a Granville interessará saber que Edward Caxton está interpretando um papel - Disse Godfrey. - É o homem que estão procurando, que está urdindo um plano para resgatar o rei. Tem que ser ele. Quando lhes disser o que sei, o encerrarão na prisão de Winchester. O torturarão, tirarão a verdade e logo, se restar algo, o enforcarão. - É o que lhe parece - Observou Brian, elevando a sobrancelha ironicamente. - Mas não esqueça que Caxton sabe algumas coisas de você, que não podem sair à luz. Godfrey sacudiu a cabeça. - Inventarei algo para explicar de onde o conheço. Você tem que ter confiança em mim, sou um homem respeitado... - Graças a mim - Argumentou Brian suavemente. Godfrey ignorou sua observação. - É sua palavra contra a minha. Não acreditarão. Pode contar que sou um bom provocador de naufrágios, não vão acreditar, vou me assegurar disso. 197

Brian assentiu. - Bem, nos livraremos do rival, mas terá que conquistar à dama. - Não sei se quero conquistar uma mulher qualquer. - Disse Godfrey com ferocidade. - E se é de segunda mão? Por que deveria se preocupar? Segue sendo uma mulher rica e apetitosa. A experiência pode ser uma vantagem na cama de um homem. Godfrey não disse nada. Aproveitar as migalhas de outro era uma afronta para seu orgulho, mas também seria sua maior vingança sobre Caxton. - Se Cato souber que sua filha foi manchada, seduzida por um traidor, talvez ficasse mais disposto a aceitar uma boa oferta por sua mão - Murmurou Brian. - Têm que encontrar o modo de se aproximar dele e se apresentar como „O Salvador’ da reputação de sua filha. Ama-a, ama-a faz tempo. Você a aceitará tal como é. - Brian voltou a pegar sua taça. - Poderia funcionar. Mas têm que atuar com sigilo. Cato não aceitará facilmente que falem mal de sua filha. Talvez possa conseguir que Caxton se veja obrigado a contar a verdade, de modo que Cato a ouça de seus próprios lábios. - Durante o interrogatório - Disse Godfrey com um brilho nos olhos. Poderia tirar-lhe durante o interrogatório, Granville estará lá. Terá que fazê-lo. Brian desviou o olhar para a lareira com óbvio mau humor. Se Olívia suspeitasse que ele estava vivo, teria que se preocupar com seus próprios problemas. Cato não tinha se assegurado de que estivesse morto, depois do duelo em Rotterdam; ficaria extremamente interessado em saber que continuava vivo. Olhou Godfrey com furioso desprezo. - Você é um imbecil enganador. Godfrey se enfureceu e ergueu os punhos. - Não estou disposto a aguentar seus insultos. Brian deu uma desagradável gargalhada. - Aguentará o que for preciso, meu amigo. Esqueceu que eu também sei algumas coisas sobre você, que o levariam diretamente à forca. Godfrey empalideceu. Aproximou-se de Brian e se pôs a olhar fixamente a boca de uma pistola. - Tome cuidado - Disse Brian suavemente. Godfrey ficou imóvel por um instante, logo virou sobre seus calcanhares e saiu do quarto, batendo com a porta. Brian deixou a pistola sobre a mesa. Aproximou-se coxeando até a porta e viu Godfrey Channing afastando-se sobre seu suarento cavalo. O homem estava demonstrando ser uma ferramenta pouco confiável, mas era e único que Brian tinha. Godfrey voltou cavalgando para castelo fervendo de indignação ao lembrar dos insultos de Brian. Mas havia encontrado uma forma de recuperar a esperança.

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Necessitava do dote de Olívia e Cato ficaria disposto a pagar o que fosse para casar a sua filha manchada. Ainda que já não fosse virgem, seguiria sendo uma delícia na cama. E se quisesse lhe fazer pagar seus insultos, podia pensar em um sem-fim de coisas muito mais prazerosas para lhe satisfazer. Passou por diante da guarita de entrada e chamou o guarda. - Lorde Granville está no castelo? Ou lorde Rothbury? - Sim, senhor. Ambos. Ficaram aqui todo o dia. Reunidos com o coronel Hammond, creio. Godfrey deixou seu cavalo e se dirigiu para o castelo a grandes pernadas. O guarda observou a agitada respiração do animal, a espuma no focinho e a pele suarenta aguilhoada pelas esporas. - Vicioso bastardo - Murmurou o guarda. - Eu não gostaria de encontrá-lo em plena noite. Tomou as rédeas e retirou o exausto animal. - Não sei que outra coisa podemos fazer - Estava dizendo Cato ao coronel Hammond em seu aposento privado. - É impossível controlar todas as enseadas e ancoradouros da ilha. Estamos vigiando os portos de Yarmouth e Newport, e temos guardas nas principais baías da ilha. Se fugir de navio, que é o único modo no qual poderá fazê-lo, terá que sair de qualquer praia a remo. Um navio, dependendo das dimensões ancora longe da costa. - Alguém tem que saber algo - Afirmou Rufus, dando as costas à janela pela qual tinha estado observando o pátio. - É obvio. Mas, os ilhéus são como tumbas. Todos, sem exceção, são monárquicos incondicionais e o cérebro que procuramos é uma espécie de herói para eles, o silêncio está garantido. Giles não conseguiu nada, nem com subornos, nem com ameaças. Suas fontes habituais estão tão secas quanto um velho poço. - Dobrei a guarda nos aposentos do rei - Disse Hammond. - Nunca sai do castelo sem companhia. Unicamente, fica só apenas à noite. E não posso pôr vigilância dentro de seu quarto. Não é um delinquente. - Depende de como se olha - Disse Rufus em tom grave. - Há quem diga que o rei pôs em perigo a paz do reino e derramou o sangue de seus súditos em benefício próprio. Há quem pensa que é um traidor. Hammond suspirou. - Já ouvi estes argumentos, Rothbury... Ele virou-se ao ouvir que alguém batia na porta. - Entre. OH, é você, Channing. - Sim, governador. Godfrey fez uma reverência e foi diretamente ao ponto. - Lorde Granville, lorde Rothbury, acho que encontrei o homem que está

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atrás do plano de fuga do rei - Declarou com solenidade. Houve um momento de silêncio e estupefação. - Continue - Pediu Cato. - Faz tempo que suspeitava deste homem - Continuou Godfrey. - Havia algo estranho nele, mas até hoje não havia descoberto quem era. - Vá ao ponto - Exigiu o governador. - Nos dê um nome. - Edward Caxton - Disse Godfrey olhando-os sem poder ocultar seu orgulho. - Fazia tempo que suspeitava dele - Repetiu para que a mensagem ficasse bem clara. Ele, e somente ele, havia conseguido desmascará-lo. Ele havia seguido uma intuição e havia descoberto a trama. - Caxton? - Perguntou o governador franzindo o cenho. - Mas esse é um dom ninguém. - Ou quer parecê-lo - Disse Cato lentamente. - Melhor que comece pelo princípio, Channing. - É um contrabandista e um provocador de naufrágios - Disse Godfrey, observando como se voltavam para ouvir está ultima acusação. - Acho que é o responsável pelo naufrágio em St. Catherine's Point da outra semana. – “Que vingança mais doce!”, pensou Godfrey para si mesmo. – Eu queria comprar uma remessa de brandy para uso pessoal - Seguiu contando Godfrey, encolhendo de ombros com um gesto infantil ao reconhecer sua falta. Era uma falta leve que ninguém se atreveria a jogar contra ele. - Tinha um contato em Anchor de Niton. O taberneiro. Um tipo desagradável chamado George. Pôs-me em contato com um pescador. Ou pelo menos, foi isso que disse. Mas o pescador era Edward Caxton. - Como sabe que são a mesma pessoa? - Perguntou Cato observando-o de perto. Havia algo chocante em Godfrey Channing. Uma brutalidade estranha, quebradiça. A voz de Godfrey tremia de excitação enquanto debulhava sua história. Ia improvisando à medida que falava, com todos os detalhes e um tom plenamente convincente. - Reconheci-o ontem à noite, na mesa do rei. Soube imediatamente. Fui a Anchor está tarde para ver se averiguava algo. Estava na parte de trás da loja com o George. Ouvi sua voz tão claramente como agora ouço a sua. Era a voz de Caxton, sem o acento ilhéu que tinha quando interpretava o papel de contrabandista. - Pelo que me lembro, me disseram que seus homens haviam comprovado o passado de Caxton - Disse Rufus olhando Cato. - Sim. O seu e o de todos os que frequentam ao monarca. Como disse, não encontraram nada estranho. Quando está na ilha, aloja-se em Newport. - Talvez devamos indagar algo mais - Sugeriu Rufus secamente. Cato assentiu. 200

- Direi a Giles que se encarregue disso. Removerá céus e terra para averiguar a verdade. A caseira de Newport deve estar implicada na conspiração, como o resto da ilha. - Mas que acontece com Caxton? - Perguntou Godfrey inclinando-se para frente em sua cadeira. - O prenderão ou não? - Ainda não - respondeu Cato. - Averiguaremos mais coisas sobre ele antes de agir. Godfrey não gostou de ouvir, mas devia aparentar que estava satisfeito. - Há algo mais que eu possa fazer, senhores? - Mantenha os olhos abertos e aguce os ouvidos como até agora - Disse Cato assentindo em sinal de aprovação. Godfrey fez uma reverência e se retirou. Olivia ouviu quando os meninos retornaram de seu passeio a cavalo com Portia. O alvoroço costumeiro dos Decatur. Todos pareciam falar de uma vez, embora aparentemente, se entendessem à perfeição. Apoiou a cabeça no respaldo da cadeira e tentou armar-se de coragem para descer ao andar de baixo, para voltar a ser ela mesma, mas lhe parecia impossível. Godfrey Charming teria contado o que havia presenciado no caminho de entrada? Seu pai teria perguntas sobre Anthony? Não podia contar nada sobre Brian, sem revelar o que não podia suportar. Que ele ainda se encontrava na ilha. Seu pai gostaria de sabê-lo. Era muito complicado todo aquele embrulho. O que havia começado como um sonho extasiado havia se convertido em um emaranhado de meias verdades, falsidades sem reservas e um pântano de impossíveis sentimentos. Se não tivesse caído do barranco... Se não tivesse conhecido o pirata... Mas Olívia sabia que nunca poderia desejar que não tivesse ocorrido. Pôs os pés no chão com dificuldade. Eram quase as seis, hora do jantar, e podia ouvir a voz de seu pai na sala de jantar, falando com Rufus. Não podia esconder-se em seu quarto toda a noite mesmo que quisesse. Precisava descobrir se Godfrey havia dito algo a seu pai. Olívia saiu do quarto. Ouviu com clareza as vozes que vinham da sala de jantar e pensou em como haviam mudado as coisas. Rufus Decatur comeria na mesa de Cato Granville. Não se alojaria sob seu teto, embora não lhe importasse que sua família o fizesse, mas compartilhariam mesa. Sete anos antes, Rufus teria assassinado Granville e Cato teria correspondido com a mesma moeda. Haviam feito causa comum nesta guerra, e suas respectivas esposas os haviam obrigado a reconhecer o bom de cada um. Não eram amigos, mas se respeitavam. Giles Crampton e Portia estavam no salão com o Cato e Rufus, quando Olívia desceu lentamente as escadas. - Eu começaria com a caseira de Newport, Giles - Dizia Cato. - Veja o que pode tirar dela. Tem que saber algo. Toda a maldita ilha está a par de algo que nós não sabemos. Temos que capturar os conspiradores. Jogue a rede e não se preocupe 201

se as provas forem validas ou não. Se nosso homem averiguar que seus amigos correm perigo, talvez de um passo em falso. Então poderemos... Ele interrompeu-se quando viu Olívia na escada. - Ah, aqui esta. Sabe onde está Phoebe? Olívia se atrasou um segundo antes de responder. Não havia nada estranho na saudação de seu pai, mas entre os três homens havia um ar de carrancuda satisfação, uma determinação que ela sabia que haviam perdido nas três ultima semanas. O mal-estar percorreu sua espinha dorsal. - Sabe onde está Phoebe? - Repetiu Cato. - Portia não sabe. - Foi ao povoado. Ainda não retornou? - Não, conforme Bisset. Cato franziu o cenho. Já estava ficando tarde e ele não gostava que Phoebe rondasse por aí quando anoitecia. - Giles, antes de ir às Newport, vá o povoado e acompanhe Lady Granville a sua casa. - Sim, senhor. Giles se virou para a porta aberta. - OH, aí vem ela. Phoebe entrou correndo. - Estavam me esperando para jantar? Me perdoem. Estava radiante. - Ajudei em um parto. Uma menina sã e linda. Passemos a sala de jantar? - Acho que podemos esperar alguns minutos - Disse Cato amavelmente. Enquanto lava o rosto e as mãos e arruma o cabelo. A alegria de Phoebe não definhou. - OH, tenho o aspecto de uma parteira? Me esperem na sala de jantar. Só demorarei um minuto. Subiu correndo as escadas. - Se forem tão amáveis - Disse Cato assinalando a sala de jantar. Ocuparam seus postos na larga mesa e esperaram a chegada de Phoebe, que reapareceu ao cabo de alguns minutos com um aspecto mais asseado. Serviu-se de um prato de bacalhau e ervilhas com molho cremoso e deu uma detalhada descrição do parto que havia participado. - Phoebe, temos que ouvir todos esses truculentos detalhes? - Perguntou Portia. - OH, truculentos? - disse Phoebe surpreendida. - Foi um parto muito natural e realmente rápido. - Mas não é uma conversa muito adequada para o jantar - Murmurou Cato. Pegou um empanado de frango de um prato e continuou a conversa. - Que pensa do senhor Caxton, Olívia? Parece que esteve falando com ele, se não recordo mal. O coração de Olívia deu um salto. Era o prelúdio de uma discussão sobre o que havia ocorrido aquela tarde? Tossiu como se engasgasse com um pedaço de frango e pegou sua taça de vinho. Cato esperou cortesmente até que lhe houve passado o acesso de tosse.

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- Por que pergunta? Cato se encolheu de ombros. - Vi você falar com ele uma noite no castelo. Perguntava-me qual era sua impressão. Assim Godfrey tinha mordido a língua, ao menos no momento. - Não posso lhe dizer nada dele, senhor - Disse ela tranqüilamente. - Parece-me que sua conversa não tem nenhum interesse. - Ou seja, na sua opinião, não tem a mínima formação - Observou Cato com um leve sorriso. - É tão simples! - Interveio Phoebe. - Por que estão interessados nele? -Talvez não seja tão simples como parece - Disse Cato. A mão de Olívia tremeu ao deixar o garfo sobre a mesa. - O que quer dizer? - Poderia ter outros motivos para deixar-se ver na companhia do rei - Disse Rufus. - Há pessoas que pensam assim. - OH - Disse Olívia, voltando a pegar o garfo. Era isso o que havia detrás da conversa que havia ouvido no salão? - Quer dizer que tem a intenção de resgatar o rei? - Se for verdade, ele simula ser outra pessoa e não seria uma dedução tão estranha. - O que os faz suspeitar dele? - Inquiriu Portia cravando um caranguejo picante com o garfo. - Estes caranguejos da ilha são deliciosos. - Um rumor - Respondeu Cato. - Só um rumor. Olívia esmiuçou um pedaço de pescado no seu prato, simulando escasso interesse ante a informação “Quem pôde lançar esse rumor? Até que ponto eles sabem? Anthony sabe que está sob suspeita?” - Estava pensando que seria divertido ir ao Castelo esta noite - Disse Olívia casualmente, estendendo a mão para pegar a taça de vinho. - Se é que têm que retornar lá, senhor. - Essa era minha intenção. Tenho coisas que fazer - Repôs surpreso ante a proposta de sua filha. Não era o único. Olívia notou o atento olhar de suas amigas. Era muito estranho que Olívia obrigasse a si mesma a participar de uma noite no Castelo. Sustentou seu olhar com firmeza, procurando sua aprovação com os olhos. - Nesse caso iremos todos - Disse Portia. - Sim, talvez o senhor Johnson também esteja lá - Acrescentou Phoebe. - Havia pensado que poderia me acompanhar ao castelo esta noite, Portia Disse Rufus com alegada indiferença. - OH, deseja que passe a noite com você? - Perguntou sua mulher com um ar 203

de inocência, completamente oposto ao brilho de seu olhar. - Essa era minha intenção - Repôs elevando uma sobrancelha. Portia sorriu abertamente. - Nesse caso, o melhor é irmos trocar os vestido - Disse Phoebe afastando a cadeira. - Sim, as calças de montar não são o mais adequado - Acrescentou Portia alegremente. - Vamos, Olívia. Olívia as seguiu até o quarto. Por mútuo acordo, não disseram nada até chegar ao seu quarto. Portia fechou a porta silenciosamente e foi diretamente ao ponto. - O que te aconteceu, bela? Olívia olhou para uma e logo para a outra. Seus olhos azuis e verdes só expressavam preocupação. - Têm que sabê-lo - Disse ela. - Agora já não fará nenhum estrago. Edward Caxton é o meu pirata. - O que? Ficaram olhando fixamente. - Devia ter adivinhado - disse Phoebe ao cabo de um minuto. - Aquela primeira noite que te vi falando com ele, notei algo estranho. Mas seu pirata se chama Anthony... OH, claro... ele não usa seu verdadeiro nome - Disse isto verdadeiramente zangada consigo mesma pela estupidez do comentário. - E seu pirata quer ajudar o rei a escapar - Afirmou Portia, franzindo a testa até formar uma única linha com suas loiras sobrancelhas. - Estás em um bom apuro. Por isso estiveste tão triste e melancólica. - E queria avisá-lo esta noite, se estiver no castelo - Disse Phoebe lentamente. - Se estiver - Afirmou Olívia. - Mas era preciso que viessem comigo, senão, pareceria muito estranho. - Mas se você o advertir, fará fracassar os planos de Cato. Se te ajudo, engano o meu marido - Disse Phoebe com aflição. - Mas, a meu pai só interessa evitar a fuga do rei. - Disse Olívia rapidamente. Se Anthony abortar o plano, todo o mundo ficará satisfeito. Não será preciso que o capturem e o enforquem, não? Phoebe assentiu. - Não, acredito que não. Você poderá convencê-lo a não levar a cabo seu plano? - Tentarei - Disse Olívia. Olhou a suas amigas. - Sei que não me... que não o... trairei, não é? Era meio pergunta meio afirmação. Fez-se um breve silêncio, logo Portia respondeu a seu modo:

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- Vocês se lembram de quando nos conhecemos? - No abrigo durante as bodas de Diana - Respondeu Olívia assentindo. - Só faz sete anos e o mundo está tão mudado que resulta irreconhecível. Tudo está de pernas para o ar. Perderam-se tantas vidas... derramou-se tanto sangue. Quando isso acabará? - Rufus acredita que processarão o rei - Disse Portia. – Tudo começou com a execução do conde de Strafford, e acabará com a do rei. - Executarão o rei? Olívia ficou olhando. - A alguns agradaria muito fazê-lo - Disse Phoebe seriamente, - Mas não a Cato. - Nem a Rufus - Disse Portia. Estavam tão acostumadas à guerra, que lhes era difícil imaginar viver em um mundo em paz. Mas a execução do rei não traria a paz. Só os incautos acreditavam ou os mais fanáticos. - Custa-me lembrar de como foi - Disse Olívia. Sentia que esta lembrança responderia a sua pergunta. Era um aviso de sua profunda amizade. - Inocentes como meninas. Determinadas a não nos casar jamais. E quanto a ter filhos... Deus não o queira! - Bom, eu queria ser soldado e o sou - Disse Portia. - E eu queria ser poeta e o sou - Disse Phoebe. - E eu queria estudar - Disse Olívia. - E assim é. - Sim - Disse ela categoricamente. - Melhor que nos troquemos e tentemos sair deste atoleiro - Disse Portia energicamente. Era uma mulher de ação, de ideias fixas, sempre disposta a procurar uma solução. Olhou Phoebe. - Sim, é obvio - Concordou Phoebe. Mas parecia preocupada. - Obrigada - Disse simplesmente Olívia. - Não as colocarei em dificuldade desta vez. Phoebe assentiu. Deixaram que Olivia trocasse de vestido. Era consciente de que graças a seu caráter generoso e a sua amizade, Phoebe havia feito essa pequena concessão. Mas a partir de então, a lealdade a seu marido e a sua causa seria inquebrável. Portia, muito menos sentimental, muito mais pragmática, gastaria pouca energia em disputar sua fidelidade. Mas ela não tinha nada claro. Nada era fácil. Só sentia que não poderia suportar a morte de Anthony. Havia escolhido não tornar amar mas, não podia imaginar um mundo sem sua presença.

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Capítulo 16

- Prue, os soldados voltaram - Disse o senhor Yarrow chamando sua mulher ao entrar em sua casinha de Holyrood Street. - Acabam de passar por Saint Thomas. - E o que isso tem que ver conosco? - Perguntou Prue recolhendo o ferro de passar do fogo. Cuspiu nele e fez um movimento de aprovação com a cabeça antes de começar a engomar a camisa estendida sobre a mesa. - Porque agora virão aqui - Disse-lhe seu marido. - Vão casa por casa, desde a igreja, fazendo perguntas. - Que perguntem o que quiserem - Disse Prue, dobrando a camisa com destreza. - Não temos nada que esconder. - Perguntam pelo patrão. O bom homem se deixou cair pesadamente em uma cadeira que havia no outro extremo da mesa que ocupava quase a totalidade da quadrada cozinha. - Pois mostraremos seu quarto, nem mais nem menos, como das outras vezes disse Prue pegando outra camisa e trocando o primeiro ferro por outro que esquentava em cima do fogão. - Não fique nervoso, homem. Só temos que seguir contando a mesma história. Nada mais. - Mas faz mais de um mês que não se deixa ver por aqui. Era óbvio que o dono da casa era incapaz de seguir o conselho de sua esposa. - Nós não temos nada a ver com tudo isto - Disse ela serenamente. - Só lhe alugamos o quarto. Não nos importa nada suas idas e vindas. É tudo o que temos que dizer. Deixe de falar deste assunto. O homem se pôs de pé e foi em busca de uma jarra de cerveja que estava sobre o armário da cozinha. Enquanto ele bebia diretamente da jarra, se ouviam umas fortes pisadas que se aproximavam pelo beco, depois da porta aberta. Giles Crampton se assomou pela porta. - Boa tarde, senhora. Prue deixou o ferro. O homem levava uma insígnia de sargento. Anteriormente, ele lhes havia visitado como um soldado raso. - Entre, senhor. Quer um pouco de cerveja? - Não, obrigado. Hoje não. Giles entrou na cozinha. Atrás dele, na rua, havia ficado um pelotão de soldados, armados com lanças e mosquetes. Ouviram os rápidos e pequenos golpes das portas que se fechavam ao longo de toda a rua, e várias caras curiosas apareceram nas janelas superiores. A mão de Prue tremeu imperceptivelmente ao alisar a peça que havia engomado.

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- O que deseja, sargento? - Bem, é o seguinte - Disse Giles aproximando-se da mulher e adotando um tom de voz confidencial e amistoso - Chegou-nos certa informação sobre seu inquilino. Ainda se aloja aqui? - Não - Disse o dono da casa. - Partiu. Prue se pôs a rir. - Isso é o que pensa meu marido - Disse a boa mulher. - Não é que lhe dedique muito tempo, mas paga bem. É o que nos importa. Mas faz já vários dias que não o vemos, ainda tem aqui as suas coisas - Disse indicando com um movimento de cabeça a estreita escada que havia ao fundo da cozinha. - Vá ver, se o desejar, sargento. Giles subiu as escadas. O pequeno quarto situado sob o beiral, estava fechado, e sobre a cama de armar viu o edredom e o travesseiro, suaves e limpos. Cheirou um pouco por todo o quarto. Nos pés da cama havia um arca com armadura de ferro. Estava aberto e levantou a tampa. Não viu nada que o interessasse. Só objetos pequenos, lenços para o pescoço, um par de botas de troca, um bonito cinturão de couro, um arreio e umas esporas. Tudo absolutamente inocente. Tudo absolutamente apropriado para um senhor com intenção de fazer um lugar na corte. Mas havia algo que não se encaixava. Ficou de pé farejando como um sabujo 26. Não é que no quarto se respirasse algum aroma especial, o estranho era precisamente que não cheirava a nada. “Aqui não se aloja Edward Caxton, nem ninguém”, decidiu Giles. Certamente não podia recriminar ao soldado encarregado da anterior inspeção que não se deu conta desta indefinível pista, já que não tinha nenhum motivo para suspeitar de Caxton. Havia sido uma investigação rotineira. Então, por que Caxton pagava um aluguel por um lugar no que não vivia, aonde além desse lugar, guardava suas roupas e várias coisas mais? Voltou a descer as escadas. Surpreendeu o dono da casa olhando dissimuladamente sua mulher. Olhando-a com inquietação. O bom homem se aproximou a jarra de cerveja aos lábios e deu um gole ruidosamente. Quando a deixou sobre a mesa, seus dedos tremiam. - Pois bem - Disse Giles tranquilamente, - Falemos um pouco do senhor Caxton, se lhes parecer bem. - Não sabemos nada dele - Espetou-lhe o dono da casa. - Nós só fazemos é cobrar, ele entra e sai quando lhe agrada. - Algo que não faz muito frequentemente - Observou Giles apoiando as costas contra a parede e afundando as mãos até o fundo dos bolsos das calças. - Então, quando não está aqui, onde está? - Como quer que saibamos? - Replicou Prue esfregando as mãos no avental. Como diz meu marido, estamos contentes com o que nos paga. Não bisbilhotamos. 26

Cão de caça.

