Gemma Townley Mentirinhas Inocentes

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Mentirinhas Inocentes Gemma Townley

Contracapa: Não faz muito tempo, Natalie Raglan chegou a Londres. Largou o emprego em uma pequena agência de publicidade no interior e seguiu em direção às brilhantes luzes londrinas, para morar no transado bairro de Nottinng Hill, onde planejava ter a vida urbana e chique que sempre desejou. Só que a vida na cidade mostra-se muito menos glamourosa do que ela havia imaginado. Até Cressida Langton, a antiga inquilina do apartamento onde Nat mora, recebe mais telefonemas e correspondências que ela – convites para festas descoladas, para jantares com bonitões. Antes de se dar conta, Natalie passa a se fingir de Cressida. Mas quando conhece Simon Rutherford, executivo de um banco de investimentos, ela nota que suas mentirinhas inocentes simplesmente saíram de controle. Abas: O que é uma mentirinha inocente? Tudo bem, a mentira de que estamos falando não é assim tão pequena... digamos que é mais ou menos uma extravagância! As coisas não acontecem exatamente como Natlie Raglan tinha imaginado ao largar o emprego em Bath, dar fim ao namoro com um cara sem futuro e se mudar para Londres. Depois de ter tomado a atitude corajosa de morar na cosmopolita capital inglesa, a jovem tímida do interior descobre que a vida glamourosa ainda está bem longe de seu alcance. Até Cressida Langtonk, a antiga moradora de seu novo - e minúsculo - apartamento, continua recebendo mais telefonemas e cartas do que Nat. Pensando bem, a vida da ex-inquilina parece um tanto atraente - ainda mais quando chega para Cressida o convite de uma festa no descolado e exclusivo clube Soho House. Antes de se dar conta, Nat já abru a correspondência da ex-moradora... e se apoderou da vida dela. Logo, logo, Nat começa a sair com Simon Rutheford (um lindo executivo de banco de investimentos), faz sessões de Reiki, veste roupas maravilhosas e vai para a balada com o grupo seleto do Soho House. Mas a melhor parte é Simon. Ele é tudo que Nat sempre quis. O problema é ele acreditar que ela é outra pessoa. Mas quando sua vida e suas mentiras começam a fugir do controle, Nat e suas mentiras começam a fugir do controle, Nat não consegue deixar de imaginar o que pode acontecer se seu disfarce for descoberto. "Natalie Raglan: mentirosa e impostora!"... ou será possível evitar a desonra simplesmente suas boas intenções?

Para meus pais, com amor.

AGRADECIMENTOS Um enorme obrigada a minha agente, Dorie Simmonds, e a minha editora, Allison Dickens, pela inspiração, o apoio e as idéias maravilhosas. Obrigada a Maddy e Mark por lerem (e ouvirem) e por dizerem todas as coisas certas. E obrigada às ótimas lojas de Notting Hill, nas quais tive de passar tanto tempo, em função de pesquisa...

Capítulo 1 Deixe-me fazer uma pergunta. É uma pergunta teórica, por favor, preste atenção. Você abriria a correspondência de outra pessoa? Não? Claro que não, eu já sabia a resposta.

Certo, mas suponhamos que houvesse uma carta especial. Uma carta com aparência chamativa de verdade, em um envelope cor de creme bem grosso, endereçada à mão, sem o endereço do remetente. E suponhamos que a carta tenha sido enviada a você. Mais ou menos por engano. E que você não tivesse como entregar para a pessoa a quem se destinava. Aidna não sentiu a tentação? Muito bem. Bom, digamos também que a pessoa para quem a carta estava endereçada fosse sócia de um dos mais exclusivos clubes privados de Londres e tivesse uma vida social fabulosa. Isso tudo enquanto você está realmente entediada, depois de ter acabado de se mudar para uma cidade nova, onde sua vida ainda não tinha exatamente deslanchado. E suponha que você tivesse de ficar olhando para aquela carta, dia após dia, em cima do consolo da lareira. Imagine, se puder me fazer esse favor, que essa pessoa tivesse uma pilha de correspondência se acumulando em seu apartamento e que você estivesse cuidando daquilo tudo para ela, apesar de ser altamente duvidoso que algum dia ela retornaria para recolher as cartas. E digamos ainda que a pessoa que deveria receber a tal carta tivesse se mudado de seu apartamento já fazia mais de um mês, mas continuava recebendo mais telefonemas do que você. Agora, será que você sentiria a tentação? Só um pouquinho? Não? Não, é claro que não. Eu também não. Bum. Bum. Huh, huh, yeah. O teto balança, e isso sugere que Alistair, o sujeito que mora no andar acima de mim, está dando mais uma festa. Durante a última hora, fiquei tentando ler Feira das Vaidades (o livro preferido de minha mãe), mas cada vez que chego ao fim de um parágrafo, percebo que não absorvi nada e preciso voltar para começar tudo de novo. O que é uma pena, porque esse livro é ótimo, e eu quero saber o que acontece a seguir. Até agora, a alpinista social Becky Sharp, uma moça esperta e maldosa, está manipulando todo mundo a seu redor, e parece que tudo é movido a dinheiro e virtude: quanto mais uma personagem tem de qualquer uma dessas coisas, melhor sua posição na sociedade, apesar de dinheiro sem virtude ser preferível a virtude sem dinheiro. Acho que algumas coisas nunca mudam. Tento ler de novo, mas não adianta: Becky Sharp não pode competir por minha atenção quando o hip-hop ecoa pela minha cabeça. Talvez uma revista seja a melhor idéia. Tentando ignorar a música alta e as risadas que vêm do apartamento de Alistair, pego um exemplar de Elle e começo a ler, bem feliz, um artigo a respeito de limar os excessos. "Limpe seu guarda-roupa e crie uma nova você!", diz. Bom, eis aí uma idéia. Essa seria uma maneira construtiva de passar mais ou menos uma hora. Só que não era bem assim que eu imaginava passar uma noite de sábado em Londres quando resolvi me mudar para cá. Eu me senti delirante de tanta animação quando entreguei minha carta de demissão há um mês, dizendo a meu chefe que me mudaria para Londres e que ele não podia fazer nada a respeito. Eu me senti muito bem de entrar na sala dele com passos firmes e um sorrisinho se espalhando por meu rosto. Quase fiquei esperando ouvir aplausos e uma trilha sonora de filme quando disse a ele (ou quem sabe Richard Gere pudesse entrar ali e me carregar para fora da sala). Sabe, eu não sou o tipo de pessoa que toma uma atitude, bate o pau na mesa e manda ver. Sempre fui boazinha, direta

e previsível. Ninguém achou que isso poderia acontecer (muito menos eu). Mas às vezes é engraçado como a vida faz a gente mudar, você não acha? As coisas não estavam muito bem lá em Bath, onde eu trabalhava e morava com meus pais, e quando eu comentei com minha mãe que estava pensando em me mudar para Londres, ela ficou tão animada que eu meio que precisei levar a idéia a cabo, apesar de não ter dito aquilo a sério mesmo. Mas minha mãe disse que a gente só tem uma chance de viver; então é preciso aproveitar a todas as oportunidades. Assim, acabei deixando para trás meus amigos, minha família, meu trabalho... De certo modo, eu achava que devia à minha mãe experimentar. Ela sempre quis se mudar para Londres e viver a vida da “alta sociedade”, como ela diz, desde que era menininha. Mas nunca pôde fazer isso: casou, teve filhos e, antes que se desse conta, perdeu a chance dela. E como meu pai detesta estar em qualquer lugar de onde não dá para enxergar um campo, ela nem pode visitar Londres com muita freqüência. Eu, por outro lado, sei exatamente do que meu pai está falando: as cidades grandes podem ser assustadoras. Mas, bom, o negócio é que agora eu estou aqui. E não posso ficar sem fazer nada, só ouvindo a música de uma festa em que eu não estou. Preciso fazer as coisas acontecerem. Minha mãe ficaria totalmente decepcionada se soubesse que eu passei um mês sem sair à noite. Preciso pelo menos tentar fazer com que ela aproveite um pouquinho da vida em Londres por intermédio de mim. E eu realmente me senti bem por abandonar meu emprego na Shannon’s, a agência de publicidade e marketing em que eu trabalhava, por saber que não ficaria mais no pub na sexta à noite reclamando do novo Diretor de Marca que chamava todo mundo de “querida”, em um tom condescendente e irritante de verdade. Chega de ter de vestir saia curta toda vez que fazíamos uma apresentação. E chega de ficar me perguntando se um emprego em Bath, de que eu nem gostava muito, era a melhor coisa que eu podia esperar. Não, eu ia assumir o controle da minha vida. Ia sair da região oeste do país e da atitude super-desencanada-masna-verdade-bem-limitada-se-você-olhar-um-pouquinho-além-da-superfície de lá. E eu estava no topo do mundo. Talvez eu devesse ter resolvido mais alguns detalhes práticos antes de simplesmente ter me mudado para cá, mas me deixei levar um pouco pelo calor do momento e pela idéia romântica de chegar a uma cidade grande sem nada além de uma mala. Eu era a heroína da minha própria historinha. Eu não ia me contentar com “não era bem isso que eu queria”. E eu iria provar para minha mãe que eu era capaz: ela só tem uma filha, então é meu dever deixá-la orgulhosa. Claro que isso significa que eu não tenho exatamente um emprego neste momento; eu tenho um serviço, só que não é bem o que eu esperava. Mas trabalhar em uma loja não é assim tão ruim. E eu tenho lido o jornal The Guardian, à procura de vagas adequadas em publicidade. Pelo menos é minha intenção. Só preciso dar um jeito na vozinha dentro da minha cabeça que não pára de me lembrar de que eu nunca quis muito trabalhar em publicidade, para começo de conversa. Examino o artigo com mais atenção. O guarda-roupa é uma janela para a alma, parece. Se o seu não está todo arrumadinho, o autor escreve, como você pode esperar que a sua vida esteja? Hummm. Espero que não seja verdade. Meu guarda-roupa está um pavor. É pequeno, está abarrotado e cheio de cabides de arame horrorosos. Quando entro no quarto, de repente me dou conta de que tirar tudo dali e começar de novo talvez não seja má idéia. Realmente, posso fazer uma limpa ali: vida nov, guarda-roupa novo. E uma vez que estiver tudo resolvido, talvez o restante da minha ida também entre um pouco mais nos eixos.

Só que... fico olhando para o guarda-roupa, imaginando por onde começar. Talvez não seja uma idéia assim tão boa, no fim das contas. Não tenho dinheiro para comprar roupas novas, e de que adianta se desfazer de tudo se você não vai poder sair logo em seguida para comprar roupas novas que reduzem sua cintura e alongam suas pernas como que por milagre? Depois de hesitar durante alguns instantes, volto para o sofá. Não estou com pressa: este provavelmente não é mesmo o melhor momento para arrumar meu guarda-roupa. É sábado á noite, pelo amor de Deus. Eu devia estar fazendo algo divertido. Bum bum, huh huh huh, uh huh, huh, yeah. Largo a revista: a música está alta demais, e não tem como eu me concentrar. Talvez eu devesse cozinhar alguma coisa. Eu podia tentar preparar alguma receita nova ótima ou algo assim. Sempre digo que não tenho tempo para cozinhar da maneira adequada, e esta é a minha chance. Tendo dito isso, minha cozinha não é exatamente o local mais fácil onde se cozinhar. Eu digo cozinha, mas o que quero dizer na verdade é uma pequena área emendada na sala que tem uma pia, uma geladeira e um fogão. Daí tem uma mesinha entre a “área” da cozinha e a “área” da sala e... bom, é só isso, para falar a verdade. Não tem espaço para armário: precisei guardar as caixas de cereal nas estantes de livro porque não há nenhum outro lugar para colocar. Esse é o problema de Londres. A gente vê o anúncio de um apartamento na vitrine de uma imobiliária (“Apartamento moderno em Ldbroke Grove, um quarto, perfeito para receber os amigos”), e você fica achando que vai deparar com um lugar igual à casa da Monica de Friends. Daí, você chega lá e vê que o “perfeito para receber os amigos” se traduz por “cozinha fica na sala, então é só dar um passo”. Acho que eu podia fazer mais por este lugar: está um pouco vazio, eu sei. Mas o negócio é que eu realmente não tenho nada para “fazer mais”. Eu vim de Bath de trem, e mal consegui trazer minhas roupas, imagine só livros e quadros. E, de qualquer maneira, eu não quis trazer toda a minha bagagem (nem física nem metafórica). Mudar par uma cidade nova é começar vida nova, e trazer lembranças de Bath só serviria para abalar o objetivo. Meus móveis velhos não passam disto: velhos. Fazem parte da minha velha vida com Pete. Peter é meu namorado. Ou melhor, meu ex-namorado. Ele é parte da razão por que eu me mudei para cá. Como eu disse, não estou pronta para me contentar com “não é exatamente o que eu queria”. Mesmo assim, isso não é desculpa para não deixar o lugar mais personalizado, com cara de quem alguém mora aqui: já faz um mês que me mudei, afinal de contas. O problema é que eu nunca consigo decidir que tipo de decoração seria “pessoal”. Será que eu escolho moderno e clean com sofás de couro e tapetes felpudos? Pete teria vendido a avó (ou eu, para ser honesta) para ter um apartamento moderno e eleve, completo com sofá de couro, uma enorme TV de plasma e eu daqueles boxes com tijolos de vidro. A certa altura, até abrimos uma poupança juntos, pensando em comprar um lugar. Mas nunca conseguimos economizar muito, sempre havia algo mais importante, como entradas para o campeonato de futebol (ele) e sapatos (eu). Talvez nenhum de nós quisesse mesmo ter um apartamento. Não de verdade. Então, bom, tem o visual moderno, mas não tenho certeza se tem a ver comigo. Daí tem a coisa toda do visual pobre-chique que, vamos ser realistas, está bem mais condizente com

meu orçamento, de todo modo. Desde que eu me mudei para cá, as parcas economias que tinha conseguido juntar estão desaparecendo com rapidez. Móveis vintage com certeza dariam certo neste apartamento. Além do mais, é a primeira vez em muito tempo que moro sozinha, e estou muito inclinada a adotar a idéia de fazer tudo com cara de mulherzinha, só porque eu posso. Nada de ficar achando lugar para um PlayStation, ninguém para ficar me dizendo que qualquer coisa florida deveria ficar em casas de velhas senhoras. Eu poderia criar um paraíso fofo, só meu. Mas será que eu sou mesmo uma moça do tipo mulherzinha? Ainda não estou completamente convencida disso. Nunca uso rosa e, quando estava na escola, nunca fui muito daquela coisa toda de usar suéter de caxemira. Eu era mais do tipo que andava com os meninos, sempre a maior bagunceira. Para falar a verdade, só comecei a exibir sinais de vaidade quando entrei na faculdade. A coisa era tão simples que eu não sei por que nunca tinha tentado antes: é só passar uma hora na frente do espelho aplicando maquiagem e penteando o cabelo que os caras começam a prestar muito mais atenção na gente. Também ajuda se você rir das piadas deles, em vez de ficar tirando sarro da cara deles (isso eu aprendi no segundo ano com universitária). Dããã. Quando voltei para casa, já conhecia todos os truques do negócio. E foi então que Pete finalmente começou a reparar em mim. Pela primeira vez na vida, ele veio conversar comigo como se eu fosse uma garota, e não “um dos caras”. Durante praticamente a vida inteira (bom, desde que eu tinha uns 13 anos), tinha sido apaixonada por ele, e ele nunca tinha me considerado nada mais que amiga. E, durante todo aquele tempo, para chamar a atenção dele, eu só precisava passar um pouco de brilho nos lábios e jogar o cabelo de um lado para o outro. Eu teria ficado extremamente louca da vida se não estivesse tão feliz por ele finalmente reparar em mim. Claro que a outra opção de decoração é a coisa toda de indiano/étnico: mesinhas de rata, tapetes vermelhos com formas geométricas e incenso queimando. Mais uma vez, não sei se tem a ver comigo, mas preciso começar de algum lugar, não é mesmo? Há uma loja em Portobello Road que vende um monte de mesinhas e tapetes e nem é muito cara. Suspiro. Tomar decisões importantes assim é demais para mim neste momento. Mesmo assim, com certeza dá para fazer alguma coisa com o que eu já tenho. Olho ao meu redor em busca de inspiração. Há dois livros no braço do sofá. Meu som, que já viu dias melhores, está no chão, rodeado por CDs e fitas. Um espelho torto que o senhorio deixou pendurado e desolado na parede reflete a parede vazia a sua frente, com a tinta rachada e os buracos que sugerem o lugar em que havia quadros pendurados. E daí tem uma pilha de cartas enchendo o consolo da lareira, sendo que nenhuma é para mim. Quando aluguei este lugar com um contrato de seis meses, o senhorio me pediu para guardar qualquer correspondência que chegasse para Cressida, a moradora anterior, “para o caso de ela voltar”. O que na verdade era um tanto desconcertante: parece que este apartamento não é bem meu, só estou cuidando dele enquanto a pessoa que morava aqui não volta. Mas o pior é que ela recebe mais correspondência do que eu. Talvez eu precise pendurar algumas fotografias na parede. Jogar umas mantas em cima do sofá. Daí eu poderia tirar os tapetes e lixar o assoalho. Ou podia comprar um tapete enorme e deixar bem aconchegante... Realmente não sei como as pessoas conseguem tomar decisões sobre coisas como decoração com tanta facilidade. Parece que elas têm um tipo de segurança incrível, de que existe uma maneira certa de fazer as coisas, e é o jeito delas. Veja meus pais, por exemplo. Meu pai gosta de música clássica e não agüenta bares e pubs barulhentos. Ele gosta de sair de férias, mas só se puder ir de carro (detesta avião). Gosta de comida inglesa tradicional e

lê mais biografias do que livros de ficção. Minha mãe, por outro lado, gosta de comida italiana, de restaurantes glamourosos, de móveis e panos estampados, de férias na Europa continental e de filmes com Michael Caine. Eu sei quando eles vão gostar ou não de algo, porque são bem diretos, bem decididos. Minha mãe sempre diz: "Eu conheço meu gosto e gosto do que conheço", e é verdade, ela sabe. Mas eu sempre fico com vontade de perguntar para ela: "Como? Como é que você sabe? Como você pode ter tanta certeza?" Sabe, eu também gosto de comida italiana, mas gosto de chinesa, japonesa, inglesa e francesa. Já fui vegetariana e vegan, e também já fiz a dieta do dr. Atkins (com muito e muito bife). Gosto de comédias românticas com Meg Ryan, mas também gosto de filmes franceses e de terror. Gosto de sair para dançar, mas também gosto de ficar em casa. Gosto de refeições aconchegantes a dois e gosto de festas barulhentas; às vezes me visto dos pés à cabeça de bege e marrom neutro, outras vezes saio mais colorida do que o arco-íris. E nunca consigo resolver do que gosto mais. E daí tem Pete. Quer dizer, eu achei que gostasse dele. Achei que o amasse. Mas nunca tive muita certeza. Ou será que eu nunca tive certeza se ele me amava? Então, bom, voltemos à cozinha. Vejamos... abro a porta da geladeira. Dois ovos, um pouco de salsão (parece que é muito bom para desintoxicar; bem que eu gostaria que o gosto não fosse tão horrível) e um pão. Eu só tenho isso mesmo? Abro o compartimento do congelador e vejo a pizza que comprei do Fresh'n' Wild outro dia. Minha cabeça imediatamente se enche de argumentos contra a idéia de "preparar uma receita refinada": cozinhar para uma pessoa só é perda de tempo; não tenho nada para usar; não vou me dar o trabalho... Meu Deus, que loucura. Estou em casa no sábado à noite. Não tem nada de mais, certo? Então, por que estou tão irritada? E por que estou com o estômago todo embrulhado por causa da música de Alistair? Quer dizer, claro que está alta, mas estamos em Notting Hill. As pessoas fazem festas, não é mesmo? Qual é o problema disso? Saio da cozinha com determinação, esforçando-me ao máximo para ignorar a vozinha dentro da minha cabeça que não vai embora, repetindo que eu sou uma fracassada por estar sozinha em casa em um sábado à noite. Que se a minha mãe estivesse aqui agora (e sabe como é, se ela fosse vinte anos mais nova), teria arrumado um jeito de ser convidada para a festa em vez de ficar aqui sozinha, só escutando. Que eu nunca vou realmente conseguir vencer aqui e, assim que meu dinheiro acabar, vou voltar para casa com o rabo entre as pernas. Uh huh, boom boom, huh huh, yeah. Alistair e eu nos cumprimentamos de vez em quando. Mas é só isso. E também não é exatamente verdade: sou sempre eu que digo oi, Alistar simplesmente meio que retribui com um sorriso. Mas ele é muito sexy, Não é bem meu tipo... quer dizer, é muito moderninho, para começo de conversa. Usa aqueles óculos de armação escura, ao estilo de Buddy Holly, e está sempre de jeans escuro, parece até uniforme; acho que é designer ou artista, porque está sempre carregando um portfólio. Ele é tão "Londres55... nunca se veria alguém assim em Bath. E isso é parte do problema: eu me sinto superintimi-por tudo o que tem a ver com Londres. Todas as outras pessoas parecem simplesmente conviver bem com isso, em vez de ficarem emocionadas com uma coisa boba como o metrô. Acho que eu vou acabar me acostumando, mas é preciso entender que fui criada em Gastle Goomble, um vilarejo minúsculo perto de Bath, e só ouvia minha mãe contando histórias sobre as luzes fortes, o perigo e as emoções

da cidade. Quando eu era adolescente, achava que a vida começava e terminava em Londres, e que estar presa à região oeste do país era a pior coisa que poderia ter acontecido comigo. As pessoas falam de "comunidade" como se fosse a melhor coisa do mundo, e é, é mesmo. Mas será que você consegue se imaginar morando em um lugar em que todo mundo sabe o livro que você está lendo; onde sua vizinha lhe dá parabéns no dia em que você fica menstruada pela primeira vez; onde todo mundo de sua rua sabe a nota que você tira em cada prova da escola? Pode acreditar, a coisa fica sufocante. Quando fiquei um pouco mais velha, pelo menos podia ir até Bath, a cidade mais próxima. Mas isso não é lá muito emocionante, não é mesmo? O lugar é lotado de turistas na maior parte, e todo mundo acha "lindinho". Bom, estou cansada de lindeza. Quero tosqueira, diversão e loucura. Também existe o problema de que Bath se transforma em uma cidade muito pequena mesmo depois que você termina com alguém. Principalmente quando a razão da separação é o fato de você saber que ele a estava traindo, e agora você não consegue ir a nenhum restaurante ou bar sem ficar olhando para os lados, tentando disfarçar, para ver se ele não está lá com a outra pessoa. Examino meus CDs e fitas: tem de tudo, de Stan Getz a White Stripes. Hummm. Bjork... Faz um tempinho que eu não escuto... mas provavelmente é intenso demais. Air...? Não, suave demais. Este é o problema dos álbuns, eu acho: você precisa assumir compromisso com um estado de espírito específico. Eu sei que isso não é nada cool, mas adoro compilações, em segredo. Adoro a variedade contida em único disco, e isso significa que não preciso me decidir por escutar um ou outro artista. Meus dedos hesitam por cima de uma fita antiga que eu gravei quando estava na escola e eu a tiro do meio das outras. Quando estava na escola, eu passava a vida gravando fitas para meus amigos; esse era provavelmente meu método de comunicação preferido. A mistura certa de músicas é capaz de dizer: "Você fica melhor sem ele" ou "Você é uma amiga maravilhosa, e sinto muito por ter estragado sua blusa preferida" muito melhor do que palavras. Essa fita é uma compilação típica de sua época: um par de canções chorosas como "Unbreak My Heart", algumas faixas das Breeders e de PJ Harvey que capturavam minha angústia adolescente perfeitamente, algumas faixas de dance e uma ou outra música retro de alguma banda obscura que incluí para mostrar como eu era cool. Os CDs podem utilizar tecnologia maravilhosa, mas o lado negativo é que ninguém mais perde tempo fazendo fitas de compilações. Fazer o download de uma faixa em segundos simplesmente não é a mesma coisa que ter de gravar tudo manualmente, ouvir cada música e apertar o botão do stop no momento exato, no final de cada música. Talvez as fitas não sejam assim tão ruins, apesar de o gravador mastigá-las sempre que pode. Feliz por ter tomado uma decisão com tanta rapidez, coloco a fita para tocar e me deito no sofá, determinada a relaxar e aproveitar a noite ao máximo. Este aqui é só um percalço de curto prazo, lembro a mim mesma. Quanto tempo faz que estou em Londres? Um mês. Só um pouco mais de quatro semanas. Não tenho como achar que já teria vida social. Essas coisas demoram para ser cultivadas. Morei no meu vilarejo durante 26 anos, então não é surpresa o fato de nunca ter passado uma noite em casa. Pego-me pensando com saudade no apartamentinho que eu dividia com Pete em Bath, com uma lareira sempre acesa que me aquecia enquanto ele estava fora, fazendo sei lá o quê (ou melhor, fazendo sei lá quem). Mas, lembro a mim mesma, eu não era feliz de verdade. Vivia rodeada de amigos e familiares, mas sempre me sentia sozinha. E é claro que eu era convidada para todas as

festas, mas eram sempre as mesmas pessoas falando sobre os mesmos velhos assuntos. Todo mundo conhecia todo mundo: diabos, a certa altura, todo mundo já tinha ficado com todo mundo. Não havia emoção nem intriga, e ninguém que não me conhecesse como "Nate-Pete": não tinha como eu ser anônima, como reconstruir minha identidade. Ao passo que aqui... bom, com certeza não há problema nenhum no quesito do anonimato. E se a balança está pendendo um pouco para um lado, tenho certeza de que logo recuperará o equilíbrio. Au mento o som mais um pouco. São os Indians cantando: "liife ain't no bed of roses" [a vida não é nenhum rnar de rosas]. Nem me lembre disso, penso com sinceridade. Mesmo assim, olhe para o lado positivo. Eu tomei a iniciativa. Não moro mais em Bath, a cidade de Jane /Vusten, das ruínas antigas, da água de "spa" com gosto esquisito e dos campos infindáveis. Não sou mais Natalie de Bath: sou Natalie de Notting Hill. O telefone toca e eu salto do sofá para atender. Só umas poucas pessoas podem estar me ligando. Minha mãe (mas eu falei com ela ontem à noite, e ela não costuma ligar dois dias seguidos); Ghloe, minha melhor amiga (mas também é improvável, ela deve ter saído para se divertir); ou... Pete. Desde que eu me mudei para cá, acho que temos nos falado uma vez por semana, e nossos telefonemas são sempre praticamente idênticos. Começamos contando como estamos ótimos e maravilhosos; daí falamos sobre o trabalho, a família (qualquer assunto neutro que possamos encontrar) e daí ele sempre diz: 'Ainda não consigo entender por que você saiu de casa. Por que você não volta? Agente se divertia tanto...". E eu respondo algo como: "Não, você costumava se divertir e, na maior parte do tempo, nem estava comigo, aliás", e daí ele começa a dizer que eu sou paranóica, e eu fico na defensiva e o acuso de ir para cama com outras, e antes de nos darmos conta, já estamos discutindo a mesma coisa que passamos três anos inteiros discutindo repetidamente. Depois de um tempo, eu normalmente começo a chorar. Eu o superei; mas é que eu fico aborrecida quando penso no tempo que desperdicei com ele. Pensando que ele se sentia do mesmo jeito que eu. - Alô? — digo, cheia de esperança. Então, nós discutimos. Isso não quer dizer que eu não deseje ter notícias dele. - Alô. Estou falando com Cressida Langton? — diz uma mulher que parece refinada. Meu coração se aperta. Certo, a outra possibilidade é que o telefonema nem seja para mim. O que é bem deprimente, levando em conta que eu sou a única pessoa que mora aqui. Agora eu bem que queria ter trocado de número, mas isso custa 40 libras e na hora eu não achei que seria problema ficar com o telefone antigo quando eu me mudei. Só que é. Isso sem mencionar o fato irritante de que a desgraçada da Cressida recebe mais telefonemas do que eu, e ela nem mora mais aqui. Mas vai ver que é melhor assim. Se fosse Pete, eu poderia ter confessado que estou me sentindo meio para baixo. E isso teria sido um desastre. - Não — digo, tentando manter a decepção longe da minha voz. — Ela se mudou há um mês. - Ah. Você tem o telefone novo dela? - Não, sinto muito _ digo pela décima vez nesta semana. Será que Cressida não se lembrou de dizer aos amigos qual é seu novo telefone? - Bom, é uma pena _ a mulher diz, parecendo muito irritada. - Aqui é do Nobu. Ela reservou uma mesa aqui hoje à noite, e preciso saber se ela vem ou não. - Do Nobu? — esse só é o restaurante mais caro em toda a Londres. Cressida deveria estar lá nesta noite? Uau.

