HUMANISMO – EU, TU E PRÁTICA CLÍNICA

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HUMANISMO – EU, TU E PRÁTICA CLÍNICA: UMA LEITURA DE BUBER

• Falar da relação Eu-Tu e da relação Eu-Isso é, inevitavelmente, navegar pela construção cognitiva de Martin Buber. Nasceu em Viena (1878-1965). Embora tenha sofrido a influência de vários pensadores contemporâneos com tendências existencialistas, ele se orientou filosoficamente na temática da mística judaica. • O tema da fé e suas formas era o assunto central que norteava seus pensamentos. Associado a este primeiro, está a forma como ele descreve a experiência e a vivência relacional do ser humano, ou seja, como ficam as bases para estas relações. Para ele, era importante discutir e apontar os diversos tipos de relações existentes entre homens-homens e entre homenscoisas. Ele entende por relacionamento o encontro entre dois seres que dialogam

• A relação sujeito-sujeito, constitui o mundo do “Tu”, e a relação sujeitoobjeto constitui o mundo do “Isso”. O mundo do Tu, pode estar exemplificado na relação Eu-Tu e é configurado com o ser inteiro, ao contrário da relação Eu-Isso. O Eu-Isso envolve a relação entre um ser e uma parte ou elemento do outro, enquanto que o Eu-Tu consiste no relacionamento pleno entre os dois seres, englobando em sua amplitude os sentimentos e ideias de ambos. Para Buber, a autenticidade do homem reside em sua inserção na relação eu-tu e não na relação eu-isso. • A vida verdadeira está no encontro direto e autêntico entre os sujeitos, afinal este encontro capacita-o a tornar-se inteiro. Nesta relação direta não pode se interpor nem pensamentos e nem ideias, mantendo assim a “pureza” entre estes sujeitos. Porém, não significa que seja fácil, pois, muitas vezes, nos relacionamos com o outro despersonalizando-o e retirando deste encontro o que pode acontecer de imprevisto e inusitado.

• No Eu-Isso embora haja uma relação, ou um relacionar-se, o outro é visto e vivenciado como um objeto de manipulação. É negado a ele a chance de ser abordado diretamente como pessoa. Não há permissão de se conectar com a mesma parte da outra pessoa e nem de buscar o aspecto pessoal e especialmente humano desta. O que ocorre é um contatar Eu-Isso congelado, que não flui, e nunca poderá caminhar para o Eu-Tu. • Para entendermos melhor este assunto, vamos pensar nas nossas relações diárias e rotineiras. Uma pessoa trabalha num escritório e todo dia, no mesmo horário, vem uma pessoa da faxina e limpa o local e retira o lixo. Muitas vezes, a pessoa nem percebe este ritual e não há uma interação direta com a pessoa. O máximo que acontece é um bom dia que ocorre de forma automática e mecânica. Não há contato visual, e muito menos uma intenção de troca nesta comunicação. Embora sejam duas pessoas teoricamente se relacionando, segundo os princípios de Buber, a relação que acaba de ocorrer é uma relação eu-isso. Por outro lado, se quando a moça da limpeza chega, há uma interrupção na sua tarefa, uma comunicação sincera e autêntica e até a percepção, por exemplo, de que a pessoa não está com “cara muito boa”. A relação que se estabelece muda, e o que ocorre é uma integração relacional baseada no mundo Eu-Tu. Este outro, representado na moça da limpeza deixa de ocupar um lugar de “objeto” e volta a ocupar o lugar do “sujeito”.