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- Bem, talvez poderiam pensar um pouco – Sugeriu Giles, fazendo gestos com um dedo aos homens que o esperavam na porta. Estes avançaram um pouco e a sombra de sua presença se projetou através da porta cobrindo os últimos raios da luz vespertina. - Estou certo de que qualquer coisa que saibam poderia ser útil -Continuou Giles com voz lisonjeadora. - Seus amigos, talvez? As visitas que recebe? Aonde vai, quando não está aqui? Prue sacudiu a cabeça. - Já lhe disse sargento, não sabemos nada. Giles suspirou profundamente e disse com voz lastimosa: - Bem, eu não acredito, boa mulher. Acredito que sabem um montão de coisas sobre o tal senhor Caxton, e meu trabalho consiste em averiguá-lo. De modo que, iremos a um lugar mais tranquilo, onde poderemos conversar um pouco mais. Sinalizou a seus homens e estes apareceram no interior da casinha. - Não podem nos levar! - Protestou o senhor Yarrow com pânico na voz. - Nós somos pessoas da lei! Seu rosto produziu um gesto de medo quando os soldados o pegaram. - Meu marido tem seus direitos - Manifestou Prue com uma voz muito mais segura que a de seu marido. - Trazem uma ordem de detenção? - Cumpro ordens do governador, senhora - Respondeu-lhe Giles. - Se não fizeram nada, não têm nada que temer. Prue deu um bufo de incredulidade, mas a diferencia de seu marido, não seguiu protestando quando os conduziram para fora da casa. - Quer que deixemos a porta fechada, senhor? - Perguntou-lhe Giles solicitamente. - Ou preferem que quando ele chegue encontre a porta aberta? - Feche com a chave - Adiantou-se Prue resmungando. – Você a encontrará pendurada em um prego detrás da porta. Giles fez o que lhe pedia e depois seguiu a procissão ao longo da rua Holyrood até o cais. Embarcariam o senhor Yarrow e sua esposa e os levaram a castelo de Yarmouth, onde os interrogariam em privado. Giles estava consciente dos olhos que os seguiam, das portas que foram se fechando a toda pressa enquanto passavam e se sentiu satisfeito de que sua pequena batida tivesse os efeitos desejados. Isso de sacar alguns cidadãos de sua casa e levá-los era uma estupenda tática de intimidação. Algumas batidas mais e com certeza que se debilitaria a lealdade daquelas pessoas para o senhor Edward Caxton, assumindo que efetivamente esta fosse a pessoa a que procuravam. Os Yarrow podiam dar uma resposta a aquela incógnita. O dono da casa seria quem resistiria menos, Giles estava certo disso. Era curioso que as mulheres, o chamado sexo frágil, fossem bem mais difíceis de intimidar. Era algo do que já havia se dado conta com antecedência.

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“Talvez se deva as dores do parto, as fazem mais fortes”, pensou, olhando para o cais e vendo como empurravam seus prisioneiros dentro do navio. Ao ver que este punha rumo ao rio Medina, foi procurar seu cavalo. Voltaria para Carisbrooke com a notícia do êxito conseguido e logo se encontraria com seus prisioneiros quando desembarcassem em Yarmouth. Mike esperava na praia da pequena baía quando Anthony fez virar o bote encarando-o à borda. - Parece que mais tarde vai piorar - Observou Mike enquanto se abaixava para puxar o pequeno bote e levá-lo até a praia. Anthony pisou na areia molhada sustentando em suas mãos as meias e suas elegantes botas de pele lavrada. Farejou o vento. - Cheguei à mesma conclusão. Uma boa noite para um naufrágio, sim senhor. Mike notou o tom meditativo e esperou para ver o que mais ele diria. Quando o patrão falava naquele tom, significava que ia comunicar um plano cuidadosamente esboçado. - Estive pensando que é hora de passarmos à ação, Mike. Faremos uma pequena surpresa a quem quer que tenha um trabalho sujo para mais tarde. - Desde o mar? - Sim. Já temos um grupo do Wind Dancer para que chegue à praia a meianoite. Pode se encarregar de reunir alguns homens para que subam ao penhasco? Mike sorriu abertamente. - Isso é fácil - Disse - Papai será um dos primeiros e três de meus irmãos. Vigiaremos vocês acendendo o farol. Vão levar umas boas pancadas. - Exatamente. Anthony se sentou em uma rocha um tanto afastada da borda, tirou a areia que tinha grudada às solas dos pés e pôs as meias e as botas. - Esta noite não ficarei muito no castelo. O justo para passar a mensagem ao rei de que manhã é o dia. Só peço a Deus que não desista no último momento. Não ganharia nenhum prêmio como conspirador. Anthony fez uma careta. Ao rei era difícil dissimular. Fundamentalmente porque considerava que isso não correspondia a sua dignidade. Quando o monarca tomasse conhecimento de que sua fuga da prisão era iminente, restava a possibilidade de que algo em sua atitude alertasse o governador sempre vigilante. Precisamente isso, já havia ocorrido antes. Mas era um risco inevitável. Se Anthony quisesse ser fiel a sua promessa a Ellen, devia corrê-lo. - Reuniremo-nos na praia quando tudo tiver terminado no castelo. Mike começou a subir a grandes pernadas o íngreme caminho e Anthony o seguiu com passo firme. Cheirava a tormenta que viria. Seria a primeira desde a noite do último naufrágio. Faria Channing e seus homens sair? Seria a ocasião perfeita para pegar Godfrey Channing e assim matar dois pássaros de um tiro. Por um lado deteria 209

o naufrágio, pelo menos até que algum outro cérebro malvado o substituísse; e por outro, manteria o jovenzinho afastado de Olivia, antes que produzisse mais desastres. Assim estavam as coisas, Anthony só teria pendente um pequeno problema antes de resgatar o rei. O misterioso e malvado Brian Morse. Anthony estava muito interessado em encontrar o homem que havia abusado de Olívia em sua infância. Também nisto Channing lhe seria de ajuda. Entrou na grande sala de Carisbrooke com um passo do mais natural e saudando com um sorriso aberto e amistoso. O rei estava jogando cartas junto à lareira, mas não havia nem rastro de Granville, Rothbury ou Hammond. Com sua habitual e agradável atitude distraída, Anthony cumprimentou Lady Hammond e prodigalizou seu irresistível sorriso entre as senhoritas que a rodeavam. Elas agitaram os leques e lhe devolveram o sorriso, e a senhora Hammond, com aquele sorriso que deixava exposto os dentes separados, o repreendeu porque com sua paquera havia conseguido semear a confusão entre as damas que a acompanhavam. Anthony conseguiu escapar do compromisso, agradeceu que um ajudante do rei lhe rogou que se reunisse com Sua Majestade para jogar às cartas. Anthony sorriu, fez uma reverência às damas, beijou várias mãos e cruzou o salão com passo indolente para ir ao chamado do rei. - Sou um jogador medíocre de whist, senhor - Desculpou-se Anthony com sua molesta e breve risada ao inclinou-se ante o soberano. - Estou convencido de que vou causar a impaciência do resto dos jogadores. - OH, não importa. Estou certo que lorde Daubney ficará encantado de ser seu par. É impossível que sejam pior que seu par atual. - Não tinha boas cartas, senhor - Murmurou irritado o aludido, levantando de seu assento na mesa e deixando seu lugar para Edward Caxton. Anthony tomou assento. Seus olhos estavam alerta sob as pálpebras preguiçosamente fechadas. Com uma mão sustentava as cartas, mas, como sempre, tinha a outra sobre o punho de sua espada engastada com pedras preciosas. Estava entre seus inimigos, e se algo desse errado seria muito difícil que saísse daquela sala, e menos ainda do castelo, mas sem dúvida alguma tentaria. - Deste um passeio pelas muralhas esta noite, Majestade? - Perguntou despreocupadamente, deixando as cartas sobre a mesa enquanto era a vez de seu par. - Não, acredito que o ar da noite irrita meus pulmões - Respondeu o rei, lançando um olhar bem cansativo ao outro lado da mesa. Anthony não levantou aos olhos. O rei, alertado ante a alusão à muralha, sabia que Caxton tinha uma mensagem para ele. Encontraria a maneira de recebê-la. Ao cabo de cinco minutos, o rei estendeu a mão para recolher as cartas que havia ganhado, e o extremo do largo punho de sua manga arrastou sua taça de vinho, que caiu sobre a mesa. O conteúdo cor rubi se derramou por cima das cartas. Anthony tinha na mão seu lenço e se inclinou para impedir que o vinho 210

manchasse a saia do rei. - Obrigado, Caxton. Têm reflexos muito rápidos - Disse o rei pondo a mão na saia e afastando sua cadeira para trás com um rápido movimento. - Acho que esta noite estou mais entorpecido que de costume. - OH, certamente que não... foi minha culpa, fique seguro... Como pode ser torpe Sua Majestade? Foi por minha culpa, não o duvido, por minha culpa! Exclamou Anthony. Os homens que se sentavam à mesa trocaram sorrisos desdenhosos. Os criados se apressaram a limpar a mesa, foram procurar outro jogo de cartas e encheram de novo a taça do rei. O monarca colocou a mão no bolso descuidadamente e se inclinou para trás quando a mesa estava limpa. Logo se aproximou de novo à mesa e abriu o pacote de cartas habilmente. - Começamos de novo, senhores? - Inquiriu o rei, e cortou as cartas ante seus competidores. Anthony percebeu a chegada de Olívia antes de vê-la. Era como se produzisse uma mudança no ambiente. Nenhuma outra mulher havia tido esses efeitos sobre ele... e nenhuma outra mulher o tinha jamais acusado de desonra. “Não conheço ninguém tão completamente volúvel”, pensou enfurecido. Num momento, o amava com todo o ardor e a paixão, e depois o exortava sobre defeitos morais e o separava dela como se fosse uma barata asquerosa. - Sua vez, senhor Caxton - Advertiu-lhe o rei. Anthony tratou de concentrar-se de novo nas cartas. - Duas espadas, cavalheiros. Segurou sua taça de vinho e lançou um olhar aparentemente ocioso à sala. Olívia levava outra vez o vestido laranja, e outra vez Anthony pensou que parecia uma resplandecente orquídea com sua tez pálida e seu reluzente cabelo negro recolhido na nuca contrastando com o fulgurante vestido. Olivia, situada entre Lady Granville e Lady Rothbury, olhou-o diretamente nos olhos. Não havia ambiguidade alguma naquele olhar aveludado. Estava-lhe pedindo atenção sem rodeios. Nada havia nada de sensual em seu olhar, nenhuma das luminosas promessas, dos resplandecentes rescaldos do desejo, da diversão que tão frequentemente os iluminava. Anthony assentiu com a cabeça quase imperceptivelmente e voltou a olhar suas cartas. Olívia se deu por satisfeita. Ele iria procurá-la. Olívia se virou para a senhora Hammond e lhe perguntou recatadamente sobre uma das tapeçarias penduradas na parede da grande sala. A senhora Hammond se perdeu imediatamente em uma elaborada descrição que conduziu seu público a um aborrecimento expresso nos olhares vítreos de todos, mas que deu a Olívia a 211

oportunidade de preparar sua mensagem para Anthony. Teria muito pouco tempo para passá-la. Deveria ser muito breve. Anthony fez sua jogada, com a qual arruinou completamente seu jogo, e suportou os protestos zombadores e de uma vez zangados de seu par, que por culpa do penoso jogo de Caxton havia perdido cinco guinéus. - Sinto muito... Sinto-o muito... Certamente deixo livre meu posto - Desculpouse Anthony movendo as mãos em sinal de aflição. - Temo que meu querido lorde Daubney teve má sorte com seus pares esta noite. Sou um jogador péssimo. Senhor Taunton, talvez você pudesse compensar meu desastroso papel? E se dirigiu com a cabeça ao cavalheiro que estava de pé junto ao rei. - Sim, sim, sim é seu desejo - Disse o homem com entusiasmo. - Reconheço que faz muito tempo que desejo ter a honra de jogar com Sua Majestade. O rei Carlos sorriu fracamente. À luz das velas resplandeceram os anéis em sua pálida mão ao indicar a aquele outro aristocrata ávido de realeza que ocupasse o posto de Anthony. Anthony fez uma reverência ao monarca e se perdeu entre a multidão. Olívia estava ainda com o grupo de pessoas que rodeavam a senhora Hammond. Sua inquietação era evidente, já que se apoiava em um pé, logo no outro. Não parava de abrir e fechar o leque, mas ele se deu conta, não sem um toque de amargura, de que Olívia, devido a seu amor clandestino, havia aprendido o suficiente de conspirações para sentir que seus olhos não deviam mover-se, buscando por ele, uma vez comunicado a mensagem. - Senhora Granville... senhora Rothbury. Que prazer encontrá-las aqui. Não guardava quase nenhuma esperança de ter a honra de voltar vê-las.Dirigiu-lhes um sorriso afetado ao tempo que se inclinava diante das duas mulheres casadas. - A honra, senhor Caxton, é toda nossa - Disse Portia e em seus olhos verdes houve um inconfundível brilho irônico. Anthony o captou, mas se virou para cumprimentar Olívia. - Senhorita Olívia, estou muito contente de ver que seu vestido não sofreu imperfeições por causa de minha estupidez. - Tive sorte, senhor Caxton - Disse Olívia cortesmente, e baixou seu olhar timidamente. - Mas se quer me recompensar... - Qualquer coisa, querida senhorita, qualquer coisa que possa fazer para conseguir que volte a pensar bem de mim. Anthony levou a mão de Olívia a seus lábios. Ao fazê-lo, captou no semblante de Lady Rothbury um fugaz brilho que denotava sua evidente diversão. Anthony olhou à senhorita Granville e ela evitou seu olhar com aquele ligeiro ar altivo que já havia notado anteriormente. “Até que ponto Olívia confiou em suas amigas?”, perguntou-se. - Meu xale - Comentou Olívia. - Sinto um pouco de frio e pensei que 212

possivelmente queira me acompanhar à carruagem para recolhê-lo. - Será um grande prazer, senhorita Olívia. E pronunciando estas palavras em tom neutro ofereceu a mão à moça. Olívia descansou uma mão sobre o braço dele e notou que os músculos sob a camisa de seda azul escuro se endureciam imediatamente sob o contato de seus dedos. Só este leve contato lhe provocou uma onda de calor na pele e a cabeça começou a dar voltas. Agarrou-se ao braço de Anthony ainda mais forte e seus dedos se cravaram involuntariamente em seu braço enquanto ambos saíam da sala. O pátio estava cheio de soldados, já que na muralha tinha lugar a mudança de guarda. - O que está acontecendo? - Perguntou Anthony com serenidade. -Estou seguro de que não pretende um encontro de amor. Sua voz soou glacial e dura. - Poderíamos falar no jardim privado? - Sussurrou Olívia. O despeito de Anthony era previsível, já que tinha sido ela quem o havia causado, mas doeu terrivelmente. Queria lhe dizer a gritos que para ela era tão duro como podia ser para ele; pedir-lhe que entendesse como se sentia. Mas se tinha havido algum instante para este tipo de confidências, este já havia passado. Anthony, sem dizer nada, dirigiu seus passos através do pátio para a capela e o jardim que havia atrás. Vários casais respiravam o ar fresco da noite no jardim amuralhado, e ninguém se fixou na chegada de mais outro casal. - Bem, o que é que queria me dizer? - Disse em voz baixa, mas arisca. Olívia não afastou seu olhar do caminho de cascalho. - Suspeitam de ti - Disse em um sussurro. - Queria te pôr de sobreaviso. Dizem que não é o que aparenta. Olívia notou como o músculo de seu braço se contraía fortemente sob sua mão, mas seu passo não vacilou. Anthony lançou uma olhada a seu redor uma só vez, rapidamente, como se avaliasse a situação e logo disse: - Assim abriu o bico. - Não! - Exclamou Olívia. - Certamente que não. Disse que não diria nada. Nunca quebro minhas promessas. - Silêncio - Ordenou Anthony. - Não atraia a atenção de ninguém. Diga-me o que sabe. Com palavras apressadas e em voz baixa, Olívia lhe contou a conversa que havia ouvido na mesa do jantar. - Meu pai disse que só eram falações. - E de onde procediam tais falações? Se não procediam de ti, então vinha de alguma de suas amigas, às quais você confiou meus segredos? - Disse em um tom duro. - Não - Repetiu Olívia com firmeza, mas apesar da força de sua voz era óbvio que se sentia ferida. - Necessitei da ajuda de minhas amigas para vir aqui esta noite sem levantar suspeitas. Não sabiam de nada até agora... quando já não importa. Já 213

suspeitam de ti. Ninguém que eu conheça te traiu. Minhas amigas não trairiam meu amigo. Os amigos não traem aos amigos. Anthony a olhou. Olívia sustentou o olhar sem afastá-lo, entretanto Anthony pôde ler nela a dor que tinha causado sua acusação. - Vim para te avisar - Repetiu Olivia. Ele assentiu com a cabeça devagar. - Por amizade? “Não, por amor”. Olívia pensou consigo mesma e logo disse: - Se quiser chamá-lo assim... Anthony soltou uma breve gargalhada. - Bem, agradeço sua amizade, minha flor. Estou seguro de que é muito mais do que merece um desonrado. Agora devo partir antes que soltem os cães para que me persigam. Vou acompanhar você até a sala. Se eu a deixasse aqui sozinha, chamaria atenção. Cruzaram a grandes passos o pátio, depois Anthony retirou o braço que Olívia tinha pego. Anthony olhou o rosto pálido de Olívia em lúgubre silêncio durante um instante, depois, como se não pudesse evitá-lo, levantou devagar uma mão e a pôs na curva da bochecha da moça antes de despedir-se com tom calmo e de uma vez irrevogável: - Adeus, Olívia. Deu-lhe as costas e se encaminhou a grandes passos para o portão. Olívia ficou sob a luz que iluminava a grade aberta. Esforçou-se para recuperar sua expressão habitual. Não podia entrar outra vez, não podia ser uma mais entre aquela ruidosa multidão de pessoas alheias a tudo que estava ocorrendo, as lágrimas se amontoavam em sua garganta e lhe aguilhoavam os olhos. Sentiu como se perdesse todo contato consigo mesma, como se já não sentisse nem quem era nem o que era. Não voltaria para vê-lo. Anthony partiria da ilha antes que o pegassem, e ela não voltaria a vê-lo nunca mais. Assim devia ser e, entretanto, seu coração chorava amargamente sem querer aceitá-lo. Mas tinha que entrar na sala. Não podia fazer nada que chamasse a atenção sobre o repentino desaparecimento de Anthony. Deu um passo para a luz e uma voz familiar lhe deu o que pensar. - Senhor? Era a voz de Giles Crampton que havia franqueado a grade e se apressava para o jardim. - Giles, nós temos novidades? - Disse Cato aparecendo por entre as sombras da barbacana27. Olívia supôs que havia chegado da sala. Giles ainda não a havia visto, assim baixou as escadas sigilosamente. Na mesma parede se abria uma espécie de nicho ao qual não chegava a luz das tochas de breu distribuídos por todo o pátio. Ficou de pé muito grudada à pequena fenda escura e escutou. 27

Barbacana - Uma barbacana é uma estrutura defensiva medieval que servia como suporte ao muro de contorno ou qualquer torre ou fortificação. Adiantada e isolada, situada sobre uma porta ou ponte que fosse utilizada com propósitos defensivos. As barbacanas estavam, em geral situadas fora da linha principal de defesa e ligadas aos muros da cidade por um caminho fortificado.

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- Prendemos os Yarrow, senhor. Estou seguro de que Caxton não dormiu jamais naquele quarto que tem alugado. Sim, guarda suas coisas ali, mas não há duvida de que faz meses que não põem os pés naquele lugar, se é que alguma vez os colocou. - Disseram algo? Olívia conteve a respiração. Agora pareceu habitar um espaço frio e claro no qual sua mente estava luzida, alheia a qualquer turbulência emocional. A casa dos Yarrow em Newport devia ser o lugar onde se supunha que Anthony se alojava. - Vão desembarcar dentro de pouco em Yarmouth, senhor. Agora irei recebêlos. Só queria lhe comunicar como se foram desenrolando os acontecimentos. - Bem. Mantenha-me informado quando houver novidades. Cato se virou para começar a subir as escadas para a sala, então se deteve e, por cima do ombro, disse: - Não faça nada que não tenha que fazer, Giles. Não há nenhuma necessidade de... de tomar medidas heroicas - Disse em tom irônico. - O senhor Yarrow dirá tudo o que sabe e até o que não sabe antes do galo cantar - Adicionou Giles desdenhosamente. - Pois então, Giles, procure fazer o galo cantar o quanto antes. Cato desapareceu na sala. Tinha pouco estômago para a tortura, embora pensasse que às vezes era necessária. Era um fato da vida normal. Mas as pessoas civilizadas a usavam com moderação. Olívia esperou até que acreditou que seu pai já teria chegado à sala, absorvido pela multidão, antes de subir as escadas silenciosamente. De repente, viu Portia a seu lado. - Me agarre pelo braço - Disse Portia ao seu ouvido em um sussurro, ficando só um segundo paralisada sob a luz. - Lembre-se de que estivemos dando um passeio pelo jardim. Enjoaste com o calor. -Sim - Disse Olívia tomando-a pelo braço. - Enjoei-me um pouco. Capítulo 17 Amanhã noite. Às onze, na terceira mudança da guarda. No silêncio do cárcere que era seu quarto, o rei aproximou da chama da vela o pedaço de papel e viu como este se desintegrava. Finalmente chegava o momento. Foi até a janela e examinou os barrotes. O ácido nítrico que lhe haviam dado destruiria os dois barrotes centrais. Ele levava o ácido junto consigo sempre. O governador ordenava regularmente inspeções no quarto do seu prisioneiro, mas ainda não havia tido a ousadia de inspecioná-lo pessoalmente. A corda pela qual desceria 215

pela parede estava inteligentemente dissimulada entre os cordões do dossel de sua cama. O monarca estava consciente de que nas últimas semanas haviam aumentado às medidas de segurança, e naquela noite, quando Hammond lhe deu boa noite, o rei percebeu uma maior vigilância. Sabiam algo ou só suspeitavam? Era sua última oportunidade, o monarca sabia. Outra tentativa fracassada e seu encarceramento relativamente cômodo na ilha, seria substituído por um lugar mais seguro, como a Torre de Londres. Os escoceses estavam preparados para cruzar a fronteira e lhe dar seu apoio. Se pudesse chegar à França, então o movimento para lhe devolver ao trono provocaria tal corrente que derrubaria Cromwell e ao seu Parlamento como milho antes de ser ceifado. Quem era Edward Caxton? Um homem sobre o qual se apoiava o futuro de todo um país. Um mercenário. Um ator. Não era um homem agradável, pelo menos, não ao parecer do rei. O retorcido sorriso de Caxton era desconcertante, e seus frios olhos cinzas pareciam ver muito mais do que os rodeava. E sua atitude indolente e presunçosa escondia uma força, um poder e um cinismo que ao rei provocava calafrios. Este não entendia como outros não se davam conta disso, nem de que ia se converter no „O Salvador‟ do rei. Não procuravam nada mais atrás do papel de cortesão adulador que tinha escolhido representar. Mas, o Caxton real, era esse homem cínico e frio? Às vezes o rei havia visto mais coisas. Um brilho de humor, uma alegria no mais profundo de seus olhos, uma leveza no passo... Então se convertia em alguém quente e atraente. Não é que se importasse com o tipo de homem que fosse. O que importava é que obtivera bons resultados. O rei se sentou junto a sua janela com barrotes e escutou o vento da liberdade, os chiados das gaivotas que sobrevoavam as muralhas. O relógio na torre da igreja deu uma badalada. Só faltavam vinte e duas horas para realizar sua última tentativa de obter a liberdade. O senhor Yarrow e sua esposa esperavam em pé no pátio do Castelo de Yarmouth. Era noite fechada e fazia horas que os haviam deixado ali sozinhos, sem que ninguém se ocupasse deles, nem sequer um dos soldados que subiam e desciam, apressados as escadas que conduziam à plataforma dos canhões, no piso superior. Da posição em que estavam podiam ouvir as ondas bater se contra as muralhas e Prue tremia devido à umidade que a envolvia naquela fortificação fria, quadrada e cinza. Um soldado abriu a porta de entrada. Atravessou o pátio com a lança sobre o ombro e ao passar em frente a eles diminuiu o ritmo de seu passo. - Ânimo - Disse ele, pronunciando estas palavras quase sem abrir os lábios, e a seguir continuou sua marcha para a plataforma onde estavam os canhões. - O que ele disse? - Perguntou o senhor Yarrow pondo a mão no ouvido. - Ele disse: - Disse Prue em voz baixa. – Ele acredita ser um de nós. Vá, pelo rei. - Melhor para nós - Disse seu marido cruzando os braços diante do peito. 216

- Menos mal - Disse Prue em tom grave. – Pelo que mais queira, cala sua boca. Não diga nem meia palavra. Mesmo que pareça não ter importância, mas pode tê-la. O melhor é calar como um morto. Ouviu-se um certo alvoroço na porta de entrada e Giles Crampton entrou no pátio do Castelo. - O mar está se enfurecendo. Por certo que vai haver tormenta - Observou ao aproximar-se deles. - Espero que a espera não lhes tenha sido muito dura. O senhor Yarrow não pôde evitar de cuspir indignado ante tal observação; Prue se limitou a olhar Giles desdenhosamente. - Ilhéus, que dúvida resta? - Disse Giles simplesmente. - Bem, entre para o calor da luz, por favor - E acompanhou suas palavras assinalando para a casa do chefe de artilharia. - Se aproximem do fogo. Ele os fez entrar na frente dele. Prue olhou a seu redor sem poder acreditar o que via. Esperava entrar em uma masmorra, não em uma cozinha normal e comum. - Mary, pode servir uma infusão de sabugueiro28 à senhora? - Pediu Giles animadamente a uma mulher gordinha que cuidava um forno de pão. - Pois é claro, sargento. Ao cabo de um minuto deixava sobre a mesa uma pequena xícara com a infusão. Prue agradeceu a bebida quente, mas a amabilidade não conseguiu diminuir sua desconfiança, que coalhou completamente para ouvir as palavras de Giles. - Certamente que o senhor Yarrow prefere um pouco de cerveja, não é assim? E o acompanhou até a despensa que estava no fundo da cozinha. “Meu marido será incapaz de manter a boca fechada sob a influência da cerveja”, pensou ela com certo desespero. O sargento havia abordado perfeitamente a seu prisioneiro, e sabia exatamente onde exercer a pressão e com que instrumento. - A bebida quente me reanimou senhora, muito obrigado - Disse - Quer que a ajude com o pão? - OH, sim, se não se importar - Disse Mary. - Que amabilidade. Nestes últimos dias, com muita dificuldade consigo alcançar o ritmo do estomago dos homens. Na dependência contigua a cozinha, Giles conversava amigavelmente com o senhor Yarrow sobre o homem que Giles conhecia como Edward Caxton. Animado pelos vapores da cerveja e aliviado pela ausência de ameaça, o bom senhor Yarrow discorria sem restrições o pouco que sabia sobre o homem a quem os ilhéus 28

Sabugueiro - é uma planta encontrada em algumas regiões do Brasil. É nativa da

Europa e do norte da África. Disseminou-se facilmente pelo mundo todo. A folha do sabugueiro é boa para gripes, resfriados, tosse, sarampo e caxumba.