De repente ela subiu muito na minha avaliação. - É — responde a mulher. Certo — digo depois de uma breve pausa. Não acre dito que estou ao telefone com o Nobu! — Bom, sinto muito, mas realmente não posso ajudar. — Não, bom, então está certo. E, com isso, ela desliga. Huh huh, huh huh. Boom, yeah. Fico olhando para o telefone durante alguns segundos, tentando imaginar como seria sair para jantar no Nobu. Cressida provavelmente é uma moça urbana toda glamourosa. Glamourosa e rica. Fico imaginando com quem ela ia jantar. Meus olhos pousam na pilha de cartas endereçadas a Cressida. De repente, elas me parecem bem mais interessantes. Imagino qual é o tipo de correspondência que uma pessoa que come no Nobu recebe. Vou até lá e pego as cartas. A maior parte delas parece bem tediosa. Mas tem um envelope pardo grande que parece meio interessante, e um menorzinho, cor de creme, escrito à mão. Daí tem um catálogo, que dá para ver através do invólucro de plástico transparente. Deixo o restante das cartas onde estão e levo as duas de aparência interessante e o catálogo para o sofá comigo. Acho que posso abrir o catálogo. Quer dizer, é só propaganda, não é mesmo? Não vai ter nada pessoal ali. Quando estou prestes a rasgar o plástico, paro e reviro os olhos por tomar uma atitude tão ridícula. Não dá para acreditar que cheguei ao ponto de realmente pensar em abrir as propagandas que outra pessoa recebe pelo correio para me divertir. Mas, já que cheguei assim tão baixo, eu meio que estou mesmo com vontade de abrir. Acho que, se vou ser patética, então que o faça completamente. Olho em volta sorrateira, como se estivesse preocupada que alguém me visse fazendo isso, puxo o plástico com rapidez e abro o catálogo. Sei que é só um catálogo, mas me sinto um pouco estranha de abrir a correspondência de outra pessoa. Mas reprimo minhas dúvidas e volto a atenção para o catálogo. Se é que isso pode ser chamado de catálogo, quer dizer: de algum modo, parece lindo demais para uma descrição tão simples. Nunca vi um catálogo de reembolso postal assim! Para começar, o papel em que está impresso é reluzente; em segundo lugar, está lotado de coisas interessantíssimas, todas incrivelmente caras (abajures de pedra e vestidos de veludo e outras coisas de que ninguém precisa, mas que são tão lindas que você provavelmente hipotecaria a casa só para tê-las). Claro, se você tivesse o que hipotecar, é claro. Acho que vou guardar isto aqui para minha mãe, é o tipo de coisa que ela adoraria. Imagino minha sala repleta de "objetos" lindos. Será que Cressida fazia encomendas deste catálogo? Quando ela morava aqui, será que esta sala era cheia de mantas e almofadas lindas? Aposto que sim. Ela provavelmente também sempre acendia velas. Se eu fechar um pouco os olhos, posso imaginar cortinas grossas de veludo na janela, almofadas de couro e camurça no chão e uma manta de pele falsa no sofá. Certo, assim que eu guardar um pouco de dinheiro, vou sair para fazer compras. Largo o catálogo e olho para as outras cartas. Agora meu apetite foi atiçado, e estou com vontade de dar mais uma olhadinha na vida de Cressida. Não seria ruim se eu tivesse minha própria pilha de cartas para abrir, mas não tenho nenhuma. Recebi um extrato do banco hoje de manhã (algo que nunca é bom de se ver no início do fim.

de semana) e um cartão-postal dos meus pais há duas semanas: e é tudo, desde que me mudei para cá. Será que as pessoas não escrevem mais cartas? Claro que sim, só que escrevem para Cressida, não para mim. Depois de hesitar durante alguns minutos, pego o envelope marrom grande, devolvo à pilha de cartas com um gesto pomposo, procurando em segredo algum sinal de que seja outra carta de propaganda, para justificar sua abertura. Em vez disso, fico chocada. Tem um selinho discreto no canto que diz "Soho House". Como é que eu não vi isso antes? Será que não é da Soho House? O clube particular que todo mundo que é alguém freqüenta? Aquele que abriu uma filial em Nova York e apareceu logo em Sex and the City? Não me diga que Cressida era sócia! Meu coração começa a bater um pouco mais rápido. Se quiser falar em "alta sociedade", isto aqui tem de ser o que mais se aproxima disso hoje em dia. De repente, Londres não parece assim tão impenetrável, afinal de contas. Eu realmente recebi uma carta do Soho House. Correção: Cressida recebeu uma carta do Soho House. Mas ela não está aqui, não é mesmo? E, além do mais, não faço a menor idéia de onde ela está. Porque, até onde eu sei, ela pode ter se mudado para a Austrália e não vai se importar muito com algumas cartas que ficaram aqui, não é mesmo? Dou uma bela apalpada no envelope: não tem muita coisa ali dentro. Algumas folhas de papel, no máximo. Então, largo mais uma vez. Isso é insuportável. Não posso ficar abrindo a correspondência de outra pessoa assim. Mas, veja bem, estamos falando do Soho House! Quando é que eu vou ter uma oportunidade dessas de novo? Volto-me para a outra carta, que parece igualmente atraente. O envelope é grosso e cor de creme, a caligrafia é elegante, endereçada como se deves com uma caneta-tinteiro. Cressida Langton, Ladbroke Grove, 127, apí° 3, Notting lt Londres W11 Parece bem chique, não é mesmo? E agora é meu en-. Eu moro aqui. De repente, sinto uma onda de animação. Dane-se Pete, e dane-se a festa no andar de cima: não preciso de nenhum dos dois. Fico imaginando como Cressida deve ser. Bonita, provavelmente. Não posso imaginar nenhuma pessoa feia que freqüente o Soho House. Levanto para me olhar no espelho empino a cabeça e ajeito a postura, imaginando que sou ela. — Queriiíida, você está divina — digo para meu reflexo, fingindo ser Catherine Zeta-Jones ou alguém assim. Certo, talvez o sotaque esteja um pouco exagerado (pareço mais a rainha do que Elizabeth Hurley), mas posso dar um jeito nisso. — Estou com pressa, saindo para tomar um drinque no Soho House — digo a um Pete imaginário. — Ah, Alistair, sinto muito; não posso ficar mais... tenho uma reserva no Nobu daqui a uma hora... Enquanto falo, minhas mãos são atraídas de maneira irresistível para as cartas mais uma vez, eu as tomo na mão e começo a me abanar, para completar o quadro. Não faria mal dar só uma olhadinha, não é mesmo? Quer dizer, ninguém nunca vai saber, vai? Tenho certeza de que Cressida nunca vai voltar para pegá-las, então dar uma olhadinha não vai fazer absolutamente diferença alguma. Só que pode ser que ela volte, não pode? E daí, o que eu faço? Não seria exatamente adequado entregá-las já abertas, não é mesmo? Caramba, e elas também parecem tão irresistíveis... Quase como em um reflexo, puxo as mãos para longe das cartas, como se tivessem queimado as pontas dos meus dedos. —Natalie Raglan, que diabos você acha que está fazendo? — digo para mim mesma por entre os dentes e me arranco para fora desses delírios de "Cressida Langton". Essa foi por pouco. Sorrio para meu reflexo enquanto escuto "Tempted by the fruit of

another" [Tentado pelo fruto de outro] saindo do meu som. Não sei se foi bem isso que o Squeeze quis dizer quando fez a canção, mas as palavras têm tudo a ver. Vou resistir à tentação. Essas cartas são correspondência pessoal de outra pessoa, e eu não sou o tipo de gente que vai abri-las. Ponto final. Ligo a TV, mas, antes que possa ter oportunidade de começar a mudar os canais, o telefone toca de novo. —Salva pelo gongo! — grito e estico a mão para pegar o telefone. —Natalie? — pergunta uma voz conhecida. — Você parece meio sem fôlego. Chloe! E, bom, é que acabei de atravessar o apartamento correndo. Ou melhor, mergulhei por cima do sofá. Chloe e eu fomos vizinhas desde mais ou menos os cinco anos e, até eu vir para Londres, fazíamos praticamente tudo juntas. Meu irmão, James, morreu quando eu tinha seis anos, e meus pais demoraram muito tempo para superar a questão, então eu passei uns dois anos mais na casa de Chloe do que na minha. Nós éramos inseparáveis: íamos a todo lugar juntas, líamos os mesmos livros, assistíamos aos mesmos filmes... ...Meu Deus, até nosso primeiro beijo aconteceu na mesma noite. Obviamente, não nos beijamos uma à outra, beijamos meninos. Foi com John e Steve da escola, e nós duas tínhamos 14 anos. Até fizemos questão de ficar a cerca de três metros uma da outra, para o caso de alguma coisa dar errado, e daí acabamos rindo tanto que John e Steve ficaram completamente paranóicos e saíram andando, como se fôssemos uma dupla de retardadas dementes. Fiquei bem aliviada, na verdade: John era péssimo de beijo e, já naquele tempo, eu me preocupava com a possibilidade de Pete ficar sabendo. Não que fosse fazer alguma diferença significativa: até parece que Pete tinha me convidado para sair àquela altura, mas quando eu tive aquela idéia, eu estava me guardando para ele. Mas, bom, desde então, Chloe e eu fizemos praticamente tudo juntas (escola, faculdade, até trabalho: entramos na agência Shannorfs, em Bath, no mesmo dia). Quando saí da faculdade, comecei a atirar para todos os lados para tentar conseguir um emprego: como não sabia o que queria fazer, eu me candidatei a praticamente tudo, enquanto Chloe estava pronta para viver na miséria um tempo, até descobrir o que realmente queria fazer da vida. Mas eu a convenci a mandar um currículo juntamente com o meu para algumas empresas, e acabamos as duas conseguindo um trabalho na Shannon's, uma agência de publicidade. Acontece que Chloe acabou se adaptando ao posto com naturalidade, ao passo que eu nunca senti no fundo do coração que aquilo era para mim. Mas, se eu não tivesse resolvido pedir demissão e me mudar para Londres, ainda estaríamos trabalhando lado a lado. Só que, para ser sincera, desde que cheguei a Londres, tenho evitado os telefonemas de Chloe. Não é que eu não queira falar com ela (claro que quero), mas é que eu queria deixar até ter mais coisas para contar. . Afinal de contas, ela é minha melhor amiga. A última coisa que eu quero é ela ficar achando que eu fico sentada de bobeira toda noite. Quero impressioná-la com histórias fantásticas a respeito do meu maravilhoso turbilhão social: meus dias cheios de glamour e minhas noites cheias de hedonismo. E, também, não posso contar a ela a verdade, porque ela acabaria contando para minha mãe. E não suporto a idéia de os sonhos da minha mãe de se mudar para Londres irem pelo cano pela segunda vez na vida. — Que bom que você finalmente resolveu ficar em casa! — diz Chloe com seu tom alegre de sempre. — Então, conte, como está tudo? Você está feliz em Londres? Faço uma pausa. Tenho vontade de contar a Chloe que ando me sentindo um tanto solitária, um pouco assustada de ter mergulhado na parte funda e não me lembrar muito bem de como se faz para nadar. Eu sempre contei meus problemas para Chloe (e pode acreditar,

foram muitos). Sempre adorávamos passar a noite de sábado assistindo a filmes antigos e discutindo nossa vida amorosa (geralmente desastrosa), e eu sei que ela espera que eu lhe faça confidências como sempre. Mas, por algum motivo, eu não consigo, então murmuro alguma coisa e peço que ela me fale de si em vez disso. Enquanto Chloe vai me contando sobre a semana que passou, penso sobre como ela ficou surpresa quando eu concretizei minha ameaça de me mudar para Londres. Na verdade, eu me surpreendi também. Eu só disse isso para causar efeito em uma noite quando Pete chegou em casa à meia-noite sem explicar por onde tinha andado. Então eu disse a ele que já estava farta daquilo, e que iria largá-lo e me mudaria para Londres. E quando ele me disse para parar de ser ridícula, eu finquei o pé no chão e me recusei a confessar que, na verdade, não tinha planos de me mudar... não a sério. E daí minha mãe ficou sabendo... bom, ela ficou tão animada que eu não tive como dizer que não tinha certeza se tinha falado a sério ou não. Mesmo assim, agora está feito; mas eu bem que gostaria de ter algumas boas histórias para contar para Chloe. Meus olhos são atraídos para as cartas de novo. Acho que eu bem que poderia contar algumas mentirínhas inofensivas, não é mesmo? Sabe como é, só para deixar as coisas um pouco mais animadas. Quer dizer, até parece que Chloe está aqui ou algo assim. Ela nunca vai saber. Olho para outro lado. Caramba, Natalie, dou bronca em mim mesma. Você está mesmo pensando em esconder a verdade de sua melhor amiga? Só porque não quer que todo mundo ache que você é um fracasso? — Natalie? Tudo bem com você? — Chloe sussurra ao telefone. Faz vários minutos que eu não digo nada, o que realmente não é normal no meu caso: geralmente, nós duas falamos tanto que precisamos nos esforçar para inserir uma palavra no meio da frase da outra. — Olha, se as coisas não estão dando certo, você pode me dizer, sabe disso. Não tenha vergonha nenhuma em admitir que você estava errada... Eu me sinto corar. Reconhecer que eu estava errada? Acho que não. Isso significaria decepcionar minha mãe e fazer Pete cantar de galo para cima de mim e, sinceramente, não tem como eu confessar que estou sozinha em um sábado à noite pela quarta vez seguida. E, de todo modo, será que Chloe não se dá conta de onde eu estou? Estou em Notting Hill. Moro no número 127 de Ladbroke Grove. Claro que as coisas estão dando certo. Meus olhos repousam outra vez nas cartas -— Se eu estou bem? — ouço a mim mesma dizer, com a voz levemente esquisita. — Meu Deus, não tinha como eu estar melhor! Faço uma careta por causa do que acabei de dizer e sinto meu rosto esquentar. - É mesmo? É que sua mãe disse que você tinha parecido um pouco para baixo quando ela ligou... que talvez as coisas estivessem um pouco mais difíceis do que você esperava. Quer dizer, Londres é um lugar enorme... Minha mãe? Ai meu Deus, será que eu fui assim tão óbvia? Achei que eu tinha feito um bom trabalho ao dizer-lhe que era exatamente como ela achava que seria, quando me ligou outra noite. Obviamente preciso ensaiar para parecer mais convincente. E que hora melhor para treinar do que o presente? Respiro fundo. — A cidade é enorme e fabulosa! — digo a Chloe, tentando sorrir enquanto falo. — Aliás, você teve sorte de me pegar em casa neste horário. Eu estava de saída. Eu me contorço toda enquanto falo, mas tento convencer a mim mesma de que está tudo bem. Sinto-me um tanto vazia enquanto falo, mas acho que isso não tem muita importância. — Ah, que bom — diz Chloe, parecendo aliviada, e sinto uma pontada de culpa. Ela

realmente se importa comigo, e eu estou aqui inventando histórias ridículas a respeito de ter uma vida social secreta. — Então, aonde você vai? — ela pergunta. Aonde eu vou? — tento, desesperadamente, pensar em algum lugar. E daí me bate. Ou melhor, o cantinho esquerdo de uma das cartas de Cressida atrai meus olhos. — Ah, para falar a verdade, vou ao Soho House — digo, antes que consiga me deter, então faço careta. Não acredito que disse isto. — Não acredito! — Chloe exclama. — Caramba, Natalie... esse é o clube mais legal de Londres. Com quem você vai? Com quem eu vou? Merda... com quem diabos eu poderia estar indo à desgraça do Soho House? — Com... — começo a dizer, então faço uma pausa. Isso é ridículo, preciso dizer a verdade a Chloe. Diga simplesmente: "Não é verdade que eu vou. Eu inventei." Mas sei que não posso fazer isso. — Algumas pessoas...? — digo, hesitante. — Só com algumas pessoas? Caramba, eu bem quegostaria de conhecer gente que vai ao Soho House. Então, como são as coisas... em Londres, quer dizer? Como são as coisas? Como é que eu vou saber? Fico com vontade de dizer que fiquei em casa praticamente toda noite desde que cheguei aqui. A vista da minha janela é maravilhosa e, para ir e voltar do trabalho, eu atravesso a feirinha de Portobello, com todos aqueles bares e restaurantes maravilhosos, mas ainda não entrei em nenhum. Mas não digo. Em vez disso, respiro fundo, cruzo os dedos e falo sobre os bares bacanas de Portobello Road pelos quais passei e nos quais fiquei morrendo de vontade de entrar, usando a imaginação para descrever o interior; sobre todas as roupas maravilhosas vendidas na feirinha, onde dá para comprar sapatos e camisetas de brechó bacanas por 5 libras; sobre a área espanhola no fim de Portobello, bem onde se junta a Golborne Road, onde dá para comprar o melhor azeite de oliva e as melhores tortas de creme do mundo. — Daí tem o café e rotisseria Tom's, que é o melhor lugar para tomar café-da-manhã, e o Beach Blanket Babylon, que tem os melhores drinques do mundo — descrevo, entusiasmada, sem mencionar que tirei as informações da revista Heat, e não de experiência pessoal. Enquanto falo, vou lembrando a mim mesma de que Londres deveria ser assim. Londres provavelmente é assim para pessoas como Cressida. Espero que Londres venha a ser assim para mim. — É uma maravilha — concluo no final de minha descrição desta minha maravilhosa cidade mítica, em quetudo pode acontecer, e em que nada aconteceu para mimpor enquanto. — É mesmo uma maravilha. — Parece fantástico — Chloe suspira. — Fico feliz. Outro dia mesmo, o Pete estava dizendo que acha que você volta daqui a um mês, olha só como ele não sabe nada. E agora você vai ao Soho House! Todo mundo vai ficar impressionadíssimo. Pete disse isso? Caramba, que sujeito mais arrogante. Bom, vou mostrar a ele. Vou transformar tudo aqui em sucesso. Apesar da culpa que inunda minhas veias, sinto um jorro de animação ao pensar que todo mundo da minha cidade vai ficar achando que estou me divertindo muito. Eu sei que contei algumas mentirinhas inofensivas. Talvez não tão inofensivas assim. Mas pelo menos agora todo inundo vai ficar pensando que minha vida é maravilhosa. Esse é um tipo de consolo para o fato de que a realidade é bem diferente. Mas, bom, por que é que eu não poderia ir ao Soho House? Cressida ia, e ela morava no mesmo apartamento que eu. Tudo é possível. — Então — digo, mudando de assunto antes de me empolgar demais. — E você, o que vai fazer hoje à noite? — Bom, todo mundo está no The George, então devo ir lá perto do horário de fechar. E a

Rebecca Williams vai dar uma festa, então acho que vamos todos para lá mais tarde. — Maravilha... parece ótimo —- consigo dizer, tentando parecer entusiasmada. Rebecca Williams é uma daquelas tipinhas passivo-agressívas com cabelo e unhas perfeitas, e sempre foi uma das principais suspeitas de causadora das noitadas de Pete. — E a loja? — Chloe pergunta, e eu tenho um pequeno sobressalto. — Loja? — eu não contei para ninguém da minha cidade que estou trabalhando em uma loja. Quer dizer, eu trabalhava com publicidade. Estava na fila para uma promoção. Vai ser difícil confessar que agora dobro fileira de suéteres, apesar de trabalhar em uma das lojas mais glamourosas de Notting Hill. Então, eu meio que disfarcei e disse para todo mundo que estava trabalhando em algo parecido com o que fazia antes. Quer dizer, estou trabalhando com moda, não é mesmo? E eu costumava ter alguns clientes de moda na Shannon's. Então é maisou menos a mesma coisa. Não é? — Sabe a sua lojinha? Não me diga que... que você mudou de idéia. Acho que não seria a primeira vez... — Chloe está dando risadinhas. De repente me lembro da noite que passamos bebendo até não poder mais na véspera da minha partida para Londres. Confessei que a minha ambição verdadeira na vida era ter uma lojinha cheia de coisas lindas. Na verdade, quando disse isso a ela, estava pensando em uma loja com sabonetes bacanas e talvez algumas roupas, mas depois de olhar para o catálogo Found de Cressida, elevei um pouco minhas expectativas - Não, não mudei de idéia — respondo, indignada. Chloe sempre caçoa de mim porque eu nunca consigo tomar uma decisão. E isso não é verdade, não mesmo. Não em relação às coisas importantes. Pelo menos, não sempre. —Então, você vai abrir a loja? — Chloe pergunta, toda interessada. — Ah, sei. Até parece que eu vou simplesmente abrir uma lojinha. De algum modo, acho que não é tão fácil assim — respondo com um suspiro. — Acho que a idéia provavelmente devesse ser classificada como "sonho", mais do que "ambição", se é que você me entende. Você não contou para ninguém certo? -— Claro que não — diz Chloe. — Quer dizer, eu falei que minha ambição era ser modelo de passarela, então, quem sou eu para falar? E aí, com uma vida tão glamorosa em Londres, tem alguma notícia no fronte romântico? Faço uma pausa. Quer dizer, a resposta óbvia é não. Não, não tenho. Então por que só estou pensando e não digo em voz alta? Por que a idéia de Chloe indo à festa de Pete e dizendo para todo mundo que continuo solteira é tão difícil de aceitar para mim? — Natalie? — Chloe pergunta, cheia de curiosidade, depois de eu ficar sem falar alguns segundos. — Você não fez isso, fez? Ai meu Deus, você já arrumou namorado! Ela parece superanimada. Será que seria assim tão errado deixá-la achando que eu estou saindo com alguém? Diabos, o que está acontecendo comigo? Claro que seria errado, e também incrivelmente triste. Parei de inventar namorados aos 15 anos, e Chloe nunca acreditou em nenhum deles mesmo. Mas parece que minha boca ganhou vida própria. — Hum... bom, talvez — digo, enigmática. Gostaria de poder enxergar meu próprio rosto, porque a cara de indignação que estou fazendo com certeza daria fim a essa fantasia no mesmo minuto. Vou até a frente do espelho para franzir a testa para mim mesma. Aliás, eu consigo parecer bem assustadora quando quero. — Eu sabia! — Chloe berra. — Quem ele é? Qual é o nome dele?