• O Eu está para o Tu, assim como o Tu para o Eu, pois é no olhar do Tu que o Eu se reconhece, e vice-versa. Fazendo um paralelo com a Clínica, podemos dizer que estas são as bases da relação dialógica que se estabelece entre o terapeuta e o cliente, ampliando esta ideia, podemos afirmar que este tema é a base, o processo e o “objetivo” da terapia. Ainda segundo Buber, o homem sente necessidade de criar novos laços e personificar essas relações. Através do tu, o eu se encontra, e na expressão maior de sua identidade, sem a uniformidade, o eu encontra no tu a própria revelação e atualização, buscando seu lugar na sociedade. De fato, o ser humano é uma substância incompleta, e no outro encontra todas as prerrogativas de uma vivência equilibrada. Mas Buber não deixa o relacionamento Eu-Tu permanecer na linha horizontal, mas o envereda pela busca do Tu existencial e divino, que vai por sua vez mostrar ao Eu a sua verdadeira face, a de permanente ralação. As relações Isto são verticais e as relações Tu são horizontais.

• Muitos terapeutas “humanistas” utilizam os termos “Eu-Tu”, “relacionamento EuTu”, “atitude Eu-Tu” como equivalência para a “atitude dialógica” ou “relacionamento dialógico”. Aqui, irei adotar a mesma medida para ficar claro que na clínica este conceito sustenta uma base tão importante que podemos afirmar que o diálogo existencial refere-se ao comportamento que compreende o relacionamento Eu-Tu. O diálogo na clínica inclui o encontro real entre duas pessoas como pessoas, através não só das palavras, mas também dos gestos, sensações, contexto energético, expressão corporal e sons.

• É comum alguns casais ou amigos muito próximos conseguirem saber exatamente o que o outro está sentindo ou pensando apenas com um olhar. A relação Eu-Tu também funciona como elemento primordial para um contato autêntico entre duas pessoas. O contato humano é estabelecido através do relacionamento com a figura de interesse. Este processo de contato mútuo entre duas pessoas ocorre através do processo de união e separação, considerando um ritmo e uma direção deste encontro.

• O relacionamento dialógico é uma forma especializada desse contatar mútuo. Quando há uma atitude de mutualidade, um fluxo livre de energia afetiva ocorre entre elas. Dentro da terapia, os terapeutas se relacionam com uma atitude Eu-Tu e com a esperança de que o Tu mútuo e completo se desenvolva. • Quando esta situação ocorre podemos analisar que mesmo quando as pessoas estão “dispostas a entregar-se” neste encontro o Tu mútuo pode ainda não ter sido desenvolvido. Tais aspectos passam por uma questão de confiança entre estas partes que ainda não é suficiente, ou então, um suporte inadequado que não permite que o Tu entre e não acontece a mutualidade. Esse encontro, então, passa a ser entendido como um Eu-Isso em que o Eu-Tu está latente. Dentro da terapia, quando isto ocorre é necessário reconhecer que é assim e aceitar o limite. Este processo faz parte da adesão ao que ocorre no “entre” da relação dialógica.

• Os terapeutas precisam tomar cuidado quando passam a acreditar que eles próprios detêm o conhecimento supremo e o domínio da sessão terapêutica mais do que os seus clientes. Como por exemplo, quando sabem até que ponto emocional o cliente “precisa” ir, ou que técnica será “inevitável” para ele, assim por diante. • Ou seja, quando os terapeutas vão ao encontro do cliente com a crença de saberem mais que eles, há uma negação do processo de auto regulação do cliente pelo terapeuta. Neste caso, a auto regulação fica subjugada ao conhecimento do terapeuta, o que é totalmente inaceitável para um terapeuta existencialista. Mais ainda, quando isto acontece, não está se tratando do outro como pessoa e o que se estabelece é uma relação Eu-Isso e não uma relação Eu-Tu.

• Segundo Yontef (1993), há cinco características do contatar no relacionamento dialógico Eu-Tu da Clínica (Gestalt): • Inclusão – é necessário incluir-se no mundo do cliente aceitando-o como ele é. Pela prática da inclusão, o terapeuta simultaneamente se relaciona com o cliente e reúne informações sobre ele. Para honrar o mundo fenomenológico do cliente e não desonrá-lo, há uma necessidade de que seja colocado de lado as perspectivas e as crenças do terapeuta.