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chamavam de patrão. Mas sabia perfeitamente, ainda que ele dissimulasse, que a informação que estava proporcionando não tinha muita importância. - Patrão de que? - Inquiriu Giles, enchendo a sua caneca outra vez. - Patrão de uma fragata - Disse o senhor Yarrow orgulhosamente. - Um bonito navio, como terão visto. - E onde está ancorado? O bom homem sacudiu a cabeça tristemente. - Isso não sei, senhor. Digo-lhe a pura verdade. Muito poucas pessoas na ilha conhecem o lugar. - Diga-me quem pode sabê-lo. Giles olhou fixamente por cima da beira de seu próprio copo. O interrogado lhe devolveu o olhar com expressão incomoda. - Isso é difícil dizê-lo, como verá. Os que ajudam ao senhor não conhecem muitas outras pessoas. E nem Prue, nem eu os conhecemos, pois não sabemos quase nada de tudo isto. O patrão só vai e vem. O senhor Yarrow se deu conta de que o sargento não estava muito impressionado e o tentou dando um nome. - Talvez George, em Anchor, em Niton. Talvez saiba algo. Godfrey Channing já lhes havia mencionado esse nome. Dias atrás Giles já havia enviado a vários homens para falar com o taberneiro. - E que faz o patrão com seu navio? O senhor Yarrow submergiu o nariz dentro de seu copo. Isso sim o sabia. Era uma informação que podia condenar o senhor. - Vamos, Yarrow, me dê de uma vez essa informação! Giles se inclinou para frente, por cima da mesa e agora em seus olhos expressavam uma ameaça. - Vamos, não seja tão teimoso - Disse suavemente. O senhor Yarrow passou o olhar pela despensa. O lugar não era ameaçador, entretanto se ouvia o espumoso fluxo chocando-se contra a muralha sul do castelo impulsionado pelo vento cada vez mais intenso. Estavam em uma fortaleza. Um fosso por dois dos lados. O mar pelos outros dois. Podia acabar nas masmorras e ninguém se inteiraria. O senhor Yarrow não era um homem valente. - Contrabando e um pouco de pirataria. Isso é o que ouvi dizer - Disse entre dentes. - Ah, pirataria - Disse Giles assentindo com a cabeça. - E com que contrabandeia? Mercadorias... ou melhor, algo mais interessante, não? 218

Seus olhos se estreitaram ao ver como sua presa se contorcia como um verme pendurado do anzol. - Não sei, não sei. Havia desespero na voz daquele homem. Não sabia nada, mas havia rumores. - É partidário do rei, não é? O homem abaixo a cabeça, mas para Giles foi suficiente. Havia conseguido uma confirmação. Caxton, era contrabandista e pirata. Um mercenário, partidário dos monárquicos. Um homem que podia misturar-se aos cortesãos que rodeavam o rei, mas que também podia entrar e sair de ancoradouros secretos, planejar uma fuga para França, evadir-se e burlar a seus perseguidores. Tinha o homem que procuravam. - Essa fragata, como se chama? O senhor Yarrow encolheu seus ombros com ar de desamparo. - Wind Dancer, isso dizem por aí, senhor. - Bonito nome - Observou Giles sacudindo a cabeça. - Até agora tudo ia muito bem com o senhor Yarrow, inclusive talvez pudesse lhe tirar algo mais, alguns detalhes, algo que nem o senhor Yarrow desse a devida importância. - É um ilhéu. Onde procuraria uma passagem o bastante profunda para ancorar seu navio? - Perguntou-lhe enchendo as canecas de cerveja outra vez. O bom homem pegou a sua ansiosamente e deu um longo gole antes de falar. - Em um canal, é obvio. - A que lado da ilha? O senhor Yarrow voltou a encolher os ombros. - Há ao longo de toda a costa entre Yarmouth e Shanklin. Alguns são profundos; outros, não. - Me dê um nome, vamos. Algo por onde começar a busca. - Mas, por que estão tão interessado no patrão? Há montões de contrabandistas nestas costas. O senhor Yarrow, encorajado pela cerveja, mostrou as primeiras pontadas de rebeldia. Giles empurrou para trás seu tamborete com o que provocou um bom arranhão sobre as lajes. - Tudo depende de você - Disse despreocupadamente pondo-se de pé. Então, subitamente, gritou: - Homens! As fortes pisadas das botas do pelotão ressoaram pelo pátio detrás da porta da despensa. - A baía de Puckcaster - Soltou Yarrow ao ver que a porta se abria de repente. Ou algum lugar próximo. Isso é o que dizem. Giles mandou sair os homens fazendo um gesto com os dedos. 219

- Bem, obrigado, senhor Yarrow - disse dando alguns passos na direção da porta do pátio que ainda estava aberta. - Teremos que o reter um pouco, também a sua esposa. Espero que não sofram muitos desconfortos. Pouco depois que o sargento partiu, chegaram alguns soldados que escoltaram os Yarrow até um pequeno quarto com barrotes que havia por debaixo da plataforma dos canhões. - E me diga - Começou a dizer Prue - O que lhes disse? - Foi ele quem falou todo o momento, assim cale a boca, mulher! - Disse seu marido resmungando. - Vá, então você disse o que queriam ouvir. Prue tirou da fina manta que cobria o catre de palha e envolveu os ombros com ela. Sentou-se sobre a fria pedra do chão com as costas apoiada na parede úmida e gelada. - Se você tiver traído o patrão, haverá quem não o esqueça na ilha. - O que queria que fizesse? Deixar que ele me apertasse os parafusos - Disse em um murmúrio, deitando-se sobre a cama de armar. - Na ilha há pessoas que não teriam dito nada, fosse o que fosse - Disse Prue em voz quase imperceptível. Giles voltou a Carisbrooke, mas quando chegou era já tarde, o rei havia se retirado e lorde Granville havia voltado para Chale com sua mulher e sua filha. Os homens que Giles havia mandado para que perguntassem ao taberneiro do Anchor haviam retornado com poucas novidades. George não conhecia ninguém com o nome de Edward Caxton. Referiu-se com familiaridade a um homem que chamou «nosso amigo» e lhe insistiram para que admitisse que esse mesmo personagem era conhecido como «o patrão», alguém em quem sempre se podia confiar no referente a fornecimento de artigos de contrabando, e que sempre se deixava ver vestido de pescador. Além disto, ninguém fez perguntas e nem ninguém ofereceu informação. Giles cavalgou até Chale, onde lhe disseram que lorde Granville também havia se retirado para o seu quarto. Se o sargento tivesse alguma informação urgente, despertaria o senhor, mas se não fosse o caso, o sargento deveria esperar pela manhã para lhe informar. Giles duvidava de que sua informação fosse motivo suficiente para arrancar o senhor da cama de sua esposa. Ouvia como o vento soprava cada vez com mais força e levantava grandes redemoinhos em espiral sobre as ondas que se encarapitavam sobre as paredes dos penhascos. Nenhum homem em seu juízo perfeito tentaria resgatar o rei em uma noite como aquela. Finalmente, também ele foi para a cama visualizando a linha costeira da ilha. A baía de Puckcaster estava justo abaixo de Niton, casualmente, onde se encontravam George e Anchor. Ambas as coisas tinham que estar conectadas. Olívia ficou escutando o ruído estrondoso daquela noite. Ouvia o bater das 220

ondas na areia da baía de Chale a umas duas milhas de distancia. Uma forca de luz iluminou sua janela, a qual seguiu o estalo do trovão poucos segundos depois. Era noite para provocadores de naufrágios. Mas Anthony tinha outros assuntos dos quais se ocupar naquele momento. Devia abandonar a ilha e encontrar um lugar seguro. Sem dúvida, não ia arriscar sua liberdade pelos lucros de um naufrágio. Entretanto, Olívia não podia adiantar-se aos acontecimentos. Em que pese a tudo, o que haviam compartilhado, compreendia que era só um mercenário, alguém que amava o perigo. Não sabia nada sobre os motivos reais de Anthony. O galho da magnólia açoitou as esquadrias de cristal da janela. Era impossível dormir. Olívia se levantou e foi até a janela. Apoiou a testa no cristal e olhou para o escuro jardim onde as sombras das árvores rebolavam impulsionadas pelo vento e adquiriam uma vida estranha e etérea. Que navios se encontravam em um mar de águas negras e espumosas? Em sua mente pôde ver as dentadas rochas de St. Catherine's Point, ao redor das quais o mar era turbulento, inclusive nos dias mais serenos. Como estariam agora? O impulso de sair para ver o que ocorria foi crescendo até que resultou impossível reprimi-lo. Era uma loucura andar pelo atalho do penhasco em uma noite como aquela, e, no entanto, era como se não pudesse evitá-lo. Ainda tinha as calças e a jaqueta que Portia havia lhe emprestado e quase sem vontade consciente Olívia os pôs, pegou a capa mais grossa que tinha e desceu as escadas. Na casa não havia nenhuma luz e o vestíbulo estava completamente às escuras quando o cruzou nas pontas dos pés. Os cães levantaram a cabeça e grunhiram em sinal de advertência quando Olívia se deslizou dentro da cozinha, mas ao reconhecê-la voltaram a apoiar a cabeça sobre suas patas dianteiras com um vela do suspiro. A porta traseira da despensa se abria ao jardim da cozinha. Quando Olívia girou o trinco, o vento lhe arrebatou a porta da mão e a fez golpear contra o muro da casa. Os cães ladraram, ela abriu a porta e a fechou quando se encontrava fora. O vento uivava, as árvores rebolavam com violência, as gotas de chuva se chocavam contra o chão. Era impossível que se distinguisse o estalo da porta ao fechar-se em meio daquele estrépito da natureza. Olívia cruzou a pequena grade que havia ao final do jardim da cozinha, atravessou a horta e saiu pelo caminho, longe da grade principal que estava fechada e trancada. O vento quase lhe rasgava a capa e ao cabo de poucos minutos estava completamente ensopada. Fazia frio e a fina blusa se colou à pele, mas ela seguiu caminho acima, até chegar ao estreito caminho que levava ao penhasco. Ao chegar ali, sem nenhum amparo, com muita dificuldade pôde manter-se em pé. Podia ouvir as ondas batendo contra as rochas aos seus pés e o vento gemer em seus ouvidos. Lutou contra o vendaval, abaixando a cabeça, sem nem mesmo dar-se conta de até onde havia chegado. Mas tinha algo de excitante estar no meio daquela força elementar, enfrentando com sua insignificância as investidas da tormenta. Em um momento de calma, levantou a cabeça e olhou para a parte do penhasco que restava em frente a ela. Viu uma figura solitária recortando-se contra o céu negro. A capa negra que envolvia a figura formava redemoinhos ao seu redor como se fossem as asas de Lúcifer. Enquanto a observava, viu um brilho produzido por uma 221

faísca de pederneira29 e a seguir o resplendor da chama do farol. Pôs-se a correr e cada inspiração era uma luta contra o vento que lhe roubava o ar. Então, de repente, saíram vários homens de não se sabe onde e viu suas sombras estendidas. Aqueles homens se lançaram sobre o que vigiava o farol, cujas chamas brilharam intensamente na noite e logo se extinguiram. O resplendor de um raio iluminou o mar, e Olívia pôde ver as rochas se sobressaindo entre a espuma; depois explodiu um trovão e foi como se o mesmo céu se partisse em dois. Fracamente, desde muito mais abaixo, ouviram-se gritos, o ruído do aço se chocando contra o aço. Lutavam. Olivia se jogou sobre a relva e foi arrastando-se sobre o ventre até que chegou a beirada do penhasco para ver o que acontecia. Vários homens se balançando em meio de estranhos abraços; alguns, todavia, jaziam ainda sobre o chão. Era uma noite negra, sob chuva implacável e não pôde distinguir nenhuma figura que o fosse familiar em meio daquele tumulto. Mas tinham que ser forçosamente os homens de Anthony. Com quem brigavam? Talvez o vigia os houvesse descoberto? E se Anthony já estava a caminho das masmorras do castelo de Yarmouth e da forca? Tinha que sabê-lo, tinha que ver ela mesma o que estava ocorrendo. À praia que se estendia ao fundo do escarpado só se podia chegar por um caminho que serpenteava e descia quase perpendicularmente até ela. A suas costas era como se tivesse caído um estranho silêncio. Colocou-se de pé cautelosamente, olhando por cima do ombro. Os homens que estavam junto ao farol formavam um círculo, de costas para ela. Engatinhando chegou ao atalho. A ladeira era muito pronunciada e, depois de escorregar e arrastar-se de joelhos sobre a areia molhada, conseguiu ficar em pé. Nesse momento pôde ouvir as ondas estalando contra as rochas com muita clareza e os ruídos da luta na praia, ainda que fossem quase inaudíveis devido ao estrondo da tormenta. Por fim chegou à praia e ficou de costas para o penhasco. Ao fixar-se nos homens que brigavam reconheceu alguns deles dos dias que passou no Wind Dancer. Uma espécie de frio distanciamento se apoderou dela. Ainda havia algumas sombras jazendo sobre a areia, mas não lhe pareceram nem sequer corpos humanos. Era como se ela se divorciasse da realidade. Quando os homens passaram correndo junto a ela para alcançar o atalho pelo qual ela havia descido fazia um momento, fugindo dos mosquetes que disparavam no ar às suas costas, não fez a menor tentativa por esconder-se. Iam correndo e gritando ao vento e deixaram os homens do pirata, donos e senhores da praia. Não havia nem rastro de Anthony. Vagamente, deu-se conta de que estava tremendo e de que seus dentes batiam apesar de que não sentia frio. Não sentia nada. Olhou para o negrume da água. Viu dois navios em um lado das rochas, cujos remadores pareciam estar fazendo uma corrida entre eles. Então ouviu um choque ruidoso e uma série de gritos cada vez mais intensos. Apareceram as figuras dos homens no meio do mar, brandindo os remos a modo de arma com o mar fervendo a seu redor. Logo viu como um dos botes 29

pederneira é um sílex pirômaco, capaz de produzir faíscas quando percutido ou atritado por peças de metal, em especial o ferro. Muito utilizado em peças antigas de artilharia, espingardas, isqueiros, etc., gera faíscas a 3.000 °C, tornando fácil fazer fogo em qualquer clima, em qualquer altitude, até mesmo sob tempestades e neve.

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virava. A tripulação escorregou para a água e desapareceu engolida pelas águas espumosas. Então ouviu o som melancólico e intenso da bóia arrastada pelo vento. E o barco vencedor conseguiu retornar à praia. O primeiro homem que desembarcou foi Anthony. Olívia olhou sua figura alta e delgada; o cabelo, escapando do laço que o segurava, açoitava-lhe o rosto por causa do vento; tinha as calças e a camisa coladas ao corpo. Estava descalço. Era uma imagem muito bela. Olívia voltou a si mesma como se despertasse de um profundo sono. Correu pela praia, para ele, o chamando por seu nome. Anthony se virou. Olhou-a com incredulidade quando ela se lançou sobre ele, rodeou-lhe o pescoço com os braços e apertou seu corpo molhado contra o dele. - Olívia? Disse seu nome como se fosse uma pergunta, apesar de que a sustentava entre seus braços. - Olívia? O que esta fazendo aqui? Anthony a sustentou contra seu peito com os pés descalços cravados na areia, as mãos sobre as costas da moça e olhando-a nos olhos. As mechas ensopadas do cabelo de Anthony se penduravam sobre a bochecha, e em seus olhos brilhavam ainda os vestígios da feroz batalha recém travada. O maravilhoso som do sino deu seu aviso através das ondas. - Eu te amo - Disse Olívia. - Vim te dizer que te amo. - Meu Deus! - Exclamou Anthony e ficou olhando-a sem poder dar crédito aos seus olhos. Viria a entender aquela caprichosa mulher? - Por que aqui? Por que agora? - Sou tão feliz. Não posso lhe dizer quão feliz sou - Disse Olívia sorrindo e com os olhos brilhantes através da cortina de chuva. Anthony afastou o cabelo da cara. - É tudo muito precipitado, minha flor, incrivelmente gratificante, mas tão repentino! Estou muito desconcertado para... Anthony se separou da moça ao ver que Mike e Jethro estavam descendo pelo caminho do penhasco. Diante deles ia o homem a quem Olívia tinha visto acender o farol. Era Godfrey Channing, e Mike sustentava uma pistola contra suas costas. Anthony olhou uma só vez Olívia. - Me contará isso mais tarde - Disse. Afastou-se dela e desembainhou uma pequena adaga que levava no cinto. 223

Aproximou-se de Channing, que o esperava de pé na areia. - Ora, ora, olhe quem temos aqui outra vez, lorde Channing dedicado ao seu divertido trabalho - Disse Anthony. Godfrey o olhou com ódio. Viu Olívia aproximando-se pela areia e, proferindo palavras vis, se lançou sobre Anthony com uma faca na mão. A adaga de Anthony abriu um corte no pulso de Godfrey e logo caiu ao chão. - Devias tê-lo desarmado, Mike - Disse o pirata em voz baixa dando um chute na faca. Envergonhado, Mike se desculpou: - Acreditava havê-lo feito, patrão. - Eu suspeitava que ele havia escondido algo debaixo da manga -observou Anthony. Godfrey levantou a mão ensanguentada e de seus lábios brotaram blasfêmias e maldições. - Olívia, será melhor você cobrir os ouvidos - Disse-lhe Anthony por cima do ombro. - Nosso amigo não mostra nenhum respeito diante a delicadeza de uma dama. - Prostituta! - Proferiu Godfrey quando Olívia se aproximou. - Rameira! Anthony lhe deu um soco na boca. - Falará somente quando alguém lhe dirigir a palavra, meu amigo – Ele disse quase afavelmente. - Era ele quem estava no farol - Disse Olívia consternada. - Foi ele quem ascendeu o fogo. - Exatamente. - É um provocador de naufrágios? - Nem mais nem menos - Respondeu Anthony com um sorriso. Um sorriso dos mais desagradáveis. - Olívia, gostaria de fazer algo útil já que está aqui? - Fazer o que? Olívia, entre a fascinação e o horror, não podia afastar seus olhos de Channing. Este já não podia amedrontá-la. Em seus olhos havia a mesma frieza e ódio de sempre. Olívia estava segura de que era ele quem tinha medo agora. Lembrou a uma serpente abandonada, atemorizada, mas perigosa. - Ajude meus homens a limpar a praia. Há alguns feridos; temos que desarmálos. Se bem me recordo, é perita em desarmar vilãos. Um sorriso muito diferente se desenhou agora na boca do pirata, e de seus olhos se desprendeu calor ao olhar o rosto de Olívia. - E você o que vai fazer? - Vou conversar um pouco com lorde Channing. Há algo que tem que me dizer. Preferiria que não estivesse presente. Além disso, trabalhar um pouco te fará sentir calor. Olívia duvidou, mas Anthony falou pausadamente. 224

- Vá, Olívia. - Quero saber o que ele sabe sobre Brian - Disse a moça com firmeza. - Eu também. Olhou uma vez mais para Godfrey e lhe perguntou sem subir a voz, mas asperamente: - Brian está aqui, na ilha? Godfrey não respondeu. Cuspiu na areia. - Olívia, queira ir, por favor? Quero terminar com este assunto. - Não, quero ficar - Disse ela. - Quero ouvir o que tiver que dizer. Preciso ouvílo. - Muito bem - Disse o pirata brevemente. Anthony se virou para Godfrey e seus olhos brilharam como duas ágatas. Esfregou a adaga em sua calça e disse sem levantar a voz - Onde posso encontrar Brian Morse? Godfrey lhe devolveu o olhar em silêncio. Anthony fez um gesto com a cabeça a Mike, que pegou Godfrey pelos pulsos e os levou às costas. Jethro as atou. Anthony colocou a ponta de sua arma na orelha de Godfrey. - Me pergunto se lhe cortar as orelhas seria um castigo adequado para um provocador de naufrágios. Talvez tenha que lhe cortar isso e depois lhe cortar o nariz. Deixar a marca dos criminosos. Então moveu a ponta de sua adaga para a parte posterior da orelha de Godfrey, sobre a qual deixou uma fina linha vermelha. Godfrey suava e Olívia se deu conta de que Anthony a conhecia melhor que ela mesma. Por muito que odiasse Channing, era incapaz de suportar aquilo. Virou e se afastou pela praia, para os homens que atendiam aos feridos. Detrás dela ouviu ressoar um grito entre a chuva. Pareceu ter se passado muito tempo antes que Anthony voltasse andando pela praia. Olívia estava ajoelhada atendendo a um dos feridos. Não olhou Anthony quando este se pôs a seu lado. Surpreendeu-se do grande que se viam seus pés nus e cobertos de areia, os dedos gordos um pouco nodosos, e se perguntou por que não se havia percebido antes neles. - Disse-lhe? - Sim. - Brian está na ilha? - Sim. Então Olívia o olhou. - Onde? - Sussurrou. De repente, diante somente do pensamento da proximidade de Brian, em seu 225

olhar se expressou a obsessão e desvaneceu o jubilo que tinha a um momento atrás. - Em Ventnor, conforme diz. - Retornou para me ferir... ou a meu pai - Disse Olívia convencida do que dizia. - Com certeza tem em mente algum plano, algo... - Parece que pensava que você seria a esposa ideal para Channing. A esposa perfeita e rica. Seu plano, se não entendi errado as palavras de nosso amigo, era compartilhar os lucros de seu suposto futuro esposo - E acompanhou estas palavras sacudindo a cabeça com um gesto de zombador desconcerto. – Mas que loucura, às vezes as pessoas tem cada ideia. - Certamente que queria mais que isso - Disse Olívia. - Não só queria o dinheiro. Certamente que queria nos ferir de alguma outra forma. - E havia algo melhor que vê-la casada com um homem como Godfrey Channing? Duvido que o orgulho dos Granville pudesse suportar a verdade. - Um homem malvado. O feriu? - Na medida necessária - Respondeu Anthony serenamente. - Agora empreendeu o caminho a pé para Yarmouth, amarrado a um estribo de Mike, e lá será embarcado para o Porto Otamana. - É provável que os turcos o vendam como escravo - Disse Olívia atemorizada. - Não é isso o que fazem com os estrangeiros? - O mais certo. Ganhou esse destino. Estava pensando que talvez o senhor Morse e ele pudessem fazer a viagem juntos. - Mas... mas, isso seria possível? - Com um pouco de inteligência, minha flor. Anthony soltou uma gargalhada diante da expressão sobressaltada de Olívia. Este era o Anthony que conhecia. Um homem com a diversão sempre espionando no olhar e um gesto alegre nos lábios; um homem sensível a todos os estímulos que a vida lhe oferecesse, seguro de sua total capacidade para enfrentar toda virada e surpresa que o destino pusesse em seu caminho. Este era o Anthony daqueles primeiros dias de sonho e de êxtase, e o espírito de Olívia foi ao encontro de Anthony como havia feito então. A jovem afastou da face suas mechas molhadas e lhe disse: - Necessitarei sua ajuda para melhorar minha ingenuidade. - Como? - Não será muito difícil. Explicarei isso no momento oportuno. Anthony se abaixou sobre o homem ferido para examinar de perto o ombro. -Viverão bastante para enfrentar seus castigos - Disse desdenhosamente. Você e sua equipe de criminosos. Levantou-se, pegou a mão de Olívia e a ajudou a levantar-se. - Sim? - Respondeu o aludido aproximando-se deles. 226

- Quantos aos nossos o que aconteceu? - Tim tem um bom arranhão e acho que Colin quebrou um dedo. - Isso é tudo? Adam assentiu com a cabeça. - Sam começou sua guarda. Os homens recolherão tudo isto. - Bem, então nos sequemos. Diga aos homens que procurem cama no povoado. Não voltaremos assim para o Wind Dancer. Adam olhou Olívia. - Parece um peixe - Disse. - Como demônios lhe ocorreu sair em uma noite como esta? - Realmente, é um quebra-cabeças - Corroborou Anthony. - Um quebracabeças que não há quem entenda. Mas conseguirei encontrar a maneira de entendêlo. Seus dedos apertaram com força a mão de Olívia que ainda tinha agarrada à sua e, quase no último instante, disse: - Adam, eu quero três homens em Ventnor ao amanhecer, na taberna do Gull. - Mais diabruras, como se o visse - Resmungou Adam. - Sim, absolutamente imprescindíveis - Respondeu em um tom incisivo, um tom que Adam sabia que não augurava nada bom para ninguém. - Venha, Olívia - Disse Anthony suavemente. Olívia se encontrou quase correndo para seguir o ritmo dos passos rápidos de Anthony. - Aonde vamos? - A um lugar no qual possamos nos secar e possa me contar o que a trouxe para este lugar em meio da tormenta. O desânimo se abateu sobre Olívia. Sabia que teria que lhe contar a verdade e detestava ter que fazer tal confissão. Entenderia Anthony por que ela havia cometido aquele engano? Entenderia até que ponto era culpa dele? Ele não havia dito nada sobre si mesmo, nada dos motivos pelos quais fazia o que fazia. Nada sobre sua família, exceto sobre uma tia bordadeira. Um homem que não acreditava em nada, que não seguia nenhuma regra, que não tinha escrúpulos. Seu engano estava mais que justificado. Mas, Anthony o veria do mesmo modo?