Merda. O nome dele. "Está vendo?" Digo a mim mesma, de mau humor. "Está vendo o que acontece? E agora, o que você vai fazer?" Olho ao redor, em uma busca desesperada por inspiração. De algum modo, acho que as cartas de Cressida não podem me ajudar agora. Meus olhos viajam para o alto, na direção do teto. — Alistair — digo baixinho. — Ele... hum, mora no andar acima de mim. — Certo, muito bem, de volta à realidade. Reconheço que seja um certo exagero dizer que estamos indo para a cama juntos, mas ele pelo menos mora no andar de cima. Isso deve contar para alguma coisa, quem sabe? — Seu vizinho! — Chloe exclama. — Natalíe, você é péssima! — Você não faz a menor idéia de como eu sou péssima — digo, com tristeza. A pior coisa é que dizer a Chloe que tenho namorado me dá uma sensação bem boa: é como aqueles espelhos das lojas que fazem a gente parecer dois tamanhos menor do que a realidade. Você sabe que não é verdade, mas fica feliz do mesmo jeito. — Isso é legal demais — Chloe prossegue, cheia de esperança. — Então, quando é que você vai me convidar para uma visita? =O quê? Aqui? — de repente, sinto um choque de medo. Ela não pode vir aqui. Ela vai descobrir que eu ando que eu ando elaborando a realidade só um pouquinho... - Você não quer que eu vá aí passar uns dias? Chloe parece estar na defensiva. — Claro que quero. Meu Deuss eu adoraria que você viesse passar alguns dias aqui. Mas será que podemos marcar para daqui a algumas semanas? Eu..- tento encontrar uma desculpa com rapidez — ...vou viajar com o Alistair no fim de semana que vem e vou trabalhar no outro - ouço a mim mesma dizer. — Mas eu ligo para você, certo? — Você já vai viajar um fim de semana com ele? —Chloe pergunta. — Uau. Ele tem algum amigo solteiro? Tento lembrar se vi Alistair com algum cara bonito, daí me lembro de que na verdade não faz diferença, já que Alistair é pouco mais do que um namorado imaginário, então se ele tem ou não amigos solteiros não passa de uma questão acadêmica. — Tenho certeza de que consigo (desencavar um para você — prometo. — Maravilha! Boms diz quando você acha que eu posso ir. — Certo. Divirta-se hoje à noite! — Você também... Tchau! Coloco o telefone no gancho e fico lá parada por um instante. Estranhamente, sinto-me animadíssima. É verdade que os fatos não são nada bons. Fato número um: Meu emprego é uma bela porcaria. Fato número dois: Não tenho nenhum amigo aqui. Fato número três: É sábado à noite e eu estou em casa assistindo à TV. Fato número quatro: Acabei de mentir para minha melhor amiga e me senti bem fazendo isso. Mas talvez seja bem como dizem: as aparências é que contam. O que começou como uma mentirinha inofensiva para impedir que minha mãe ficasse aborrecida transformou-se em uma vida inventada completa, até com namorado. E, para ser sincera,, nunca me senti tão

bem quanto agora desde que me mudei para Londres. Chloe acha que eu vou ao Soho House, e que estou saindo com Alistair. E isso significa que minha mãe vai ficar feliz da vida, e Pete... bom, espero que ele fique bem menos do que feliz. Talvez ele finalmente perceba que eu tenho capacidade total de viver sem ele. E, daí, só vou precisar encontrar uma maneira de passar das aparências para a realidade. Ligo a TV e sinto uma onda de prazer se abater sobre mim quando vejo Hugh Grant oferecer a Julia Roberts alguns damascos com mel. O Channel 4 está exibindo Um lugar chamado Notting Hill. Sinto-me inchar de orgulho ao vê-lo caminhando por Portobello Road: é meu novo lar! Eu adoro esse filme. Assisti com Chloe quando foi lançado, e foi quando resolvi que me mudaria para Ladbroke Grove. Eu disse para todo mundo, e todo mundo só disse "sei, sei", e ninguém acreditou mesmo em mim. Ha! Bem rapidinho, coloco minha pizza pronta Fresh 'n' Wild no forno e sirvo uma taça de vinho para mim mesma. Fico olhando para os créditos do filme. Minha garrafa de vinho está vazia e, para dizer a verdade, não estou me sentindo tão efervescente quanto antes. Quer dizer, eu sempre choro um pouco quando o cara que tem a mulher de cadeira de rodas se recusa a deixá-la para trás quando saem à caça de Julia Roberts. Mas normalmente não choro tanto assim. O filme terminou há cerca de dez minutos, e eu continuo toda chorosa. O negócio é que todo mundo é super-resolvido naquele filme. Quer dizer, Hugh Grant conhece Julia Roberts porque ela simplesmente entra na loja dele. E todos já são bem amigos, ao passo que eu não tenho amigo algum em Londres. Talvez eu tenha sido idiota de pensar que poderia recomeçar tudo. Com certeza nunca achei que ficaria solitária em uma cidade que tem tanta gente. Depois de ruminar um pouco, levanto para pegar um copo de água. Quando vejo meu reflexo no espelho, quase começo a chorar de novo: minha aparência está péssima, com a maquiagem toda escorrida pelo rosto e a íivelinha de strass que eu comprei hoje na feirinha de Portobello quase caindo de uma mecha de cabelo. Mas é claro que isso não passa do vinho tinto falando (ou, sabe como é, melhor, chorando). Estou ótima, mesmo. Realmente, só preciso ir para a cama. Começo a arrumar tudo, pego a caixa de pizza vazia e a embalagem de chocolate e enfio em um saco de lixo; daí percorro o restante do apartamento catando lixo. Preciso reconhecer que a colheita não é muito impressionante: pacotes vazios de refeições individuais prontas, garrafas vazias de vinho, exemplares das revistas Heat e Hello!. Vou me livrar de toda essa porcaria e vou resolver minha vida, penso, determinada. Vou fazer o que o artigo da revista mandou: limpar minha vida e criar uma nova eu. E isso inclui jogar fora as cartas de Cressida (o senhorio que se dane). Agora este apartamento é meu, e não sei por que tenho de deixar as cartas dela se acumularem. Talvez eu até mande trocar o telefone, afinal de contas. Em vez de pegar as cartas, porém, faço uma breve pausa. Jogá-las fora com certeza é uma opção. Mas e se Cressida de fato voltar? Ou se o senhorio resolver dar uma passada para pegá-las? Fico olhando para elas durante um tempo, tentando decidir se ficar com elas seria um ato de força ou de fraqueza. No fundo do meu coração, acho que o motivo por que não quero jogálas no lixo é que estou desesperada para saber o que tem dentro delas. Mas isso é ridículo. Não há como abri-las. Nesta noite, já fui bem má de dizer a Chloe que tenho uma vida social superglamourosa, quando a verdade é que só fico aqui comendo pizza. Não tem como, além disso, eu também abrir a correspondência de outra pessoa. Acho que eu poderia devolver tudo para o correio. Assim, provavelmente poderiam ser

repassadas para Cressida, seja lá onde ela more agora. Mas, na verdade, provavelmente seriam jogadas fora. Quer dizer, quem se importa com o fato de Cressida receber ou não as cartas dela? Pego o envelope grosso, cor de creme e endereçado à mão, e seguro na contraluz, mas não dá para obter nenhuma informação adicional assim. Você só está fazendo isso por estar entediada, lembro a mim mesma. Vai ser só alguma carta tediosa sem nada de interessante dentro. E, de todo modo, abrir a correspondência de outra pessoa é simplesmente errado. Como roubar. Ou espiar alguém. Pode até ser crime. Só que... bom, se eu abrisse, poderia descobrir de onde veio, de modo que seria possível devolver com um bilhete explicativo. O correio às vezes abre as correspondências para devolver ao remetente, não é mesmo? Então, eu simplesmente poderia fazer isso para eles. Sabe como é, assim eles economizam tempo... Não. Idéia idiota. Como não quero ceder à tentação, olho de novo para a carta do Soho House. Certo, esta aqui tem mais a ver com correspondência comercial. Não é como se tivesse sido enviada por um amigo, ou um hospital, ou um banco, ou algo assim. Não é pessoal. Quem eu estou tentando enganar? Claro que é pessoal. Tem o nome de Cressida escrito nele. Mas se eu não abrir, nunca vou saber o que tem dentro. Minha mãe sonhou a vida toda em ser do tipo de Cressida, que vai a todas as melhores festas. Nunca se sabe, se eu abrir, pode ser que descubra como ficar igual a ela. E se Cressida não se dá o trabalho de dizer aos outros que se mudou, não é minha culpa, certo? Rapidamente, antes que minha consciência tome conta de mim, rasgo o envelope. Daí, largo de novo. O que está acontecendo comigo? Por que eu me preocupo com o que está dentro do envelope? E daí que é do Soho House? Mas, bom, agora que eu abri, acho que dá na mesma olhar. O mal já foi feito. Certo? Lentamente, meus dedos se fecham sobre o conteúdo do envelope e puxo para fora. Tentando convencer a mim mesma de que isso é algo absolutamente adequado a se fazer, viro as páginas até encontrar um programa do Soho House com uma carta endereçada a Cressida de alguém chamado Podge, convidando-a para a sessão fechada de um filme na semana seguinte e um jantar especial na outra em homenagem a algum diretor de quem eu nunca ouvi falar. Então, é isso que as pessoas fazem no Soho House. Fico olhando para a carta durante alguns minutos, tentando Imaginar como seria estar na pele de Cressída, receber uma carta como esta de verdade. Ser sócia do Soho House, estar inserida na turma mais in. Dou outra olhada no programa, imaginando que sou ela. Hummm, a alguns filmes eu posso ir. Ao jantar, tenho certeza... Daí, percebo que há um item em destaque anunciando que há um festival na filial do Soho House no interior, o Babington House. É para lá que as pessoas mais refinadas vão passar fins de semana para descansar. Só que não é o tipo de interior que eu conheço: de acordo com a revista Heat, os quartos têm banheiro privativo e enormes home theaters, e o Gow Shed (ou "celeiro"), na verdade é um spa no qual se podem fazer tratamentos como Raw Hide (ou "pele em carne viva", uma esfoliação). Fico olhando para a outra carta. Minha curiosidade agora foi atiçada e estou desesperada para abri-la. Mas não vou abrir. Posso não ser rica e fabulosa como Cressida, nas tenho integridade. Mais ou menos. Fico imaginando; e Alistair a conhecia. Aposto que ela teria

sido convidá-la para a festa dele; a diferença seria que ela provavelmente estaria ocupada demais para ir. Mesmo assim, não importa. Eu é que moro aqui agora. E vou me divertir aos montes, mesmo que não me torne sócia de algum clube prívado. Prego o programa do Soho House em meu quadro de recados e coloco o catálogo da Found na minha mesinha de centro: de algum modo, ambos alegram o ambiente e fazem com que eu me sinta mais sofisticada. Então, decepcionada comigo mesma, pego os dois de novo e guardo em uma gaveta. Eu gostaria de ser mais parecida com minha mãe: ela era lindíssima e sofisticadíssima quando era mais jovem. Vi fotos dela com minivestidos nos anos 1960, parecia modelo. Aposto que, se tivesse se mudado para Londres quando era mais nova, teria ido trabalhar na Vogue ou algo assim. Mas eu sou mais como meu pai: só faço o que é seguro e gosto de estar com pessoas que conheço bem. Minha mãe é capaz de circular em uma festa e conhecer todo mundo que está lá, ao passo que eu sempre encontro um grupo de amigos e colo nele. Mas vou ter de mudar se quiser que as coisas aconteçam aqui. Principalmente porque não tenho um grupo de amigos com quem andar, e isso significa que eu vou ter de tomar jeito e ser ousada, por mais assustadora que a perspectiva seja. E, nesse ínterim, não adianta nada ficar fingindo que eu sou Cressída, imaginando se compro um cobertor de caxemira novo e a qual sessão fechada com meus amigoscelebridades irei, porque está na cara que eu não sou ela. De todo modo, já passa da meianoite, estou cansada, e vou para a cama. Quando me levanto para Ir para o quarto, faço uma breve pausa, então pego a segunda carta. Sem questionar minhas intenções, levo-a para o quarto e a coloco na mesinha-decabeceira. Não que eu vá abrir. De jeito nenhum. Capítulo 2 Eu adoro trabalhar no domingo. Para começar, recebe-se um dia inteiro de pagamento e trabalha menos; só precisa entrar às onze e meia no domingo. E também, na verdade é legal ter alguma coisa para fazer. Quer dizer, domingos são ótimos quando se tem namorado; não há nada melhor do que passar o domingo inteiro na cama ou pegando o carro para ir a algum pub para um almoço maravilhoso. Mas, tendo dito isso, eu geralmente passava as manhãs de domingo com Chloe, enquanto Pete curtia uma ressaca. Mas neste exato momento estou aliviada por ter algo para fazer, mesmo que essa coisa seja arrumar cabides e vender roupas com preços ridículos de tão caros. Pode ser mundano, mas pelo menos ocupa meu tempo. Chego à Tina T, a loja em que trabalho, cerca de cinco minutos adiantada, e encontro Laura olhando para uma arara de roupas com uma expressão aborrecida no rosto. — Droga — ela diz, distraída, e então começa a resmungar sem abrir a boca. — Está tudo bem? — pergunto, hesitante. Como regra geral, eu não falo com Laura. Ela é a pessoa mais aterro-rizante que já conheci, e tem um jeito de ficar olhando para você quando diz algo, como se você fosse algum tipo de inseto que ela não sabe muito bem se deve matar ou não. Laura é minha chefe, e tem olhos na nuca, consegue vender qualquer coisa para qualquer um e consegue ver um grão de poeira na sua roupa a dez passos de distância. Eu não me surpreenderia se ela tivesse um casaco feito de dálmatas em casa. — Os idiotas desgraçados me mandaram tamanho 44 da Marni. Quer dizer, puta que o pariu, eu disse que era tamanho 40. Isto aqui é Notting Hill, puta que o pariu, quem usa tamanho 44 aqui?

Essa é outra característica da Tina T. Parece a terra dos magros. Veja Laura, por exemplo: tamanho 36, no máximo. Ela simplesmente não tem carne. Eu a acho magra demais, toda ossuda e angulosa, além de usar o cabelo preso em um rabo-de-cavalo bem puxado no topo da cabeça, de modo que a pele dela parece esticada por cima das bochechas. E todas as clientes também são magras. Uma vez entrou uma mulher de tamanho normal, se você entende o que estou dizendo. Não era enorme, nem magra. Mas, bom, Laura deu uma olhada nela que, em cinco minutos, já tinha ido embora. Eu adoraria levar Laura para a região oeste do país. Lá, as pessoas têm bunda. Do tamanho adequado, sobre a qual é possível ficar sentada durante horas sem ficar desconfortável. — Quem sabe vende — digo, pensativa, olhando para as roupas mais de perto. — Quer dizer, elas são larguinhas, não é mesmo? Provavelmente ficam muito bem em quem usa tamanho 44. E às vezes entra gente de tamanho normal na loja. Laura fica me olhando fixamente durante um instante, arqueia a sobrancelha esquerda e então volta para a comanda da entrega. — Não sei o que há de normal em usar tamanho 44. Natalie, você pode, por favor, levar aquela pilha de Missoni para o estoque e colocar alarme em tudo? A Julie está lá, mas preciso que ela suba para me ajudar com a vitrine. Mal-humorada, caminho na direção da porta do estoque. Parece que as tarefas de estoque são sempre dadas às funcionárias mais novas. Com certeza, parece que eu passo muito tempo lá embaixo. Às vezes eu me lembro da minha mesa na Shannon's com saudade, mas me convenci de que às vezes é necessário dar um passo atrás para poder dar outro à frente. E pelo menos aqui não vai ter ninguém baforando no meu pescoço. Descobri que as tarefas no estoque permitem que você pare um pouco e leia o jornal; é fácil ouvir quando Laura está descendo porque a escada range muito. Julie está parada na frente do espelho do estoque, de cigarro na mão, admirando a si mesma em um vestido Vivienne Westwood. Ela está maravilhosa. Julie tem mesmo cara de atriz de cinema: usa um coque loiro-platinado perfeito que nunca sai do lugar, tem a pele mais pálida que eu já vi e sempre usa batom vermelhíssimo com saia justa e saltos altos. Acho que nunca a vi de calça; parece que saiu diretamente da década de 1940. Ela até tem cheiro de diva: cigarro e perfume marcante. E o vestido que ela está usando é incrível: cintura marcada, com um top tipo corselete e uma saia justa que deve ser um inferno para caminhar, mas que é lindíssima. É uma pena não podermos usar as roupas na loja, porque as compradoras (desculpe, clientes) não conseguiriam tirar os olhos dela. Aposto que esses vestidos sairiam caminhando sozinhos para fora da loja. Mas, veja bem, também não temos permissão para fumar no estoque. Ou em qualquer lugar próximo às roupas de Tina T. Não que isso jamais detenha Julie. — Está bonito — digo em tom de apreciação. — A Laura quer que você suba para ajudar na vitrine. — Puta merda — Julie diz e apaga o cigarro. — Aqui a gente não consegue ter nem uma porra de um minuto de sossego. Você vai colocar os alarmes nos Missoni? Assinto com a cabeça. — Faça um favor e perca este vestido em algum canto, pode ser? Quero usar hoje à noite e tenho certeza de que, se voltar para a loja, alguém vai comprar. Eu devolvo na terça, certo? Julie já tirou o vestido e entregou para mim, e dá para sentir cheiro de fumaça de cigarro nele. Olho para a peça cheia de incerteza. Aposto que também existe uma regra proibindo que se escondam vestidos de Laura. — Vou ver o que consigo fazer — digo sem entusiasmo.

— Obrigada, Natalie. Olha, não se preocupe; a gente faz isso o tempo todo. E só deixar uma pilha de coisas por cima ou algo assim... só tem um tamanho 40 lá em cima, e se alguém quiser um menor, não quero que levem este aqui, certo? — Julie arqueia as sobrancelhas para mim e ajeita o vestido prateado (igualmente glamouroso) que está usando. Então, desvia o olhar como se tivesse se lembrado de algo. — Aliás, você vai fazer alguma coisa amanhã à noite? — Nada de especial. —A menos que lavar roupa conte, penso comigo mesma. Abrir a correspondência de outra pessoa. Ter uma crise sobre o significado da vida... a minha, em especial... — Bom, se você estiver a fim, eu e a Lucy vamos ao Canvas. Se eu estiver a fim? Julie está mesmo perguntando se eu estou a fim de sair? Meu Deus, daqui a pouco o Hugh Grant vai entrar na loja e me convidar para sair. — Parece ótimo — digo calmamente. Eu sei que Julie provavelmente só está me convidando porque vou fazer um favor a ela com o vestido Westwood, mas não faz a menor diferença. Eu vou ao Canvas, o bar mais legal de Notting Hill, com Julie e Lucy, que são quase exatamente a personificação de "fabuloso". Se Chloe estivesse aqui, eu ficaria com vontade de dar um "toca aqui" nela. — Certo. Bom, assim que a Laura sair, nós vamos, certo? Ela sempre cai fora mais cedo na segunda. E, com isso, Julie se vira e sobe a escada em direção à loja. Coloco o vestido em um cabide que tem um Marc Jacobs de inverno pendurado, atrás da arara dos Dolce & Gabbana, então Laura provavelmente não vai encontrar, a não ser que procure muito, e volto para os Missoni e começo a colocar os dispositivos de alarme. Não é tão fácil quanto você pensa, principalmente quando se trata de calças e vestidos de tricô da Missoni: um erro e a peça toda pode desfiar perante seus olhos. Se a pessoa que trabalhava aqui antes de mim tivesse tido mais cuidado, eu não teria conseguido este emprego, fato que Laura faz questão de me lembrar praticamente todo dia. Eu sempre fico com vontade de responder: "É, bom, mas se eu não desconfiasse de que meu ex-namorado me traía e não tivesse largado meu emprego em uma ótima agência de publicidade, eu também não estaria aqui." Mas não respondo. Não sou assim tão idiota. Quando chega a uma da tarde, já consegui colocar alarme em tudo e deixar pronto para a venda, então levo a pilha de roupas para a loja. O lugar está coalhado de gente (domingo é o dia em que os casais saem para fazer compras). Há sofás para os homens se sentarem, e podem pedir xícaras de café e de chá, para que se divirtam muito relaxando enquanto as mulheres e namoradas experimentam uma peça atrás da outra. Mas não tenho certeza se isso seria suficiente para fazer Pete sair às compras. Ele ficava corcunda e começava a andar devagar sempre que eu o levava para as proximidades de uma loja de roupas e, por mais que eu insistisse, sempre me dizia que me esperaria do lado de fora. E é claro que a culpa por fazê-lo esperar no frio congelante era demais para mim, de modo que eu deixava para lá e voltava depois, sozinha. São lembranças como essa que me deixam tão brava agora. Não tanto com Pete, mas comigo mesma por agüentar tudo aquilo. Onde eu estava com a cabeça? Laura faz um sinal para que eu pendure os Missoni perto da entrada, a arara de mais destaque da loja. O sol brilha através da janela e faz com que a loja fique clara e com ar de verão, apesar das temperaturas abaixo de zero lá fora, e com as batidas disco que tocam no

sistema de som da loja, as clientes ignoram as linhas mais pesadas e olham os linhos e os algodões mais leves. Laura sabe o que faz: assim que penduro as peças, duas mulheres pegam vestidos da arara e perguntam se podem experimentar. Dou meu novo "sorriso de vendedora" (andei treinando) e levo os vestidos até o provador. — Aah, são lindos — suspira uma mulher, passando a mão no tecido quando entramos na cabine. — Eu sei, e acabaram de chegar hoje — digo. — Você tem sorte de conseguir um; na Harvey Nichols, tem fila de espera! Não tenho certeza se isso é bem verdade, mas ouvi Julie dizer isso para alguém ontem sobre um jeans Ale-xander McQueen, e a pessoa acabou levando dois. As moças entram no reservado, felizes da vida. Acontece que são irmãs. Mas por que iam querer comprar vestidos iguais está muito além da minha compreensão. Afinal, o motivo de se comprar algo caro de verdade é para não cruzar com ninguém usando a mesma coisa, não é? Só quando saem do provador é que percebo quem são. Uma é atriz e a outra é diretora de cinema; havia uma reportagem enorme sobre elas no jornal The Times, porque estão concorrendo ao Oscar por seu último trabalho. Acho que, se usarem vestidos idênticos, vão receber muito mais atenção da mídia. O único problema é que uma delas ficou ótima e a outra... bom, eu não sairia na rua daquele jeito. As duas olham para mim e eu franzo o nariz um pouco. — O que você acha? — pergunta a irmã mais alta, a que ficou fantástica com o Missoni envolvendo sua estrutura delicada. — Ah, está mesmo maravilhoso — respondo. — Quer dizer, esse vestido simplesmente é a sua cara. — Não tenho certeza — diz a outra irmã (a diretora), esticando o pescoço para ver as costas no espelho. Não sei se esse vestido tem a ver comigo. E com muita certeza não tem mesmo. — Vocês precisam mesmo comprar o mesmo vestido? — É, nosso assessor quer que nos fotografem hoje à noite na frente do Ivy, e já andamos por tudo o que é loja procurando alguma coisa. — Vocês tentaram a Joseph? — sugiro. Vi uns vestidos adoráveis de frente-única lá outro dia. Seriam perfeitos. De repente, Julie aparece do nada. — Ai meu Deus, olha só para isso. Vocês estão sensacionais! — ela diz, cheia de dramaticidade, e me lança um olhar enviesado. — Esses vestidos ficaram simplesmente lindíssimos nas duas. E também é a maior sorte terem encontrado no tamanho... na Harvey Nicks tem lista de espera. — É, eu sei — diz a irmã mais cheinha. — Mas não tenho certeza se cai bem em mim. Minha bunda não ficou grande? — Está de brincadeira? Ficou fabuloso! E também temos um lenço lindo que vai ficar ótimo como acessório — diz Julie, olhando para as irmãs com admiração total. — Aah, pode dar certo — diz a irmã cujos quadris foram ampliados enormemente pelas listras do Missoni. — Natalie, por que você não vai buscar uns lenços? — Julie sugere. Quando me dirijo para a área dos acessórios, ela agarra meu braço. — Você não quer ganhar dinheiro? — assobia