• • Presença – quando o terapeuta torna-se realmente presente na relação dialógica, ele mostra o seu verdadeiro self. Mostrar sua atenção e respeito ocorre mais pela via da honestidade do que por sua constante delicadeza. É permitido a um terapeuta mostrar suas dúvidas, expressar limites, raiva, aborrecimento, compartilhar percepções, checar hipóteses etc.

• Compromisso com o diálogo – é demandado a um terapeuta, que este, esteja verdadeiramente comprometido com o diálogo, e permita que o que está “entre” controle o encontro. A inclusão e a presença é que permitem este diálogo. Isto significa que o terapeuta se permite ser afetado pelo cliente (inclusão) e, também, permite que o cliente seja afetado por quem o terapeuta é (presença). Cada um precisa expressar seu mundo interior, mas também estar receptivo ao resultado que ocorre no “entre” da relação, inclusive o seu controle. Para o psicoterapeuta aderir a um compromisso de objetivar o diálogo e o processo, exige uma fé no valor inerente de cada pessoa e em sua capacidade de se autorregular organismicamente. Entrar em contato sem superproteger, negligenciar ou controlar exige ter como valor ou acreditar em autodeterminação. Fundamentalmente, mostrar o seu self e permitir o que está entre, controlar, são formas de rendição baseadas inicialmente na fé, confiando que ela venha a ser reforçada por dados experienciais. (YONTEF, 1993: 256).

•Não-exploração – A Clínica é não exploratória em sua essência. O terapeuta considera cada pessoa como uma finalidade em si mesma. Algumas formas de exploração podem ser discutidas com a tentativa de eliminar uma relação manipulativa e horizontal que pode ocorrer. 1) A pessoa pode ser tratada como meio para um fim. Por exemplo, a pessoa pode ser tratada como um objeto a ser salvo, transformando-se num meio para satisfazer o ego do terapeuta. •A relação que se estabelece é Eu-Isso. 2) Desigualdade de linguagem (verticalidade). A relação Eu-Tu é horizontal e não abusiva, marcado pelo diálogo e elo trabalho conjunto, como iguais. O encontro é que tem o poder de curar, e não o terapeuta. Através dele, é compartilhados os selves interiores. O relacionamento horizontal estrutura-se na crença de que cada pessoa é responsável por si mesma. 3) O terapeuta não está realizando o seu trabalho de forma adequada. Segundo YONTEF, (1993: 260) a boa psicoterapia exige competência técnica e bom relacionamento.

• O terapeuta deverá incluir um clima propício ao diálogo, ser um guia para a experiência fenomenológica e obter uma visão holística do cliente. Além, é claro de reconhecer a importância e aplicar na prática todos os pontos acima (inclusão, presença, compromisso com o diálogo, não ser explorador e viver o relacionamento). É importante lembrar que a terapia oferece um desafio dentro dos limites do relacionamento terapêutico. • Quando falo em desafio estou colocando como um risco para o cliente que precisa estar em aware e para o terapeuta que assume a responsabilidade pelo trabalho de crescimento de outra pessoa. 4) Desatenção para com os limites apropriados. O diálogo e o trabalho de awareness exigem discrição por parte do terapeuta, para não se tornarem abusivas, em vez de criativa e liberdadora. O terapeuta é responsável pela manutenção de uma atmosfera condutora do Eu-Tu por ser especialista nas exigências técnicas do diálogo e do trabalho de

• Bem-estar do consumidor – é importante que o terapeuta evite relacionamentos duplos com o cliente, assim como envolvimentos pessoais e/ou sexuais. Também é importante que sejam evitados relacionamentos em que possam diminuir o seu julgamento profissional ou aumentar o risco de exploração dos clientes. • Vivendo o relacionamento – contato e relacionar-se é vida e não falar sobre a vida. Por isso, os Gestalt-terapeutas concentram-se mais na experiência do que no conceito. Mais na forma do que no conteúdo. Mais no como do que no por quê. Só se vive na relação e no agora.
HUMANISMO – EU, TU E PRÁTICA CLÍNICA

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