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Capítulo 18 Anthony subiu a grandes pernadas o sinuoso caminho que levava ao topo do penhasco apertando com força a mão de Olívia. Quando está tropeçou em uma pedra e caiu, ele a ajudou a levantar-se e a abraçou. - Está muito fria e molhada - Disse quase em tom de admoestação, tentando por um instante esquentar aquele corpo tremulo contra o seu igualmente gelado. Que loucura te fez sair em uma noite como esta? - Eu sabia... Sabia que ia haver um naufrágio. Pensei que talvez pudesse evitálo. Foi uma loucura, já sei, mas não podia deixar de agir. Esta foi a melhor maneira que poder explicá-lo naquele momento. - Foram necessários vinte homens para deter o naufrágio - Argumentou Anthony. - E pode saber-se por que a filha de lorde Granville se interessa por naufrágios? É algo vil e depravado, para não falar dos perigos que comporta. Se não tivéssemos estado ali, ou se a batalha pendesse para o outro bando e os malfeitores a tivessem visto, a teriam matado. Pode entender? Olívia não respondeu. Seus dentes batiam uns nos outros. Anthony meneou a cabeça e voltou a acelerar seus passos. Agora, mais perto do topo do penhasco, o caminho serpenteava por baixo das saliências formadas pelas rochas, o vento e a chuva já não eram tão ferozes. De repente Anthony se deteve e Olívia esteve a ponto de se chocar contra ele. - Onde estamos? - Em um lugar seguro - Respondeu ele lhe afastando do rosto as escuras mechas molhadas. - Talvez não seja o lugar mais cômodo, mas pelo menos é protegido e seco. Deixou a estrada a um lado e, sem soltar nem um instante a mão de Olivia, pareceu como se penetrasse dentro da parede do penhasco. Encontraram-se então em um lugar escuro, repentinamente silencioso, enquanto lá fora a tormenta seguia enfurecida. Fazia frio e os dentes de Olivia não deixavam de bater. Fazia tempo que o vento havia arrancado o capuz da capa e a água escorria pelo cabelo para o pescoço. - Por aqui. Anthony a conduziu através daquele lugar onde a areia rangia sob suas pegadas. Seus olhos foram se acostumando à escuridão e pôde ver que eles se encontravam em uma grande caverna. Depois percorreram um corredor estreito e escuro, e Olívia apertou com força a sua mão, pois seu suave tato e o calor seco que desprendia a faziam sentir um pouco mais segura. O corredor finalizava em um recinto pouco menor que o primeiro. Anthony soltou a mão de Olívia e ela ficou de pé, imóvel no meio de uma escuridão mais intensa que antes. Olívia ouviu Anthony movendo-se, e depois o som da isca esfregando-se contra a pederneira, resplandeceu a luz de uma tocha. 229

A jovem contemplou surpreendida o rudimentar mobiliário da caverna. Anthony pegou umas mantas que estavam sobre uma cama de armar de palha. - Tire a roupa enquanto eu acendo uma fogueira. Talvez seu tom fosse algo brusco devido à pressa. Jogou uma manta e, sem perder tempo, abaixou-se junto a uma espécie de lareira de pedras que havia no centro da caverna. - Não vamos nos asfixiar com toda esta fumaça? - Inquiriu Olívia. Tremia ao tirar capa e o casaco. - No teto há uma abertura natural - Explicou Anthony olhando para cima. Ande depressa, Olívia! Tire essa roupa. Não fique aí olhando! O olhar de Anthony se deteve nos seios da moça, rosados e redondos sob a encharcada blusa branca. Seus mamilos eram dois pontos escuros e duros que contrastavam sobre o rosa. - Meu Deus! - Disse ele em voz muito baixa. - Como consegue? - Do mesmo modo que você o faz - Respondeu ela quase em um sussurro. O acolhedor rangido da madeira queimando-se encheu a caverna. Anthony se ergueu e seu olhar sustentou o dela, cujo tremor, agora, não se devia ao frio nem à umidade. - Tire a roupa, Olívia! Anthony ficou olhando com os olhos entreabertos enquanto ela deixava de lado as peças molhadas. Nua se dirigiu para o fogo. Desde algum plano remoto pôde darse conta de que voltava a sentir calor em seu corpo. Notou o fogo em um lado. Olhou para Anthony e pôde ver seu próprio rosto refletido na íris escura dos olhos do pirata. Ele apoiou as mãos nos ombros de Olívia, justo no ponto onde se uniam com os braços. Em seguida deslizou as mãos com uma suave carícia que arrepiou os finos pêlos da moça. Pegou-lhe as mãos e as virou para ver as palmas. Estavam sujas, cheias de areia e terra. Então, primeiro uma e depois a outra, as limpou, sacudindo a sujeira. Nas carícias de Anthony havia uma aresta. Uma borda cortante que Olívia soube que tinha a ver com a batalha recém liberada com os provocadores do naufrágio. Um rastro, um resíduo da selvagem intensidade com a qual havia vencido o inimigo. Algo no interior de Olívia reagiu. Soltou as mãos e começou a desabotoar a camisa de Anthony sem muitas contemplações, fazendo caso omisso de um dos botões que saiu disparado até a outra ponta da caverna. Desabotoou a fivela do cinturão, devagar, realizando cada movimento deliberadamente. Logo tirou o cinturão por debaixo das presilhas e desabotoou as calças. As unhas da moça o arranharam nas coxas ao baixar as calças. Notou que reprimia um gemido. Então Anthony se liberou completamente das calças e segurou o rosto dela entre as mãos. 230

Sua boca era dura e inflexível, não oferecia trégua. Olívia não necessitava absolutamente. Apoiou suas mãos sobre o peito de Anthony, que usava a camisa aberta, e logo esfregou com força as costelas, subiu até os ombros e tirou a camisa até que ficou tão nu quanto ela. Anthony pôs as mãos sobre as nádegas de Olívia e dali a apertou contra seu corpo. Ela, o mordendo no lábio superior, introduziu a língua entre os dentes e começou a explorar em seu interior. Não se deixaria dominar pela urgência dele; a sua respondia a dele, que crescia com cada respiração. As mãos de Olívia estavam em todas as partes, guiadas pelo instinto. Ela o apertou nas nádegas, e deslizou um dedo pela profunda e estreita fenda que se abria entre ambas. Acariciou lhe o ventre com a palma da mão, meteu um dedo no umbigo e desceu até que segurou com força seu sexo e se afastou ligeiramente para trás para poder pegar com os testículos quentes e inchados. Olívia estava agora nas pontas dos pés, apertando seu próprio corpo contra o de Anthony, entregando-se às sedentas mãos dele, notando o calor de sua própria excitação, os fluidos derramando-se, o absoluto desespero da necessidade compartilhada. Eles se deitaram sobre o chão junto ao fogo. Não a incomodou a dura rocha coberta de areia sobre a qual jaziam. Elevou os quadris para que Anthony a penetrasse e ele, com suas mãos estendidas nas costas dela, separou-a do duro chão levantando-a e ambos chegaram ao êxtase e se consumiram em um silêncio cujo canto encerrava toda a doçura do coro de uma catedral. Ao terminar, quando ele a abraçou com força contra si, balançando-a nos últimos tremores da paixão, Olívia pressionou seus lábios contra o pescoço do pirata, no lugar onde a veloz palpitação ainda se notava, e pensou que se na vida voltasse a experimentar uma felicidade tão completa, morreria contente. Mas quando o mundo voltou a adquirir consistência, compreendeu que tal pensamento era estúpido e fútil. Quando os brilhos do ato de amor foram desvanecendo-se, Olívia se soltou de seu abraço e Anthony a deixou partir sem protestos e pegou a manta que havia ficado sobre a areia. Cobriu com ela os ombros da moça, levantou-se e jogou mais madeira ao fogo. Olívia se abrigou bem com a manta e também se pôs de pé. Agora, enquanto o via vestir-se, ficou tensa. Uma vaga esperança a invadiu momentaneamente ao pensar que talvez Anthony, depois de ter feito amor, esqueceria de todas as perguntas sobre sua presença na praia... talvez salvar sua confissão. - Assim, minha flor, você pensava deter um naufrágio sozinha, sem ajuda? Perguntou elevando as sobrancelhas e lhe dedicando um olhar tão incômodo, como penetrante. Olívia segurou a manta ao redor do pescoço com uma mão e se aproximou um pouco mais do fogo, notando a areia suave como a seda sob a sola dos pés. - Tenho que confessar algo - Disse baixando a cabeça e com os olhos fixos no

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fogo. De repente, Anthony ficou muito quieto. Ela percebeu sua imobilidade, ouviu o entrar e sair do ar de sua respiração. - Você dirá - Disse Anthony. - Certamente é imperdoável - Disse ela. - Sei que se zangará muito e tem todo o direito a fazê-lo. Mas espero que você entenda por que aconteceu. - Esta me preocupando. Anthony pôs uma mão sobre a nuca inclinada de Olívia. Está notou o calor que desprendia e uma espécie de segurança. Deu-lhe confiança para seguir falando. - Acreditei que era você - Disse ela. - Não a entendo. Os naufrágios - Explicou ela com simplicidade. - Pensei que... e então acho que pensei que talvez podia convencer você de não o fazer. Suas palavras ficaram suspensas no ar úmido e insalubre da caverna. Durante o que lhe pareceu uma eternidade não houve mais nenhum ruído do que o ranger do fogo. Lentamente, Anthony afastou a mão do pescoço de Olívia. Um espaço frio e oco ficou onde antes havia calor. Quando, finalmente, Anthony retomou a palavra, pareceu em um tom de absoluta incredulidade. - Achou que eu era um desses malvados rufiões? Acreditou que eu era capaz de fazer algo assim? Olívia virou seu rosto para ele. Obrigou-se a lhe sustentar o olhar, em que a incredulidade se mesclava com uma profunda raiva. - Disse... em Portsmouth, quando me deu a roupa, disse q-que procediam de um naufrágio - Disse tentando controlar o gaguejo mas sem consegui-lo. - Eu não disse que havia sido eu que o havia provocado. Agora Anthony falou em voz baixa e glacial e era impossível imaginar que fazia só uns minutos haviam feito amor. - Mas eu pensei. Era pelo que ouvi. Disse com tanta naturalidade, como se fosse a coisa mais normal do mundo... É um pirata, um contrabandista. Todo mundo sabe que os contrabandistas frequentemente provocam naufrágios. Estava na ilha na noite do último naufrágio e os bens daquele navio estavam no Wind Dancer. Olívia estendeu uma mão como se suplicando. - O que queria que eu pensasse? Não sabia nada de ti. Na realidade, ainda não sei nada - Acrescentou. - Não sei quem é e nem por que ... por que faz o que faz. Na voz de Olívia havia um tom desafiador, mas Anthony não respondeu nada. Ficou de pé com as mãos nos quadris e os pés cravados no chão arenoso. Seu gelado olhar não se afastou nem um segundo do rosto de Olívia. 232

Ao cabo de um segundo, esta retomou seu discurso ante o silêncio de Anthony. - Vivemos um sonho, um idílio na praia e na areia. Não foi real. Depois vi tudo com olhos novos, como se tivessem fechado as janelas do sonho e voltasse a ver o mundo real. E no mundo real a pirataria, o contrabando e os naufrágios andam de mãos dadas. Eu o vi c-capturando o Dona Elena. Vi como roubava seu ccarregamento. Ouvi como me dizia q-que as roupas procediam de um naufrágio! E por fim Anthony tomou a palavra. - Não entendo como após nos amarmos tanto como o fizemos, pode imaginar algo tão cruel em relação a mim - Declarou Anthony com secura contida. - Foi por essa a razão que me cobriu de desonra? - Unicamente por isso - Disse Olívia sacudindo a cabeça tristemente. - Não foi por ser pirata, nem contrabandista, nem por ser o inimigo de seu honrável pai? Nem pelo fato de que sou capaz de qualquer coisa para lhe enganar, sem ter em conta para nada para honrar? - Perguntou Anthony com amarga ironia. Olívia deu um coice. - Não. Por nada disso. - Onde está a lógica? - O que há entre nós nunca respondeu à lógica - Respondeu Olívia, dizendo o que era claramente a verdade. - Mas acreditar que eu era um provocador de naufrágios, destruía seus sentimentos por mim... o que havia entre nós? - Não - Respondeu Olívia negando com a cabeça. - Mas para mim resultava impossível voltar a me perder naquele sonho. Anthony se abaixou e lançou mais madeira ao fogo. As chamas refletiram sua poderosa sombra na parede da caverna. - Confiança - Disse Anthony com a mesma amarga ironia. - Disse que me amava, Olívia, quando estávamos na praia. Não pode haver amor sem confiança. Desejo, sem dúvida; mas não amor. Parece, Olívia, que está confundindo desejo com amor... - Eu confio em ti - Disse Olívia quase em um murmúrio. Anthony se colocou reto. - Desde que nos conhecemos, Olívia, você não confiou em mim. Quanto tempo você demorou para me falar de Brian Morse? Você teria dito algo se tivesse seguido acreditando que estava morto? - Não podia falar dele c-com ninguém - Disse ela atormentadamente, procurando as palavras que o pudessem convencer, que pudessem varrer de seu olhar e de sua voz a fria e zangada dor. - Sempre acreditei que era minha culpa. Quando era pequena pensava que, ao talvez... que talvez fosse eu quem o provocava.

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Anthony a olhou com crescente horror. Viu nos escuros olhos de Olívia à menina que havia sido violada, aterrorizada, sentindo-se culpada e empurrada a um silêncio tão profundo quanto uma tumba. - OH, não! - Exclamou com ternura, Anthony. Então a abraçou com força apertando-a junto a si, lhe beijando o cabelo molhado, afastando de si mesmo a amargura. Em comparação com o sofrimento da moça, o engano que havia cometido, por mais doloroso que fosse, era insignificante. - Agora me dou conta de quão estúpida eu fui em pensar essas coisas de você. Mas comecei a pensar que os homens nunca eram o que aparentavam ser e que tinha me deixado ofuscar por... pela paixão, pelo desejo... e permiti que toda essa desdita caísse sobre mim. Se tivesse perguntado... mas me sentia incapaz de falar disso, tão incapaz para falar de Brian. Olívia o olhou e deixou descansar sua bochecha sobre seu peito. - Sinto muito. Poderá me perdoar algum dia? Anthony a olhou com expressão de arrependimento. - É certo que nem sempre sou o que aparento - Disse. - E também é certo que sabe muito poucas coisas sobre mim. - Mas teria que ter sabido que era impossível que você fizesse isso. Que isso não podia ser de maneira nenhuma - Seguiu Olívia obstinadamente, com o perverso sentimento de que se Anthony aceitava sua desculpa tão facilmente, era porque não se dava conta da magnitude de seu engano. - Eu gostaria de pensar que deveria ter sabido - Admitiu Anthony com um débil sorriso. - Mas certamente eu não tornei isso muito fácil. - Não se sinta culpado! - Exclamou Olívia. - Pois claro que deveria saber. - Bem, admitamos que eu deveria saber, que cometeu uma grande injustiça comigo, mas havia circunstâncias atenuantes - Disse Anthony com solenidade. Bem, acha que tem que seguir expiando sua culpa ou podemos deixá-la logo de lado? - De verdade, me perdoa? - Inquiriu Olívia e com seu olhar procurou o rosto de Anthony. - Sim - Disse ele, que naquele momento lembrou como resplandecia Olívia quando corria pela praia em busca dele, o entusiasmo com o qual declarou seu amor. - Você me quer, Olívia? - Sim - Respondeu ela simplesmente. - E creio que você também me quer. - Sim - Assentiu ele, lhe acariciando o queixo com seus nódulos. - E não sei que demônios podemos fazer, minha flor. - Não podemos fazer muito, a verdade, tal como estão as coisas. Sendo eu quem sou. Sendo você quem é. Anthony pôs sua mão na face de Olívia como havia feito outras vezes e disse

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somente: - Agora deve se vestir. Temos que ir. Olívia desejou que aquele instante fosse eterno. Quando saíssem da caverna, quando se encontrassem envoltos pela escuridão da noite, teria terminado. Seria o fim definitivo daquele sonho. - Não poderíamos ficar junto ao fogo um pouco mais? Com muito pesar, Anthony meneou a cabeça. - Logo amanhecerá e nos espera muito trabalho. - Sim. Olívia renunciou ao sonho. Vestiu-se. A roupa ainda estava muito úmida e resultou muito desagradável senti-la junto a sua pele já seca. Custou a abotoar a blusa com os dedos gelados e Anthony lhe afastou a mão para abotoar pessoalmente. Em cada uma de suas palmas cabiam os seios de Olívia. Por um momento Olívia pôs suas mãos sobre as dele. - Queria dizer. Depois que partiu ontem à noite, Giles esteve falando com meu pai sobre um casal chamado Yarrow. Disse que ia levá-los ao castelo de Yarmouth. O rosto de Anthony, iluminado pela tênue luz do fogo já quase mortiço, empalideceu sob sua tez bronzeada. - Miseráveis! - Disse em voz baixa, e suas mãos abandonaram os seios de Olívia. - Conforme disse Giles, o senhor Yarrow contaria tudo o que soubesse sem que fosse necessário o pressionar muito - disse Olívia com olhar desejoso. Na caverna não havia lugar para a ternura. Só restava a crua realidade. - Sim, não o duvido - Disse Anthony em tom grave. - Mesmo que não saiba muitas coisas. - Meu pai disse a Giles que não os torturasse - Acrescentou Olívia duvidando se devia dizer aquilo. Anthony a olhou com o sobrecenho franzido. - Acha que devo acreditar? - Por que teria que mentir? - Perguntou a moça serenamente. - Eu te amo, se lembra. - Deveria pôr seu pai no lugar que o corresponde - Sugeriu Anthony olhando-a fixamente. - Não preciso fazer isso - Disse sem rodeios Olívia. - Não tenho que defendê-lo diante de ninguém - E logo acrescentou suavemente: - Como não tenho que defender você. No rosto de Anthony diminuiu a severidade e em seu lugar se esboçou um 235

sorriso que suavizou seu rosto. - Certamente seria mais difícil me defender. Pobre Olívia, os sentimentos de lealdade divididos são duros. Olívia ficou calada. Anthony estendeu sua mão para dar-lhe alguns tapinhas no queixo. Em seguida beijou a comissura dos lábios dela e repetiu docemente: - Pobre Olívia. - Não diga mais «pobre Olívia» - Disse ela em tom indignado. - O que pensa fazer com os Yarrow? - Tirá-los de lá - Respondeu Anthony, que de repente pôs-se a rir; seus dentes brilharam detrás da careta e em seus olhos voltou a refletir-se aquele brilho temerário. - Prevejo que nos espera um dia muito ocupado. Olívia o olhou com cautela. Fazia tempo que sentia que aquela transbordante diversão em seu olhar acompanhava suas façanhas mais perigosas. Ele se virou, pisoteou os rescaldos do fogo e logo apagou a vela com um sopro. Fez-se uma completa escuridão. Olívia ficou imóvel como uma estátua de pedra. - Me dê a sua mão - Ordenou Anthony fechando a sua com força sobre a de Olívia. – Siga-me. A moça se apertou a ele, mais que a sua própria sombra, no caso de que esta se refletisse em plena escuridão. Juntos, de mão dadas, percorreram o corredor que os levou de novo à caverna exterior. Quando chegaram ao caminho, o vento não soprava com tanta força e o estalo das ondas não era tão violento. A chuva tinha cessado e só se ouvia o melancólico e regular gotejar dos arbustos e esqueléticas árvores que cresciam nas paredes do penhasco. Olívia estremeceu, vestida com sua molhada roupa. - Meu Deus, faz frio. - Corre, que você vai se aquecer. Sem lhe soltar a mão, Anthony começou a correr por baixo das saliências das rochas que formavam um teto que os protegia, e se afastaram de St. Catherine's Point. - Aonde vamos? - A Ventnor. Temos um encontro de madrugada, esqueceste. Na granja Gowan nos emprestarão um cavalo. Está muito perto daqui. - Brian - Disse Olívia em um tom estranhamente baixo. - Exato - Corroborou Anthony. Seus dedos apertaram os de Olívia ao virar para tomar outro caminho que os levaria ao topo do penhasco. - Ah, bem. Gowan deixou seus cavalos no campo. Vejamos, qual acha que será mais resistente para levar nos dois? - Perguntou, e ato contínuo se pôs a assobiar entre os dentes enquanto examinava os três cavalos que se cobriam sob um carvalho gigantesco que crescia no 236

meio do prado. - Acho que o castanho. Note o largo dorso. Falava com tanta despreocupação que parecia que fossem empreender uma excursão de verão em lugar de encontrar-se em meio de um campo inundado, com a roupa encharcada, antes sequer de que amanhecesse e depois de não ter dormido a noite. - Por que me necessita? - Perguntou Olívia, de repente. - Porque, minha flor, eu tenho que fazer isto quanto antes melhor e com a máxima discrição e sigilo. Necessito uma isca para a armadilha, e será você. Sem deixar de assobiar, Anthony se encaminhou para os cavalos. - Não quero vê-lo - Disse Olívia quando ele voltou com o cavalo castanho. Anthony a olhou durante um momento, mas em sua expressão já não havia qualquer rastro de diversão nem despreocupação. - Quero que se convença de uma vez por todas de que tudo terminou. De que ele se foi e nunca mais vai te incomodar. Se o vir partir, terá essa segurança. Olívia cruzou os braços sobre seu peito abraçando-se convulsivamente. - Não sei se sou valente o bastante, Anthony. Anthony pôs as mãos sobre os ombros e a sacudiu ligeiramente para lhe infundir confiança. Logo sorriu. - Sim, eu sei que é. É uma pirata; saltou a uma rede de abordagem para desarmar um Galeão cheio de soldados espanhóis sem se alterar. E isto não é nada. Você subirá ao seu quarto e o chamara à porta. O chamará para que te abra a porta. Nós estaremos atrás. Quando ele correr o fecho, irromperemos dentro. O tiraremos da hospedaria sem que ninguém nos veja, e com a maré de meio-dia, seu amigo Channing e ele começarão sua caminhada para uma nova vida. - Dito assim soa muito fácil. - É. Confie em mim. - Assim farei - Disse Olívia. - Mas ainda continua me dando medo. Olívia pensou que havia superado seu medo de Brian quando Portia, durante todos aqueles anos no castelo de Granville, a ensinou a deixá-lo em ridículo. Portia havia conseguido empatar com o fantasma e quando Olívia voltou a encontrá-lo em Oxford, foi capaz de dominar sua repugnância. Mas naquela ocasião não se deteve lembrar por que a aborrecia, por que lhe dava tanto medo. Agora que já se lembrava do porque, era como se tivesse retrocedido até aquela horrível época em que temia o som de sua voz, de seus passos, que esperava ouvir a cada momento. - Confia em mim, Olívia. Olívia encolheu seus ombros, rendendo-se. Anthony a ergueu com facilidade para montá-la no lombo do cavalo castanho e logo, de um salto, sentou-se detrás. Passou um braço pela cintura e se segurou com 237

força à crina do animal. - Se agarre bem forte. Estamos com um pouco atrasados. Com Olívia agarrada a crina do cavalo, cruzou o campo a galope. Logo contornou o penhasco até que se encontraram além do St. Boniface Down. Quando viram, justo abaixo deles o povoado de Ventnor, sobre a baía de Horseshoe, Anthony deteve o cavalo. Desmontou e ajudou Olívia a descer. - O granjeiro se perguntará o que ocorreu a seu cavalo, não te parece? - Não, sabe que está comigo. Deixei um sinal. Anthony levou o cavalo até um prado onde um grupo de vacas descansavam sobre a erva molhada. Estas levantaram a cabeça e olharam aos recém chegados com o característico desinteresse bovino. Dando-lhe uma palmada ao lado, Anthony indicou ao cavalo que podia ir pastar. - Um sinal? Que sinal? Olívia não pôde evitar que picasse a curiosidade apesar de sua preocupação. Anthony soltou uma gargalhada. - Alguns paus cruzados. Às vezes preciso entrar na propriedade de um ilhéu sem pedir permissão ou me aproveitar de sua hospitalidade. Se souberem que fui eu, não se zangam. - Se considera um ilhéu? Olívia o seguiu de novo até o caminho enquanto a relva molhada fazia cócegas nos tornozelos. - Não. Para sentir-se ilhéu tem que ter nascido e crescido aqui. Eu nasci muito longe daqui. - Onde? - Na Bohêmia - Respondeu olhando-a por cima do ombro. - Bohêmia! - Estranho lugar para nascer, não? Olívia detectou em suas palavras certa tensão, um portal ao qual se estava aproximando velozmente. Mas ainda sabendo-o, continuou insistindo. - Lá foi onde se criou? - Não. Fui criado do outro lado do canal de Solent - Respondeu Anthony em um tom indiferente e desinteressado. - A estalagem do Gull fica na rua principal do povoado. Meus homens já devem estar na taberna. Anthony andava um pouco diante de Olívia e ela se deu conta de que não podia ir mais longe com suas perguntas. E, é obvio, quanto mais perto estava de Brian, mais tinha que concentrar-se no controle de sua própria ansiedade. A rua do povoado estava deserta. Os Pescadores deviam estar na baía 238

revisando seus botes de caranguejos, mas todos outros certamente ainda dormiam. De todos os modos, a porta principal do Gull estava aberta. - Fique aqui. É melhor que, por enquanto, ninguém a veja. Com seu aspecto não acredito que alguém pense que forma parte de minha tripulação. Anthony recolheu a cabeleira de Olivia na nuca, a modo de explicação. - Se o fosse, certamente não seria uma boa isca para Brian - Observou Olívia inclinando a cabeça. Anthony lhe dedicou um sorriso por cima do ombro antes de entrar na taberna, e para Olívia isso bastou como resposta. A moça ficou no fundo da rua olhando para as janelas superiores da estalagem. Detrás de uma delas dormia Brian Morse. Este havia tentado matar seu pai. Phoebe estava em Rotterdam quando Brian ergueu uma emboscada contra Cato. Provavelmente, Phoebe salvou a vida de seu marido. Cato acreditava que havia matado Brian no duelo, mas havia se negado a confirmar sua morte. Matar a sangue frio não era seu estilo. E Brian Morse havia ressuscitado. Tinha voltado para atormentar outra vez sua meia-irmã, como o tinha feito quando era uma menina. “Nunca mais”, decidiu Olívia, metendo as mãos no mais fundo dos bolsos de suas calças. “Nunca mais”. Três homens da tripulação do Wind Dancer, além de Adam, sentavam-se em tamboretes frente ao balcão da taberna. Anthony lhes fez sinais com a cabeça e eles o responderam do mesmo modo. Um homem velho e enrugado enchia canecas de cerveja murmurando entre dentes. - Diga-me amigo, o tiramos da cama muito cedo? - Perguntou Anthony amigavelmente deixando um punhado de moedas sobre o balcão. O rosto do homem fez uma careta parecida com um sorriso enquanto recolhia as moedas na palma de sua mão. - Sim senhor, mas não é a primeira vez. - E não vai ser última, conforme acredito - Disse Anthony do tamborete no qual se sentou. – Disseram-me que tem um hóspede. - Sim - Respondeu o homem e sua voz se azedou. – Vá, é um sovina. - Hospeda-se nestes quartos? - Inquiriu Anthony assinalando acima com a cabeça. - No melhor da casa. Ao final das escadas - Disse o homem. - E eu escada acima e abaixo, conforme seu desejo. Ainda não o ouvi dar um obrigado. Anthony estalou a língua como amostra de solidariedade. - Sirva-me uma caneca de cerveja preta, Bert. Em seguida o homem pôs uma caneca diante dele, sobre o balcão. 239