por entre os dentes. — Pelo amor de Deus, você está com uma venda nas mãos. Não diga para elas irem para a porra da Joseph! Fico vermelha e caminho na direção dos lenços. Que lenço que nada. O vestido vai ficar horroroso, independentemente do acessório utilizado. Desencavo alguns e entrego para as irmãs, que continuam se admirando na frente do espelho. Então, respiro fundo. — Uau! — digo com tanta sinceridade quanto consigo aparentar. — Está... lindo mesmo. Os lenços são perfeitos. Querem experimentar sapatos? Estamos com uns da Prada de salto alto que vão ficar maravilhosos com o vestido. As irmãs assentem com a cabeça, em êxtase, e eu desço ao estoque para pegar os sapatos mais caros que existem na Tina T. — Você consegue — murmuro para mim mesma. — Venda, venda, venda. As irmãs adoram. — Pronto, vamos levar — diz a irmã magrela. — Certo — concorda a irmã rechonchuda, que então se vira para mim. — Tem certeza de que este vestido não me deixa... larga demais? Fico olhando para ela. Ela me fita com tanto ar de confiança... Será que realmente posso deixar que ela saia com a irmã daquele jeito, já que podia ficar muito melhor? Mas eu não vou conseguir manter este emprego se ficar mandando clientes ótimas embora. Meu Deus, nunca achei que trabalhar em uma loja de roupas pudesse representar um dilema moral desses. Tento não refletir muito sobre o que estou fazendo e, sem olhar a irmã nos olhos, abro o maior sorriso que consigo. — Larga demais? Deve estar de piada... está lindo! Ela sorri de alívio e, dez minutos depois, já estou anotando uma venda de duas mil libras. Isso significa mais cem libras no meu salário deste mês. Laura me lança um olhar que, pela primeira vez, não faz com que eu me arrepie toda. Julie dá uma piscadela para mim, e eu me sinto bem. E, na boca do meu estômago, a culpa pesa. Pelo menos estou em Londres. Até parece que eu vou voltar a ver aquela mulher. E, se eu quero me dar bem neste trabalho, e sinceramente preciso que isso aconteça, acho que preciso ficar mais durona. Às três da tarde, tiro meu intervalo para o chá. Só temos 15 minutos, mas eu sempre saio. No almoço, dou um passeiozinho até o Hyde Park e observo os patos nadando no lago e, apesar de só ter 15 minutos, sempre dou uma volta (bem diferente de Julie, que passa o tempo todo no estoque, tomando café e fumando). Eu adoro Londres, mas às vezes sinto falta dos descampados do interior, nos quais fui criada. Não que Julie consiga entender isso: ela acha que eu sou louca por chegar perto de locais verdes e abertos, que para ela representam um pesadelo de grama enlameada e cachorros. Mas acho que, para quem sempre usa salto dez, grama enlameada realmente é um perigo. Enquanto caminho por Ledbury Road e por Westbourne Grove, repasso os acontecimentos da manhã na cabeça, tentando racionalizar meu comportamento. Eu não menti para aquela mulher: simplesmente fiz o meu trabalho, como Julie disse. Quer dizer, todo mundo já ouviu uma vendedora dizer que você estava linda sem estar, não é mesmo? Meu Deus, amigas minhas já disseram que algo estava ótimo, mas daí eu vi meu reflexo no espelho (geralmente quando já é tarde demais para tomar alguma atitude) e percebi que a escolha tinha sido um erro enorme. E, de todo modo, os vestidos eram ótimos. Só preciso parar de

levar as coisas tão a sério. Até parece que na publicidade era tudo assim tão sincero, não é mesmo? Houve uma campanha de um fabricante de móveis em que eu trabalhei cujo enfoque era na qualidade. Os móveis eram bem bonitos, também, então acabei comprando uma mesa que se desmantelou em um mês. E quando eu contei isso ao meu chefe, ele mal piscou; só sorriu e disse: "Não acredite em tudo o que você lê." Como se fosse minha culpa por acreditar no slogan publicitário que eu mesma criei. Respiro fundo algumas vezes, tomo o caminho de volta à loja e dou uma olhada no meu reflexo na vitrine. Será minha imaginação ou eu de fato estou começando a parecer integrada ao local? Não são só as roupas (apesar de eu estar usando o uniforme básico de jeans afunilado, camiseta justinha e sapatos de bico fino), é a minha maneira de andar apressada e preocupada, inatingível. Isso é conhecido como o sistema de defesa de Londres: nunca se sabe quando um louco vai abordá-la na rua. Por um segundo, me pergunto se quero me transformar em uma londrina neurótica e sempre na defensiva; depois, dou de ombros. Claro que quero. Se não, por que estaria aqui? Volto cheia de determinação para a Tina T, e vou direto para uma cliente que está olhando sapatos Jimmy Choo. — Não são lindos? — digo com um suspirozinho que já vi Julie usar. Naquela tarde, vendo mais seiscentas libras em roupas, sem quase ajuda nenhuma de Julie. Isso representa um total de 130 libras de comissão no meu bolso. E eu me sinto ótima. Às seis da tarde, Laura me aborda. — Natalie, eu vi mesmo você fazendo uma venda? — ela pergunta com um sorriso jocoso no rosto. Assinto com a cabeça. De repente me dou conta de quem ela me lembra. É a bruxa de O mágico de Oz. O que, acho, faz de mim Dorothy. Ou talvez Totó. — Bom, só serve para mostrar como as roupas desta estação estão boas — ela prossegue, com um sorriso de lábios apertados. — Acho que ela é uma vendedora nata — diz Julie, partindo em minha defesa com rapidez. — É mesmo? — diz Laura, com falsa surpresa. — Que interessante. Fico aqui me perguntando se você também acha isto aqui natural, será? — Ela estende para mim um dos vestidos Missoni em que eu coloquei os alarmes hoje de manhã. Alguém tentou arrancar o dispositivo e rasgou o tecido, — Você acha que fui eu? — pergunto, incrédula. — Isto é ridículo. Obviamente, alguém tentou arrancar. — Impossível — diz Laura, — Fiquei do lado deles hoje o dia todo. Eu avisei você sobre os alarmes, Natalie. Eu poderia mandar você embora por isso. Se você não tivesse de fato vendido algumas roupas hoje, já teria demitido. Como vendeu, estou pronta para lhe dar mais uma chance. Mas você vai ter de pagar o prejuízo. Meus olhos se apertam. Quero berrar um insulto para ela. Ou jogar um balde de água na cabeça dela e vê-la encolher. Mas, em vez disso, só digo: — O quê? — com a voz estranha. — Fala sério, Laura, para mim, parece tentativa de roubo — diz Julie sem muita certeza, mas Laura aperta os lábios. — Não adianta nada tentar defendê-la — ela diz, calmamente. — E não desejo mais discutir a questão. Vou embora agora Julie, você fecha o caixa? O horário para o restante da semana vai estar afixado amanhã de manhã. Natalie, você fica com terça e quinta livres. Julie, você folga terça e quarta, e avise também a Lucy que as folgas dela são na quinta e no domingo de novo? Espero boas vendas nesta semana, e que não haja sinais de

incompetência. — Incompetência? Sua... sua... — Como não quero pro-ferir as palavras que desesperadamente tentam se lançar para fora da minha boca para cima de Laura, resolvo não dizer absolutamente nada, simplesmente pego minha bolsa e vou embora. Estou tão P da vida que nem me despeço de Julie. Eu odeio Laura. Um dia, penso com meus botões, um dia, quando eu não precisar mais do emprego desgraçado e fedorento dela, vou me vingar. Só Deus sabe o que eu vou fazer, mas com os diabos, alguma coisa eu vou fazer. Preciso me acalmar, e assim resolvo voltar para casa pela Graham & Green, minha loja preferida do mundo Inteiro. Algumas pessoas bebem para acalmar os nervos; outras fazem meditação. Eu venho a este lugar: é como um santuário, repleto de lindas colchas de veludo, cartões feitos à mão, sofás de couro macios e castiçais com aparência antiga. O ar sempre cheira a jasmim e há uma paz reconfortante no lugar, que sempre acalma meu ânimo. Se tem alguma coisa que pode fazer com que eu me sinta melhor, é isto. Abro a porta e ouço o sininho que conheço tão bem. O andar de cima é cheio de móveis e porta-retratos lindos, mas eu me dirijo para o andar de baixo, para o departamento de dormitórios, onde fico admirando com olhos gulosos os penhoares de veludo e as camisolas de algodão egípcio. É assim que a vida deve ser, penso. Repleta de coisas lindas. Gostaria de trabalhar aqui em vez de ter emprego na porcaria da Tina T. Gostaria de trabalhar em qualquer lugar em vez de ter emprego na porcaria da Tina T. Tirando a Shannon's, é claro. Acho... A mulher atrás da caixa registradora sorri para mim. Eu conheço esse sorriso. É o mesmo sorriso que lanço para as pessoas que entram na Tina T o tempo todo, obviamente sem ter dinheiro para comprar nada. Mas eu não ligo: pelo menos significa que ela não vai me perguntar se eu preciso de alguma coisa. Vinte minutos depois, com minha raiva expurgada, estou pronta para ir para casa. Assim que volto, sirvo uma taça de vinho para mim mesma e preparo um banho. Então, enquanto a banheira está enchendo, remexo as gavetas para encontrar o catálogo Found. O programa da Soho House está junto, e meus dedos repousam sobre ele por alguns segundos. Talvez não seja tão ridículo assim pregá-lo ao meu quadro de avisos mais uma vez. Quer dizer, é só um programa. Será que é tão errado assim passar a impressão de que eu tenho vida social? Antes que possa mudar de idéia, rapidamente o penduro; depois levo o catálogo Found para o quarto e o folheio, imaginando que as coisas lindas daquela página me rodeiam. Depois da minha recuperação na Graham & Green, sinceramente acho que um quimono de seda faria maravilhas pela minha vida. Assim como um banho de espuma supercaro. A carta não-aberta continua na mesinha-de-cabeceira, e de vez em quando eu dou uma olhada nela, tentando fingir que não ligo para o que há dentro do envelope. Mas não consigo evitar: eu me importo, sim. Sei que parece ridículo, mas eu quase estava ansiosa para chegar em casa hoje por causa daquela carta desgraçada. Tenho certeza de que é só a curiosidade de saber o que há dentro: provavelmente é só uma carta chata da avó de Cressida ou algo assim. Mas não consigo parar de pensar que aquela carta e o programa do Soho House de algum modo me conectam com um mundo em que eu nunca poderia tocar normalmente; se eu abrir, posso descobrir a porta para um mundo que inclui o Nobu, o Soho House e festas ótimas, e que não inclui Laura nem Pete nem nada mais que me deixa deprimida. Não acho que vou encontrar nada ao estilo de Alice no País das Maravilhas, do

tipo de uma pílula em que se lê "Coma-me" ou uma garrafa que manda "Beba-me", mas é como um presente de aniversário: por mais que Você saiba que vai ser só mais uma caixa de lenços, você não consegue esperar para abrir: talvez seja outra coisa. Eu realmente preciso jogar isso fora e colocar fim neste dilema. Mas eu prometi que ia guardar. De repente tenho uma idéia: pego a carta e percorro o envelope grosso e cor de creme com os dedos. Então levo para o banheiro comigo e ajeito perto das torneiras. A banheira está quase cheia e, enquanto me enfio na água quente e fumegante, fico olhando sorrateiramente para a carta. Se o vapor a abrir por acaso, não é minha culpa, é? Pode acontecer com qualquer pessoa. Uma hora depois, estou toda vermelha e enrugada. A carta, no entanto, continua macia, cor de creme e completamente fechada; é de enfurecer. Irritada, saio da banheira, seco o corpo e passo creme. Creme. Eis aí uma idéia. Pego a carta de novo e sem querer querendo lambuzo toda a parte de trás com creme. É gordura, certo? Isso deve abrir a carta, não deve? O envelope não se abala. Decepcionada, fico olhando para o frasco de creme como se estivesse me sacaneando de propósito. Na frente, como se estivesse tirando sarro da minha cara, está escrito: "Não oleoso, não pegajoso." Desgraça de creme idiota: essa é a última vez que eu compro esta marca. Bom, que se dane. Não preciso mesmo ler esta carta idiota. Tenho coisas muito melhores para fazer da vida. Tipo... olho para os meus pés. Claro: tipo pintar as unhas dos pés. Cheia de determinação, visto um roupão atoalhado, pego a carta e um esmalte vermelho e me jogo no sofá. Enquanto embelezo meus pés com muito cuidado, faço questão de ignorar a carta, que agora está encostada no braço do sofá. Fico pensando no que devo vestir para ir ao Canvas. Sei que Julie vai estar usando uma criação estonteante de Westwood, e Lucy provavelmente é a pessoa mais linda com quem eu já estive no mesmo recinto, então vou ter de achar algo bem espetacular no meu guardaroupa (ainda abarrotado). Bom, pelo menos vou ter belos dedos dos pés para exibir, então vou ter de usar sandália. Estico as pernas para admirar meu serviço e reparo, irritada, que o dedão está borrado. Abaixo-me para limpar com um lenço de papel e derrubo o esmalte, que começa a se espalhar por cima do sofá. E por cima da carta toda. Merda: eu sabia que não devia ter deixado ali. Xingando a mim mesma por ser tão desastrada, pego o esmalte rápido e tento devolver o máximo possível de produto para dentro do frasco, mas com isso só consigo ficar com as mãos todas sujas. Mas que desastre da porra. Por que eu sou tão atrapalhada? Pego alguns lenços de papel e removedor de esmalte no banheiro e faço o que posso para limpar tudo. Então me levanto para avaliar a extensão do estrago. A almofada do sofá só estragou de um lado, então eu a viro rapidamente e largo o peso do corpo pesadamente em cima dela. Os coitados dos meus dedos dos pés agora estão de um tom cor-de-rosa todo manchado: parecem arranhados e cortados, não brilhantes e ajeitados. No que diz respeito à carta, bom, não tem como eu poder entregar para o senhorio agora, com o nome e a maior parte do endereço todo borrado com uma meleca vermelha e brilhante. Mas... examino mais de perto. Coberta assim de esmalte, não dá para saber para quem era a

carta. Quer dizer, não dá para ver nem um pouco da parte de "Cressida Langton". Poderia ser para qualquer um. Poderia ser até para mim... Meus dedos começam a arranhar o esmalte. Talvez o fato de eu ter virado o frasco tenha sido o destino me dizendo para abrir a carta. Como se fosse minha sina ou algo assim. Só que não é, lembro a mim mesma com firmeza. Se for o destino de alguém, é o destino de Cressida e, infelizmente, não se sabe onde ela está. E não estou interessada na correspondência dos outros, apesar de a caligrafia nela ser bem bonita. Vou até a lata de lixo cheia de decisão e coloco a carta bem no fundo. Mas daí fico pensando se tomei mesmo a decisão certa. Será que, por jogar fora a carta, também estou jogando fora uma oportunidade? Durante a vida toda, minha mãe sonhou fazer parte da turminha mais in. Pelo que já li de Feira das vaidades, Becky Sharp teria aberto esta carta em um piscar de olhos, e ela está se dando muito bem, pelo que posso ver. Cinco minutos depois, recupero a carta. Meu Deus, que agonia. É como ter uma barra de chocolate na geladeira quando você resolve ficar um mês sem comer chocolate. E eu nunca consegui passar mais de um dia sem fazer isso. Meio dia, para falar a verdade. Assim que penso em desistir de tudo, só consigo pensar no sabor delicioso e doce derretendo na minha boca. Mas isso não quer dizer que vou sucumbir desta vez. Coloco um CD para tocar e entro na cozinha para me servir de mais uma taça de vinho. Meus quadris começam a requebrar de leve quando o ritmo de Kylie toma conta da sala. "I just can't get you out of my head" [não consigo tirar você da cabeça], canto baixinho a música. Então meu quadril começa a requebrar um pouco mais e pouso a taça de vinho para poder mexer os braços um pouco mais. "Ha na na", canto e danço pelo chão da sala. Caramba, estou mesmo precisando sair mais. Fico imaginando que tipo de música toca no Canvas. Não é Kylie, disso eu tenho certeza. Meu Deus, espero que não seja nada obscuro demais que não dê para dançar. Quero alisar o cabelo e me divertir, e nunca consigo fazer isso quando o lugar é cool demais: simplesmente não dá para imaginar Julie fazendo a dancinha do YMCA. Ai meu Deus, eu provavelmente vou me fazer de trouxa, completamente, e todo mundo vai perceber que eu não sou uma garota urbana como elas: que eu sou só uma garota do interior que canta "I Will Survive" sempre que alguém liga o karaokê. Eu queria ser mais segura. Chloe não está nem aí para o que os outros pensam dela, e eu sempre a admirei por isso. Mas eu realmente me importo com o que as pessoas pensam de mim, principalmente em Londres. Mesmo assim, pelo menos eu finalmente vou sair. E posso dar conta de um clube cool em Notting Hill, sem problemas. Meus olhos repousam sobre o programa do Soho House de novo. Só preciso ficar mais parecida com Cressida, digo a mim mesma. Ficar bacana e sofisticada. Sentindo-me muito melhor, aumento o som e danço até gastar as meias pelo restante da noite. Capítulo 3 A segunda-feira se passa sem maiores percalços. Laura resolve não ir trabalhar, de modo que todas ficamos um pouco mais relaxadas, apesar de Julie me mandar limpar o estoque. Acho que os pequenos protocolos que estabelecem a escala de comando são necessários: na Shannon's, o que determinava se você era iniciante ou se "ia chegar a algum lugar" era

preparar o chá; aqui, é limpar o estoque. Mesmo assim, estou aproveitando a falta de responsabilidade de diversas maneiras. Consigo fazer algumas vendas também, mas a maior parte da minha comissão vai para aquela porcaria de vestido Missoni que Laura me acusou de estragar e, antes que eu me dê conta, Julie já está fechando o caixa. — Então, você vai sair com a gente? — ela pergunta para mim. Assinto com a cabeça, aliviada por ela ter se lembrado de que tinha me convidado. Nunca se sabe com Julie. — Maravilha. Vou ligar para a Lucy. Ela pega o telefone e tecla o número, e dá para ouvir o som das unhas compridas no plástico. — Lucy? É, sou eu. Estamos terminando aqui, você quer vir para pegar sua roupa? Desliga o telefone e olha para mim. — Então, o que você está a fim de usar hoje à noite? Um pouco de Prada? Quem sabe um modelo da Moschino mais animado? Tudo menos Westwood: vou usar aquele vestido e não quero que ninguém roube a minha luz! — Está falando sério? A Laura me esfolaria viva! — digo, sem entusiasmo. — Ah, esqueça a Laura — Julie diz, despreocupada. — Ela é só uma mulher triste e amarga. Procure alguma coisa legal para você e vamos encher a cara. Desde que você mande lavar a seco e devolva até terça à tarde, a Laura nem vai desconfiar. Vamos lá... ela está nos deven-do, caramba. Olho ao redor da loja. Desde que comecei a trabalhar aqui, passei montes de horas tediosas olhando para aquelas roupas fantásticas e imaginando como ficariam em mim. Mas parece que elas pertencem a outro mundo: um mundo de bônus da Bolsa de Valores em que quatrocentas libras por uma calça jeans parece normal. Enquanto Julie fecha o caixa, eu passeio pela loja, pegando saias e vestidos e admirando-os sob outra luz. Como será que eu fico com esta calça Chloe? E com este vestido Alberta Ferretti? Aposto que, se eu estivesse usando isto quando encontrei com Alistaijr na escada da última vez, ele teria me convidado para a festa dele! Junto um monte de roupas e levo tudo para o provador, então experimento cada peça com calma, examinando o efeito no espelho. O problema é que são todas tão lindas que eu não consigo escolher. O vestido Alberta Ferretti é de outro mundo, mas delicado demais para uma noitada em um bar. A calça Chloe é sublime, a saia Gucci faz com que meu traseiro fique a metade do tamanho normal; e também experimento um vestido frente-única fantástico Dolce & Gabbana que, tenho certeza, vi Carrie usando em Sex and the City: tem um sutiã embutido que aparece, como se você não pudesse dar o trabalho de comprar um sutiã frente-única só para usar com o vestido ou algo assim. Nem pareço eu no espelho: parece alguma mulher bacana que sai para dançar toda noite. Mas é que eu não tenho certeza se consigo fazer isso. Quer dizer, eu sei que seria só um empréstimo, mas mesmo assim não me parece certo. Eu ficaria nervosa a noite toda, para o caso de acontecer alguma coisa. Pode até ser que Lucy faça isso o tempo todo, mas não tenho certeza se eu consigo também. Talvez eu ainda não seja exatamente a Natalie de Ladbroke Grove. — Qual é o problema? Não encontrou nada? — Julie pergunta quando eu volto para a loja de jeans, camiseta preta e salto alto. — Olha, eu posso encontrar algo se você quiser. Uma roupa supersexy! — Na verdade, acho que estou bem assim — digo, tentando parecer o mais desencanada possível. Parece que Julie não acha que eu estou supersexy assim.

Ela olha para mim de um jeito esquisito, e por um instante fico achando que ela vai começar a dar uma de chefe e me obrigar a vestir outra roupa, mas por sorte alguém bate na porta com força, antes que ela possa dizer alguma coisa. É Lucy. Lucy é universitária e só trabalhava aqui aos sábados como folguista, mas acabou gastando tanto dinheiro em roupas que precisou ser contratada em tempo integral para poder pagar as dívidas. Então, agora ela estuda e trabalha, e está sempre tentando ser mandada para fazer alguma coisa no estoque, para poder ficar lá escrevendo ensaios e tal. O negócio é que as roupas ficam tão lindas nela que dá para entender completamente por que ela gasta tanto dinheiro com isso: ela se parece com Helena Christensen ou alguém assim, com aquelas pernas compridas e a pele que sempre está com aquele ar de quem acabou de voltar de férias. Julie diz que ela faz bron-zeamento artificial, mas eu nunca consegui ficar daquele jeito, nem com uma ajudinha de St. Tropez. — Oi para você — ela estrila quando Julie abre a porta para ela. — Me dêem cinco minutos, eu sei exatamente o que vou vestir. Julie vai até o som da loja e coloca um hip-hop bem alto. Desaparece para dentro do estoque com Lucy e volta alguns minutos depois, absolutamente maravilhosa com o vestido Vivienne Westwood que faz a cintura dela parecer quase inexistente. Olho para minha própria roupa e fico me perguntando se tomei a decisão certa. Mas a verdade é que eu nunca ficaria como Julie mesmo; nem como Lucy, aliás. Quer dizer, eu não sou nada mal, não se engane: na minha cidade, sou até considerada bem bonita. Mas os padrões aqui são mais altos. Infelizmente, eu não uso tamanho 36 e não tenho cara de quem acabou de sair de um set de cinema. — Vamos pelo menos colocar uma maquiagem em você — diz Julie, fazendo sinais de desaprovação, e eu aceito. Ela pega uma bolsinha e logo já está passando cremes no meu rosto. Quando me olho no espelho, meus olhos dobraram de tamanho e meus lábios fazem um biquinho bem vermelho. Sorrio. Queria que Chloe me visse agora. Pete também. Dez minutos depois, Lucy sai do estoque em uma nuvem de perfume e pó compacto. — Gostei do seu jeans — ela diz com generosidade e dá o braço para mim. — Prontas, meninas? — pergunta. Julie pisca para mim. — Prontas! Não há filas na frente do Canvas quando chegamos, mas, ainda assim, há um segurança no topo da escada, com cara de quem está um tanto entediado. Ele pisca para Julie e Lucy quando entramos, então me mede de cima a baixo bem devagar. Imediatamente, sinto minha paranóia vindo à tona: será que ele não vai me deixar entrar? O que Julie e Lucy vão pensar? Mas ele rapidamente desvia o olhar de mim, e tiro a conclusão de que devo entrar. Tentando segurar a emoção, vou atrás de Lucy. — É só sorrir para o homem simpático — ela diz com uma risada e pisca para o segurança à porta. — É útil conhecê-lo. No andar de baixo, o bar é menor do que eu tinha imaginado. Há alguns bancos cobertos de almofadas, uma pista de dança pequena e um bar comprido. Um DJ toca música ambiente bacana no canto. Julie vai direto para o bar. — O que vai ser, lindona? — o barman pergunta. — Três vodcas com tônica, por favor — Julie responde com um ar de vagabunda, então se vira para cochichar no meu ouvido. — Fui para a cama com este idiota na semana passada, dá para acreditar? Nunca se deu ao trabalho de ligar, claro. Acho que hoje eu não volto mais

para o bar, se você achar que tudo bem. Ela se afasta, caminhando na direção de um dos bancos, e Lucy vai atrás dela. — Deixaram você para pagar, hein? — diz o barman, sorrindo. — Eu sou o Jason, aliás. Sabe o quê? Dou estes drinques para você de graça se conseguir convencer sua amiga Julie a me dar o telefone dela. — Mas eu achei que você já tinha, não? — Quando abro a boca, fico me perguntando se estou traindo uma confidência ao admitir que sei que ele não ligou. Beleza, Natalie, repreendo a mim mesma. Mas tudo bem. — Recebi a instrução de ligar para ela, mas não o número — Jason explica, despejando garrafas de água tônica em três copos. — Ela gosta de fazer joguinho. Assinto com a cabeça, nervosa, como se estivesse entendendo. Caramba, eu não tenho a menor chance de ser convidada para sair, arrumar namorado, então, nem pensar, se precisar seguir regras assim. Na minha cidade, a gente dá o telefone para as pessoas e elas ligam.... ou não. Agradeço a Jason e digo que farei o possível para arrumar o telefone; então pego os copos e levo até onde Julie e Lucy estão. — Obrigada, Natalie, você foi legal. Então, quanto é que a gente deve para você? — Um número de telefone. O seu, aliás... para o Jason. Ele disse que adoraria saber qual é. O rosto de Julie se contorce em um sorriso. — Hummm. Aposto que adoraria mesmo. Lucy se ajeita para abrir espaço para mim e eu me sento. O lugar já está enchendo. Tem uma garota usando a saia mais curta que eu já vi, com meia-calça rosa cortada e sandálias azuis com glitter; uma outra com o cabelo rosa fosforescente vestida com um macacão aberto até embaixo da cintura, revelando a barriguinha definida e um sutiã cor de laranja. Fico imaginando o que Pete acharia disso, depois repreendo a mim mesma por ter pensado nele. — Então, qual é sua história com os homens? — pergunta Lucy. — Está saindo com alguém? — Bom — começo, cheia de incerteza, lembrando-me do monte de mentiras que acabei de contar a Chloe. — Na verdade, acabei de terminar com alguém. — Que bom para você — diz Julie. — Os homens são uma porra de um pesadelo, não são? — Os olhos dela se deslocam para o bar. — Eu bem que gosto de homem — diz Lucy, em tom de brincadeira. Então, enxuga o copo. — Certo, está na hora de pegar mais um — ela diz. — A mesma coisa, de novo? Julie e eu assentimos com a cabeça e Lucy vai até o bar. Jason aparece perto da nossa mesa com muita rapidez e se senta ao lado de Julie. — Tudo bem aí, queridinha? Julie se vira e fica olhando fixamente para ele. — Não venha para cima de mim com essa de "queridinha", seu aproveitador. Nenhuma porra de flor, nada de me convidar para jantar... Se você acha que algum dia eu vou para a cama com você de novo, pode tirar a porra do cavalinho da chuva, cara. O tom dela é bravo, mas seus olhos sorriem, e Jason se inclina para lhe dar um beijo na boca. — Você tem toda a razão, lindona — ele sorri e volta saltitante para o bar. — Ele parece legal — experimento. — Você vai dar seu telefone para ele? — Não sei —Julie responde. — Mas com certeza acho que vou levá-lo para casa hoje. A