- Pois se você arrumar para servir um bom café da manhã para meus amigos e para mim, ficaríamos mais que agradecidos. - Houve muito trabalho esta noite, não? - Inquiriu o homem com curiosidade. - Sim, evitamos um naufrágio - Respondeu Adam. - Demonstramos ser uma grande equipe! - Ao demônio esses provocadores de naufrágios! - Exclamou Bert, e cuspiu sobre a serragem do chão. - Restam salsichas de porco e alguns pastéis de carne de ontem à noite. - Se forem bons para ti, os serão também para nós - Disse Adam convencido. Bert se dirigiu à cozinha arrastando os pés. - E agora o que? - Perguntou Adam a Anthony. - Olívia fará nosso homem sair de seu quarto. No preciso momento em que abra a porta, o pegaremos. Derek, nós usaremos sua capa para envolvê-lo. Atrás do balcão há uma corda, está enroscada ao barril de cerveja. Nós a utilizaremos para atálo. Quando o tivermos atado e amordaçado, o tirarei do povoado. Aqui tenho algo que o fará dormir - disse Anthony pinçando em seu bolso. - E quem é este tipo? - Perguntou Adam. O rosto de Anthony se escureceu subitamente. - Algum dia eu lhe contarei. - Então, é melhor eu não sabê-lo - Resmungou Adam entre os dentes. - Assim é melhor me explicar isso agora. Adam fez uma careta assinalando para a cozinha, onde Bert preparava o jantar fazendo um ruído de mil demônios com as cerâmicas. Anthony meneou a cabeça e saiu ao encontro de Olívia. - Dorme no quarto que há no final das escadas. Sobe em seguida e dá uns golpes em sua porta. Chame por seu nome para que saiba que é você. Nós estaremos detrás de ti. Olívia voltou a olhar para as janelas fechadas, com o cenho tão franzido que suas sobrancelhas se tocavam. - Sabe qual é sua janela? - Acho que a do meio, se não recordo mal a disposição dos quartos. - Então tenho uma ideia melhor - Disse Olívia sem hesitação. - Jogarei pedras na sua janela até que desperte. Será obrigado a abrí-la para ver o que ocorre. Quando me vir, chamarei para que venha e então descerá. Certamente. - Se acha que esse plano é melhor... - Disse Anthony. - Sim. Assim não será necessário que entre na estalagem. Olívia pegou uma pedra grande e redonda. Lançou-a para as portinhas fechadas 240

da janela detrás da qual dormia Brian, e o fez com tanta força que abriu uma greta na madeira. Anthony levantou uma sobrancelha e se dirigiu ao interior da taberna. - Cavalheiros, preparados? Subiram nas pontas dos pés as escadas e logo se apertaram contra a parede a ambos os lados da porta do quarto de Brian Morse. Fora, Olívia continuava atirando pedras animadamente contra a janela. Descobriu que tinha uma pontaria perfeita. Custou-lhe quatro pedradas para conseguir que as portinhas se abrissem e para que Brian Morse aparecesse de camisola. O homem que viu não se parecia quase nada ao que ela lembrava. Este homem tinha o cabelo branco e um rosto enrugado pelo sofrimento. Mas os olhos eram os mesmos, a boca era a mesma e sua capacidade para a maldade saltava à vista. - Eu posso saber que diabos se passa aí embaixo? - Perguntou irritado. Maldito patife! O que pensas, descarado? - Estou tentando despertá-lo, Brian - Disse Olívia o mais baixo possível. Tenho para ti uma mensagem de lorde Channing. Brian ficou olhando e pouco a pouco foi reconhecendo os traços da moça. - Olívia! - Sim. Sou eu. A jovem fez uma zombadora inclinação que pareceu ainda mais ridícula devido às calças que vestia. Para sua própria surpresa estava se divertindo. Assim como se divertiu quando jogou alguns pós purgantes na cerveja dele e o condenou a sentar-se na latrina durante horas. - Sobe! - Respondeu ele. Olívia meneou a cabeça e se pôs a rir. - Não sou tão idiota, Brian. Desce você. Tenho uma mensagem muito urgente para ti de lorde Channing. Brian se afastou da janela e Olívia entrou no vestíbulo da estalagem, que estava consumida em uma fria escuridão. Ficou escutando enquanto o coração pulsava com força. Brian não demoraria muito tempo em descer. Não poderia resistir à tentação. Os acontecimentos se sucederam a toda velocidade. Olívia ouviu um grito reprimido e logo passos nas escadas. Pegadas muito fortes. Passaram três homens carregados com um vulto envolto. Desapareceram na rua. Anthony e Adam baixaram as escadas sem pressa. - Estas bem? - Perguntou Anthony lhe tocando a face com os dedos. - Sim. - Interessa tomar o café da manhã ou não? - Inquiriu uma voz em tom de 241

protesto na taberna. - Sim, mas eu sinto muito, agora só somos três - Respondeu Anthony animadamente. Então passou um braço sobre os ombros de Olívia e abraçou com força dirigindo-se à taberna. Bert ficou olhando o alvoroçado cabelo de Olívia, a figura feminina vestida com calças rodeadas e colete, e sem dizer uma palavra deixou três pratos cheios de comida sobre o balcão. Capítulo 19 Das muralhas do castelo de Carisbrooke, o coronel Hammond contemplava o amanhecer. Atrás dele, um par de sentinelas realizava guarda, caminhando de cima e para baixo monótonamente. - Levantaste cedo, Hammond. O coronel se virou ao ouvir a amável voz. - Tanto quanto você, lorde Granville. Cato assentiu com a cabeça e se aproximou dele. - Ontem à noite houve uma boa briga em Saint Catherine's Point - Observou o governador - Esses malvados que provocam naufrágios trataram de levar a cabo seu propósito, mas alguém os deteve. Recebemos uma mensagem de alguém que não quis dar seu nome para que fôssemos ao lugar e recolhêssemos os restos. Lá encontramos o farol e um bom punhado de homens feridos nos esperando na praia. - Pergunto-me se Caxton teve algo que ver com isso - Murmurou Cato - Um sargento acaba de me entregar o relatório sobre o casal que ontem de noite levaram ao castelo Yarmouth. Não restam muitas duvida de que Caxton é o homem que procurávamos. Parece que é pirata e também contrabandista... E tem uma fragata que ancora em algum lugar secreto. Conhece está costa e a francesa como a palma de sua mão. - Então será melhor que o detenhamos - Disse Hammond olhando a seu redor com certo desgosto - Faz uma meia hora ordenei que fossem em busca de Channing. Não é próprio dele atrasar-se quando convoco um encontro. - Talvez seja um daqueles que dorme como uma ratazana - Sugeriu Cato Enfrentamos um pequeno problema se quisermos deter Caxton. - Ah, sim? - Não sabemos onde encontrá-lo - Explicou Cato com toda amabilidade. O governador emitiu um grunhido por toda resposta. - Yarrow mencionou uma baía, a de Puckaster; segundo ele, pode ter alguma relação com o navio de Caxton. Para lá se dirigiu Rothbury com um punhado de 242

homens para ver o que encontram. Jogassem a rede por essa zona se por acaso pescam algum peixe. Se não souber que suspeitamos dele, pode ser que venha por aqui. Apareceu ontem à noite... Jogou cartas com o rei. - Acredito que devemos transferir o rei - Disse Cato com resolução Deveríamos levá-lo em segredo a Newport. Hammond o olhou com preocupação. - Não tenho ordens do Parlamento - Observou. - Pode considerar que as têm - Respondeu Cato secamente - Neste assunto eu represento o Parlamento. - Assume a responsabilidade? - Não acabo de dizer isso? Hammond fez uma inclinação de cabeça dando a entender que tinha compreendido. - Faremos agora aproveitando que a ilha inteira está dormindo. Viu Sua Majestade está amanhã? - Ainda não. Não entro para lhe dar bom dia antes das sete. - Então iremos dar agora mesmo. Se encarregue de que preparem uma carruagem fechada e de que nos espere no pátio. Você e eu escoltaremos o rei até o quartel de Newport. O bom seria que mandasse um mensageiro imediatamente para que preparem algum aposento. E antes de acabar de pronunciar estas palavras Cato já havia dado a volta e se afastava apressadamente pelas muralhas. O governador seguiu a toda pressa. - Channing pode levar a mensagem, mas, onde demônios se encontra? Eh venha aqui... - Disse fazendo sinais a um servente que chegou correndo - Volte ao quarto de lorde Channing. Desta vez se assegure de que está acordado antes de partir. Se assegure de que o respondeu. O homem saiu disparado. O sentinela que fazia guarda frente à porta do quarto do rei, na muralha norte, cumprimento-os. - Sua Majestade chamou já a seu ajudante de quarto? - Sim, meu coronel. Está agora mesmo com ele. Cato chamou à porta autoritariamente e o ajudante de quarto a abriu. - Sua Majestade não está ainda preparado para receber visitas, milord. - Sua Majestade saberá desculpar nossa intrusão - Disse Cato secamente passando junto ao criado e fazendo uma reverência ao monarca - Bom dia, senhor. O rei estava barbeando-se. Olhou aos visitantes um tanto indignado. 243

- O que ocorre? - Sua Majestade vai se transferir a Newport - Comunicou Cato. O rei empalideceu. Limpou a espuma da face com uma toalha e se pôs de pé. - Pode repetir? - Ordens do Parlamento, senhor - Disse Hammond dando alguns passos para o monarca e inclinando-se ante ele respeitosamente - Vai ser transferido imediatamente. Os olhos do rei arderam em seu pálido rosto. Assim, era o fim. Haviam descoberto a poucas horas de seu resgate. Sua decepção foi tão profunda que nem sequer tentou dissimulá-la. Sentia que esta havia sido sua última oportunidade. - Posso perguntar por quê? - Perguntou quando teve suficiente domínio de si mesmo para falar. - Creio que Sua Majestade conhece o motivo - Respondeu Cato com calma Irá antes de uma hora. - Ainda não tomei o café da manhã. - Não chega serem duas milhas de distância que nos separa de Newport. Lá poderá tomar o café da manhã. O tom inflexível estava envolvido de cortesia, mas sem dissimular que o Marquês havia dado uma ordem a seu soberano. - Granville, em outro tempo foi fiel - Disse o rei amargamente - O amigo mais fiel. - Sou fiel a meu país, senhor, e seguirei sendo seu amigo - Disse Cato sem variar o tom sereno de sua voz - O deixo para que se prepare. E após fazer uma reverência abandonou o quarto. O coronel Hammond também fez uma inclinação e o seguiu. O criado que havia ido em busca de Godfrey Channing os esperava no corredor. - Lorde Channing, senhor, não estava em seu quarto. Seu criado diz que em sua cama não dormiu ninguém. - Por Deus! - Exclamou Hammond - Como é possível? - Não é próprio dele - Observou Cato - Sempre foi muito zeloso no cumprimento de seu dever. Entretanto, tudo parece indicar que não podemos contar com ele no momento. A quem mais pode mandar a Newport? - Latham. É capaz de manter a boca fechada - Disse, e ato seguido mandou o mensageiro em procura do outro oficial - Importarias-te que tomássemos café da manhã, Granville, enquanto esperamos a que o rei termine seu asseio? Brian Morse olhou fixamente do chão a um homem a quem nunca tinha visto e 244

que estava seguro de que não quereria ver nunca mais. O homem se ajoelhou junto a Brian, enquanto este, amarrado e envolto entre as grossas e pesadas dobras de uma capa, jazia sob a destilação de alguns arbustos, a meia milha do povoado de Ventnor. Haviam o levado até aquele lugar amordaçado com a dobra da capa. Três homens o haviam arrastado com a mesma facilidade com a qual se arrasta a um menino. Anthony o examinou em silêncio. Seu rosto não tinha nenhuma expressão, exceto os olhos, e o que Brian leu neles o encheu de um terror glacial. - De que maneira lhe agrada brincar com meninas pequenas. Conte-me isso senhor Morse - Disse Anthony suavemente tirando um pedaço de pano que cobria a boca de Brian - Por favor, me explique à fascinação que isso lhe dá. Brian cuspiu vários restos de fios que tinha na boca. -Então minha irmãzinha andou contando histórias a seu amante, não? Nunca pensei que acabaria sendo uma qualquer. Sempre me jurava que nunca teria nada com um homem. Inclusive apesar do medo, Brian conseguiu falar com ofensivo sarcasmo. As mãos de Anthony aprisionaram o pescoço de Brian. Seus dedos longos e magros o apertaram com força. Tinha mãos capazes de manter firme um navio em pleno vendaval até mesmo no olho do furacão. Brian arfou como um peixe arpoado. Sentia o peito tão tenso que acreditou que ia explodir. Via manchas dançando diante de seus olhos. Umas manchas que se inchavam. As mãos o oprimiram ainda com mais força, e então uma onda negra o engoliu. Anthony soltou o pescoço de Brian. Flexionou os dedos e logo massageou as palmas com os polegares. - Matou-o - Disse Olivia quase sem voz dando um passo à frente - Matou-o. Anthony sacudiu a cabeça . - Ainda não consigo matar a sangue frio, apesar de que neste caso a tentação seja forte - Disse. Além disso, prefiro condenar está maldade personificada a um inferno na terra. Anthony meteu a mão no bolso e pegou um frasquinho. - Sustente a cabeça dele, Adam. Adam passou um braço pela nuca daquele homem inconsciente e levantou a cabeça. A boca de Brian se abriu de uma vez que sua cabeça caía para detrás. No pálido pescoço se viam os rastros dos dedos de Anthony. Anthony verteu o conteúdo do frasco na garganta aberta, e em seu estado inconsciente Brian engoliu entre convulsões. - Com isto não nos incomodará durante umas doze horas. Anthony se ergueu e se dirigiu para os três homens que estavam de pé atrás da flácida figura.

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- O ponham em um coche30 e levem até a Yarmouth. O Seamew está esperando a maré da noite para zarpar com os outros passageiros. Dêem isto a seu capitão. Anthony pinçou em seu bolso e pegou um saquinho de pele. O que tivesse em seu interior tiniu ao ser passado às outras mãos. Olívia era incapaz de afastar o olhar do imóvel vulto que era Brian. Agora, vendo-o assim, custava imaginar o muito que havia chegado a aterrorizá-la. Parecia tão velho e sua tez era tão amarela e mortiça... Anthony levantou o olhar para o sol já completo no horizonte e se virou para Olívia. - Acredito que vão sentir sua falta. Fazendo um esforço, Olívia afastou seus olhos de Brian. - Encontrarei uma explicação - Disse com atitude ausente. Olívia estava pensando no pouco que aquilo importava agora. Anthony iria em questão de horas da ilha. - Irei a Yarmouth, para ver o que ocorreu com os Yarrow - Disse Adam - Em Ventnor procurarei um barco de pescadores que me leve até lá. - Como pensa entrar no castelo? - Com potes de caranguejos - Disse Adam laconicamente - Sim, a cozinheira morre pelos caranguejos. E algo me diz. É muito faladeira. Suas palavras denotaram uma leve desaprovação do útil vício de Mary. - Averigua quem está de guarda. Pete talvez... - Sim, a mim não têm que dar lições - Interrompeu-lhe Adam - Os tirarei de lá, não se preocupe. Anthony riu. - Não me preocupo, amigo, não me preocupo. Mas necessito que voltes no Wind Dancer depois de meio-dia. Deve dizer à tripulação que houve uma mudança de planos. Não voltarei para navio até que tenha o rei. Tira o Wind Dancer do ancoradouro com a maré baixa e o leve ao canal. Jethro o colocará na baía de Puckcaster esta noite às nove. Terá que chegar lá às dez. Mas antes, Sam deveria levar o bote até a baía, encalhá-lo na praia e deixá-lo preparado e nos esperando. Adam assentiu com a cabeça e partiu a Ventnor onde procuraria um barco que o levasse a Yarmouth. Olívia havia escutado este intercâmbio de instruções cada vez mais horrorizada. - Anthony, ainda tem intenção de resgatar o rei! - Exclamou Olívia - Não pode fazê-lo agora que sabem quem é você. 30

Carruagem fechada.

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E Olívia olhou Anthony como se este tivesse perdido a cabeça. - Minha flor tenho uma promessa que devo cumprir – Disse, lhe pegando a mão e pondo-se a caminho de volta ao campo no qual haviam deixado o cavalo de Gowan. - Não seja ridículo! Seja quem for essa mulher, não pretenderá que leve a cabo. Nenhuma mulher que estivesse em seu juízo perfeito pretenderia algo assim. A resposta de Anthony foi instantânea e maquinal. - Isto é assunto meu Olívia. Meus compromissos são da minha incumbência, não da tua. Olívia se soltou da mão de Anthony e se deteve bruscamente no meio do caminho. - O que esta dizendo? Em seus olhos se lia o desconcerto. Como podia ser que acabassem de falar de amor e que imediatamente pudesse desatender sua inquietação tão rotundamente? Anthony leu a confusão e a raiva no olhar de Olívia e moderou seu tom de voz ao tratar de dar uma explicação. - Sou o capitão de um navio, Olívia. Os homens de minha tripulação confiam nas minhas decisões. Sou eu quem deve interpretar e assumir as consequências que delas resultam. Para mim sempre foi assim e, acredite, aprendi a lição da maneira mais dura. - Então nunca escuta os conselhos? - Perguntou Olívia com incredulidade Alguma vez muda de opinião? - Pois claro que o faço - Respondeu Anthony com impaciência - Mas as decisões finais são minhas. “Meu pai teria dito o mesmo”, refletiu Olívia. Franziu o sobrecenho, pensando no que Anthony acabava de dizer. - Aprendeu da maneira mais dura. Refere-se a quando era menino? Com seus pais? - Poderíamos dizer que sim. Olívia perdeu a paciência por completo. - Maldito seja, Anthony! – Exclamou - Não chegou o momento de que me esclareça algumas coisas? Não acha que me deve algo? Anthony olhou por cima da cabeça da moça, do outro lado da sebe, por volta do mar, mas não se fixou muito na paisagem. Como podia explicar o que se sente quando é um marginalizado, quando não pertence a nenhuma parte? Como podia explicar a Olívia, cujo lugar no mundo estava tão firmemente consolidado? Como ia entendê-lo? - Mataram meus pais na noite em que nasci. Ellen e Adam tomaram conta de 247

mim - Disse com distanciamento. - Ellen é a pessoa que quer que resgate o rei? - Uma mulher de firmes convicções - Disse Anthony - E aposto que lhe devo muito mais do que nunca poderei pagar, farei qualquer coisa que me peça. - Como mataram seus pais? - Os assassinaram. - Em Bohêmia? - Sim... Esta satisfeita, Olívia? Não tenho vontade de falar mais sobre este assunto. Olívia se esforçou para imaginar como devia ter sido aquela noite de morte e nascimento. “Muito sangue” pensou. “Deveria ter escorrido muito sangue.” - Mas... seus avós e seus outros familiares? - Não tenho mais família - Disse Anthony bruscamente - Ellen e Adam são meus amigos e toda a família que preciso. Olívia captou a cortante amargura de sua voz. - Não acredito que Ellen te pediria que fizesse isto se soubesse o perigo que corre - Disse Olívia com perspicácia e, pela rápida piscada do olhar de Anthony, deuse conta de que havia dito a verdade. Anthony começou a andar depressa enquanto falava. - Seja como for, cumpro minhas promessas. E não me agrada abandonar um plano no meio. - É uma ousadia - Disse Olívia que agora quase tinha que correr para poder seguir suas rápidas pernadas. - Não. Possivelmente seja algo perigoso. Mas, como bem sabe – Acrescentou Os projetos mais perigosos sempre são os mais gratificantes... E quase sempre os que têm mais possibilidades de ter êxito. Anthony se virou para o prado onde o cavalo pastava tranquilamente junto às vacas. - Realizei algumas mudanças no plano original – Concedeu - De acordo com as variações que tiveram lugar. Olívia esperou até que Anthony tivesse pegado o cavalo e o trazido até o portão. - Irão fazer uma emboscada. - Talvez. Mas tomarei precauções. É impossível que saibam quando penso tentá-lo. Isso só sabe os homens do Wind Dancer. E não podem saber como penso fazê-lo, porque isso também sabe somente meus marinheiros... Vamos, vamos - Disse pegando Olívia pela cintura e montando-a no cavalo. 248