bunda dele é linda, você não acha? Lucy chega com as bebidas. — O Alistair e o Michael estão aqui — ela diz e coloca as vodcas com tônica à nossa frente. — Vão para o Woody's daqui a pouco, então eu disse que talvez a gente fosse junto. Achei que poderíamos entrar no clima com uma dose dupla... — Alistair? — pergunto, interessada. — É, vocês se conhecem? — Hum, na verdade, não... se ele for o Alistair que eu estou pensando. É que tem um Alistair que mora no andar acima de mim, só isso. — Cabelo escuro, óculos, sempre com a mesma porcaria de jaqueta jeans? — Na mosca — respondo e sorrio. Desde que disse a Chloe que estava saindo com Alistair, a coisa começou a me parecer uma idéia bastante boa. Pensando bem, ele é perfeito. Ele é bacana, bonito e completamente diferente de qualquer outro cara com quem eu já saí. Eu ficaria muito feliz de aparecer em Bath de braços dados com Alistair, só para ver a reação de Pete... — Bom, ele vem aqui daqui a pouquinho, então você pode se apresentar direito — diz Lucy. — Jules, por acaso eu acabei de ver o Jason dando um beijo em você? Que canalha corajoso. Peço licença e vou ao banheiro. Se Alistair vem até aqui, essa pode ser a minha grande chance. Vou até o bar e pergunto a Jason onde fica o toalete. Ele aponta para uma porta lateral, eu entro e vou direto até o espelho. Meu cabelo parece todo errado, então tento criar um pouco de volume, mas acaba ficando dez vezes pior, de modo que tento abaixar tudo de novo. Eu gostaria de tomar uma decisão a respeito do que quero fazer com o cabelo: simplesmente não consigo me decidir entre um corte curto repicado ou um rabo-de-cavalo comprido e sem volume. Então eu corto curto, daí deixo crescer, daí corto curto de novo, de modo que pareço sempre estar naquele estágio intermediário do crescimento, e isso significa que nunca está bom. Mas, neste momento, vou ter de me virar com o que tenho. — Certo, Natalie, você sabe o que fazer — balbucio para mim mesma. — Simplesmente relaxe. E dê risada das piadas dele. Às vezes, eu gosto de falar comigo mesma em voz alta; sabe como é, para ter certeza de que vou ouvir mesmo. — Ele pode ser legal, mas na verdade só é o vizinho, e isso é tudo. — Prossigo. — E, de todo modo, você está fabulosa! Não me sinto assim tão fabulosa. De repente, minha camiseta preta faz com que eu pareça uma garota indie dos anos 1990. Por que eu não peguei alguma coisa emprestada na Tina T quando tive a oportunidade? Coloco um pouco de água na nuca e treino uma risada na frente do espelho. Merda: fico parecendo um cavalo quando rio assim. Certo, cabeça abaixada, mão na frente da boca... isso, assim é bem melhor. Mas ainda não estou bem pronta para sair. Por alguma razão, estou com um friozinho na barriga. Acho que já faz alguns anos que eu não fico solteira, e é um tanto assustador ir paquerar um desconhecido completo. Respiro fundo e digo a mim mesma que vai ficar tudo bem. Afinal de contas, as pessoas fazem isso o tempo todo. Aposto que Cressida não ficaria escondida no banheiro a noite toda, tentando reunir coragem para voltar. E o que ela tem que eu não tenho? (Quer dizer, além do dinheiro, da carteirinha do Soho House e dos milhões de pessoas que não param de ligar nem de escrever para ela?) Nada, eis o quê.

Começa a tocar Michael Jackson nos alto-falantes e eu me pego sacudindo o corpo um pouco, mexendo o quadril no ritmo da música. Se está tocando "Can't Stop (Till You get Enough)", então este lugar não pode ser ruim. Parece que é um bom presságio: esta noite vai ser minha. — Oh, yeah — canto com a música e dou uma voltinha que termina com um sorriso vencedor para o espelho. Estou pronta para sair. — Tenha pensamentos animados. — Digo com os dentes cerrados. — Tenha pensamentos sexy. Tenha pensamentos... Sou interrompida pelo barulho de alguém que se coloca atrás de mim. O que é estranho, porque ninguém entrou desde que eu entrei, então, de onde veio essa pessoa? Olho no espelho para ver quem é e fico paralisada. Ai. Meu. Deus. É Alistair. Ele está aqui. Ele está aqui comigo, e deve ter ouvido tudo o que eu disse... Tento dar um sorriso desencanado, mas não adianta. Meu rosto todo está contorcido e completamente vermelho. — Eu, hum, achei que este era o banheiro feminino! — consigo dizer com a voz esganiçada. — E, bom, é unissex — Alistar responde devagar. — Unissex! Igual a Ali McBeal. Pare de falar, ordeno a mim mesma. Assim, só vai piorar tudo. — Hum, é, acho que sim. Eu, pessoalmente, não assisto. — Não, muito bem. Então, hum, tudo bem com você? — Nada mal. E você? — Ah, sabe como é. — É, eu sei. Sei mesmo. — Tenho certeza de que Alistair deu um sorrisinho sarcástico ao fazer seu último comentário. Ai, meu Deus. Ele me viu dançando, ouviu cada palavra que eu disse e vai contar para todo mundo. Eu poderia morrer que não faria a menor diferença. — Eu não costumo falar sozinha no banheiro, sabe como é — digo em tom de súplica. — Mas não tinha percebido que tinha alguém aqui. — Eu costumo cantar, então não me preocuparia com isso — Alistair responde, sorrindo, e dá uma piscadela quando sai pela porta. Meu coração bate rápido e meu rosto está todo corado. Por que eu não fiquei com a minha boca grande fechada? E por que eu tive de dizer "o vizinho"? Alistair mora no andar acima de mim. Ele vai saber exatamente de quem eu estava falando e, em vez de me ver como uma candidata a namorada sofisticada e sensual, vai ficar pensando que eu sou uma louca que anda pela rua com seus pertences em um carrinho de compras velho e que avisa às pessoas para tomar cuidado com os Idos de Março ou algo assim. Chorando por dentro, eu me arrasto para fora do banheiro e de volta à mesa, com a esperança inútil de não precisar mais ver Alistair pelo restante da noite. E de que talvez ele se mude do prédio amanhã. Mas, com a sorte que eu tenho, Alistair está sentado com Julie e Lucy, com mais um cara que eu reconheço vagamente como amigo de Alistair; acho que já o vi subindo para o apartamento dele. Tento parecer o mais normal possível quando ele é apresentado para mim. O nome dele é Michael. Acontece que trabalha na Joseph. — Eu já vi você na escada, não é mesmo? — pergunta para mim. — No prédio do Alistair? — Já. — Por favor, vê se me engole, imploro para o chão. Por favor, permita que eu acorde e descubra que foi tudo um sonho. — Quer beber alguma coisa? — Michael pergunta e eu assinto com a cabeça, agradecida. Bem que um gole de água me faria bem agora, a vodca está subindo. Mas isso não é necessariamente algo ruim. Até onde eu sei, ninguém está rindo da minha cara, então não

tem como Alistair já ter contado para todo mundo... por enquanto. Nesse ínterim, acho que uma bebida pode me ajudar a esquecer como estou envergonhada. Mas, em vez de ir até o bar, Michael tira uma garrafa de vodca do bolso do casaco e enche meu copo. — Saúde! — ele diz, sorrindo, e eu tomo um gole. Reparo que Julie sai de fininho na direção de Jason e tomo mais um gole de vodca. Uma música da Motown dos anos 1960 está saindo de um alto-falante bem em cima de nós, e olho ao redor para pensar em algo a dizer a Michael. — Você mora por aqui? — pergunto depois de um tempinho. — O quê? — Michael pergunta, já que não consegue me escutar por causa da música. — Você. Mora. Aqui. Perto — grito no ouvido dele. Ele assente com a cabeça e meio que sorri. Ai, meu Deus, ele está entediado. Está entediado porque eu não tenho idéia de que conversa puxar com ele. Mas por que eu teria? Sou uma louca que conversa com o próprio reflexo. Não pela primeira vez nesta noite, penso que gostaria de ser mais desencanada. As conversas de Julie e Lucy são tão diferentes das conversas que eu tenho com Chloe (elas só conversam sobre "blablá lista de convidados" ou "blablá uma banda bacana de que eu nunca ouvi falar". E como aprender uma língua nova, e eu nem tenho um dicionário). Lucy chega e se senta no colo de Michael, enquanto eu fico olhando com inveja, apesar de me sentir aliviada por ela ter criado uma distração. — Mais vodca? — Michael pergunta. Faço menção de erguer a mão como quem diz "não, já bebi demais", mas mudo de idéia. Que se foda, por que eu sempre preciso obedecer as regras? Durante cinco anos, fui sempre aquela que ficou sóbria, que levei Pete para casa e ignorei todas as mulheres por quem ele ficou babando. Talvez esteja na hora de eu me soltar um pouco. Lucy não está recusando, não é mesmo? E aposto que Cressida também não recusaria. Sorrio para Michael e entro no modo Gressida. — Adoraria mais um pouco, obrigada — respondo, com um sorriso aberto. — Que idéia fabulosa! Ele corresponde o sorriso, Lucy lhe dá um beijinho na testa e se levanta para dançar com um cara de terno risca-de-giz agarradinho e tênis Adidas. — Adivinha quem foi à nossa loja hoje? — ele pergunta, em tom conspiratório. Minha resposta é olhar para ele com as sobrancelhas arqueadas. — A Kate Moss! — ele diz, todo radiante. — Lá estava ela, bem na minha frente. — Não acredito! — engulo em seco. — Ela estava maravilhosa? — O que você acha? — ele responde, arqueando as sobrancelhas. Finjo suspirar, então conto sobre a atriz para quem vendi o vestido Missoni e ele solta risadas histéricas quando falo da irmã mais gorda que comprou o mesmo vestido e ficou horrorosa com ele. Está vendo, digo a mim mesma. Não é assim tão ruim vender roupas inadequadas a alguém: é engraçado. E, além do mais, eu estou me divertindo. Talvez não seja uma língua assim tão diferente, afinal de contas. Michael grita tão alto no meu ouvido que chega a fazer cócegas e, quando sugere que passemos à pista de dança, concordo cheia de entusiasmo. Posso estar um pouquinho bêbada, mas o incidente com Alistair parece uma lembrança distante, e isso, nos meus cálculos, é uma coisa muito boa, que deve ser incentivada. O lugar agora está tão lotado que é impossível fazer qualquer coisa além de balançar o corpo um pouco ao ritmo da música. Michael coloca os braços em volta da minha cintura e

tenta meio que sambar, mas esbarramos em pessoas demais, então paramos depois de alguns minutos. Fico me perguntando levemente onde Alistair se enfiou, mas não o vejo em lugar algum, e logo Michael e eu estamos dançando ao redor um do outro, balançando o quadril e erguendo as mãos para cima. Depois de um tempinho, Julie reaparece e se junta a nós na pista de dança. Estou em êxtase. Era com isso que eu sonhava quando estava lá em Bath. Estou aqui com meus novos amigos de Londres, em um bar bacana de Notting Hill. E estou dançando com o amigo de Alistair. Que é quase tão bonito quanto Alistair. Seria demais se Pete estivesse aqui agora... eu adoraria ver a cara dele. Ha! Também estou um pouco bêbada. Talvez um pouco bêbada demais. Dirijo-me para o banco, passando por Julie, que está dançando com os braços em volta de Jason. Michael continua dançando pela pista sozinho, derrubando bebida de todo mundo. Sento-me, fecho os olhos e volto a abrir quando sinto que o bar começa a girar. Meu Deus, eu bebi mais do que pensava. Teve a primeira vodca com tônica, depois a dupla que Lucy trouxe; daí teve a garrafa de vodca que Michael tirou do bolso e virou nos copos... Sobressaltada, sinto que pode ser que eu vomite. Quer dizer, não estou dizendo que é certeza, mas já aconteceu. E não vai ter como eu deixar que alguém me veja. Não aqui. Não na frente dos meus amigos. Vou cambaleando até Julie. — Jules, Jason, estou indo para casa — falo enrolando a língua. — Preciso acordar cedo amanhã. — Tudo bem, querida, a gente se vê mais tarde —Julie responde com um sorriso e me dá um beijo na bochecha. — Comporte-se! Não a vejo em lugar algum, então subo a escada na direção do segurança. Quando vou me aproximando da porta, ouço risadas. — No banheiro? Está falando sério? — Total. Eu vi tudo! — Que maravilha, cara. Vamos ter de colocar um circuito fechado de TV lá. Vai ser o máximo! Alistair, Lucy e o segurança estão parados no topo da escada e, para meu terror, percebo que devem estar falando de mim. Então, Alistair contou tudo a eles, e estão achando que é hilário, não é mesmo? Quando apareço no topo da escada, rapidamente param de falar. Lucy olha para mim e estou certa de que Vejo pena em seu rosto. — Tudo bem com você, Natalie? — Tudo. Estou bem. Vou para casa — consigo dizer. Sinto meu estômago borbulhando e acho que não tenho muito tempo antes de colocar tudo para fora. Esse é o problema de ser a parte do casal que nunca fica bêbada, penso com meus botões, então sorrio por ter a idéia de que consigo culpar Pete até por estar bêbada. Ai, meu Deus, por que eu não parei depois da vodca dupla? — Quer que eu chame um táxi? — o segurança pergunta. Não acredito que ele pode fingir tanta preocupação Agora mesmo tinha sugerido colocar um circuito interno de TV para me ver em uma tela fazendo papel de boba, dançando e conversando com meu reflexo no espelho. Não. Minha. Casa. Fica. Perto. — Entre cada palavra engulo com fúria. Meus olhos têm dificuldade em focalizar as imagens. Vá com ela, Alistair — Lucy sugere, mas eu sacudo cabeça... só vou perceber tarde demais

que isso não é nada bom quando se está prestes a vomitar. Não. Mesmo. Dou uma espécie de aceno e saio andando pela rua, fazendo o maior esforço possível para caminhar em linha reta e não conseguindo, nem de longe. Então, assim que alcanço a esquina, dobro à esquerda bem rapidinho e corro até uma lata de lixo, onde vomito com violência. Agora você não está assim tão desencanada e fabulosa, não é mesmo, Natalie Raglan? Penso comigo mesma, triste. Sentindo-me péssima, com os o lhos cheios de lágrimas e o nariz escorrendo, lentamente aprumo o corpo e tento encontrar meu caminho de volta para casa. Só que, alguns minutos depois, percebo que estou caminhando para o lado errado. Faço uma volta rápida de ,180 graus e, para meu pavor, vejo Lucy e Alistair parados na esquina, olhando para mim. Devem ter visto tudo. Humilhada, tento ignorá-los, mas eles caminham até onde eu estou e me seguram com, firmeza, um em cada braço, e me acompanham pelos cem metros que me separam do meu apartamento. Alistair abre a porta do prédio e Lucy consegue encontrar a chave da porta do apartamento na minha bolsa. — Agora eu estou bem — consigo dizer. — Mesmo. Muito obrigada. Por favor, podem jr embora. — Tem certeza? — Lucy pergunta. — Tenho sim, porra — balbucjo quando caio de cara na cama. — Não fale dormindo — Alistair diz, rindo, quando fecham a porta atrás de si. Devo ter desmaiado, porque a primeira coisa de que me lembro depois disso é de que são três da manhã e estou sedenta. Cambaleio até a cozinha e pego um copo do armário. Jogo água no rosto antes de encher o copo. Na medida em que vou engolindo o líquido, os acontecimentos da noite vão me voltando à mente e eu sinto calafrios de vergonha. Nunca mais vou poder olhar na cara das minhas colegas de trabalho nem do meu vizinho. Sou uma piada completa. Alistair acha que eu estou a fim dele, e todo mundo sabe que eu fiquei dançando no banheiro. Ando até a sala e me sento no sofá. À minha frente está a carta de Gressida. —A culpa é toda sua — digo para a carta com a voz arrastada, como se fosse a própria Gressida. — Se não fosse por você, eu não teria dançado, nem bebido... Naturalmente, a carta não responde. Na verdade, olhando melhor agora, o esmalte vermelho se parece um pouco com. sangue daqui. Gomo se eu a tivesse ferido, como se estivesse sangrando. Eu não tinha a intenção de encher você de esmalte, sabe? — digo. — Não foi minha culpa. Mas você sabe disso, certo? Reviro os olhos ao me dar conta do que estou fazendo. Eu me mudei para Londres para ter uma vida mais emocioante. E aqui estou eu, às três da manhã, falando com uma carta. Pedindo desculpa para ela. Bom, que se dane. É uma carta. Só uma desgraça de uma carta. E se eu quiser abrir, vou abrir, porra. Seguro a respiração, estico a mão na direção do envelope e passo o dedo por baixo da aba, rasgando o papel lentamente. Um certo prazer toma conta de mim, semelhante àquela sensação de quando você compra uma coisa caríssima r e vê o vendedor embalando com papel de seda. sabe que vai se sentir mal dali a algumas horas, talvez minutos, mas no momento você se sente decadente, controlada. O som do envelope rasgando é suntuoso, faço com que o ato de abrir se estenda o máximo de tempo possível.

Seja lá o que há lá dentro, vai ser bom, dá para sentir nos ossos. Enfio mão lá dentro e puxo uma carta. Examino-a com cuidado, então a afasto dos olhos. Por alguma razão, estou tendo dificuldade em enxergar as letras com nitidez. Ah, já lembrei. Ainda estou bêbada. Pisco algumas vezes, então começo a ler. Cara Cressida, Como prometido, estou enviando os detalhes sobre Simon Rutherford. Ele preenche seus critérios: fez grande fortuna no mercado financeiro e tem interesse por terapias alternativas; também é um homem encantador, tenho certeza de que vocês vão se dar muito bem. O endereço dele está abaixo. Mas você também pode entrar em contato com ele na Administradora de Investimentos Henderson, pelo telefone 020 7556 7000. Atenciosamente, Lenora Stapleton Sinto uma pontada de decepção. Este não é um convite para a festa de aniversário da Madonna, nem para o casamento de Giselle Bündchen. Não passa de uma carta de uma agência de encontros. Mesmo assim, serve para mostrar que, afinal de contas, Cressida não pode ser perfeita... Quer dizer, ela nem consegue arrumar namorado sozinha! Saboreando a idéia maldosa de que Gressida provavelmente não é assim tão resolvida quanto eu pensava, examino a carta com mais atenção. Que tipo de agência de namoro uma sócia do Soho House usaria? Será que eles têm celebridades na lista? Quem sabe eu possa me inscrever! Olho detalhadamente para o endereço na parte de cima: não há sinal do nome de uma empresa, então parece que não pode ser uma agência de namoro; não com uma carta escrita à mão como esta. Então, deve ser uma apresentação feita por uma amiga ou algo assim. Leio de novo: "fez grande fortuna no mercado financeiro...n. Que 1 tipo de fortuna? É o que fico imaginando. A parte do "interesse em terapias alternativas" também ajuda a explicar os telefonemas que tenho recebido de gente em busca de terapia de Reiki. Também recebo ligações de gente atrás do restaurante chinês com entrega em casa, então nunca pensei muito sobre o assunto, mas imagino que Cressida talvez seja praticante de Reiki. Eu já fiz Reiki uma vez, em um spa novo de terapias alternativas que abriu em Bath há um ano. O pessoal da região oeste do país adora essas coisas: moramos perto de Stonehenge e dos círculos das plantações, e as pessoas acham que é tudo muito espiritual. De todo modo, uma mulher com cara de hippie simplesmente colocou as mãos bem perto do meu corpo, mas sem encostar, enquanto eu fiquei deitada em um sofá de couro. Realmente, não consegui ver qual era a serventia daquilo, mas evidentemente outras pessoas viram, porque recebeu altos elogios no jornal Bath Gazette. Então, Cressida é terapeuta de Reiki. Será que ela atendia aqui? Cheiro o ar para ver se consigo captar alguma energia espiritual, mas em vez disso só me sinto ainda mais tonta do que antes. Mas é estranho: eu tinha feito uma imagem de Cressida na minha mente como uma mulher toda glamourosa... quer dizer, fale sério, o Soho House apareceu em Sex and the City, e ela janta no Nobu. Já os terapeutas de Reiki andam de chinelo e roupa roxa, não é mesmo?

Retorno à carta, imaginando como será o pretendente a namorado de Cressida. Simon Rutherford. Hurnmm. Provavelmente anda com ternos risca-de-giz e tem barriga de tanto participar de almoços de negócios. Quando eu era pequena, meu pai costumava fazer uma brincadeira sempre que íamos ao dentista. Na sala de espera, havia um monte de revistas Country Life, daquelas que cobrem a vida no interior. A gente folheava até encontrar uma foto de alguma garota linda que tinha acabado de ficar noiva. Meu pai cobria a legenda e nós tentávamos adivinhar qual seria o nome dela. Pensando melhor, talvez não fosse a melhor brincadeira do mundo, mas eu adorava. Eu também ficava imaginando alguém que olhasse para minha fotografia e tentasse adivinhar como eu me chamo. Então, Cressida Rutherford, hein? Nada mal. Droga. Achei que a carta seria muito mais interessante do que isso. Largo o papel e pego mais um copo de água, então retorno para o sofá, mas, antes de chegar até lá, dou uma topada com o dedão do pé. De novo. É a segunda vez em dois dias. Dói para caramba, e eu o aperto com força, xingando bem alto, até que começo a me sentir melhor. Mas esta noite realmente se transformou em uma tremenda piada. Primeiro, eu passo a maior vergonha no Canvas. Então, finalmente abro a carta, só para descobrir que é a maior chatice, e agora ainda dei uma topada com o dedo. Mexo o dedo do pé e, com cuidado, jogo a carta de cima do sofá para o chão, onde é seu lugar. Cressida não tem de passar por essas coisas. Aposto que ela nunca dá topadas com o dedão do pé. E, se desse, aposto que faria um pouco de Reiki e voltaria a se sentir bem. Ela não precisa nem sair atrás dos próprios namorados... ah, não. Por que ela faria isso, se tem amigas como Lenora para aprcsentá-la a jovens solteiros com enormes fortunas? Graças a Deus, eu não preciso de ajuda nenhuma para conseguir sair com alguém. Quer dizer, eu nunca pediria para minhas amigas marcarem um encontro para mim com um desconhecido qualquer. E, de qualquer modo, estou muito bem sozinha, obrigada. Bom, mais ou menos bem. Faço uma leve careta e reflito sobre minha relação recém-terminada com Pete e sobre os acontecimentos desta noite. Então talvez eu não esteja me dando assim tão bem. Ah, danese, estou me dando pessimamente mal. Suponho que uma ajudinha caria bem, afinal. Quer dizer, por que só Cressida fica com toda a sorte? Fico olhando para a carta durante alguns minutos, tentando fazer com que a sala pare de girar. Então, tenho uma idéia. Posso ligar para ele, não posso? Eu, Natalie Raglan. Quer dizer, ele não é propriedade de Cressida, é? Só porque Lenora escreveu para Cressida, isso não quer dizer que outra pessoa não tem o direito de entrar em contato com ele, quer? Não, é claro que não. Pego o telefone e então volto a colocar no gancho. O que eu tenho na cabeça? De todo modo, eu não saberia o que dizer. Fico em pé para ver se, assim, eu me sinto mais decidida. Grande erro: imediatamente me sinto enjoada e sento de novo. Então, rapidamente, antes que tenha a oportunidade de mudar de idéia de novo, teclo o número da carta. — Se você sabe o ramal que deseja acessar, por favor, disque um. Ramal? Ah, que merda. Não faço a menor idéia. — Para identificação por nome, disque dois. Isso! Digito dois. Penso por um minuto, durante o qual fico olhando para as letras no meu telefone, então aperto sete para R, oito para U e oito para T. Espero, nervosa. Será que eu deve-ma ter discado os três primeiros números do primeiro nome dele?

— Para Andrew Ruta, por favor pressione um. Para James Rutger, por favor pressione dois. Para Simon Rutherford, por favor pressione três. Para... Beleza! Rapidamente pressiono três e imediatamente escuto uma voz forte e educada pedindo que eu deixe recado. Respiro fundo. — Você não me conhece — digo lentamente, tentando parecer sóbria e, em vez disso, parecendo um relógio falante. — Mas uma amiga em comum, Lenora Stapleton, sugeriu que eu ligasse. Parece que ela achou que a gente se daria bem. Então, se quiser, ligue para mim. Meu telefone é 020 7221 8790. Ao desligar o telefone, desmaio de novo. CAPÍTULO 4 Acordo muito devagar e aperto os olhos por causa do sol que entra pelo arremedo de cortina fina que cobre as janelas da sala. O sol está forte demais para minha frágil cabeça de ressaca, por isso volto a fechar os olhos, com força. Acho que caí no sono no sofá ontem à noite. Ontem à noite... começo a reconstituir os acontecimentos da noite. Sei que fiz alguma coisa idiota, mas não consigo lembrar o quê. Esse é o problema de morar sozinha. Por um segundo, fico desejando que Pete estivesse aqui para que eu pudesse esconder a cabeça no peito dele e ter alguém ao meu lado para enfrentar o dia. Mas, para ser sincera, ele só daria risada da minha cara e faria com que eu me sentisse pior do que antes. A distância de Pete me fez perceber como a idéia que eu tinha da vida com ele e a realidade eram díspares. E como se eu tivesse passado tantos anos fantasiando que era a namorada dele que não podia me permitir acreditar que tudo foi menos do que perfeito. Até ele começar a desaparecer sem motivo e chegar em casa tarde do trabalho, cheirando a vinho e um leve perfume. Até eu perceber que não tinha como fazer a relação dar certo sozinha. Não, com certeza estou melhor assim. Então, está na hora de dançar conforme o ritmo da música: O que está me deixando tão desconfortável? (Tirando o álcool ainda presente no meu estômago, quer dizer?) Eu gostaria de ser o tipo de pessoa que não quer saber o que aconteceu, mas não sou: preciso analisar cada detalhe de cada minuto. Minha mãe sempre diz que não adianta nada se preocupar com qualquer coisa que você disse ou fez em uma festa, porque ninguém vai ter reparado; as pessoas vão estar muito preocupadas em se preocupar com o que disseram e fizeram para reparar em mim. Mas as pessoas de fato reparam no que as outras pessoas fazem; se não, por que haveria tantas revistas de fofocas nas bancas? Não, é melhor saber a verdade, aceitar a humilhação, e trabalhar em uma estratégia de distração/sair de férias/ arrumar amigos novos. Então, teve a bebida, a dança... ai meu Deus, foi o negócio do banheiro unissex. Eu estava falando comigo mesma sobre Alistair e ele ouviu. Enterro a cabeça em uma almofada, em uma tentativa de bloquear a vergonha. Mas ainda tem alguma coisa me incomodando. Uma outra coisa. Claro, eram Lucy e Alistair conversando com o segurança. Sobre mim. Alistair vai contar para todo mundo e vou ser motivo de piada. Ai, meu Deus, no minuto em que começo a arrumar alguns amigos, já vou lá e estrago tudo. Mas ainda parece que está faltando alguma coisa. Alguma outra coisa aterradora que eu não

consigo especificar. Repasso os acontecimentos da noite mais uma vez... a vodca, minha humilhação completa no banheiro, a dança com Michael, ouvir Alistair e Lucy... Ah, sim, e vomitar na frente de todo mundo e ter de ser levada para casa. Era isso que eu estava tentando lembrar. Contorço-me toda só de lembrar. Tentando ignorar minha cabeça latejante, lentamente rolo para o lado e me coloco em posição sentada. Consigo ficar em pé e me arrasto até o banheiro para fazer uma avaliação do prejuízo. Meu cabelo está todo eriçado e o lápis borrado faz com que eu me pareça com um urso panda. Realmente, é um certo exagero do estilo manhã-chique. Fecho os olhos, coloco um pouco de sabonete facial na palma da mão e o esfrego vigorosamente no rosto; depois enxáguo com água fria até começar a me sentir vagamente humana. Remexo o armarinho do banheiro em busca de alguma aspirina, depois vou até a cozinha, onde me sirvo de um copo grande de suco de laranja. Pelo menos não preciso ir trabalhar hoje. Pelo menos não preciso nem sair de casa. Ninguém precisa me ver, de jeito nenhum. Infelizmente, meus armários da cozinha não oferecem muita coisa em termos de comida de ressaca: não há os cereais, o bacon e os muffins que eu costumava preparar para Pete quando ele estava se sentindo frágil. Examino o conteúdo da geladeira: um pão branco, meio litro de leite, meia caixinha de suco de laranja, fatias de presunto, um tomate, seis ovos. Meu Deus, realmente preciso me lembrar de fazer compras de verdade, em vez de só dar uma passadinha no mercadinho da esquina de vez em quando. Certo, então, ovos mexidos acompanhados por torrada com presunto e tomate parece bom. Só não consigo exatamente reunir a energia para preparar tudo. Sonho com um café com leite do Starbucks com cheesecake de mirtilo, mas isso me obrigaria a sair a rua. E isso está simplesmente fora de questão. Em vez disso, preparo uma xícara de chá e coloco uma colherada extra de açúcar como mimo. Enquanto caminho ate o sofá, vou pensando que as coisas não estão assim tão ruins. Não mesmo. Eu vomitei... bom, todo mundo vomita, não é verdade? E, se eu estava falando sozinha posso simplesmente fazer piada disso, não posso? E se não funcionar, bom, posso me mudar. Quer dizer, meu contrato para este apartamento é só de seis meses, e já faz um mês que estou aqui. Então só vou ter de agüentar a vergonha mais cinco meses e daí posso ir para outro e recomeçar. Tipo a Austrália. O telefone toca e eu pulo de susto. Por que a ligaria para mim às... olho para o relógio... às nove e meia da terça-feira de manhã? Olho para o telefone desconfiada mas ele não desiste, então atendo, com relutância. Provavelmente deve ser alguém ligando para Cressida. _ A1ô? - minha voz diz, mais rouca do que o esperado, e limpo a garganta com muito barulho — Natalie? — A voz e seca e dura. — Mmmmm? _ Que bom que você está em casa. Preciso que você venha trabalhar. A Lucy está doente e estamos precisando de mais alguém aqui. Você pode chegar daqui a uma hora? É Laura. Ela deve estar fazendo piada, certo? Não estou em condições de trabalhar. Reviro meu cérebro em busca de algo que me permita escapar. — Laura, eu adoraria poder, mas... - Creio que você nâo tern escolha, Natalie. Se quiser trabalhar na Tina T, precisa ser flexível. Vaca. Aposto que ela não jogaria essa para cima da Julie. Respiro fundo.

— Tudo bem. Só me dê um tempo para comer alguma coisa, certo? Lá se foram meus planos de ficar em casa o dia inteiro. Não acredito que Lucy avisou que estava doente. Quando deve saber muito bem que não estou em condição de trabalhar. Pulo para dentro do chuveiro e ligo a água no gelado para dar um cheque térmico no meu corpo e ver se acordo. Pelo menos agora vou poder comprar um café bem grande e alguma coisa doce para acompanhar. E, para variar, vai ser um alivio estar sozinha com Laura; ela pode ser uma vaca, mas pelo menos não sabe sobre o incidente de ficar falando sozinha no banheiro. Visto um jeans e botas e pego as chaves. Mas, bem quando vou abrir a porta para sair, alguém bate. Fico paralisada. Uma batida na porta significa alguém que mora no mesmo prédio, se não, tocariam o interfone. E isso significa que ou é algum vizinho de baixos que eu nunca vi, ou Alistair, a última pessoa que eu desejo ver. Fico o mais imóvel possível, na esperança de que a pessoa em questão perca o interesse e vá embora. Mas as batidas recomeçam, e dessa vez vêm acompanhadas de uma voz. — Natalie? Você está aí? Droga, é Alistair. E não estou pronta para encará-lo, de jeito nenhum.

Certo, tenho duas opções. Posso ignorá-lo e torcer para que simplesmente vá embora, ou posso abrir a porta e encarar meu medo. Posso ser fraca, ou posso ser forte. Respiro fundo. — Alistair? Oi! É que eu estou... no banho, desculpa — falo com a voz mais ou menos alta. Certo, sempre existe uma terceira opção. — Ah, tudo bem — diz Alistair, parecendo um pouco acanhado. — Só queria saber se estava tudo bem. Meus olhos se apertam. Será que ele está sendo sincero ou só quer dar um pouco mais de risada de mim? — E, estou me sentindo ótima — minto. — Mesmo? — Ele parece surpreso. — É, na verdade, estou ótima. Absolutamente ótima — digo, mais tentando convencer a mim mesma do que qualquer outra coisa. — Olha, obrigada por me trazer para casa e tudo o mais. Geralmente não costumo dar tanto trabalho assim. — Estou à disposição, sempre que precisar — diz Alistair enquanto eu vou para o banheiro na ponta dos pés, para que minha voz pareça estar saindo do lugar certo. Infelizmente, meu assoalho range muito e faz um barulhão quando eu me movimento. — Tem alguém aí com você? — Ele pergunta. — Aqui? Não! Não, sou só eu. Sabe como é, estou sozinha. — Parece que estou mentindo. Palavras demais. Devia ter dito só "Não" e pronto. — Sei que está. Mas, bom — Alistair prossegue —, estamos indo para o Market Bar, se quiser vir junto. Só vamos tomar café, sem vodca, prometo. — Nós? — Eu e a Lucy. Ela dormiu no chão do meu apartamento ontem à noite e me acordou cedo pra caramba, então acho que ela me deve o café-da-manhã.

— Ah, certo, maravilha! — Então, Lucy dormiu no chão do apartamento de Alistair, foi? E agora a coitada da Lucy doentinha vai ao Market Bar com Alistair enquanto eu vou trabalhar? Ouço alguém descer a escada. — Ela vem com a gente? — ouço Lucy perguntar a Alistair. — Não sei. Está tomando banho. Acho que tem alguém aí dentro com ela. — Não tem ninguém aqui comigo! — berro, indignada. — Estou sozinha no banheiro. — Que amor — Lucy diz com sua voz cantada. — Vai sair logo? — Na verdade, a Laura pediu que eu fosse trabalhar hoje — digo, de propósito. — Não tem mais ninguém lá hoje. — Você está de piada, não está? Devia ter ligado para dizer que estava doente... foi o que eu fiz! — Eu sei — digo, de mau humor. — Bom, então quem sabe a gente se vê mais tarde, heim? — Claro — respondo. Mais tarde, depois de você passar um dia adorável com Alistair e eu passar um dia horrível no trabalho, penso, irritada. — Vocês vão rir muito, não vão? — Grito antes que consiga me segurar. — Quer dizer, parecia que vocês estavam dando boas risadas ontem à noite. — Você ouviu? — diz Lucy, rindo. — Meu Deus, é hilário. Vamos nos divertir muito com isso amanhã no trabalho! Não dá para acreditar, ela nem parece ter pena de mim. Parece que é perfeitamente adequado tirar sarro de alguém. Na cara! Ainda assim, eles me trouxeram para casa. Isso eu estou devendo. — A gente se vê depois, então. Divirta-se com seu amigo inexistente — Alistair diz enquanto Lucy tropeça escada abaixo atrás dele. Apóio o corpo na parede. Estou cansada, minha cabeça dói e preciso ir trabalhar. Meus novos amigos estão rindo descaradamente de mim, e ainda tenho bastante certeza de que estou me esquecendo de alguma coisa... algum outro passo em falso que certamente vai voltar para me assombrar. Pelo menos, hoje Laura não vai conseguir me deprimir. Eu já fiz um bom trabalho nesse quesito sem a ajuda de ninguém.

Passo as primeiras horas de trabalho me castigando por não ter dado alguma desculpa quando Laura ligou. Quer dizer, mal tem movimento hoje, mesmo. Não era exatamente um caso de vida ou morte. — Natalie? Natalie! Você pode vir aqui um instante? Sou acordada de meu retiro quando Laura me chama para ajudar uma compradora. Desculpe, cliente. Parece que compradora é um termo muito antigo e passa a idéia errada a respeito da política da Tina T: estamos aqui para trabalhar com nossas clientes, não para servi-las. Ou qualquer coisa assim; foi o que Laura me disse quando eu comecei no emprego, mas não achei que ficaria tempo suficiente para precisar me preocupar com isso. O que me lembra de que preciso começar a procurar outro emprego. Mas a questão é a seguinte: que tipo de emprego? — Natalie, será que você pode dar uma olhada no estoque para ver se não tem um vestido Vivienne Westwood tamanho 38? Tenho certeza de que ainda temos um

em algum lugar, mas não estou achando na loja. Olho com ar vago para o vestido. — Ah, sim, nós tínhamos um tamanho 38 desse — digo a Laura, antes de rne dar conta de por que ele parece conhecido. É o vestido que Julie usou ontem à noite. Aquele que ela só vai devolver mais tarde hoje... isso se ela se lembrar. Ai que merda. Desço até o estoque e finjo remexer nas roupas. Então realmente começo a procurar, como se pudesse mesmo estar ali, afinal de contas, escondido entre os Balenciaga ou algo assim. Mas é claro que não consigo encontrar... até onde eu sei, pode ser que Julie ainda esteja usando. Depois de alguns minutos, volto para a loja. — Laura, não consigo encontrar — digo em tom de desculpa. — Tenho certeza de que está lá embaixo em algum lugar, mas simplesmente não sei onde. Laura olha para cima e seus olhos se apertam. — Se estivesse lá embaixo, tenho certeza de que você encontraria — ela diz em tom gélido, então se volta para a cliente com um sorriso enjoado no rosto. — Vou ver se conseguimos encomendar um para você, Deborah. Se não, acho que dá para ajustar o tamanho 40... Passo o restante da tarde torcendo para que Laura não vá procurar o vestido de novo... eu ligaria para Julie se tivesse o telefone dela, mas, como Jason já deve ter descoberto, ela não está na lista. Felizmente, parece que Laura esquece o assunto. Mas quando pego minhas coisas para ir embora, ela me encurrala. Detesto quando Laura se aproxima demais de mim. A distância, ela parece quase simpática, apesar do jeitão magrela e atormentado dela. Mas, de perto, dá para ver como o rosto dela é emplastrado de maquiagem, que quase não tem carne na face. — Você sabe de que vestido eu estava falando, não sabe? — ela diz, ameaçadora. — O Westwood. — Sei — respondo da maneira mais calma que consigo. — Achei que tínhamos um tamanho 38, mas talvez tenha sido vendido ou algo assim. — Tenho certeza de que não pareço convincente e, não pela primeira vez hoje, desejo que Julie estivesse aqui. Ela seria capaz de enrolar Laura direitinho. — Eu conferi, e não foi vendido — ela diz em voz baixa. — Agora, ouça bem, Nataíie. Eu sei que vocês pegam roupas emprestadas e acham que eu não vou reparar. Mas eu reparo. Se por um instante eu suspeitar de que você estava mentindo para mim, vai ser mandada embora e todo o prejuízo será pago com seu salário. Estamos entendidas? Fico olhando para ela com raiva. A pior coisa é que, apesar de estar ultrajada pela acusação dela, realmente fico feliz por ela achar que eu caberia no vestido de Julie (ou melhor, no vestido da Tina T), com aquela cinturinha minúscula. — Realmente não sei do que você está falando — digo calmamente. Está na hora de ir para casa e eu realmente gostaria de terminar o dia sem perder a paciência. — Ah, acho que sabe sim, Natalie — Laura diz e sua boca se contorce em uma espécie de sorriso. — Lembre-se apenas da nossa conversinha, pode ser? Claro que vou me lembrar — digo em tom calculado quando saio da loja. — E espero que você se lembre de que eu não tenho nada a ver com aquela porcaria de vestido. Eu sabia que não devia ter me levantado da cama hoje.

Ainda está claro quando eu chego em casa, depois de não encontrar ninguém no Market Bar, e abro a janela da sala para deixar entrar um pouco de ar. Meu apartamento está com o mesmo cheiro que estava de manhã (de ressaca, sono e roupas com cigarro). Alistair não está em casa (eu me esgueirei até a porta do apartamento dele antes de entrar no meu, só para ver se ouvia alguma coisa, mas estava tudo em silêncio). Para ser sincera, estou começando a me sentir bem melhor a respeito de tudo, agora que adquiri uma certa perspectiva. Não foi assim tão vergonhoso. E ele realmente me convidou para um café hoje. Isso pode não parecer muita coisa para você, mas há algumas semanas eu ficaria em êxtase completo e absoluto se recebesse um convite de Alistair (ou de qualquer cara remotamente interessante). Não há nada como estar sozinha para transformar qualquer evento social em algo extremamente emocionante. Estou começando a perceber por que, quando eu era pequena, minha mãe costumava se arrumar tanto para ir jantar com meu pai: acho que, na época, era tudo o que ela tinha. Pego o livro Feira das vaidades de novo e retomo a leitura. Estou meio que simpatizando com a protagonista Becky, e não tenho certeza se essa é a minha intenção: ela realmente é a vilã da história. Antes que eu possa tirar qualquer conclusão de tudo isso, sou interrompida pelo telefone tocando. Tiro o fone do gancho e espero ouvir a voz da minha mãe. Ou alguém ligando para Cressida. — Alô. — Ah, Alô. — É uma voz de homem. Que eu não conheço. — Eu, hum, meu nome é Simon. Simon Rutherford — a voz prossegue. — Você, ahm, deixou uma mensagem para mim... ontem de madrugada, parece. Bem tarde. E, na verdade, eu fiquei bem curioso. Então não é a minha mãe. Mas quem é? O nome não me parece estranho. E a voz até parece um pouco familiar. Bom, não exatamente familiar, mas meio que me lembra alguma coisa. Ou alguém. — Simon Rutherford? — pergunto, tentando ganhar tempo. — É. Eu trabalho na Henderson. Você deixou um recado para mim no trabalho. Acho que foi a Lenora que deu meu telefone? — Hum, será que você pode esperar só um instante? — digo com a voz esganiçada, e coloco o telefone no chão. Em algum lugar no fundo da minha memória, vejo a mim mesma abrindo a carta de Cressida, lendo seu conteúdo. Pegando o telefone e ligando para alguém... Meu coração começa a bater forte e olho para o lado do sofá. Claro, tem uma carta ali no chão. Pego e leio. Ai, que bosta. Por que eu sou tão idiota? Respiro fundo algumas vezes. Certo, deve haver uma saída para isso. Mas qual? Ouço uma voz vindo do telefone e rapidamente o levo ao ouvido. — Desculpe por isso — consigo dizer. — Eu estava... hum... cozinhando. Não queria que os legumes... hum... passassem do ponto. Olha, desculpa pelo recado. Eu realmente não devia ter ligado. Minhas mãos estão completamente molhadas de suor. — Você deve estar achando que eu sou completamente louca — concluo com a voz fraca. — De jeito nenhum! Acho que você é bem corajosa de simplesmente ligar para alguém. Apesar de três da manhã me parecer, bom, um horário interessante para isso. Você sabe por que a Lenora achou que a gente podia se dar bem? Eu realmente não a

conheço assim tão bem... ela é mais uma amiga da família... eu só fiquei curioso... Merda. Ela é amiga da família. Ele a conhece. Vai contar para ela, e ela vai contar para Cressida, e Cressida vai saber que fui eu... Remexo meu cérebro em busca de uma resposta adequada, mas não consigo pensar em nada. Onde eu estava com a cabeça de ligar assim para ele? Graças a Deus que só tinha o telefone do trabalho. — Ah, eu realmente não sei... acho que foi só uma idéia dela — termino por dizer. — Bom, se você estiver a fim, estou dentro. — A fim? — De me encontrar. Ele quer se encontrar comigo. Ele realmente quer se encontrar comigo. Coloco a mão no bocal e solto um "ai, meu Deus" baixinho, antes de me recompor. — Ótimo! — ouço a mim mesma dizer— Quando é bom para você? — Quando? Ah, hum... — Finjo estar conferindo a agenda. — Bom, na sexta é bom para mim. — Para mim também. Que tal lá pelas oito? E tudo bem a gente marcar no West End? Estava pensando que a gente podia ir ao Momo. — O Momo seria fantástico. Não faço a menor idéia do que é Momo nem onde fica. — Maravilha. Bom, hum, a gente se vê lá, pode ser? Tem só, hum, uma coisa — Simon diz, cheio de hesitação. — O que é? — O seu nome. Você, hum, não me disse qual é o seu nome. Quando deixou a mensagem. —O meu nome... — Certo, esta deveria ser uma pergunta fácil. Mas não posso dizer a verdade a ele. Minha história não se encaixaria na realidade, Lenora diria que nunca ouviu falar de mim e eu provavelmente seria presa por abrir a correspondência de outra pessoa. Eu sabia que não devia ter aberto aquela carta. Eu sabia que causaria problemas. Mesmo assim, acho que não faz muita diferença. Até parece que eu vou ao nosso encontro insignificante. — Meu nome é Cressida — ouço a mim mesma dizer. — Cressida Langton. — Bom, Cressida Langton, a gente se vê na sexta. E então a linha fica muda.

CAPÍTULO 5 — Você já foi ao Momo? É sexta e, depois de passar a semana inteira com Laura no meu pé, finalmente consegui ficar um minuto a sós com Julie. Ela olha para mim como se eu fosse louca. — Ao Momo? Claro que sim. Por quê? — Ah, por nada, só queria saber. É legal, não é? — É bacana, para quem gosta desse tipo de coisa. Fico com vontade de perguntar que tipo de coisa é essa, mas não posso, não agora que fingi já ter ido lá. Vou ter de ligar para o serviço de informação. Não que eu esteja planejando ir, é claro.

— Aliás, a Laura está procurando o vestido da Westwood — digo enquanto dobro algumas camisetas Clements Ribeiro. — Você vai ter de tomar cuidado para devolver à loja, porque ela procurou no estoque na segunda. Já dei um jeito — diz Julie, cheia de segurança. — Coloquei na arara do Dolce & Gabbana. Sabe que eles são mesmo bem parecidos? Alguém poderia muito bem ter posto lá por engano, não é mesmo? — Olho para ela com admiração. Realmente, é uma profissional. _ Natalie, ouça, será que a gente pode ter uma palavrinha antes de você ir embora? É sobre segunda à noite Meu coração se aperta. Ninguém comentou nada a respeito do Canvas a semana toda... achei que estava tudo esquecido. E agora Julie vai perguntar se é verdade que eu falo sozinha na frente do espelho. Ou vai dizer que eu preciso aprender a beber. Ou... - O negócio é o seguinte... — ela prossegue — O pessoal anda falando, e eu não sei quem espalhou o boato, mas queria esclarecer algumas coisas. Quem anda falando? Fico imaginando. Quando? - De mim? - digo, resignada. - Olhe, Julie, eu não costumo falar sozinha daquele jeito. E não sabia que o Alistair estava lá... - Você? Não. Mas eu quero saber sobre esse negócio de falar sozinha depois. Olha, não é nada demais alguém me viu com o Jason no banheiro e eu queria esclarecer que não costumo fazer esse tipo de coisa. Não em publico, de todo modo. Que tipo de coisa? — Certo — digo bem devagar, tentando descobrir do que Julie está falando. O que da e Jason podem ter feito no banheiro? A menos que... Não pode ser... - Julie, está dizendo que você e o Jason... - Trepamos. É. E agora o segurança sabe e isso significa que vão ficar tirando sarro da cara do Jason toda vez que ele for trabalhar. Eu adoraria colocar as mãos na pessoa que contou para ele. Mas, olha, você não ficou chocada nem nada, né? Começo a rir. Então, era disso que Lucy e Alistair estavam rindo. Alistair não contou para ninguém sobre o lato de eu ficar falando sozinha, afinal de contas. E quando Lucy estava na porta do meu apartamento na terça, estava falando de como a gente ia se divertir tirando sarro de Julie... Meu Deus, não acredito que ela e o Jason treparam no banheiro. — Acho que é fantástico — respondo com um sorriso. — Sinceramente, gostei muito dele. — Eu também —-Julie responde. — Mas não se atreva a contar para ele.