- Por favor, não o faça - Suplicou Olívia quando Anthony montou atrás dela Tenho muito medo. - Mulher de pouca fé! - Disse Anthony em tom zombador abraçando-a para agarrar-se à crina - Pense em um entretenimento nas muralhas, mas agora vou dar um espetáculo que manterá todos os soldados e os oficiais do castelo completamente ocupados durante os poucos minutos que o rei necessitará para fazer sua jogada. Riu um pouco com este pensamento e Olívia sentiu que havia perdido a batalha. Se Anthony acreditava que podia fazê-lo, faria-o. Sairia com a sua. Olívia não tinha mais remédio senão acreditar. -E quando tiver o rei, quando o tiver levado são e salvo a França, acha que retornará? Olívia disse estas palavras com voz surda. - Vou e venho - Respondeu Anthony sem comprometer-se - Mas aqui é onde está o ancoradouro de meu navio, onde tenho meus amigos e onde meus homens têm a sua família. - Se o rei não estiver aqui, então meu pai partirá - Disse Olívia olhando para frente enquanto o cavalo trotava junto ao penhasco. A cor do mar era azul e brilhava com o sol da manhã. A costa de Dorset é descrito de forma tão clara que parecia fácil para começar a jogar, além do oceano deslumbrante. - Sim - Assentiu ele - Assim será. Suavemente Anthony repetiu as mesmas palavras que Olívia havia dito anteriormente. - As coisas são como são. Você é como é e eu sou como sou. - O que diria se te dissesse que vou contigo? Anthony ficou em silêncio um instante e então disse: - Sentiria medo de que quando o sonho se desvanecesse, como sem dúvida acontecerá, caso você não seja feliz. - E além do mais te atrapalharia, te limitaria - Constatou Olívia com o olhar fixo ainda no mar. O azul lhe pareceu algo impreciso e se deu conta de que o via entre lágrimas. - Preocuparia-me que você se arrependesse de ter deixado para trás a vida que levaste até agora. Sua família, suas amizades, sua casa... Nada disso é meu, nem significa nada para mim. Anthony ficou calado. Olívia olhou para frente, sentindo o robusto corpo de Anthony detrás. A paixão, o amor, não eram bastante intensos para superar aqueles inconvenientes? Mas haviam vivido um sonho, não havia sido mais que isso. E 249

sempre despertamos dos sonhos. - Se ficássemos na ilha - Começou a dizer Olívia - Cada vez que viesse poderíamos voltar a viver nosso sonho. - Mas você não pode ficar. - Desejas voltar a sonhar? Por alguns instantes, Anthony não deu nenhuma resposta; mas em seguida, em voz baixa e distante, disse: - Isto nunca teve futuro. Nos dois sabíamos. Sejamos felizes com o que tivemos. Guarda a lembrança, como eu farei. Demoraram meia hora em chegar à propriedade de lorde Granville. Meia hora durante a qual seus pensamentos ficaram suspensos no ar, sem expressar-se. Ao aproximar-se da horta, Olívia disse: - Deixe-me aqui. Anthony deteve o cavalo e desmontou. Ajudou Olívia a descer e lhe segurou as mãos. - Não conheço outra resposta – Disse - Não poderia me sentir responsável por sua infelicidade. - E eu não poderia me sentir responsável pela tua - Respondeu Olívia que suavemente se soltou das mãos dele - Diga-me Adeus. Diga-me isso agora. Anthony a segurou nas bochechas e a beijou docemente. - Adeus, Olívia. - Adeus. Ela percorreu os lábios dele com a ponta dos dedos, atrasando-se na carícia, como se quisesse guardar para sempre a sensação da boca de Anthony em sua pele. Então deu meia volta e se saiu correndo. Se Anthony conseguisse seu objetivo, a família Granville partiria da ilha. Então, quando não dormisse ou quando não pudesse conciliar o sonho em sua casa de Chalé, não poderia suportar pensar em Wind Dancer deslizando-se pelo ancoradouro na escuridão. Estaria esperando sua volta. Não poderia suportar imaginar o Wind Dancer em mar aberto, com seu senhor frente ao leme, de pé no convés, com o cabelo revoando para trás e seu robusto pescoço exposto ao vento enquanto olhava as velas. Não poderia suportar pensar que se afastaria dela com seu navio. Mas devia suportar, porque não se podia viver em êxtase toda a vida. Anthony ficou muito tempo no caminho depois que ela desapareceu entre as árvores. Havia agido corretamente? Sabia que sim. Primeiro teria chegado à desilusão que, a sua vez, teria conduzido ao desprezo e logo ao amargo aborrecimento de sua pessoa. Teriam aprendido a odiar um ao outro ao estar em direções opostas. Em sua vida não havia espaço para Olívia e não podia viver a vida por ela. Mas ao dar meia 250

volta para ir pensou que seu coração não fosse suportar. Olívia cruzou a horta velozmente, para o jardim e as escadas posteriores, com a esperança, ainda que fosse uma esperança vã, de que nenhum criado a visse com seu estranho traje. Estava tão absorta em sua infelicidade que esteve a ponto de cruzar-se no caminho com seu pai e com Rufus, mas suas vozes chegaram a tempo, e a alertaram da presença de ambos na horta. Ficou gelada com o coração pulsando contra suas costelas. Cato comentava com Rufus o inoportuno do pedido da pequena Eve, que acabava de pedir a seu pai que a levasse nas costas. Estavam muito próximo, só os separava de Olívia, uma fileira de frutíferos. Olívia, quase sem pensar, subiu pelas copas de uma pequena macieira selvagem cuja espessa folhagem constituía uma tela perfeita. Os dois homens, engajados em sua conversa, começaram a andar pelo caminho para a árvore onde se escondia Olívia. - Como o rei enfrentou seu traslado? - Perguntou Rufus pegando sua filhinha com impulso para subir aos ombros. - Com dignidade, como sempre - Respondeu Cato - Os barracões de Newport são mais rudimentares que Carisbrooke, mas ele fingiu não dar-se conta. - Não encontramos nada na baía de Puckcaster, nem pelos arredores - Disse Rufus, segurando forte Eve pelos quadris quando a menina tentou mover-se para poder pegar uma maçã da árvore. Eve puxou da maçã e o galho se dobrou para baixo. Olivia ficou tensa e se apertou contra o tronco da árvore, aguentando a respiração. Então, quando os homens se afastaram da árvore, o galho voltou a sua posição original, e Olívia voltou a respirar. Inclinou-se para frente para poder ouvir como continuava a conversa. Os homens se afastavam devagar e pôde ouvir suas palavras com toda claridade. -Vasculhamos toda a área - Disse Rufus - Apesar de não ter encontrado nada, parece ser um lugar idôneo. Uma baía de águas profundas e um profundo canal à saída protegido por dois cabos de terra. Deveríamos pôr guardas? Pode tirar a maçã de Eve? Se a comer terá dor de barriga e Portia não me perdoará durante muitos dias. - Eu gostaria de apanhar esse homem - Disse Cato, estendendo o braço para pegar a maçã de Eve de seu pequeno punho - Mesmo que o rei já esteja fora de seu alcance, eu gostaria de caçá-lo; olhou como ele o olha, parece um bom pedaço. Claro que não sabe que deslocamos o rei, tentará cumprir sua missão e talvez possamos apanhá-lo em sua tentativa. Olhe Eve, aqui tem uma bela pêra madura. Retirou a fruta e a deu à menina, que aceitou a substituição com alegria. - Então vamos lhe dar uma oportunidade. Proponho que coloquemos um canhão em cada um dos cabos. Orientaremos de tal maneira que farão explodir o navio se este entrar na passagem e durante as próximas duas noites colocaremos 251

guardas emboscados no alto do penhasco. Se deixa ver, o apanharemos. - Acredita que Godfrey Channing se uniu a sua expedição - Perguntou Cato. -Não. Hammond me perguntou o mesmo. Parece que desapareceu da face da terra. -É muito estranho. Será melhor que mandemos um pelotão de soldados em sua busca. É possível que tenha sofrido um acidente. “Em nenhum caso, um tipo de acidente que possam imaginar”, pensou Olívia rapidamente enquanto estirava o pescoço para vê-los sair ao campo. Olívia saiu de seu esconderijo devagar, tentando compreender o significado do que acabava de ouvir. Haviam deslocado o rei. A intenção de Anthony era ir aquela noite a Carisbrooke para resgatá-lo, mas o monarca não estava lá, estava em Newport. E o Wind Dancer, desconhecendo por completo está informação, zarparia para a baía de Puckaster e o fariam explodir em mil pedaços com um canhão do Parlamento. Estava esgotada; sentia-se afligida por não ter dormido toda a noite e pela dolorosa tristeza da despedida. Mas não podia render-se. Tinha que fazer chegar à informação a Anthony como fosse. Mas como demônios ia fazê-lo? Não tinha nem a menor idéia para onde havia dirigido Anthony depois de sua despedida. Ao haver mudado os planos, o mais provável é que tivesse que fazer preparativos. Não retornaria ao navio; então, aonde tinha ido? Dirigiu-se nas pontas dos pés para o final do campo, onde uma tela de arbustos delimitava a horta. Desde seu esconderijo observou o que acontecia no campo. Phoebe e Portia estavam sentadas à sombra do carvalho enquanto os meninos brincavam a salpicar-se com a água do lago, brincando de correr por debaixo da fonte entre chiados de contentamento com Juno detrás de seus calcanhares, movendo sua revoltosa e peluda cauda. Cato e Rufus haviam chegado junto às mulheres e conversavam com elas, de pé, debaixo da árvore. Olívia disse que talvez estivessem perguntando-se onde estava. Teriam notado sua ausência. Não teria tido muita importância se Anthony já se encontrasse a salvo, mas não era assim. Forçou sua cansativa mente para que pensasse com claridade. Se a roupa que usava fosse comum, poderia sair de entre as árvores e dizer que havia estado dando um longo passeio, que caiu adormecida sob o sol... Qualquer coisa teria valido. Mas tinha que mudar de roupa. Logo poderia pensar no passo seguinte. Juno começou a brincar de correr dando voltas e mais voltas, movendo o rabo com transbordante entusiasmo. Olívia segurou um pau e o lançou para a cadela, que se distraiu imediatamente. Segurou o pau entre os dentes e saiu correndo para a horta, movendo a cauda, ansiosa por brincar qualquer jogo que lhe propusesse. Deixou o pau aos pés de Olívia e a olhou com espera. - Procura Portia - Disse Olívia inclinando-se para lhe dar uns tapinhas Procura Portia. Juno olhou com olhos brilhantes e inteligentes Olívia, mas não se moveu, 252

limitou-se a pegar outra vez o pau e a deixá-lo novamente no chão com um gesto de convite. - Cadela tola! - Sussurrou Olívia - Sabe perfeitamente o que significa “busca” e sente perfeitamente quem é Portia. Juno emitiu um curto e esperançado latido. Olívia pôs uma mão no colar da cadela e está tratou de soltar-se. A jovem tirou com mais força e o animal começou a emitir uns latidos curtos, frenéticos e agudos que significavam que não gostava do que estava ocorrendo. Olívia aguentou assim e rezou para que Portia fosse ver o que acontecia a sua querida Juno. Rezou para que fosse Portia, e não algum dos meninos, ou pior ainda, Rufus. Observou o grupo de pessoas que havia sob a árvore enquanto segurava Juno, que lutava por libertar-se e ladrava cada vez com maior entusiasmo. Portia olhou a seu redor, com o cenho franzido, logo se pôs de pé e começou a cruzar o prado. - Juno! Juno? O que acontece? - Está aqui comigo - Disse Olívia em voz muito baixa através dos arbustos Venha à horta. Portia abriu caminho afastando as copas e Olívia soltou Juno. O cão se equilibrou sobre sua proprietária como se fizesse um ano que não a visse. - Por Deus, Olívia! Onde se meteu? - Exclamou Portia olhando-a com incredulidade - Já não sabíamos o que dizer para dissimular sua ausência. O que estiveste fazendo? Tem um aspecto horroroso. - Encontro-me mal. Agora não posso contar os detalhes. Mas não posso sair vestida assim. Poderia me trazer outra roupa? Posso me aproximar depois e dizer que me levantei muito cedo e saí a dar um longo passeio. - O que é o que está acontecendo exatamente? - Não posso lhe dizer isso. Mas, por favor, me traga outra roupa para que eu possa sair. - Devo pensar que se trata de um assunto de piratas - Disse Portia - Será tão amável de me dizer isso Olívia? - Não - Respondeu Olívia sem evitar o encontro direto com o olhar de sua amiga. Portia sacudiu a cabeça e partiu apressadamente com Juno lhe pisando os calcanhares. Olívia esperou com impaciência detrás dos arbustos. Para sua tranquilidade, Cato e Rufus não demoraram a retornar a casa, sem fazer caso dos meninos ensopados e deixando Phoebe sozinha. Portia saiu após poucos minutos da casa pela porta lateral. Deteve-se um momento ao passar junto a Phoebe, e Olívia pôde ver o surpreso olhar desta dirigir-se para os arbustos. Portia se encaminhou à horta com 253

passo imperturbável. Levava uma cesta pendurada do braço. - Com isto poderás entrar em casa, carinho - Disse Olívia lhe estendendo a cesta - Mas tem um aspecto desastroso; Está completamente despenteada e muito suja. Não se sentirá apresentável até que não tenha se penteado e se lavado um pouco. - Estive fora durante a tormenta de ontem à noite - Explicou Olívia tirando a casaca e as calças - Fiquei ensopada e logo estive em uma praia no interior de uma caverna... Olívia notou como a pressão de seu sangue se alterava com a lembrança. Era tão vivo que quase sentia o aroma, o sabor e o corpo de Anthony contra o seu. Enfiou a cabeça pela abertura do singelo vestido estampado que Portia havia levado. Em tempo de ficar e abotoar-lhe recuperou o domínio sobre si mesma. - Trouxe sapatos? - Não, esqueci. Mas as botas não se vêm sob o vestido. Só tem que entrar em casa. - Obrigada - Disse Olívia, e fez um novelo com as calças e a casaca e os colocou na cesta - Mais tarde me encontrarei contigo no jardim. Olívia se afastou a toda pressa com a cesta cheia de suas lembranças, e intercambiou um olhar Phoebe ao passar junto a ela. Entrou na casa pela porta lateral. Não levantou a cabeça quando cruzou com uma faxineira nas escadas e por fim pôde refugiar-se em seu quarto. Olhou-se no pequeno espelho. Na verdade estava horrível. Tinha o cabelo completamente emaranhado e quando tentou penteá-lo uma chuva de areia caiu sobre a penteadeira. Agora que se sentia a salvo, o esgotamento se apoderou dela. Só o esforço de levantar os braços para escovar o cabelo lhe parecia excessivo. Sentou-se na cama para tirar as botas, Liberou seus pés destas e, carente de toda vontade, derrubou-se para trás sobre a cama. Ficaria assim deitada alguns minutos somente, em paz e tranquila, e logo pensaria no seguinte passo. Ficou adormecida com as pernas pendurando na beirada da cama e a cabeça sobre a colcha. Olívia despertou com um sobressalto, sem saber muito bem quanto tempo havia dormido. Olhou pela janela e comprovou assustada que o sol estava baixo. Ainda podia ouvir as vozes dos meninos brincando no jardim sob a janela. Levantou-se. Os olhos ardiam, sentia as pernas tão pesadas como se a tivessem drogado. Quanto tempo havia perdido dormindo? Levantou-se da cama fazendo um grande esforço e se arrastou até a janela. A cena que viu no jardim não diferia muito de quão última havia presenciado, ainda que agora as sombras fossem mais elevadas. Os meninos ainda estavam brincando na água; Phoebe e Portia ainda estavam sentadas sob a árvore. Não havia nenhum sinal de Cato nem de Rufus. 254

A jovem se lavou o rosto com água fria e voltou a batalhar com seu cabelo. Conseguiu se tirar toda a areia e fazer uma trança com aquela emaranhado de cabelo. Tirou a sujeira das unhas e lavou os pés cheios de barro. Em seguida, sentindo-se um pouco mais apresentável, pegou um livro tentando aparentar seu comportamento habitual, desceu as escadas e saiu ao jardim. - Por fim, despertou - Disse Phoebe olhando-a com olhos peritos enquanto envolvia com uma toalha em Nicholas, que tinha os lábios molhados - Estava tão profundamente adormecida que não quisemos despertar, nem sequer na hora de comer. - Dissemos a Cato que ontem à noite ficou trabalhando com seus livros até muito tarde e que estava muito cansada - Disse Portia. - Obrigada - Disse Olívia - Incomodou-se? - Parece que não. A verdade é que está acostumado a isso. - É mesmo - Colaborou Oliívia. - Não perguntarei o que é que está ocorrendo - Disse Phoebe. - O que os olhos não vêm, coração não sente - Observou Portia esboçando um leve sorriso. - Exatamente - Acrescentou Olívia sentando-se na grama junto a elas. Olívia abriu o livro. Agora, uma vez dissipada a névoa do sonho, sentia que podia pensar com clareza. Devia faltar uma hora para que o sol se pusesse. Anthony não pensava levar o fim de sua missão até depois das dez. Havia dito a Adam que se assegurasse de que o navio estivesse na baía àquela hora. Uma companhia de soldados e um canhão estavam preparados para desaparelhar o Wind Dancer. Enquanto Anthony estivesse ocupado em sua missão de resgate, destroçariam o navio. Quando voltasse para a praia, cairia em uma emboscada. Os olhos de Olívia não se separavam do livro e ia passando páginas a intervalos regulares sem ler nenhuma só palavra, enquanto sua mente a toda velocidade ia repassando e descartando possibilidades. Os Barker saberiam se era possível evitar que o Wind Dancer caísse na armadilha. A bandeira na capela, se é que fosse visível de noite, atrairia a atenção de algum membro da tripulação, mas necessitava um meio muito mais rápido para comunicar-se. Não havia tempo para a lenta navegação de ida e volta do bote até o ancoradouro onde estava ancorado o navio. Tinha que haver algum outro sinal. Se Mike estivesse ali, diria. Sua mente se povoou de imagens de soldados sublevados com lanças e mosquetes, do estalo dos canhões e do estrépito da queda do mastro. Fechou os olhos e voltou a encontrar-se bote para a praia. Agora Olívia conhecia as perceber o toque da areia sob a quilha. Viu amurada, descalço; as fivelas de suas calças

com Anthony conduzindo o pequeno manobras à perfeição. Quase podia seu amado descer de um salto pela à altura dos joelhos refletiam a luz 255

enquanto ele puxava do barco para encalhá-lo na areia. Anthony ria, com seu dente torto brilhando em seu rosto tostado pelo sol. Uma mecha de cabelo dourado escorregou pela testa quando se agachou para realizar seu trabalho, e o afastou com um rápido e distraído movimento de sua mão larga e forte. Olívia podia vê-lo. Podia cheirá-lo. A lembrança em sua memória era tão viva, tão poderosa, que começou a perder a consciência. - Olívia? Olívia! O tom imperativo de Portia quebrou a devaneio e a converteu em pedaços de saudade. - Perdoe-me. Estava sonhando acordada. - Sim, era bem óbvio, carinho. A verdade é que acreditava que estava sonolenta. É hora de jantar. Olívia foi consciente de que várias babás haviam voltado para suas obrigações e se perguntou como não havia se dado conta de que a chamavam nem de sua chegada. O ar se encheu de protestos infantis quando levaram os menores à casa. - Vamos jantar na cozinha - Anunciou Luke - Não queremos jantar no quarto das crianças. - Não, pois claro que não - Assentiu Portia totalmente de acordo - Mas façam o que façam, não incomodem à senhora Bisset. Nosso jantar sim depende de seu bom humor. - Não a incomodaremos. Adora-nos - Disse Toby exagerando o tom -. Gostaria que fôssemos seus filhos. Disse. Os meninos saíram correndo, brigando entre eles, derrubando-se pela grama e levantando-se de novo em uma massa disforme em contínuo movimento. - É verdade o que diz isso- Disse Phoebe sacudindo-se fibras de grama do colo. - Todos os adoram. São filhos de Rufus - Disse Portia com verdadeiro orgulho. - Será melhor que me troque de vestido antes de jantar. Acho que tenho grudados pedaços de pão de gengibre mastigado de Nicholas. - E Phoebe olhou atentamente a indecorosa mancha em sua saia. Olhou fugazmente Olívia, que fechou o livro e se pôs de pé. - Meu pai está em casa? - Não, Rufus e ele retornaram ao castelo depois de jantar. - Então vou sair - Disse Olívia - Tenho algo que fazer. Portia e Phoebe trocaram um olhar. - Tem que comer algo - Disse Phoebe com praticidade. Olívia se deu conta de que haviam passado muitas horas desde que tinha tomado o café da manhã na estalagem do Gull em Ventnor.

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- Buscarei um pouco de pão e queijo do jantar. Mas agora tenho que ir. - Voltará pela manhã? Olívia as olhou sombriamente. Aquela noite faria o que devia fazer pelo pirata; logo, não sabia como, mas este se afastaria dela. - Espero que sim - Respondeu.

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Capítulo 20 Olívia pegou pão, queijo e um pouco de carne fria da mesa preparada para o jantar, e também uma maçã, e saiu pela porta lateral. Comendo seu improvisado jantar, dirigiu-se às cavalariças e entrou no abrigo onde guardavam os arreios. Lá pegou uma das cordas que penduravam na parede, a enfiou entre a saia de seu vestido e, com um ar tão despreocupado como quando entrou, saiu do estábulo sem prestar muita atenção aos rapazes que jogavam gude sobre um barril de água voltada do reverso. Dirigiu-se ao campo onde ficavam os cavalos durante as calorosas noites de verão. O seu, uma égua pintada, pastava tranquilamente na relva sob a cerca, a poucos metros dela. - Grayling - Disse Olívia em voz baixa, sustentando em alto a maçã. O cavalo levantou a cabeça e se dirigiu para ela. Olívia aguentou a fruta na palma de sua mão e Grayling a pegou delicadamente entre seus grossos e aveludados lábios. Olívia rodeou a cabeça do animal com a corda e a conduziu até um toco de uma árvore. Grayling não ofereceu resistência ao ver que a montavam sem selar. Olivia recolheu a saia de musselina por debaixo das pernas para proteger-se bem do áspero pêlo do animal e estalou a língua, conduzindo à égua para o portão que dava a estrada. Esperava lembrar como chegar à granja dos Barker. Em anterior ocasião não tinha podido concentrar muito no caminho; tinha muitas coisas na cabeça. Entretanto, reconheceu uma encruzilhada e sentiu que tinha que tomar o caminho da direita. Passou frente à pequena aldeia que, segundo sua lembrança, ficava a uns dez minutos do atalho que levava a granja dos Barker. Anoitecia quando entrou no recinto da granja. Tudo estava em silêncio, não havia meninos brincando de correr na hera ladrilhada coberta de palha. Os frangos, os patos e os gansos estavam encerrados no curral para passar a noite protegidos das raposas. Mas a porta da casa estava aberta para que entrasse a fresca brisa da noite. Olívia desmontou e atou a corda de Grayling em uma estaca da cerca e logo se aproximou à porta. Chamou com os nódulos e verificou à cozinha. Não havia ninguém e sentiu que lhe falhava o ânimo. Estavam já na cama? Voltou a chamar com golpes mais fortes e perguntou sem gritar: - Há alguém em casa? Notou certo alívio para ouvir as pegadas de umas botas descendo pelas escadas de madeira que se viam o fundo da cozinha. - Quem demônios chama a estas horas da noite? Um homem que Olívia não reconheceu entrou na cozinha metendo-se a camisa 258

dentro das calças. Olívia olhou um pouco mais e ao aproximar-se reconheceu os traços de Mike no rosto envelhecido. - Senhor Barker? - Sim, quem pergunta por ele? O homem a olhou na penumbra. - Sou Olívia Granville. A filha de lorde Granville - Acrescentou porque lhe pareceu que não a reconhecia - Mike está em casa? Tenho que falar com ele. O homem a olhou com desconfiança e naquele preciso instante se ouviu a voz de sua mulher em tom exigente. - Quem é Barker? -A senhorita Granville - Respondeu-lhe por cima do ombro - Quer ver nosso Mike. A senhora Barker desceu as escadas. Usava uma volumosa camisola; na cabeça Luzia uma boina que lhe escondia o cabelo. - O que deseja senhorita? - Perguntou. Olívia respirou profundamente. - Senhora estão levando o rei às Newport. Anthony não sabe e sei que vai a Carisbrooke esta noite para tentar resgatá-lo. O Barker a olharam desconcertados, como se tentassem compreender o que estava dizendo. Olívia continuou com precipitação. - O Wind Dancer está em perigo. Há canhões em ambos os lados da passagem para afundá-lo quando se dirigir à baía de Puckcaster. Tinha a sensação que se detinha nem sequer um momento, a mulher não a deixaria seguir e a colocaria à ponta pés na rua. - Mike tem que saber a maneira de fazer chegar uma mensagem até o navio para que não ancore ali. Temos que avisar o navio! - Repetiu, com a esperança de ver por fim algum sinal de compreensão no suspicaz olhar da mulher. E temos que impedir que Anthony chegue à praia. Se alguém daqui poder levar o aviso até o navio, eu irei ao castelo para advertir Anthony. - Como sabe? - Perguntou a senhora Barker. - Ouvi uma conversa de meu pai, lorde Granville, falando sobre isso. Tentou manter a calma, mas a paciência a abandonou por completo e exclamou: - Pelo amor de Deus, senhora, Mike está em casa? Foi o senhor Barker quem respondeu. 259

- Está com o patrão. Olívia havia usado uma imprecação não muito refinada que havia ouvido de Portia. - Sabem como avisar ao navio? O senhor e a senhora Barker moveram a cabeça negativamente. - Nosso Mike é o único aqui que conhece os sinais - Disse a mulher. - E está com o patrão - Repetiu seu marido, que seguia negando com a cabeça. Talvez já fosse muito tarde para avisar ao navio, mas ainda podia impedir que Anthony caísse em uma emboscada. - Devo ir ao castelo para advertir Anthony - Disse, e enquanto falava calculou o tempo e distância. Digam-me que caminho devo tomar daqui. O único que conheço é o do Chale. Tem que haver uma maneira de chegar ao castelo sem ter que voltar para Chale. Pelas montanhas... Uma rota diferente. - Nosso Billy a acompanhará. Devem passar por Bleak Down e cruzar o Medina. É o caminho mais rápido. O senhor Barker foi quem falou com o que a Olivia pareceu uma inusitada autoridade. Seguidamente se virou para sua mulher e lhe pediu duramente: - Vá procurar Billy! O senhor Barker passou junto a Olívia ao dirigir-se à porta. Olhou o céu. - Falta pouco para as dez. Será melhor que vão em seguida. Demorarão ao menos uma hora. Sua esposa já estava ao pé das escadas. - Billy! Billy, filho, desce logo! - Sim, mãe, o que ocorre? Um Billy meio adormecido e em camisola desceu as escadas cambaleando-se. Seu olhar se fixou em Olívia, que se encontrava ao lado da porta. - Ai, Deus! É a senhorita! - Tem que mostrar à senhorita o caminho para chegar ao castelo, por Bleak Down - Disse sua mãe lhe lançando um par de botas. - Tenho que pôr as calças - Protestou Billy, disposto a subir de novo as escadas. - Ande depressa. Ao fim de um minuto já estava de volta e sentado no ultimo degrau pondo as botas. - Sim. Agora vá procurar um cavalo. Vá, depressa! E sua mãe lhe deu um empurrão até a porta. 260

- Muito bem! Muito bem! Já vou. Billy saiu a toda pressa, com a camisa de dormir batendo as asas por detrás. O coração de Olívia pulsava muito depressa; a ansiedade corria por suas veias enquanto esperava que Billy voltasse a aparecer com o cavalo. Saiu ao pátio da casa, e esperou com os braços cruzados sobre o peito. Havia lua nova, uma lua crescente suspensa quase no horizonte. Billy entrou no pátio ao trote, montando um rechonchudo cavalo, e Olivia foi em seguida procurar o seu. Desatou a corda e o senhor Barker a ajudou a montar. - Que Deus a acompanhe, senhorita. A senhora Barker chegou quase em seguida, com a ansiedade refletida em todas as rugas de seu rosto. - Escute-me, Billy, você não tem que ir ao castelo. Já temos bastante com que um de nossos filhos esteja lá, arriscando sua vida e a doutros por nada. Leva a senhorita até a montanha, cruza o rio com ela e chega. Billy não pôde dissimular sua decepção, mas encolheu seus ombros em sinal de certa resignação. - Vamos senhorita, adiante. O menino golpeou as laterais do animal com as botas e o cavalo saiu com um pesado trote. Grayling o seguiu dando saltos. Olívia, montada em Grayling, pôs-se junto ao cavalo de Billy quando deixaram atrás o caminho de carro que levava ao limite da granja e tomaram o atalho. - Seu pai disse que demoraríamos uma hora em chegar, verdade, Billy? - Bom, pai não é um cavaleiro muito rápido - Disse Billy desdenhosamente Talvez o demore uma hora, mas acho que nós podemos melhorar esse tempo. Vamos por aqui. Fez virar seu cavalo para cruzar uma sebe e se encontraram em um terreno aberto onde as árvores eram magras e estavam tortas devido aos frequentes vendavais. - Isto é Bleak Down - disse Billy para Olivia. Por aqui não há nenhuma aldeia, e no inverno o vento sopra violentamente. Puseram os cavalos ao galope e assim percorreram um lance, um junto ao outro. O vento assobiava nas orelhas de Olivia e açoitava sua melena negra e espessa arrebatando-lhe à fita que a recolhia, de modo que parecia a asa de um corvo batendo em suas costas. O coração da moça pulsava à mesma velocidade que os cascos de Grayling golpeavam a áspera erva que cobria o solo. Não seria muito tarde para que Anthony pudesse avisar o Wind Dancer? Havia dito ao Adam que o navio tinha que estar em posição às dez. Já estaria navegando para a entrada da baía, ao alcance do canhão. Anthony devia ter alguma maneira de indicar que tinha que ir. Mas teria soldados no alto do penhasco, esperando... 261