Tem uma mulher olhando um par de sandálias Gucci. Compreendo totalmente a cara dela... quer dizer, são lindas. Mas não acho que eu usaria: são muito altas e pontudas, e simplesmente um pouco excessivas para as roupas do meu guarda-roupa, mas mesmo assim. É preciso apreciar a beleza quando se vê, e esses sapatos são a beleza encarnada. — São bonitas, não são? — digo e me aproximo. — Quer experimentar? Ela assente com a cabeça, agradecida. — Também preciso de alguma coisa para combinar com elas — a mulher diz, com um sorriso estampado no rosto. — É para uma festa. Tem de ser sexy. Dá para ver Julie medindo-a de cima a baixo de trás do caixa, onde está registrando alguns lenços para uma de nossas clientes assíduas. Julie divide nossas comprado-ras, desculpe, clientes, em cinco tipos distintos. Tem o não posso comprar, mas e daí?, que realmente não

devia entrar na loja; quer dizer, elas não têm cartões de crédito gold nem milhares de libras guardadas no banco, mas têm cartões de crédito normais. A tendência delas é comprar com bastante rapidez, correndo de um lado para o outro e experimentando um monte de coisas antes que a consciência (ou o gerente do banco) tome delas quando entram no provador. Em seguida há as que "compram para investir", que aparecem cerca de quatro vezes por ano e compram montes de coisas para trabalhar ou para o fim de semana sei lá para que, e basicamente querem que você lhes diga o que comprar e confiam muito em você. São as clientes ideais porque, se gostarem de suas sugestões, voltam sempre e, quando o fazem, gastam uma fortuna. Julie tem um caderno todo cheio de nomes e telefones desse tipo de cliente e chega para elas quatro vezes por ano para falar sobre as coisas lindas que acabamos de receber e que elas vão “amar”. Sempre funciona. Daí, há as “fashionistas”, que passam lá um avez por mês (ás vezes mais), para pegar as novidades mais fresquinhas, seja um vestido Marc Jacobs, uma bolsa Prada ou um maiô Missoni. Querem tudo o que é novo, desejam comprar antes que a peça vá para a vitrine e geralmente são editoras ou produtoras de revistas. Nunca usam o nome inteiro para nada, perguntam por Choo e Dolce como se fossem seus melhores amigos. O que provavelmente acontece porque são mesmo os melhores amigos delas, sabe como é, de um jeito esquisito. E sempre esperam que você saiba quem elas são. Como se fossem celebridades ou algo assim. Normalmente, também não são muito fáceis: tipo, se você faz alguma sugestão, ficam olhando como se você fosse completamente louca, e se pedem uma peça que ainda nem foi desenhada, ficam todas chorosas se você diz que está em falta. Ainda assim, são bem boas para ficar falando mal de modelos e essas coisas. Em seguida vêm os casais, que acredito já ter mencionado: aparecem aos domingos e, para eles, fazer compras e um pouco parecido com preliminares. As mulheres experimentam coisas e mostram para os homens, que ficam sentados em poltronas confortáveis de couro e olham para elas com aprovação; depois tiram do bolso os cartões gold e mostram como são ricos. É como um jogo de poder: quanto uma mulher pode fazer com que um homem gaste com ela? Normalmente, muito (desde que a mulher escolha as coisas de que o homem gosta). Marcas italianas costumam fazer muito sucesso, ao contrário de peças desconstruídas ou sem forma, ainda que remotamente. Os casais são os meus preferidos porque são os que mais gastam, parecem estar se divertindo com a atividade e eu não fico me sentindo culpada de ver as pessoas estourando o limite do cartão sem necessidade. Tirando o fato de que alguns homens acham que gastar muito dinheiro na loja lhes dá o direito de dar tapinhas na minha bunda ou espiar outras mulheres no provador. Eu detesto isso. Finalmente, temos as "mulheres de sábado", que querem comprar alguma coisa para vestir em um encontro importante. Às vezes chegam em dupla, ocasionalmente em trio, e são o maior pesadelo. Querem experimentar tudo, e querem que a roupa mude o formato do corpo delas, faça o cabelo ficar brilhante, melhore a postura e, de maneira geral, deixe-as irresistíveis. "Quer dizer", ouço Julie dizer vez após outra, "roupas boas fazem diferença, às vezes, muita diferença, mas não fazem milagre". Ela se irrita de verdade porque as "mulheres de sábado" sempre discordam em relação ao que fica bom e ao que não fica. Então, uma mulher pode ficar bem feliz com um jeans, mas a amiga dela vai fazer aquela boca torcida, de modo que a primeira começa a duvidar se a calça funciona mesmo, afinal, e daí a gente ouve a frase imortal: "O que é? A minha bunda fica grande ou o quê?", e daí já dá para saber que ela não vai comprar. Eu também ficaria irritada, não fosse pelo fato de Chloe e eu sermos totalmente culpadas.

Não tenho certeza se a minha cliente é uma "não posso comprar, mas e daí?" ou se "compra para investir"; sabe como é, uma que tenha se esquecido de levar roupa de festa quando fez a compra da estação. E isso significa que eu não sei se a conduzo para a linha de luxo ou para os produtos mais baratos. — Você tem alguma coisa em mente? — pergunto a ela. — Temos centenas de vestidos que seriam ótimos para uma festa. Depende do tipo de festa. — Feminina e sexy — ela responde imediatamente. — Tinha um vestido legal na vitrine... Acho que sei de qual ela está falando. Recebemos um carregamento inteiro de vestidos Marc Jacobs outro dia: tem um amarelo-limão lindíssimo, mas a pessoa teria de estar bem bronzeada para usar aquela cor, e alguns outros de uma cor meio rosada puxando para o pêssego. O que me faz pensar em investidora, já que cada um deles custa quase mil libras! Não tenho lá muita certeza se vão ficar bem nela (parece meio grandalhona para um Marc Jacobs), mas não dá para saber. Pego vários e levo a moça para o provador. O primeiro fica horrível: é justo demais nos lugares errados. Mas daí ela veste um rosa fantástico, todo coberto com fitas e um lacinho na cintura: parece uma madrinha de casamento ou algo assim. Não é exatamente sexy, mas com certeza feminino. Suspira ao ver o reflexo. — Então, é um festão? — Mais ou menos — ela responde, sem tirar os olhos do espelho. —Na verdade, é um jantar. Com meu namorado. Só que estou esperando que, até o fim da refeição, ele não seja mais meu namorado... se é que você me entende. Olho para ela meio incerta. — Então, você quer terminar com ele? — Não! — responde, rascante. — Quero é terminar o jantar sendo noiva dele! — Claro que sim! — emendo rapidamente, xingando a mim mesma pelo deslize. — Então, está à procura de um vestido de "resultado", hein? Bom, temos modelos mais sensuais, mas depende do gosto dele... — Não, este aqui é perfeito. Sabe como é, fico com cara de quem daria uma boa esposa — ela responde e vira para contemplar a bunda. Seguro um espelho para ela. — Então, o que seu namorado faz? — Na verdade, trabalha no mercado financeiro, Fico um pouco sobressaltada. Não foi isso que Lenora disse que Simon fazia? — E mesmo? — digo, tentando disfarçar meu interesse. — Tenho uma... amiga que tem um encontro com um cara que trabalha no mercado financeiro. Parece muito interessante. Ela sorri para mim. — Não é nem um pouco interessante, e ele também não é. Aliás, para dizer a verdade, nenhum deles é — ela diz. — Mas é muito recompensador financeiramente. Diga para sua amiga para segurar firme. Certamente, essa é a minha intenção. E acho que este pode ser o vestido perfeito para fechar o negócio. — Quanto... quão recompensador? —pergunto antes de conseguir me segurar. Meu Deus, como eu queria conseguir ficar de boca fechada... simplesmente não dá para sair por aí perguntando às clientes quanto o namorado delas ganha. Mas, em vez de ficar ofendida, o sorriso dela aumenta ainda mais. — Bem, digamos que — ela diz, com suavidade —, se este vestido funcionar, não vou "ter que" fazer nada, nunca mais. De acordo com a minha experiência, é muito fácil agradar quem trabalha no mercado financeiro. Se ele quer alguma coisa — ela pisca de maneira

conspiratória para mim —, ele consegue. E desde que ele continue obtendo o que deseja, bom, eu também consigo tudo o que eu quero. Ele me deu um cartão platinum, sabe. Bom, acho que vou precisar de uma bolsa para combinar. O que você acha? Quando ela sai da loja com suas compras novas, minha cabeça está rodando. Percebo que é como uma transação de negócios. Eu nunca poderia fazer isso. Se as pessoas que trabalham no mercado financeiro são assim, não vai ter jeito de eu ir me encontrar com Simon. Não mesmo. Minha euforia de ter feito uma venda tão grande não dura muito. Laura está de péssimo humor, e isso significa que o restante do dia é bem difícil para todo mundo. Mas consigo convencer uma garota de que ela precisa, sim, comprar uma calça Helmut Lang e uma bolsa Marc Jacobs, o que significa mais comissão hoje. Se eu continuar assim, logo meu apartamento estará cheio de tapetes e abajures novos. Mas eu não me importaria em ter uma calça Helmut Lang daquelas, na verdade... acho que ficaria ótima em mim. Imagino a mim mesma entrando no Canvas, com aquela calça e sandálias Gucci de salto alto. E então, ao voltar para casa de uma noitada, eu ataco Alistair na escada ou algo assim... — Com licença. Ergo os olhos, absorta em pensamentos sobre Alistair sem querer ou de propósito esbarrando em mim e beijando minha nuca antes que consiga se segurar. A garota comprando a calça Helmut Lang e a bolsa Marc Jacobs olha diretamente para a máquina de cartão de crédito. — Ah, desculpe! — digo, sorrindo. — Certo. São 648 libras, por favor. Mas, antes que ela possa me entregar o cartão de crédito, Laura me chama. — Desculpe, Laura, espere um minuto... estou atendendo uma cliente! — respondo, alegre. Mas, em vez de assentir, Laura vem na minha direção.— Não, não posso esperar um minuto — ela silva por entre os dentes. — Venha aqui agora. Espumando por dentro, dou um sorriso de desculpa para minha cliente, que meio dá de ombros, e vou até onde Laura está. Bem ao lado da arara Dolce & Gabbana. —Natalie, você sabe o que é isto? — ela me pergunta. Olho para o vestido Westwood que ela aperta entre as mãos. — Um vestido Dolce & Gabbana? —pergunto. Ela fica olhando para mim fixamente, irradiando ódio. — Não, Natalie. Você sabe e eu sei que não é um Gabbana. Este é o vestido Westwood que eu estava procurando outro dia. Está lembrada? A voz dela está bem baixa e suave, mas dá para sentir a raiva que emana dela. Tento parecer surpresa, até assombrada. — Não, é mesmo? Meu Deus, eu não pensei em procurar aqui. — Não? Bom, eu procurei. E, naquele dia, não estava na arara. — Você... tem certeza? —pergunto a ela, olhando em volta, à procura de Julie. — Quer dizer, será que você não prestou atenção? Tento dar um sorriso reconfortante para Laura, mas ela só fica mais brava. — Natalie, você acha isso divertido? Você acha graça no fato de um vestido de oitocentas libras desaparecer e reaparecer na arara errada dias depois, com uma etiqueta de lavagem a seco nele? Porque eu certamente não acho. Meus olhos se apertam. Se ela acha que vai jogar a culpa do vestido "perdido" em cima de mim, pode mudar de idéia. Mordo o lábio para não dizer alguma coisa que me faça ser demitida e olho fixamente para Laura,

perguntando a mim mesma onde estão o Espantalho e o Homem de Lata quando a gente precisa deles. — Essa é uma questão muito séria, Natalie. E você ficar aí olhando para mim desse jeito não vai fazer com que melhore nada. Olho para o chão, então penso, que se dane, e volto a encará-la. — Não tem nada a ver comigo — digo com a maior calma possível. — Então, quem é responsável pelo fato, Natalie? — Meu Deus, percebo que ela está mesmo saboreando o momento. — Não sei — respondo na lata. Tenho vontade de completar com um você deveria saber que roupas Westwood não são exatamente para o meu corpo, mas só serviria para incriminar Julie. — Certo, faça como quiser — Laura diz, gélida. — Mas garanto que isso não é o fim desta questão específica. Agora, que tal você voltar à sua cliente? Ou também vai ignorar esse aspecto do seu contrato? — Eu não queria abandonar minha cliente, para começo de conversa — digo, bem assertiva, e me viro para retornar ao caixa. Mas a garota não está mais lá. Rapidamente, dou uma olhada na loja toda, mas ela não está mais à vista. — Julie — grito, com rapidez —, você viu minha cliente? — A garota com a bolsa Marc Jacobs? Ela saiu há alguns minutos. — Mas ela não tinha pago! — berro. — Ela não levou as coisas, levou? Mas já sei a resposta. Claro que levou. Estava tudo embalado e prontinho. Ouço uma risada oca atrás de mim quando Laura se aproxima. — Parece que seu salário vai ter o maior rombo neste mês — ela diz, e passa por mim com os lábios apertados em um sorrisinho. — Sinto dizer, Natalie, mas se me causar mais um problema, vou ter de dispensá-la. — Antes que eu possa dizer qualquer coisa, ela desaparece para dentro do estoque e me deixa lá, tremendo de raiva e de humilhação. — Tudo bem? —Julie pergunta. —Apenas ignora ela deve estar na TPM ou algo assim. Mas eu não posso ignorar. Estou tão brava e aborrecida que não sei o que fazer. Como Laura ousa dizer que vai me demitir se foi ela mesma que me forçou a largar minha porcaria de "cliente" para olhar um vestido idiota? E Julie... ela não percebe que tudo isso só aconteceu por causa dela? Ergo os olhos e vejo Alistair e Lucy espiando pela vitrine. — Anime-se! — Alistair me diz alegremente quando segue Lucy loja adentro. Tento sorrir, mas não adianta nada, meu rosto está paralisado em uma enorme careta. Sem entusiasmo nenhum, pergunto o que eles estão fazendo. — Ah, sabe como é, isso e aquilo. Fomos ao Ground Floor Bar ontem à noite. Hoje vamos a uma festa com os amigos da faculdade da Lucy... aquele estilo de vida debochado que meus pais tanto desprezam — ele diz e remexe na arara Maharishi. — Luce, você acha que essa calça ficaria bem em mim? Antes que ela possa responder, Laura reemerge do estoque e Lucy vai até ela com rapidez, para falar sobre o horário da semana seguinte enquanto Alistair finge ser um cliente de verdade. De má vontade, finjo ajudá-lo a encontrar uma calça, mas não consigo me concentrar. O que toma conta da minha mente é tentar encontrar uma maneira de me vingar de Laura. Colocar aranhas nos sapatos dela, açúcar em seu café... coisas bem maduras assim. Julie se aproxima.

— Alistair, nem pense em Maharishi. Vai ficar ridículo em você — ela diz, assertiva. Ele sorri para ela. — Então, Julie, vai sair hoje à noite? O que vai ser? O banheiro do Market Bar, ou que tal o do Electric? Ouvi dizer que no do White Swan tem uns sofás bem confortáveis... muito mais confortáveis do que os vasos de metal do Canvas... Julie pega Alistair pela orelha. Para alguém tão pequena, ela sabe ser bem assustadora quando quer. — Mais uma palavra, só mais uma palavra e eu jogo você na rua através da vitrine. Ouviu bem? Ele ergue os olhos com ar de cordeirinho. — Não falo mais — concorda. — Acho que é maravilhoso duas pessoas serem capazes de se expressar com tanta liberdade... — Os olhos dele brilham de sarcasmo, e eu me vejo sorrindo apesar de tudo. Meu Deus, ele é bonito, penso momentaneamente esquecendo como estou P da vida. Antes que Julie possa bater nele, Lucy aparece. _ Alistair, comporte-se. Ele sorri. — Eu não disse nada. Não foi, Natalie? Ele olha para mim suplicante e eu dou um meio sorriso. — Natalie, ignore. Então, o que podemos fazer por vocês dois? — Só passamos para dar um oi — diz Lucy. — Achei que você tinha vindo, provavelmente, para pegar umas roupas emprestadas — diz Julie. — Bom, não vai dar. A Laura está aqui e você não vai ter oportunidade de pegar nada. Desculpe, querida, mas hoje à noite é só jeans para você. Lucy dá de ombros. — Ah, tudo bem, não faz mal. Alistair, vamos embora? — Claro. Então, o que você duas, adoráveis senhoritas, vão fazer hoje à noite? — Não que seja da sua conta, mas eu vou ao bar Rumba — Julie responde com brilho nos olhos. — Acho que está na hora de explorar meu lado latino, se é que me entende. — Vai com alguém especial?— Alistar pergunta em tom seco. — Vou --Julie olha fixamente para Alistair, desafian-do-o a perguntar quem. Em vez disso, ele se volta para mim. — Percebo. E você, Natalie, que planos emocionantes tem para hoje à noite? — Não tenho certeza — digo, depois de uma pausa. Gostaria de sair com ele e Lucy, mas não posso exatamente dizer isso. — Talvez vá jantar no Momo. — No Momo, hein? Que bacana. Bom, acho que somos só eu e você, Luce. Vamos começar pelo Elgin e ver o que acontece? Lucy fica olhando para um macacão de seda intensamente. — Não adianta nada, vai ficar aí mesmo, no cabide — diz Julie. — É — Lucy responde e dá de ombros. — Eu sei. Certo, Alistair, vamos. Mas você é quem paga as bebidas hoje; ontem à noite, me deixou lisa. Quando saem da lojas fico imaginando se poderia sair com eles se não tivesse dito que tinha um jantar. — Não fico surpresa de ver que você está vermelha — diz Julie. Ergo os olhos com rapidez. Será assim tão óbvio que gosto de Alistair? — Francamente, você tem um encontro legal e nem me conta. Então, diz aí. Quem é? Fico olhando para Julie sem entender nada. Do que ela está falando? — Momo? — ela diz, e eu me ligo. — Ah — respondo, sem entusiasmo. — Não é um encontro de verdade. Quer dizer, é só um

jantar com uma pessoa... — Para mim, parece um encontro. — Julie sorri. — Então, o que você vai vestir? — Ah, sei lá, acho que só um jeans. Não quero dizer a ela que, como na verdade não vou, o que vou vestir não faz a menor diferença. — Jeans? Hummmm. Então, não está a fim de se dar bem, certo? Ergo os olhos, chocada. — Não! — Bom, só estava perguntando. Sabe o quê? Lembra o jeans com top preto Gucci que estava na vitrine na semana passada? — Está falando daquele decotado até a cintura? — Sei do que ela está falando. É o tipo de coisa que J.Lo usaria. Ou alguém com a barriga tão lisa que não faz pregas quando senta. Eu, por acaso, não sou detentora de tal barriga. Não... aquele é legal, mas não para jantar. Estava pensando no frente-única — diz Julie, pensativa. Agora sim, penso. Vi alguém experimentá-la antes e é linda. Imagino a mim mesma entrando em um restaurante refinado com uma blusinha frente-única sexy e salto alto. Mas logo elimino a imagem da mente. Não vai ter como eu pegar roupa emprestada, e não vai ter como eu sair para jantar com um cara que trabalha no mercado financeiro. Vou ligar para Simon e cancelar. Meu dia foi uma bosta, e a última coisa de que preciso é passar a noite na companhia de um sujeito que trabalha na bolsa e é obcecado por dinheiro e espera que eu faça tudo o que ele quiser para ganhar um cartão platinum. — Não sei bem se é esse tipo de jantar — digo com um sorrisinho. Julie tem boa intenção, mas ainda não esqueci que a razão por que Laura me detesta é culpa quase toda dela. — Você é quem sabe — ela diz e se afasta, para ajudar uma cliente a escolher uma bolsa Clements Ribeiro. Olho para o relógio. Não posso mais enrolar; realmente preciso ligar para Simon e dizer que não vou poder jantar. Ir encontrar-me com ele seria loucura. Simplesmente não posso entrar no Momo e jantar com um sujeito que acredita que meu nome é Cressida e tem uma relação próxima com Lenora antiga amiga da família. Além do mais, eu nem sei onde o Momo fica. Dirijo-me para o estoque para pegar meu celular, mas Laura me chama antes que eu chegue lá. — Natalie, já que você tem tempo de ficar aí olhando para o nada, será que poderia ser útil e ir buscar um pouco de café e leite? Está quase acabando, e tenho algumas clientes que vão vir mais tarde. Aliás, é melhor trazer um pouco de vinho também. Vá até a Corney and Barrow e peça o de sempre, pode ser? Laura sempre oferece café ou vinho para as clientes assíduas ou para qualquer pessoa que tenha cara de quem vai gastar um monte de dinheiro. Ou que pode se transformar em cliente assídua. Parece que a gente sabe exatamente para quem deve oferecer café e para quem deve oferecer vinho e para quem não se deve oferecer nada. Julie geralmente tenta oferecer vinho para todo mundo porque, quando uma garrafa é aberta, temos permissão para acabar com ela quando a loja fecha. Mas Laura cortou nosso barato e disse que só podemos oferecer vinho se perguntarmos para ela primeiro. E isso significa que, agora, só ela distribui o álcool.

Faço um gesto de aceitação e me dirijo para a Ledbury Road. Na verdade, fico aliviada de poder sair da loja: um pouco de ar fresco vai me fazer bem. Além do mais, a Corney and Barrow fica bem na frente da West Village em Kensington Park Road, uma lojinha fofa que tem uma saia esvoaçante linda na vitrine. Se eu conseguir pegar o café bem rápido, vou ter tempo de experimentar antes de comprar o vinho, e Laura não vai nem desconfiar. Dou uma corridinha e abano para Michael quando passo na frente da Joseph. Ele sorri e leva a mão à boca, como quem diz "estou completamente entediado". Então entro no mercado Tom para comprar o café e corto caminho por Colville Terrace e Portobello Road para chegar à West Village. A saia continua lá: é rosa forte com estampa psicodélica e um corte bacana em A. Entro e acho uma do meu tamanho, então pego também duas blusas e levo para o provador, para garantir. O que é um erro, porque as duas ficam perfeitas. A saia não (faz meu quadril parecer que tem um milhão de centímetros de circunferência), mas as blusas são muito legais, e só tenho dinheiro para uma. Uma vendedora vem até mim. — Está bonito — ela diz. É engraçado, mas parece que o fato de trabalhar em loja não deixa a gente mais descrente. Pelo menos não me deixou mais descrente. Eu sei que Julie com freqüência diz que alguma coisa ficou bonita só para que a pessoa compre mais; no entanto, quando alguém me diz que algo cai bem em mim, eu sempre acredito. —Está mesmo, não está? — digo, olhando para o meu reflexo no espelho. — E que a outra também ficou boa, e eu só posso comprar uma. A garota assente com a cabeça, solidária com a minha situação delicada. —Por que não experimenta a outra de novo? — sugere. Volto para o provador e troco de blusa. Quando saio, ela faz uma leve careta. — Tem razão — diz. — Esta também ficou ótima. Vai ser uma decisão difícil. — Essa aqui ficaria ótima com calça — digo, olhando para mim mesma no espelho. — Com certeza — diz a garota. — Mas a outra ficaria melhor com saia. — Ãh-ram — concordo. — Qual você acha que ficaria melhor com jeans? — Não sei — a garota diz, depois de hesitar um pouco. — Por que você não coloca um jeans para ver? Assinto com a cabeça, agradecida, enquanto ela pega uma seleção de jeans escuros e eu levo tudo para dentro do reservado. — Com certeza essa aí — a garota diz quando eu saio. É uma frente-única azul, e reconheço que ficou ótima com o jeans. Que também está fantástico, faz minhas pernas ficarem compridíssimas. _ Você acha que a blusa ficou melhor do que o jeans? — O jeans? — A garota agora está obviamente confusa. Fica claro que não está acostumada a atender pessoas que só têm dinheiro para comprar uma peça de roupa e não têm idéia do que desejam comprar. — Sally, você pode fechar o caixa hoje? — ouço uma mulher mais velha perguntar à garota que está me ajudando. Fechar o caixa? Já? Olho para o relógio, alarmada. Ah, merda, merda, merda: já são vinte para as seis. Faz quase quarenta e cinco minutos que eu saí. Gorro de volta para o provador e tiro o jeans e a blusa, jogo por cima da porta para a garota, com o meu cartão de crédito. — Vou levar o jeans — digo, vestindo a calça — e a blusa azul. Mas preciso que seja rápido, certo?