“Tinha que haver uma maneira... uma maneira... uma maneira...” O estribilho ocupou toda sua mente impedindo qualquer outro pensamento enquanto se segurava com força à crina e se agachava à altura do pescoço do animal para ir ainda mais depressa. De repente viu aparecer diante uma estreita fita de água escura. - Temos que cruzar o rio - Gritou Billy sem soltar as rédeas - Felizmente não é muito profundo nesta época do ano. Siga-me. Grayling entrou na água após o outro cavalo. Por não abrandar a volta de Olívia estava encharcada pelos saltos do cavalo a galope e saltando na frente de Grayling era quase tocá-lo. Então, antes deles, vi o show grande massa de Carisbrooke Castelo no topo da montanha com a torre gigante na montanha cadeira de West Wing. Olívia pensou com rapidez. Os aposentos do rei haviam sido os da muralha norte. Anthony e Mike deviam estar esperando perto daquele lugar, em algum lugar sob das ameias. “É uma loucura!”, pensou sentindo que a invadia, uma onda de fúria. Outras pessoas haviam tentado resgatar ao rei e haviam fracassado miseravelmente. Mas Anthony não era outras pessoas. Se fosse possível, o teria conseguido. Se o rei tivesse ficado ali, teria chegado à França pouco tempo depois. - Deixe-me aqui, Billy - Ordenou Olívia brevemente - Farei sozinha o resto do caminho. - Eh, posso lhe ajudar um pouco mais, senhorita - Disse o moço com alguma esperança. - Sua mãe quer que volte, de modo que quero que vá. Não posso perder mais tempo. - Mãe se preocupa muito - Disse o menino. - Com toda a razão. Vá! O tom com o qual falou Olívia foi o bastante contundente para mandar o reticente Billy pelo caminho pelo qual havia vindo. Olívia se dirigiu a uma linha de árvores que se estendia pela encosta da montanha. Naquele momento umas nuvens cobriam a lua, mas as árvores esconderiam sua figura se de repente a lua voltasse a brilhar. “Onde estará Anthony?”, perguntou-se. O portão de entrada, na muralha norte, estava muito perto do extremo sul. Com toda segurança haveria guardas vigiando as muralhas. Podia ver resplandecer as chamas das tochas nas ameias. O coração pulsava com tal força que acreditou que fosse desfalecer, entretanto, sua cabeça se mantinha clara e fria; seu pensamento, agudo e brilhante como um pedaço de gelo. Quando conduzia a Grayling para um caminho que corria junto à fileira de árvores, ouviu relinchar outro cavalo, imediatamente tirou das rédeas. A égua levantou o focinho e deu um curioso coice ante a presença de outro animal. - Onde estão? - Perguntou Olívia em um murmúrio, aguçando os ouvidos para perceber qualquer som. 262

Então ouviu um ruído amortecido dos cascos de um cavalo, e depois o tinido quase imperceptível de uns metais. Vinham de um bosquezinho muito próximo às muralhas. Olívia desmontou e conduziu a Grayling para as árvores. Não tinha nem idéia do que ia encontrar. O mesmo podia ser um pelotão de soldados de lorde Granville, que Anthony e Mike. No bosquezinho havia três cavalos atados, pastando placidamente na úmida relva coberta de musgo. Três cavalos preparados para uma fuga imprevista. Olívia atou Grayling perto deles e logo se afastou nas pontas dos pés do bosquezinho. A lua brilhou no céu justo quando Olívia se encontrava sob o muro coberto de erva, debaixo das muralhas. De lá podia ver o muro em cuja parte superior se abria a janela com estacas do quarto do rei. A janela não estava iluminada. Por cima desta, nas muralhas seguiam ardendo as tochas. Se apertasse contra o muro, não a veriam os possíveis guardas que vigiassem da muralha. Procurando encolhê-lo o máximo possível, avançou agachada para o muro justo debaixo da janela do rei. O relógio na igreja do castelo deu as onze, e o som dos sinos quebrou a placidez da noite. O coração de Olívia deu um salto e então a noite explodiu. Ouviuse o estampido de um canhão; as faíscas encheram o ar de uma chuva laranja e vermelha. Os mosquetes começaram a disparar em rápida sucessão e logo se ouviu o assobio de uma chama laranja surgiu das muralhas. Parecia que o castelo inteiro ardesse em chamas. Então Olívia os viu. Duas figuras negras apertadas contra a parede, como ela mesma. Estavam exatamente debaixo da janela do rei. A figura alta e vestida de preto de Anthony era inconfundível. Usava um capuz negro na cabeça e parecia confundirse com a escuridão, como se fosse uma sombra mais pertencente de noite e à parede. Agora se ouviu o fragor de uma batalha que se livrava dentro dos muros, sobre suas cabeças. Os homens gritavam, as tochas se agitavam, as chamas resplandeciam sonoras e fumegantes em meio da noite. Anthony havia dito que pensava organizar um espetáculo, mas isto era uma guerra a escala real. Olívia correu para Anthony. Chamou-lhe por seu nome, confiando que em meio daquele tumulto sua débil voz não chegaria às ameias. Anthony se virou. Empunhava uma faca em sua mão elevada. Então a mão caiu a um lado ao ver quem tinha diante. Olívia se deteve e se agachou um pouco tentando recuperar o fôlego. Anthony não tentou pressioná-la para que explicasse nada, e sua confiante tranquilidade, a aura de calma que o envolvia, tiveram seu efeito. Quando Olívia falou, falou com clareza e foi direta ao ponto. - Não está aqui... O rei... Não está aqui - Disse Olívia assinalando para a janela - Está amanhã o levaram. Anthony não fez perguntas. Segurou-a da mão e começou a correr com ela, agachando-se quase até tocar ao chão, para refugiar-se nas árvores. Mike correu atrás 263

deles sem fazer nenhum ruído. - Porque lastima alguns foguetes tão esplêndidos... - Manifestou friamente Anthony no momento em que ficaram a salvo - Gordon e seus homens fizeram um magnífico trabalho. - Sim – Concordou Mike - Poderíamos tirar até cinco reis sob está cobertura. - O navio - Disse Olivia quase sem fôlego - O Wind Dancer... - O que ocorre ao navio? - Perguntou Anthony, que de repente pareceu perder a calma; mas quase imediatamente recuperou o controle sobre si mesmo e disse tranquilamente-: Respira, Olívia. Diga-me tudo o que sabe. - Estacionaram canhões nos cabos da baía de Puckaster para poder disparar contra seu navio no caso de que se dirija à passagem. - Yarrow - Disse Mike com repugnância. Anthony meneou a cabeça. - Não se culpe Mike. Prefiro que tenha dito o que sabe e que não corra riscos. - Prue com certeza que não abriu a boca, tenham sido quais fossem as ameaças - Assegurou Mike com a mesma repugnância. -É uma possibilidade - Apontou Anthony falando com um seco desprezo - O que mais, Olívia? - Soldados. Estão emboscados no alto do penhasco se por acaso chegar por terra. - Ou se vou por mar - Adicionou Anthony com uma breve gargalhada - Sobre o penhasco? Está segura? Olívia assentiu com a cabeça. - Isso é o que disseram. Anthony, o que está pensando...? Mas Anthony já havia dado a volta e se afastava andando através das árvores. A causa do rei estava perdida, Mas seu navio! Seus homens! Adam, Jethro, Sam... Eram o sangue de sua vida, sua família. Devia tudo, tudo o que tinha. O Wind Dancer, com tudo quão valioso era não era nada comparado com seus amigos. Mas, ironicamente, para salvar a seus amigos tinha que salvar seu navio. Virou-se. Tinha uma expressão calma no rosto, seu olhar era frio e cinza como um oceano quieto ao amanhecer. - Sam deve ter deixado o bote na baía. Posso esquivar a emboscada tomando o caminho desde o Binnel Point. Por lá chegar à praia sem ter que me aproximar do penhasco por cima da baía - Disse resolutamente - Disporei de alguns minutos para colocar o bote na água antes que notem minha presença. - Vão disparar - Disse Olívia - Quando o virem empurrando o bote à água, dispararão contra ti. - Com a vela içada, o patrão é mais hábil que ninguém manobrando 264

Assegurou Mike - Fez algo parecido em outra ocasião. Em Tanger. Perseguiam-no por... - E aqui se deteve e começou a tossir - Não me lembro por que. Anthony lhe dedicou um irônico sorriso. - Que discreto vem a ser, Mike. - OH, não me importa nada se invadiu o harém do sultão - Exclamou Olívia Só quero saber se saiu com a tua ou não. - Aqui estou - Disse Anthony inclinando-se, e os olhos brilharam com aquela luminosidade temerária que Olívia conhecia tão bem - Aqui e... Mmm... Intacto, como não duvido que possa garantir. - Assim que o sultão...? OH, por que brinca em um momento como este? - Porque, minha flor, para rir sempre é um bom momento. E a risada acalma os nervos. Anthony a tocou no rosto da maneira em que estava acostumado e como sempre Olívia reclinou seu rosto na palma de sua mão. Os olhos de Anthony acariciaram os do Olívia. - O que vai acontecer com o Wind Dancer? - Perguntou a jovem com tom premente - Quando o virem, não há duvida de que dispararão o canhão contra o navio, se é que não o destruíram já. O brilho desapareceu dos olhos de Anthony. - Faz muito tempo que aprendi a não me antecipar aos desastres; é uma perda de energia. Jethro saberá o que tem que fazer até que eu não pegue o comando. Anthony se virou para ir procurar seu cavalo. - Mike, acompanha Olívia a sua casa e logo vá para tua. O Wind Dancer dará rumo à França assim que eu estiver a bordo. Voltaremos para nosso ancoradouro dentro de um mês mais ou menos... - Perdoe-me patrão, mas não penso deixá-lo. Necessitará ajuda para empurrar o bote até a água. Além disso, eu vou aonde vá o Wind Dancer. Anthony vacilou junto a seu cavalo, com uma mão no queixo e a outra segurando as rédeas. Dirigiu a palavra a Olívia, que havia se aproximado de Grayling. - Sabe voltar para sua casa sozinha? -É uma idéia estúpida quando não ofensiva. Soube chegar até aqui e, é obvio, saberia chegar a minha casa, mas não penso ir para lá. Anthony havia montado em seu cavalo. - O que quer dizer? Olívia falou claramente e sem rodeios. -Quero dizer que se meu pai tiver a seus homens emboscados em cima da 265

praia, e eu estou em baixo contigo, empurrando a ti e a seu bote para a água, não dispararão. -Reconhecerão à senhorita na praia - Disse Mike ao compreender a jogada. - Exatamente. Se meu pai não estiver, significa que os homens obedecerão às ordens de Giles Crampton. Ele me reconhecerá imediatamente. Segurou a crina de Grayling, deu um salto e montou no lombo da égua, se sentando escarranchado e recolhendo-as saias por debaixo das pernas. - E como pensa explicar tudo isto a seu pai? - Perguntou Anthony. -Esse é meu problema - Disse ela - Como você, eu tomo minhas próprias decisões, e assumo as consequências. Dirigiu estas últimas palavras com certa satisfação. - Meus compromissos são minhas coisas, senhor Caxton. No meio das árvores estava bastante escuro, mas Olívia pôde ver que uma chama ardia nos olhos de Anthony e que seus finos lábios se endureciam. - Não se atreva a me seguir, Olívia - Disse Anthony com uma ferocidade na voz que ela não havia ouvido nunca até então - Vamos, Mike. Anthony deu meia volta e saiu a galope para as montanhas. Mike fez um pequeno gesto de resignação dirigido a Olívia e o seguiu.

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Capítulo 21 Olivia golpeou com seus calcanhares as laterais de Grayling e saiu atrás deles. O castelo seguia sumido no tumulto, violentas chamas se projetavam na escuridão da noite e se sucediam ritmicamente os estalos da pólvora. Olívia ainda via os homens, mas se mantinha a distancia deles. Não sabia se Anthony era consciente de que os perseguia, mas não se importava. Agora via tudo com claridade. Em algum momento daquela selvagem noite, a confusão emocional das últimas semanas havia se desvanecido e o redemoinho tinha se convertido em um lago. Não perguntava nada nem sequer o que ia fazer depois. E não ia perder tempo e energia mental discutindo sua aparição com Anthony. Havia transcorrido meia hora quando Anthony e Mike soltaram as rédeas no topo do penhasco. Olívia desconhecia aquele lugar. Estava deserto e o único som ocasional eram os chiados de uma gaivota. A lua crescente brilhava sobre o mar em calma e entregava a sensação de que o mundo retinha seu fôlego. Anthony e Mike desmontaram e Olívia levou a Grayling até eles. Anthony a olhou. - Por quê? Essas poucas palavras explodiram como um disparo de pistola. - Porque necessita minha ajuda - Disse simplesmente Olívia descendo do cavalo. Tremiam-lhe as pernas depois de duas longas horas montando e quando se pôs de pé no chão teve que flexionar os joelhos. Foi Mike quem respondeu. - Binnel Point, senhorita. Mike se dirigiu à beira do penhasco e, ajoelhando-se, retirou com a mão um pouco de erva daninha que cobria o chão. Olívia pôde adivinhar um pálido atalho, ligeiramente mais largo que a palma de uma mão aberta, que serpenteava para baixo meio coberto sob a erva daninha. Recordou-lhe o atalho que havia tido que percorrer para chegar à praia do naufrágio. Havia passado muito pouco tempo, mas lhe pareceu toda uma vida. -Tomaremos este caminho, senhorita. Descer uma boa parte pelo penhasco antes de entrar por uma cavidade na parede, justo em cima da baía de Puckaster. - Assim tentaremos enganar a emboscada que tem preparada acima. - Pelo menos isso é que eu espero - Disse Anthony secamente, e a pegou pelos ombros apertando-a com força. - Não preciso de você, Olívia, não me entende? - Pois eu acho que sim - Respondeu ela. Olhou para cima e pôs as mãos sobre as dele. - Não deveríamos ir já? Cada minuto que passa, o navio está mais em perigo.

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- Não preciso que me lembre isso - Disse Anthony, e seu rosto e sua voz expressava a frustração que sentia. - Então, vamos. Olívia se soltou das mãos de Anthony e se dirigiu ao início do caminho onde Mike os esperava. Sentiu que a invadia uma onda de euforia, o mesmo que havia sentido quando ela e o pirata haviam empreendido sua viagem. Anthony a alcançou. - Caminha atrás de Mike – Ordenou - Quando chegarmos à praia, ficará no caminho. De lá verá tudo, mas não poderão ver você. Não preciso sua ajuda para nada e intervindo a única coisa que conseguirá é tornar isso mais difícil. Não penso em perder meu navio por um impulso infantil como o teu. Foram palavras cruéis, mas Olívia não disse nada. Limitou-se a ficar em seu lugar atrás de Mike. Depois de dar dois passos, virou e começou a se curvar, era muito íngreme para andar de pé. Em seguida deu-se de conta que não tinha tempo para euforias. O sinuoso atalho parecia que não ia terminar de descer nunca. Mas os homens não pararam e ela não pensava mostrar sua debilidade parando para tomar fôlego. Em uma ocasião se virou com muito cuidado e olhou por cima do ombro a lisa superfície das águas do canal, onde o mar parecia de prata sob a luz das estrelas. O Wind Dancer se balançava suavemente na entrada da baía. Ainda estava a salvo. Olívia esteve a ponto de gritar aliviada. Os homens aceleraram o ritmo e ela os seguiu como pôde, escorregando e tropeçando, sem prestar atenção aos arranhões nem aos rasgões. Uma saliência na parede parecia bloquear o caminho, mas então viu que ali mesmo se abria uma pequena fenda pela qual desapareceram Anthony e Mike. Ela também penetrou no buraco os seguindo a pouca distância e se encontrou sobre a areia de uma baía suavemente curvada em cuja entrada se balançava o navio do pirata. Anthony e Mike saltaram à areia e Olívia, em meio de um redemoinho de pedras e areia, aterrissou junto a eles. O suor lhe empapava os olhos apesar da fresca brisa do mar. Prestou atenção se por acaso podia ouvir algum ruído, qualquer som que dissesse que os homens de seu pai estavam acima lhes preparando uma emboscada. Mas não ouviu nada, nem sequer o rangido de um galho, nenhuma respiração. No topo do penhasco, Cato olhava fixamente o elegante navio ancorado. - Damos o sinal para disparar, milord? Giles sempre parecia impaciente para entrar em ação. - Não está fazendo nada ilegal nem prejudicial - Observou Cato - Não vejo nada que justifique disparos enquanto permaneça aí quieto. O que acha Rothbury? Rufus mastigava uma fibra de erva enquanto refletia. - Nem sequer sabemos com certeza se é o Wind Dancer. Estamos muito longe para ler o nome. 268

- É obvio que o é, milord - Disse Giles - Está esperando algo ou a alguém. - Ordenemos um disparo de aviso por cima do navio para ver como reage Sugeriu Rufus. Giles já estava dando ordens a seus homens para acender os rojões de luzes. - Que demônios é isso? Anthony olhou por volta do topo do penhasco enquanto um jogo de luz começava a dançar sobre o mar, e obteve a resposta quase imediatamente. Ouviu-se o disparo de um canhão da terra quase ao mesmo tempo em que um pássaro saía projetado do mar em meio de uma grande onda espumosa, justo detrás da popa da fragata. Olívia não pôde conter um profundo coice. Anthony se virou para ela. - Estão no alto do penhasco. Fique aqui e não se mova até que tudo tenha passado, em seguida, vá para sua casa. Sua voz ainda soava arisca e zangada. Pareceu vacilar e, como se fosse contra sua vontade, segurou-a pelos ombros e a beijou forte na boca. Soltou-a imediatamente. - Nos aproximemos do bote correndo, Mike. Duas figuras escuras cruzaram a praia sob as sombras que projetava o penhasco. Então Olívia viu o bote, encalhado na areia, sob uma saliência que formavam as rochas, fora do alcance dos que podiam vê-los de cima. Quando os dois homens chegaram às rochas soou o primeiro disparo do alto do penhasco. Seu coração deu um salto e o notou na boca, mas haviam evitado o impacto e já estavam arrastando o bote para a borda, mantendo-se agachados junto à amurada que os servia de amparo. Mas quando tivessem que empurrá-lo à água, ficariam expostos aos disparos. Olívia correu até a praia e se pôs de frente ao penhasco, movendo os braços e saltando em um louco baile de distração. Cato a olhou sem poder acreditar no que via. A brisa marinha grudava a camisa ao corpo; os cabelos negros de Olívia ondeava ao redor de sua cabeça lhe obscurecendo o rosto. Não contente, Cato reconheceu sua filha. - Alto o fogo! - Gritou. - Descemos à praia, senhor? -Perguntou Giles Crampton absolutamente perplexo diante da imagem que via - Afastamos Lady Olívia do caminho das balas? - Que demônios ela está fazendo lá abaixo? - Perguntou Rufus. - Só Deus sabe! Cato duvidou durante um instante. Os dois homens tinham o bote na borda. A vela estava atada no mastro da proa. Só levaria alguns instantes desatá-la e içá-la. - Ataquem a praia! ordenou Cato. - Mas que não haja disparos enquanto Olívia estiver ali. Não a deixem correr nenhum risco.

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Anthony e Mike empurraram o bote, em um ato desesperado por levá-lo até a água e poder assim baixar a talha e içar a vela. - O senhor nos pegue confessados - Murmurou Mike - O que está fazendo a senhorita? - Demonstrando que faz o que o dá vontade. Disse Anthony em tom grave. Empurrou o bote com o ombro e em seguida flutuou na água. O canhão voltou a disparar, mas desta vez Anthony não perdeu tempo olhando se havia atingido o navio. Um só disparo não afundaria o Wind Dancer. Mas ele precisava de seu patrão no leme. Agora Olivia ouviu ruído de pisadas em regulares no caminho que descia do penhasco, o mesmo que haviam seguido eles para chegar à praia. Correu para a borda, até onde Mike, com a água até a cintura, seguia empurrando o bote para leválo onde ganhava profundidade e o virava para aproveitar o vento, enquanto Anthony, já a bordo, preparava a vela para içá-la. O retumbar de passos detrás de Olívia cobrou de repente tanta intensidade que ocupou toda sua mente. Gritos sufocados e o detestável estalo das armas. Olívia se virou de repente, estendendo seus braços instintivamente a modo de escudo humano enquanto Anthony puxava a folha para subir a vela. Fez-se silêncio. Olívia se virou para olhar o bote. Podia sentir atrás dela a presença das tropas armadas em uma respiração coletiva, em um deslocamento comum de pisadas sobre a areia. Anthony segurou o leme. Olívia estava de pé onde quebravam as ondas e se virou, de novo devagar, para olhar para a praia, com a intenção de impedir que os homens de seu pai se caíssem sobre o barco antes que este estivesse no mar. Sabia que devia esperar até o momento justo para realizar sua jogada, o único momento possível para que tivesse êxito era quando o navio estivesse livre e navegando a vela, mas ainda a seu alcance. Anthony estava de pé com a mão no leme, então a fez virar e a vela se encheu com o vento. Ele de pé, olhando para a massa de homens que estavam na praia. Apontavam-lhes com as armas, mas Olivia estava no meio. O Marquês de Granville se achava a uns quantos pés à frente do grupo. - Olívia? - inquiriu Cato em voz baixa. Ela o olhou, sentindo mais que vendo o bote afastar da praia. Sentiu como se lhe arrancassem a pele a tiras. E sentiu que já não restava mais tempo. Levantou as mãos, com as palmas para cima em sinal de impotência. - Perdoe-me - Disse simplesmente - Não tenho tempo de explicar isso, mas tem que ser assim. Então se virou e mergulhou entre as ondas. O bote se afastava para o mais 270

profundo. -Anthony! - Gritou quando a água lhe chegou até a cintura - Anthony, maldito seja! Espere-me, sabe que não sei nadar! Então os homens de Cato a seguiram emergindo entre a espuma. Olívia estava justo diante deles, avançando rapidamente entre as ondas que cresciam ao romper contra seu corpo, com as saias colocadas entre as pernas lhe dificultando o movimento. Anthony pôs proa ao vento. Inclinou-se para popa e agarrando Olívia a pegou de um só puxão da água. Olívia caiu de joelhos dentro do bote. Anthony moveu o leme e a vela voltou a inchar-se. - Alto o fogo! - Gritou Cato outra vez enquanto seus homens ainda chapinhavam na água em uma ultima tentativa desesperada por apanhar o bote. Olívia levou a mão à garganta. - Nos alcançaram? -Não. Passamos o recife e agora eles terão que nadar, mas nós navegaremos mais depressa. Para confirmar suas palavras, a perseguição se deteve em seco. Os homens ficaram quietos entre o fluxo justo no lugar onde o fundo arenoso formava um monte, olhando como suas presas se livravam deles. Olívia contemplou a cena da praia. Viu seu pai de pé ali onde o havia deixado. O que havia feito era irrevogável. Phoebe e Portia poderiam entendê-la, mas a perdoaria seu pai alguma vez? Voltaria para vê-lo? Outro tiro de canhão a obrigou a esquecer de tudo exceto do presente. - Vão afundar o Wind Dancer com um tiro de canhão! - Por agora parece que estão apontando para a popa - Disse Anthony com calma - Quando estiver a bordo, não teremos por que nos preocupar. Olívia olhou para o Wind Dancer e viu que tinha desdobrada a vela maior. Também viu que desprendiam pela amurada a escada de corda para que eles pudessem subir. Ouviu no silencioso ar da noite os rítmicos cantos da tripulação enquanto os homens davam voltas à manivela para içar a âncora. Era óbvio que toda a tripulação seguia um plano, mas serenamente. Não só no bote, mas também no Wind Dancer. Não tinha nenhum sentido preocuparem-se quando ninguém mais o fazia. O vento aumentava à medida que iam deixando atrás a baía e foram aproximando de mar aberto. Olívia tremia. - Por que será que sempre termino ensopada quando estou contigo? - Por alguma razão me resulta extremamente atraente quando esta molhada Disse Anthony muito sério - Certamente tem relação com minhas fantasias com sereias. 271

- Fantasias com sereias! - Exclamou Olívia - Nunca tinha dito isso. -Talvez porque acabo de me dar conta disso agora mesmo - Respondeu com um sorriso - O vestido gruda ao seu corpo de um modo irresistível. Olívia se olhou. A pálida musselina deixava visível seu corpo completamente. - Como vou subir ao navio assim? É como se estivesse nua. De repente se deu conta da presença de Mike. Este tinha as orelhas vermelhas e notava que seu maior desejo naquele momento era estar em qualquer lugar onde não ouvisse aquela conversa. Anthony simplesmente soltou uma gargalhada e desabotoou a camisa com uma mão, logo, trocando de mão o leme, a tirou. -Aqui tem, com isto ficará apresentável até que ponha uma de minhas camisolas. Já sabe onde as guardo. Olívia pôs a camisa. Notou seu calor pelo contato com a pele de Anthony e aquele aroma tão especial mesclado de sal e de mar. Olívia ia sentada à proa quando chegaram ao lado do Wind Dancer. Anthony arriou a única vela, assegurou o bote e sujeitou com força a escada de corda para que Olívia subisse. Esta o fez com dificuldade e ao chegar acima mãos serviçais a ajudaram a passar por cima da amurada. Ninguém pareceu surpreso ao vê-la e ela pensou que deviam ter visto a sucessão de acontecimentos na praia com a luneta. - Partimos patrão? - Perguntou Jethro da roda do leme. - Sim, aqui faz um tempo muito caloroso. Anthony desceu as escadas do tombadilho superior. Jethro se afastou a um lado e Anthony se pôs ao leme. - Desce ao camarote, Olívia, e tire essas roupas molhadas - Disse Anthony. -Isso pode esperar - Acrescentou Olívia e subiu a seu lado - O que pensa fazer agora? Se quebrarem o mastro... - Não o farão. Os canhões são muito difíceis se não podem disparar contra ti. Anthony a olhou e em seus olhos brilhou a euforia. Esta era uma aventura digna de um pirata. Ouviram uma intensa detonação e um assobio acompanhou o passa de uma bala de canhão por cima do navio que passou junto à plataforma. Estatelou-se na água justo a frente à proa. Anthony soltou uma gargalhada e girou a roda do leme. - Este foi muito próximo. Parece que o estão levando a sério. Vigiem a gávea. Os homens se aglomeraram junto às plataformas no momento em que outra bala, procedente do outro cabo, estalava no mar. Se Anthony não tivesse virado o navio quando o fez, a bala teria destruído o lado da fragata. - Esta teria acertado o objetivo - Observou Olívia assombrada de sua própria objetividade. 272

- Com certeza... Virem o navio - Disse Anthony sem dar nenhuma amostra de pressa ou desgosto. O navio virou a estibordo e Olívia, atônita, pareceu-lhe que iam chocar-se diretamente contra a parede do penhasco. Essa direção os colocava fora do alcance do canhão da esquerda, mas parecia que os levava diretamente à linha de fogo do outro. - O que está fazendo? - Situando-me debaixo do canhão - Respondeu-lhe ele, com voz exultante e os olhos acesos - Note, se estivermos debaixo do canhão ficaremos tão a salvo como se estivéssemos fora de seu alcance. Navegaremos de cara ao penhasco, ficaremos debaixo dos cabos, debaixo de um e fora do alcance do outro. - Mas as rochas! Não vamos encalhar? Ela pensou enquanto fez a pergunta, deu-se conta de que era absurda. Anthony não encalharia naquelas águas nem navegando com os olhos enfaixados. - Não, conheço essas águas - Respondeu. Olívia guardou silêncio. Anthony assobiava brandamente entre dentes enquanto conduzia o navio quase até a parede do penhasco. Levou-o tão perto que para Olívia pareceu que iam se chocar. Por cima deles se ouviam os estalos dos canhões e as balas caíam inofensivamente por todos os lados elevando fontes de espuma. Sem separar do penhasco, o Wind Dancer rodeou o cabo e viram, frente a eles, como se estendia a superfície do oceano salpicada de brilhos de prata. Os membros da tripulação gritaram de alegria e atiraram ao ar suas boinas ao mesmo tempo em que os canhões se resignaram à derrota e se sumiram no silêncio. A jovem se virou para contemplar a ilha enquanto o navio ganhava velocidade empurrada pelo fresco vento. Olhou seu pirata, que seguia assobiando para si mesmo, pôs os olhos na grande vela. No perceber o olhar de Olívia, baixou o seu. - Alguma recriminação? - Não - Respondeu Olívia completamente segura de suas palavras - E você? Anthony sacudiu a cabeça e esboçou seu belo sorriso, e Olívia sentiu que havia aproveitado a única possível ocasião de ser feliz. Nunca voltaria a amar assim. Só um homem podia lhe brindar uma felicidade tão profunda. Dar as costas a aquela promessa de felicidade teria sido como cuspir na cara aos deuses. - Vá para baixo - Disse-lhe Anthony docemente – Seque-se. Irei contigo quando tivermos nos afastado o suficiente da ilha. Olívia olhou de novo mais à frente da água, a corcunda cada vez mais longínqua da ilha de Wight. Será que voltaria ali novamente? - Terá que fazer as pazes com seu pai.

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- Sim - Disse a moça, e se dirigiu ao camarote. - Assim decidiu viver no mar? Anthony a olhou no rosto, sustentando-se sobre ela enquanto a alvorada se desfiava no céu e um suave raio de luz rosada penetrava pela janela aberta e caía sobre a cama. - É o que parece - Corroborou Olívia, acariciando as firmes nádegas de Anthony - Viveremos as aventuras e nunca seremos vulgares. - Certamente que não - Confirmou Anthony com toda seriedade. Ele então se colocou junto à jovem e seus escuros olhos adquiriram uma especial luminosidade. - Nada previsíveis - Insistiu Olívia. - Nem por indício. Então Anthony voltou a deslizar-se no mais profundo de Olívia, delicadamente, fração a fração. Olívia mordeu ligeiramente o lábio inferior invadida por uma onda de prazer. Com um dedo, indagou com ar malicioso e Anthony jogou a cabeça para trás proferindo um gemido. - Onde aprendeu a fazer isso? - O instinto - Disse ela afogando a risada - Agora sou a amante de um pirata. Conheço esses truques. Olívia se esforçava por se manter longe de um clímax que colocaria fim àquele maravilhoso ato de amor. Anthony contemplou seu rosto, indagando em seus olhos. Quando viu que Olívia ia ceder em sua luta, voltou a retirar-se, esperando a urgência dela para freá-la docemente antes de inundar-se de novo em seu interior. - Não quero que termine nunca - Disse Olívia, acariciando no interior das coxas do pirata, amando a poderosa robustez de seus músculos contra sua mão. - Isto é só o começo, meu amor - Sussurrou Anthony, inclinando-se para pegar a boca dela com a sua. Olívia saboreou a doçura da língua de Anthony percorrendo o interior de sua boca e ele se moveu pelo interior do corpo dela com intensas e rápidas investidas até que pensou que ela fosse explodir. E mesmo assim ela conseguiu chegar à beira desse êxtase assombroso, brincando com o vaivém dele e acoplando o seu, com a língua completamente engastada na dele em uma selvagem dança de prazer. Os dedos de Olívia arranharam as costas de Anthony, com mais força ao chegar às nádegas, lhe pressionando então contra seu corpo como se quisesse que em lugar de dois fossem uma só pessoa. E logo o mundo se afastou dela e se uniu a ele 274

com tanta força como uma mulher a ponto de afogar-se obstinada a um tronco quando a corrente a arrastasse, a sacudisse, a derrubasse, e então gritou o nome do pirata com um selvagem abandono. O sol assomou no horizonte, inundando o céu de cor laranja. Anthony abraçou Olívia contra seu corpo ao se deixar cair sobre a cama, e lhe afastou o cabelo úmido da bochecha. - Como é possível te amar tanto? Disse em um sussurro - Aterroriza-me. Não poderia suportar te perder. - Não me perderá, meu amor - Respondeu Olívia, e sugou com sua língua no vão que se formava na base do pescoço de Anthony, onde seu pulso pulsava com força sob a pele suada e escorregadia - Fomos feitos um para o outro. Viveremos e morreremos juntos, meu amor. Anthony pegou a cabeça de Olívia entre suas mãos e beijou os cantos dos lábios, a ponta do nariz e o vértice do queixo. - Mas não nos casaremos - Manifestou Olívia, e a sua vez brincou com sua língua pela ponta do nariz de Anthony – Não convêm piratas terem esposas. - Tampouco eu sou daqueles que se casam - Disse Anthony preguiçosamente Prefiro encontrar uma amante em algum lugar. Capítulo 22 O Wind Dancer aproveitava o agradável ar de início de setembro para deslizarse pela passagem que o servia de esconderijo e no qual as paredes do penhasco pareciam fechar-se a seu redor. Depois de dois meses de ausência, voltaram para o final da passagem, onde lhes esperava o profundo canal, silencioso e calmo como sempre. Olívia, de pé no convés, viu como deslizavam diante dela as paredes do penhasco e pensou na primeira vez que subiu a bordo do navio, quando o Wind Dancer voltou a cobrir-se no ancoradouro para que sua passageira pudesse ser escoltada até o mundo real, até a vida que conhecia e entendia. Levantou a vista para olhar para o tombadilho superior de onde Anthony seguia outra vez o rumo que conduziria a seu refúgio. Este deixou o leme nas mãos de Jethro e desceu para ficar ao lado do Olívia. Ficou apoiado no corrimão, detrás da moça, lhe passando um braço por cima dos ombros. - Esta preparada? - Sim. Olívia levantou a mão para lhe acariciar o rosto. O ruído da âncora rompeu a quietude do anoitecer e depois o Wind Dancer se consumiu no silêncio. Desprenderam o pequeno bote e Olívia saltou a seu interior 275

pela amurada com toda a agilidade da experiência recém adquirida. Anthony também saltou para situar-se a seu lado e pegou os remos. Remou vigorosamente para sair da passagem e logo içou a vela. Navegaram seguindo a linha da costa em um silêncio que refletia seu estado de ânimo. Ambos se sentiam tensos e angustiados. - Talvez tenham partido da ilha - Disse Olívia quando o pequeno bote penetrou na pequena baía justo debaixo do povoado de Chale. Terminou de cortar com os dentes uma unha meio quebrada e entre suas sobrancelhas se formaram umas profundas rugas. Naqueles dois meses podia ter acontecido qualquer coisa. Anthony, estendendo o braço, afastou-lhe a mão da boca com um gesto carinhoso. - O rei ainda está aqui. Seu pai também estará. - Assim espero. O bote se deteve na borda e Anthony pulou na água. - Não há mais que um curto trecho entre o penhasco e o povoado. Toma o caminho da direita - Disse enquanto puxava do bote para encalhá-lo na areia. - Eu sei. Conheço o caminho de outras vezes - Lembrou-lhe Olívia, e não passou despercebida a ansiedade de Anthony ao lhe dar as desnecessárias indicações. Pegou a mão que o pirata lhe oferecia e saltou descalça à praia com os sapatos na mão que ficava livre. Olívia se sentou sobre uma rocha para calçar-se. - Irá me esperar aqui? Anthony a olhou esfregando a boca com a ponta dos dedos. - Tratar de perdoar uma pergunta tão estúpida... Mas que não se repita, te lembre. Olívia sorriu, era um sorriso tão tenso quanto o dele, e se pôs de pé. - É que não sei quanto vou demorar a voltar. - Esperarei quanto for preciso - Disse Anthony lhe pegando o queixo e inclinando o rosto para beijá-la - Agora vá e faz tudo o que tenha que fazer. E retorna logo para mim. - Isso sempre - Disse Olívia em um sussurro. Em seguida deu meia volta e, recolhendo as saias com a mão, pôs-se a correr pela praia e depois pelo caminho que a levaria ao alto do penhasco. Anthony tentou dominar sua angústia. Sentia que não tinha razão de ser, que Olívia havia tomado uma decisão. Retornaria quando tivesse feito as pazes com seu pai. Certamente que voltaria. Foi procurar de seu estojo de desenho do interior do bote e se sentou sobre uma rocha. Segurou um lápis e começou a desenhar. Desenhou o que enchia o espaço de sua mente: Olívia. 276

A jovem passou junto à horta e atravessou o portão que dava ao jardim da cozinha. Na casa ainda havia alguns abajures acesos e, ao rodear a casa, ocultando-se nas sombras, viu com um pequeno sobressalto de temor e alívio de uma vez que a janela do escritório de lorde Granville estava iluminada. Encontrava-se em casa e não pensava entrar pela porta principal para não encontrar-se de repente com o cerimonioso Bisset. Não queria falar com ninguém, nem sequer com Phoebe, antes de ter tido uma conversa com seu pai. Dirigiu-se sigilosamente para a elevada janela do escritório de Cato, pisando com muito cuidado o caminho de cascalho, e olhou em seu interior. Seu pai estava trabalhando sentado frente à mesa com um montão de papéis diante. O coração de Olívia começou a pulsar muito depressa. Vacilou. Seria mais fácil ver primeiro Phoebe porque lhe facilitaria o caminho. Mas descartou tal possibilidade e a afastou de seu pensamento. O que tinha que tratar concernia a ela e a seu pai. Ergueu a mão e golpeou o vidro da janela com os nódulos. Cato levantou o olhar. Ficou olhando o cristal fixamente e em seguida se pôs de pé. Abriu a janela e se apoiou na soleira, olhando sua filha com evidente incredulidade. - Olívia? - Sim - Respondeu a moça - Posso entrar? Ao não obter resposta, pulou lateralmente para situar-se na ladeira da soleira e em seguida passou as pernas a sala. Seu pai se afastou quando ela saltou para entrar. - Volta para sua casa? Em sua voz havia calma; seu olhar era sério, mas se fixava em todos os detalhes da moça. O brilho de sua pele, a luminosidade de seus olhos, a harmonia e a segurança de quem encontrou a si mesma e, de uma vez, um lugar no mundo. - Não, não posso. - Então, por que veio? Olívia se deu conta do tom severo daquelas palavras, - Para lhe dar uma explicação, para lhe pedir perdão. - Não quero suas explicações, já tive bastante com as de Phoebe - Disse Cato no mesmo tom glacial - Certamente tem meu perdão. É minha filha e sempre o será. - O amo. Olívia lhe ofereceu sua mão curtida pelo sol em um gesto de perdão, com a urgente necessidade de quebrar aquela capa de frieza. Tinha esperado raiva, dor, inclusive talvez ameaças para impedir que voltasse para a vida que havia escolhido, mas aquela calma e glacial resposta a seus desejos era muito pior que tudo o que havia imaginado. Cato não segurou a mão que Olívia lhe oferecia. Olhou-a em silêncio. Durante os dois meses de ausência de sua filha havia se sentido tão zangado, tão confuso, tão 277

extremamente preocupado por ela, que vê-la agora plantada ali em frente com aquele aspecto estupendo e tão feliz, era um insulto insuportável. - Deste jeito, não me perdoa - Disse Olívia deixando cair a mão a um lado - Eu lhe pedia sua bênção. - O que queria? - Perguntou Cato, e sua raiva se transbordou rapidamente Fugiu com o maldito pirata. O filho bastardo de um louco idealista que... - Como sabe isso? - Interrompeu-lhe Olívia. - Acha que não podia averiguá-lo? - Espetou com fúria - Acha que pode fugir sem uma palavra de explicação, trair minha causa pelo inimigo, assegurar a fuga a um rufião ilegítimo a quem corresponderia estar pendurando na forca, e acha que vou encolher os ombros e aceitá-lo? - Não o conhece - Disse Olívia em voz baixa - Não tem nenhum direito a falar dele nesses termos. Amo-o. Sou feliz com ele. Senti que lhe devia uma explicação, mas agora mudei de opinião. Deu as costas fazendo uma leve careta de resignação surgida do mais profundo de sua amargura e sua decepção, e se dirigiu de novo à soleira da janela aberta. - Olívia! Foi um grito angustiado. Ela se virou. As lágrimas escorregavam pelas bochechas de seu pai, que estendeu seus braços para abraçá-la. Olívia correu para ele, sem impedir que as lágrimas brotassem de seus olhos. Cato a abraçou com força, lhe acariciando o cabelo. - Fiquei louco de preocupação por ti - Confessou-. Que tipo de vida vai levar com um homem como esse? - A vida que desejo - Respondeu Olívia o olhando com os olhos banhados em lágrimas-. É a vida que me convém. Lemos juntos, jogamos xadrez, rimos... OH, não sabe o quanto rimos juntos. E nos amamos muito. Com ele me sinto inteiramente eu. Sem ele, falta-me algo, é como se não existisse. Cato suspirou a acariciando na bochecha. - Tenho que aceitá-lo, minha filha? - Sim, se quer me fazer completamente feliz. - Então creio que terei que fazê-lo - Voltou a suspirar - Sua mãe era uma mulher dócil e respeitável. Como pôde te fazer assim? Olívia sorriu duvidosamente. - Não cheguei a conhecê-la. Mas talvez venha da parte de sua família. Pense em Portia. Seu pai era seu irmão. - Não havia me ocorrido nunca - Disse sacudindo a cabeça - Portia e Phoebe nos deram uma surpresa: deveria ter ficado preparado para ti. - Nem sequer eu estava preparada para isto - Disse Olívia - Chegou quando 278

menos o esperava. Cato entendia muito bem a incômoda maneira em que às vezes chega o amor. - Há coisas que deveria falar com seu... com seu... - Com meu pirata - Ajudou Olívia - A Anthony não se interessa por dotes nem nada do estilo. -Então é digno de elogio - Disse Cato secamente - Deve ser alguém muito estranho se não tiver em conta tais coisas. - Sim, é um homem estranho, e pode me manter. - Sim, graças aos bens que obtém de forma ilegal, suponho - Disse estas palavras novamente em um tom irritado - Por Deus, Olívia, tem que haver uma maneira de convencê-lo que leve uma vida decente, dentro da legalidade. - Não é como os outros - Disse Olívia - Se o fosse, eu não o amaria. E se tratasse de lhe mudar, ele não poderia me querer. Cato lançou um suspiro cheio de frustração. Ficou de pé com o cenho franzido um instante, ainda com a mão de Olívia na sua, e disse: - Não penso deixar que minha filha dependa dos caprichos de nenhum homem, nem das atitudes de sua sorte. Penso criar um fundo para ti. - Não faz necessário, mas o agradeço por isso - Disse Olívia. - O rei voltará logo para Londres. Darei uma direção na cidade para que possa me mandar notícias. Cato então afastou seus braços de Olívia e se dirigiu a sua mesa. - Necessitarei notícias tuas frequentemente - Disse escrevendo depressa sobre um pergaminho. - Escreverei sempre que puder. - E quando seu pirata há libertar por alguns dias... - E disse levantando uma sobrancelha ao lhe estender a folha. - A vida de pirata é incerta - Disse a moça pegando o papel. - Sim, imagino - Adicionou seu pai voltando a suspirar - De verdade não há uma maneira de...? - Não - Respondeu simplesmente. - E não pensa regularizar está união? - Perguntou dirigindo seu olhar ao dedo sem anéis. Olívia sacudiu a cabeça. - Por Deus! Murmurou Cato. - Pelo menos terá seu próprio dinheiro se vier o pior. - Isso não ocorrerá - Disse Olívia segura de si mesma - Deve confiar em Anthony. Como eu. 279

- Eu não estou apaixonado por ele - Observou seu pai com aridez - E você é minha filha. Olívia não encontrou nenhuma resposta e ao cabo de um segundo Cato continuou: - Vá ver Phoebe. E não nos deixe sem notícias por muito tempo. Então a atraiu para si e a beijou na testa. - E o que vai fazer com seus livros? Para onde vamos mandar isso? Os olhos de Olívia brilharam. - De verdade, posso ficar com eles? - Querida filha, são teus. Não há ninguém nesta casa que vá encontrar utilidade alguma em Platão, nem em Lívio nem em Ovídio nem em nenhum deles. - Então pedirei a Mike que venha amanhã com uma carroça e os recolha Disse com alegria e logo levantou o rosto para beijar seu pai - Eu te amo. - Eu também a amo. Escolheste a esse homem, ame-o e seja feliz. As lágrimas que alagaram os olhos de Olívia refletiram as de seu pai ao tomar a mão. Em seguida Cato deu meia volta secando as lágrimas. Chorando desconsoladamente, Olívia foi à busca de Phoebe. “Por que sempre tem que se escolher quando se trata da felicidade? Por que não se pode ter perto a todas as pessoas às quais se ama?”, pensou Olívia com tristeza, abrindo a porta do salão. O grito de alegria de Phoebe foi o bastante forte para ressuscitar a um morto. Uma hora mais tarde, Olívia caminhava nas pontas dos pés pela areia para a rocha em que esperava sentado Anthony, desenhando de costas para o penhasco. Estava concentrado e a seu redor, impulsionadas pela brisa marinha, planavam docemente numerosas folhas com desenhos que tinha descartado. Devia ter estado desenhando desde que Olívia partiu. A moça se deteve na areia e o olhou, desfrutando de sua visão, sentindo que, o olhando, quase lhe roubava algo, tão inconsciente era ele de sua presença. Diminuiria alguma vez a intensidade de seu amor? Às vezes o sentia tão agudamente que estava tão próximo à dor quanto ao gozo. - Se aproxime - Disse ele suavemente sem virar-se nem levantar a vista - Quero ver algo. - Como soube que estava aqui? - Sempre sei quando se encontra por perto - Disse, e no momento em que Olívia se aproximou ergueu o olhar - Estava chorando. - Sim. Muito. - Se ajoelhe - Pediu-lhe apontando a areia a seus pés.

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Olívia se ajoelhou e ele se inclinou para frente para lhe tocar a cova em sua garganta. - Isto é o que não consegui captar. Esta pequena parte que se sobressai de sua clavícula. Anthony voltou a olhar seu desenho e ela recolheu as folhas pulverizadas pela areia. Todos os desenhos eram ela. De seu rosto com diferentes expressões. Olívia ficou ajoelhada junto a ele, esperando que terminasse. - Sente-se infeliz ? - Perguntou Anthony. - Um pouco triste, mas estou muito feliz. Meu pai compreendeu meus motivos. Não lhe agrada, mas o aceita. Quer um dote? - As amantes não vêm com dotes. - Não. Creio que não - Disse ela inclinando-se para frente e apoiando seus antebraços no joelho de Anthony – Beije-me. - Tudo há seu tempo. Olívia sorriu e se inclinou para lhe acariciar os lábios com a ponta da língua. - Não estou de humor para fazer um papel secundário de mim mesma. E começou a lhe beijar no rosto, eram breves beijos carinhosos nas sobrancelhas, nas pálpebras, nas bochechas, no queixo... Os lápis e as folhas caíram sobre a areia quando a tomou entre seus joelhos. - Agora só pertence a mim - Disse Anthony com tanto convencimento que um arrepio percorreu a espinha dorsal de Olívia. - Em corpo e em alma, somente minha. - Igual a você me pertence - Respondeu a moça, afastando um pouco o rosto para olhá-lo no mais profundo dos olhos. - Somos escravos, você e eu. Um do outro. Com a maré alta se formavam pequenas ondulações que cada vez chegavam mais acima da praia, mas eles não se davam conta de nada exceto do vínculo que os unia, da certeza de sua união, selada dentro de seu próprio círculo de êxtase.

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Epílogo Londres, 30 de janeiro de 1649 - Carlos I de Inglaterra, acusado de fazer guerra contra este Parlamento e o povo que representa, será executado por tirania, traição, e por ser um criminoso e inimigo público da boa gente desta terra. Das escadas do patíbulo31 ereto frente ao Banqueting House do palácio de Whitehall, a voz do arauto32 retumbou por cima das cabeças da multidão. Milhares de pessoas haviam se congregado diante das portas do palácio para presenciar o castigo judicial imposto a seu soberano. O rei subiu ao patíbulo. Um terrível e espectador silêncio caiu sobre a grande multidão ali reunida. Algumas pessoas estavam nas pontas dos pés para poder ver por cima das apertadas filas de soldados que guardavam o patíbulo. O rei levava a cabeça descoberta e o cabelo recolhido na nuca. Elevou-lhe a capa a um criado e ele mesmo tirou o lenço do pescoço e afrouxou o laço da camisa. Virou para dirigir-se à multidão, mas sua voz não chegou além das numerosas filas de soldados. Diante da multidão estava Anthony rodeando com seu braço os ombros de Ellen Leyland. Quando o rei se ajoelhou frente a talha, Ellen, convulsionada pelos soluços, escondeu a cabeça no ombro de Anthony. Olívia pôs uma mão sobre o braço de Ellen lhe oferecendo seu silencioso consolo, sem poder afastar o olhar do patíbulo. Olívia observou, aturdida, como o carrasco que levantava a tocha. Fez-se um profundo silêncio. Milhares de pessoas ficaram imóveis, apenas respirando. A tocha caiu. No mesmo instante, a multidão proferiu um grande gemido, um gemido coletivo de horror e pena. Olívia viu seu pai e Rufus, quietos, de pé, com a cabeça descoberta aos pés do patíbulo. Seus nomes não se encontravam entre as cinquenta e nove assinaturas da ordem de execução. Mas lá estavam, com os rostos imperturbáveis, testemunhas parlamentares da morte de Carlos I de Inglaterra. - Terminou? - Perguntou Ellen em um sussurro, incapaz de levantar a vista. - Sim, acabou - Respondeu Anthony em voz baixa. 31

Palanque ou estrado montado em local aberto para sobre ele executar condenados. Forca, esp. quando montada num palanque ou estrado 32

Oficial das monarquias medievais encarregado de missões secretas, de proclamações solenes, do anúncio de guerra ou paz e de informar os principais sucessos nas batalhas

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Anthony seguiu o olhar de Olívia até onde se encontravam lorde Granville e lorde Rothbury, imóveis e com uma expressão séria no rosto, e a rodeou os ombros com o braço que tinha livre. Olívia se reclinou nele um momento. Tudo havia terminado. Fechava-se o círculo o qual começou um dia de verão por volta de oito anos. Oito anos de guerra. Oito anos de derramamento de sangue. O que havia começado com uma execução havia terminado com outra. Ainda ressonavam em sua cabeça os persistentes e ensurdecedores gemidos da multidão daquela tarde de maio de 1641, quando cortaram a cabeça ao conde de Stratfford em Tower Hill. Desta vez não havia gritos de triunfo, só um silêncio sumido em uma profunda dor. “E o que proporcionaria o futuro?”, perguntou-se. Olhou Anthony. Acontecesse o que acontecesse na Inglaterra a partir de agora, seu futuro e o do Anthony estava indissoluvelmente ligado pelo laço do amor. Portia e Rufus, Cato e Phoebe, ela mesma e Anthony. O amor os unia e só o amor conduziria as rédeas de seus futuros.

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Jane Feather - 03 - A Noiva Inesperada

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