Quando saio, ofegante e vermelha, ela já está com o recibo pronto para eu assinar. Sem olhar com muita atenção para a linha do Valor, assino e pego a sacola. Então entro apressada na Corney and Barrow, compro cinco garrafas de Sancerre e corro de volta à Tina T. Quando entro estou ofegando pesado, e consigo esconder minha sacola da West Village atrás do caixa antes que Laura veja. — Natalie, por onde você andou? — ela diz, mal humorada, e pega o café e o vinho de mim. — Desculpe... fila... grande — engasgo. Será que estou mesmo tão fora de forma assim? Preciso começar a fazer mais exercício. Ou, sabe como é, simplesmente começar a fazer exercício. Hummm, bom, são seis horas. Vocês duas podem começar a guardar tudo — ela diz, ríspida. Obviamente, quer que nós estejamos longe quando as clientes dela chegarem. Julie arqueia as sobrancelhas para mim. — Está pronta para sair? —pergunta. — A Laura disse que vai fechar o caixa hoje, então eu já estou pronta, se você estiver. Assinto com a cabeça e vou até o estoque. — Tudo bem; estou com a sua bolsa aqui —Julie avisa antes de eu chegar, então me dirijo para o caixa, pego minha sacola da West Village e caminho até a porta. — Tchau Laura — digo e recebo um pequeno aceno de cabeça como resposta. — Desculpe, mas eu não agüentava esperar para sair dali — Julie suspira e acende um cigarro assim que saímos da loja. — Consegui enfiar uma blusa Gaultier linda na bolsa e a Laura ficou urubuzando em cima de mim que nem uma... bom, você entendeu. Aah, estou vendo que comprou uma coisinha para hoje à noite também — ela diz, sorrindo e espiando dentro da minha sacola da West Village. Ai, meu Deus. Hoje à noite. Eu não liguei. Abro a bolsa e tiro o celular e o pedaço de papel em que anotei o telefone de Simon; teclo furiosamente, mas não há resposta. Ele já deve ter ido para casa. Com relutância, volto a guardar o telefone na bolsa. Então, animada com minhas novas compras e me sentido um pouco imprudente, paro de repente. — Julie — digo, pura e simplesmente. — Você pode me ajudar a lembrar onde mesmo fica o Momo? CAPÍTULO 6 Acho que nunca fiquei assim tão nervosa. Nem quando fiz minha entrevista de emprego na Shannon's. Pelo menos, na ocasião, eu não estava fingindo ser outra pessoa. Sento-me no metrô, certa de que todo mundo está olhando para mim, imaginando o que vou fazer para escapar desta. Quase dei meia-volta para retornar ao meu apartamento um milhão de vezes, e acabei de entrar no trem, na estação de Notting Hill. Ainda tenho mais seis paradas até Oxford Street. Daí, preciso caminhar até Regent Street, virar em Heddon Street, e pronto. Confiro o relógio: sete e meia. Respiro fundo; meu coração dispara. O negócio é que eu realmente não queria seguir em frente com isso. Quer dizer, vai ser um horror. Mas eu não podia deixá-lo esperando, não é mesmo? Seria muita maldade. E, quando cheguei em casa do trabalho hoje, tinha um recado de Pete na secretária eletrônica. Não o "liga para mim,"tchau" de sempre, mas uma mensagem comprida, dizendo que estava com saudade de mim e que talvez viesse fazer uma visita, se eu não

estivesse ocupada demais com meus amigos novos... É totalmente óbvio que Chloe contou a ele sobre minha visita (falsa) ao Soho House e sobre meu namorado (falso). Eu não sabia se devia ficar feliz por ter obtido uma reação, ou triste por precisar inventar coisas para chamar a atenção dele. E daí, quando experimentei minha blusa nova da West Village, de algum modo me pareceu uma pena não usá-la para ir a algum lugar. Gomo se ela merecesse ir ao Momo Olhei no espelho e não vi mais a Natalie de Bath. Vi bom, na verdade, meio que vi Cressida Langton. Ou, pelo menos, disse a mim mesma que conseguiria me fazer passar por ela. Uma garota descolada solta pela cidade. Sócia do Soho House. Convidada de todas as melhores festas. Simplesmente me senti bem demais, parada ali, pensando: "Vou ao Momo hoje com um cara rico que trabalha no mercado financeiro", como se fosse uma coisa completamente normal de se estar fazendo. Mas isso foi antes, e agora é agora. E estou com o estômago virado, para ser totalmente sincera. Quem eu quero enganar? Ele provavelmente já ligou para Lenora e já descobriu tudo sobre Cressida e ela provavelmente não tem nada a ver comigo e ele vai olhar para mim de um jeito estranho e dizer: "Isso é alguma piada?" E o que eu vou responder? "Ah, desculpa, achei que a carta era da minha velha amiga Lenora. - Ou talvez: "Tenho amnésia e achei que era Cressida." Eu não devia ter aberto aquela carta desgraçada. Desta vez, acho que meu olho foi maior do que a barriga. De repente, tenho uma idéia. Na verdade, não preciso ir até o fim desse negócio de encontro. Posso chegar lá e dizer que Cressida teve um compromisso inadiável e pediu para eu avisar. Podemos tomar um drinque rápido, como adultos maduros que somos, e então voltar para casa. Solto um suspiro de alívio com esta idéia brilhante. Não preciso fingir que sou Cressida. Não preciso passar uma noite inteira inventando uma identidade completamente nova. O metrô chega a Picadilly Circus e eu subo a escada rolante. A estação está ainda mais movimentada do que na hora do rush, acho que está todo mundo indo para os bares e clubes. Sinto a adrenalina da noite londrina circular por meu corpo e sinto um arrepio de animação por fazer parte desta cidade fantástica em que tudo pode acontecer. Regent Street está abarrotada de gente e de luz, e caminho toda exuberante pela rua, imaginando para onde todo mundo está indo. Dobro à direita em Heddon Street e, de repente, o Momo está bem à minha frente. Dá para sentir que meu coração começa a bater mais rápido e eu lembro a mim mesma de que só vou entrar para pedir desculpa em nome de Cressida e ir embora. Sem problema. Não há necessidade de meus joelhos ficarem moles. Não há necessidade de minhas mãos tremerem. Fico parada um instante, observando as pessoas entrarem. É o mesmo tipo de gente que faz compras na Tina T: cheia da grana, urbana, bacana e confiante. Por um instante penso em dar meia-volta. Eu não pertenço a este lugar. Todo mundo vai ver logo que eu sou uma garota interiorana sem a menor noção de nada, tão confiante quanto um antílope entrando na cova de um leão. Simon Rutherford vai dar uma olhada em mim e cair na risada. Provavelmente vai contar a história para os amigos amanhã no trabalho. E daí, eles também vão rir de mim. Mas, antes que eu possa fugir, alguém olha para mim e abre a porta para eu entrar. É um sinal, digo a mim mesma. Preciso entrar. Aperto as mãos, me esforço para respirar fundo, sorrio para o fulano que segura a porta e entro no restaurante. Lá dentro, demoro um pouco para enxergar com nitidez: há diversas mesas espalhadas pelo recinto, com pessoas

sentadas conversando, e meus olhos disparam de uma mesa à outra, tentando encontrar Simon. Sinto-me absolutamente acanhada, mas parece que todo mundo está absorto demais na própria conversa e não repara em mim. — Posso ajudar? — uma moça vestida de preto pergunta. Dou um sorriso nervoso. — Eu vim me encontrar com uma pessoa. — Nome? — Cressida. Quer dizer, não, Natalie... —Lembro que não vou posar de Cressida quando já é tarde demais. — Natalie — digo com firmeza. A moça olha para mim de um jeito estranho e olha para o livro à sua frente. — Sobrenome? — ela me pergunta. — Você sabe isso, não sabe? — Raglan — respondo, e então percebo que ela quer saber o nome da reserva. Deve estar no nome de Simon. Meu Deus, está dando tudo errado. — Rutherford — corrijo rapidamente, então limpo a garganta, porque minha voz está quase inaudível. — Simon Rutherford. Mas — prossigo, sem conseguir conter a tagarelice —, na verdade, eu não vou me encontrar com ele, quer dizer, a minha amiga é que ia, mas ela não vai poder. Só vim aqui para avisar. Se você quiser, posso simplesmente avisar você...? Ela olha para a lista e vira a página. — Ah, certo. No andar de baixo. Venha comigo. Evidentemente, ela não vai dar o recado para mim. Vou ter de fazer isso pessoalmente. Mas tudo bem. Quer dizer, não pode ser assim tão difícil, não é mesmo? Sigo-a através do restaurante e descemos um curto lance de escadas que leva a uma espécie de refúgio de Aladim com mesas baixas e batuques africanos agradáveis tocando. A moça faz um sinal com a cabeça na direção do canto e eu sigo o aceno com o olhar para ver uma silhueta sentada à mesa, pouco à vontade. O cabelo dele não está muito bem assentado e seus olhos castanhos intensos examinam alguma coisa (acho que é o cardápio). Quando olho para ele, seus olhos se erguem e encontram os meus. Por alguma estranha razão, não me mexo imediatamente. Ouço meu coração bater e sinto minhas mãos ficarem molhadas. E então ele sorri. É aquele tipo de sorriso que ocupa o rosto todo, que preenche todos os traços. — Simon Rutherford? — a hostess pergunta, seca. — Sim, sou eu mesmo. — Ergue o olhar com um sorriso. — Acredito que sua companhia não pôde... — Simon, oi! Eu sou a Cressida — digo rapidamente, interrompendo-a. — Que bom finalmente conhecê-lo! Rapidamente me sento e lanço um olhar cheio de segundas intenções para a hostess. Ela arqueia as sobrancelhas e sai na direção da escada. — Cressida? — ele sorri de novo. — Prazer em conhecê-la. Dá para ver por que ele estava estudando o cardápio com tanta atenção. Quer dizer, até a lista de bebidas é difícil de decifrar. Além do mais, estou achando muito difícil me concentrar nas palavras. Fico olhando para aquelas frases em inglês que deveriam ser muito fáceis de entender, mas parece que não consigo passar tempo suficiente em cada letra para que façam sentido juntas. Para meu alívio, quando o garçom pergunta o que gostaríamos de beber, Simon diz: "Uma cerveja". Uma cerveja: que boa idéia. Assinto com a cabeça para mostrar que concordo e consigo soltar um "é, eu também quero". Então limpo a garganta de novo: por alguma razão, ler não é a única coisa que me cria dificuldades neste momento.

Ficamos praticamente em silêncio até as cervejas chegarem, o que não é muito difícil, porque a música está bem alta e ainda estamos tentando interpretar o cardápio. —Então, você sempre vem aqui? — pergunto, antes de perceber que escolhi a pior maneira de todos os tempos de puxar papo; quer dizer, "você vem sempre aqui" é tão ruim quanto "o que é isso na sua calça? Uma canoa? Ou você só ficou feliz por me ver?". É um horror. Um horror! — Na verdade, eu nunca vim aqui — Símon confessa. — Só achei que seria uma boa idéia... para ser sincero, só conheço lugares do distrito financeiro. Sorrio. Continuo sem saber o que dizer. — E você? Onde costuma sair em Londres? Penso rápido. Não quero confessar que mal conheço Londres. — Costumo ficar por Notting Hill, onde moro, para falar a verdade — consigo dizer e coro um pouco. — Notting Hill? Ah, então você é bacana demais para mim — Simon diz com um sorriso. — Acho que não deixam pessoas como eu desembarcar na estação de metrô de Notting Hill. Então, faz tempo que você mora lá? — Ah, sabe como é, faz um tempinho. — Dou de ombros, tentando imaginar o que uma pessoa como Cressida diria. É difícil tentar imitar alguém que você nunca viu. Enquanto Simon estuda o cardápio, eu o estudo, absorvendo o semblante aberto e caloroso dele, a camisa formal que parece prendê-lo, apesar de o botão de cima estar aberto. O suéter que ele veste por cima parece muito mais ser o tipo de coisa com que ele se sentiria confortável. As mãos dele não parecem nem um pouco mãos de quem trabalha no mercado financeiro (se é que existe algo assim). São grandes, e nem um pouco cuidadas. Ele faz uma leve careta, e acho que não está se sentindo exatamente à vontade aqui. Isso faz com que eu me sinta muito melhor por me sentir pessoalmente pouco à vontade. Talvez a noite não vá ser assim tão difícil... simplesmente posso relaxar e ser eu mesma. Quando essa idéia passa pela minha mente, sorrio. Ser eu mesma? Como vai ser possível, se ele acha que eu sou Cressida? É meio irônico: no Canvas, eu fingi ser Cressida para ganhar segurança; agora, estou com alguém que acha que eu sou Cressida, e estou me sentindo mais como se fosse eu mesma. Isso vai além da ironia. Fico divagando a respeito do que Cressida deve estar fazendo agora. Talvez esteja em um encontro com alguém. Percebo, cheia de culpa, que ela é que deveria estar sentada à frente de Simon. Abri a carta dela e lhe roubei seu encontro às escuras. — Está tudo bem? — Simon pergunta. Assinto com a cabeça bem rapidinho e tiro Cressida da mente. Agora estou na cidade grande: é melhor me cuidar. É como acontece na Tina T. Se você se preocupar muito com os outros, não ganha sua comissão. — Estou absolutamente ótima — digo e sorrio. — Então, você decidiu o que vai pedir? Simon abre a boca para falar, mas é interrompido pelo garçom que aparece repentinamente ao seu lado. — O que vão querer? — ele pergunta enquanto eu rapidamente retorno ao cardápio. — O que você recomenda? — Simon pergunta. — O mezze está muito bom — diz o garçom, sorrindo. — E o merguez é um prato ótimo para dividir... Simon arqueia as sobrancelhas para mim, e eu assinto. — Parece ótimo! — digo e devolvo o cardápio para o garçom. — E um vinho — Simon prossegue. — Tinto ou branco? — pergunta para mim. — Branco, acho — digo, então me dou conta de que marguez são lingüiças. Provavelmente

ficariam melhores com tinto, não é mesmo? — Não, tinto — digo rapidamente. Só que tinto sempre me deixa com sono. Então, talvez branco seja melhor. — Ou branco... Simon olha para mim de um jeito estranho, então sorri. — Tenho uma sugestão: que tal uma garrafa de cada? — diz. —Assim, você pode tomar o que quiser, ou os dois, e se nós ficarmos bêbados, vai ser um benefício extra. Sorrio para ele, agradecida. Não ficou irritado com minha indecisão. A maior parte das pessoas fica passada, e quanto mais mal humoradas ficam, menos capaz de decidir eu sou. Acho que gostei bastante de Simon. Ele pede o vinho, então se vira para mim e olha bem nos meus olhos. — Devo dizer — ele fala quando o garçom finalmente se afasta — que eu considero você corajosa de verdade. Por ter ligado para mim, quer dizer. Foi mesmo muito emocionante receber seu recado. Não é o tipo de mensagem que costumam deixar para mim no telefone do trabalho. Imagino de onde Lenora tirou essa idéia. Os olhos dele penetram nos meus, e parece que ele seria capaz de ler meus pensamentos se quisesse. Mas, se pudesse, saberia que isso não foi idéia de Lenora, de jeito nenhum. — Eu... não sei — respondo baixinho. — Vai ver que ela só achou que nós poderíamos nos dar bem. Então, fale de você. Simon se recosta na cadeira e dá um sorriso cheio de pesar. — Acho que não tenho muita coisa para contar. Trabalho no distrito financeiro, com um emprego chato de doer em que passo dinheiro de um lado para o outro para render o máximo de lucro para meus chefes. Moro em Chelsea, em um apartamento terrivelmente caro, mas que fica bem perto da estrada M4, que pego nos fins de semana para ir a Merlborough sempre que não estou acorrentado à mesa. É lá que meus pais moram. Foi onde eu me criei. O que mais? Eu sei preparar um curry ótimo. Sou torcedor do Arsenal e não consigo cantar no ritmo nem que minha vida dependa disso. E é só. Simon Rutherford em resumo. E você, Cressida Langton? Hesito. Ele também é do interior, da região oeste do país. De repente, fico com vontade de contar a verdade para ele. Quero falar sobre minha casa em Bath. Sobre sair de carro com Chloe no domingo de manhã quando está frio de rachar mas tem sol, e dá para percorrer quilômetros e quilômetros sem ver ninguém. Sobre me mudar para Londres sem conhecer ninguém. Sobre Laura, a bruxa. Mas é claro que não posso fazer nada disso. Sou Cressida, não é mesmo? Então, em vez disso, tomo um golinho ligeiro de vinho e tento inventar rapidamente uma história que se encaixe com Cressida. Uma que não me force a fingir que sou terapeuta de Reiki. — Ah, sabe como é — digo, animada, tentando disfarçar a leve sensação de vazio que está tomando conta do meu estômago. — Eu moro em Notting Hill... mas isso eu já disse, certo? Trabalho com moda. Como mais fora do que cozinho. E sempre morei em Londres. Eu adoro. Quer dizer, aqui tem tanta coisa para fazer, tanta coisa para ver... É como dizem: quando a gente cansa de Londres, é porque cansou da vida, certo? Sorrio o que considero ser sorriso de vencedora. Dá para sentir que estou sendo transportada para o modo Cressida. Sou desencanada e fabulosa. Mas, em vez de retribuir o sorriso, Simon franze o cenho um pouco. — Você gosta mesmo de Londres tanto assim? Que engraçado, não parece ser uma londrina de verdade. — Como assim? — retruco, na defensiva. As palavras dele parecem ser uma crítica ácida. Como se ele conseguisse enxergar através da minha personagem londrina.

Bom, vou mostrar para ele. — Sou absolutamente londrina — prossigo. — As pessoas é que falam bem demais do interior. Elas exageram. Podia jurar que vi uma sombra de decepção cruzar o rosto de Simon. — Eu considero Londres tolerável, nada mais do que isso — ele diz e passa a mão no cabelo. — Acho a maior parte das pessoas muito ensimesmadas. Até mesmo obcecadas consigo mesmas. Existem mais coisas na vida do que o clube, o bar ou o vernissage da moda. Preocupação com os outros, amor pela natureza, honestidade... Olho para ele meio incerta. Será que ele sabe que estou mais longe do que nunca da honestidade? Coro, quase sentindo a desaprovação de Simon. Mas então, percebo que estou sendo ridícula: ele não faz a menor idéia de que eu não sou Cressida. E, de todo modo, por que eu deveria me importar com o que ele pensa? Ele é um fulano exibido que trabalha no mercado financeiro e considera Londres "tolerável", apesar de todo mundo saber que não existe lugar melhor do que este. Quer dizer, eu mal conheço, e já acho que é maravilhoso. Ficamos lá sentados em silêncio por um instante. Então o rosto de Simon se amassa em outro sorriso. — Desculpe. Você tem razão... Londres realmente não é assim tão ruim. Só estou aborrecido com o trabalho, mais nada. Não conheço Londres tão bem assim para não gostar. Mas eu realmente não gosto do distrito financeiro. Sorrio, aliviada. — O interior também não é tão chato assim — faço uma concessão, afastando-me de Cressida e me aproximando de Natalie. — E você tem razão: as pessoas são muito mais simpáticas no interior. Lá, ninguém deixaria uma pessoa deitada na porta do seu prédio com um cobertor sem parar e ajudar, certo? Mas as pessoas fazem isso o tempo todo por aqui. Além do mais, ninguém anda na rua daquele jeito — diz Simon, e seus olhos brilham ao apontar para um casal que entra no restaurante. Sou obrigada a rir. Ela tem cabelo vermelho brilhante e usa um minivestido cor de laranja com meia-calça prateada. O cabelo dele parece de um integrante de boy band, e usa um monte de jóias de ouro ao estilo de Ice T, apesar de ser magrela e parecer ter uns 18 anos. Damos risadinhas quando a dupla passa por nossa mesa; então Simon fala mais um pouco a respeito do distrito financeiro. Diz que o salário é ótimo, mas que não sente que faz alguma coisa para merecer. — Você não é nem um pouco como eu pensei que seria, sabe? — diz, depois de um tempo. — Você também não — reflito. Simon olha para mim como quem não está entendendo nada. — Diga — ele pede. — Como você achou que eu seria? Penso na conversa que tive com aquela mulher na Tina T. Aquela que tinha um namorado que trabalhava no mercado financeiro. Simon não parece ser do tipo que distribui cartões platinum. E, para falar a verdade, ele não é chato. Não mesmo. — Como um cara típico que trabalha no mercado financeiro — digo e dou de ombros. — Sabe como é, arrogante, esperando que as pessoas façam o que você quer e tudo o mais. Simon fica sério um minuto, então sorri. — Sei. Bom, fico feliz por você não achar que eu sou arrogante. — E eu? — pergunto. — Como você achava que eu seria? — Ai meu Deus, por onde eu começo? — Simon diz com um sorriso. Olho para ele de um

jeito estranho. De repente, começo a me preocupar com o fato de ter me entregado. Com o fato de ele ter percebido que eu não sou Cressida. Ou, pior, que ele realmente não tenha gostado de mim. Porque, para ser absolutamente sincera, acho que ele é fofo de verdade. Tanto que estou tentada a contar para ele que meu nome na verdade é Natalie. - Para começo de conversa, você é muito mais bacana do que eu esperava. Quer dizer, gente como eu geralmente não conhece pessoas descoladas de Notting Hill, que trabalham com moda... Mas você também não é bacana demais, se é que me entende. De um jeito positivo, quer dizer... Meus olhos se apertam. — Não sou bacana? — pergunto, mal-humorada. Simon esfrega a nuca com a mão. — Não foi o que eu quis dizer... olha, posso ser absolutamente sincero? Assinto com a cabeça. — O que eu quero dizer é que você parece genuína, bem diferente de tanta gente que tem aqui em Londres... Eu... bom, eu realmente gostei de conversar com você, e isso com certeza foi inesperado. O rosto dele se abre em um sorriso e seus olhos brilham de um jeito que faz meu estômago dar uma cambalhota. Ele realmente gostou de conversar comigo. Claro, vou ter de dar um jeito nessa coisa de "parecer genuína": acho que se eu confessar agora que na verdade não sou Cressida, posso ter alguns problemas. Mas tenho certeza de que isso é só um detalhe. Ele é lindo, e gostou de mim. E de pensar que eu quase não abri aquela carta. Eu me pego olhando para os lábios de Simon e imaginando como deve ser beijá-los. Mas, então, me detenho. Para começo de conversa, ele acha que eu sou Cressida. E, em segundo lugar, eu me mudei para Londres em busca de uma vida nova. Não posso começar a sair com alguém que obviamente está louco para voltar para o interior. - Então, Cressida — Simon diz, olhando bem dentro dos meus olhos. - Fale mais de você. O que quer da vida? Hummm. Será que eu respondo como Natalie ou Cressida? Não consigo me decidir: não quero mentir para ele, mas também não acho que esteja completamente pronta para ser sincera. Então, em vez disso, digo a ele o que costumo dizer para os amigos dos meus pais e outras pessoas que não conheço muito bem. Que quero fazer carreira em marketing. Comer alimentos orgânicos. Entrar em forma e ler mais. Quer dizer, que diferença faz? Até parece que a gente vai se ver de novo, não é mesmo? Eu sei que não pretendia ficar mais do que cinco minutos. Eu sei que não devia ter ligado, para começo de conversa, muito menos combinar de jantar. Mas é que tinha algo em Simon. E, apesar de ele estar muito longe do tipo de pessoa com quem eu achei que queria ficar, não consigo me impedir de esticar o braço e pegar na mão dele e ficar com os dedos enrascados com ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Também fiquei sabendo de tudo sobre a vida dele. Por exemplo, que a mãe foi embora quando ele tinha três anos, simplesmente desapareceu, e ele nunca superou. Que a nova mulher do pai é como uma mãe para ele e que pouquíssima gente sabe que ela não é a mãe dele de verdade, nem amigos de escola. Que o irmão ainda mora perto dos pais e que ele inveja a qualidade de vida que todos eles têm, apesar de todos considerarem Simon uma grande história de sucesso. E ele ficou fazendo perguntas a meu respeito: não como a maior parte dos homens, que só

faz perguntas para serem educados e depois só ficam falando de si mesmos. Ele parecia mesmo interessado em mim. Acho que consegui convencê-lo de que eu era Cressida, nascida e criada em Londres. Mas também incluí algumas coisas verdadeiras, como o fato de que eu sei como minha mãe ainda sente tanta saudade de James que às vezes chora até cair no sono. Que Chloe é mais ou menos a irmã que eu nunca tive. E que os dois primeiros namorados que eu tive eram tão ruins de beijo que eu quase desisti dos homens completamente. Provavelmente foi essa última parte que me causou problemas. Quer dizer, se eu não tivesse dito isso, pode ser que ele não tivesse me perguntado, quando estávamos saindo do Momo, se eu ainda tinha na cabeça a idéia de me recusar a ter namorado. E então eu poderia não ter respondido: "Não, mas faço questão de beijá-los primeiro." E daí, é improvável que ele tivesse dito: "Percebo. Então, será que podemos ver se eu passo no teste?" E ele provavelmente não teria me abraçado e me beijado bem de leve na boca, e não teria me beijado de novo, dessa vez não tão de leve assim, e eu provavelmente não teria me inclinado na direção dele, aberto a boca e correspondido o beijo, bem lá no meio de Regent Street, para todo mundo ver. E com certeza não teria marcado de encontrar com ele de novo na quarta que vem. Quando saí do táxi (cerca de dois segundos depois de Simon ter me colocado dentro dele; não dá para andar de táxi com meu salário), fiz o que pude para não ficar relembrando aquele beijo vez após outra, mas não teve jeito. Mas o que eu preciso lembrar é que ele beijou Cressida, não eu. E que não vai acontecer de novo. Pelo menos, tenho bastante certeza de que não vai. CAPÍTULO 7 — Então, como foi, Natalie? Olá, tem alguém em casa? Ergo os olhos, assustada. Julie está olhando para mim. - Desculpe, eu estava longe. O que foi que você disse? - Eu queria saber como foi o encontro. Mas, pelo seu ar sonhador e sua incapacidade de dobrar um pulôver direito, imagino que foi bom. Tem algum detalhe picante para contar? Fico vermelha e sorrio. - Foi tudo bem — digo, tentando parecer indiferente. - Só tudo bem? Vamos lá, você pode ser melhor do que isso. Aliás, qual é o nome dele? - Simon. Simon Rutherford. - Legal. Parece esnobe, mas é legal. E o que mesmo ele faz? - Trabalha no mercado financeiro — digo baixinho. Não parece certo quando eu digo. Simon está o mais longe possível da imagem que eu tenho de quem trabalha no mercado financeiro. Ele é tão caloroso e envolvente... Mas não quero saber de caloroso e envolvente, lembro a mim mesma. Quero bacana e urbano. Gomo Alistair. Por algum motivo, pensar em Alistair não me faz corar nem sorrir como geralmente acontece. — Ah, olhe só para você. Então, Simon, que trabalha no mercado financeiro, convida você para jantar no Momo. E aí? — E aí o quê? — Bom, você levou ele para casa? Ou foi para o apartamento luxuoso dele com vista para o rio? Imagino que ele tenha um, não tem?

Ergo o olhar, fingindo estar chocada. — Não teve nada disso — respondo com firmeza, então, sorrio. — Mas nós nos beijamos — entrego. — Ele beija muito bem. — Ah. Beijos. Eu me lembro disso — diz Julie com ar sonhador, enquanto vai pendurar alguns vestidos Pucci. Tento me concentrar novamente nos pulôveres, mas me pego comparando Alistair e Simon. Não daria para encontrar duas pessoas mais diferentes, nem que você tentasse. Alistair vive em bares e cafés, usa caxemira e jeans e acha que dar um passeio significa fazer compras a pé, não de táxi. Ele é totalmente diferente dos caras de Bath, e também é muito bonito, como se tivesse sido esculpido. Ao passo que Simon... bom, ele confessou que nunca foi a um show, disse que só dança em casamentos e que não tem a menor noção de moda. Mas eu me senti super-confortável com ele, como se nos conhecêssemos havia séculos. Mas o negócio é que eu não sei se quero me sentir à vontade. Quero me sentir emocionada e animada. É só que a "emoção e animação" não é assim tão... confortável, se é que você me entende. Ouço a porta abrir e levanto os olhos. É Michael. Está lindo com uma camisa listrada e uma gravata grandona, com calça afunilada preta. Tento imaginar como Simon ficaria com uma roupa dessas e sorrio com a idéia de um espetáculo tão ridículo. Não, Simon e roupas da moda não andam juntos. — Vai sair com a gente hoje à noite? — Michael pergunta apoiando-se na porta aberta, sem entrar. — O Alistair e a Lucy vão. Achei que a gente podia ir ao Market Bar e depois ao Woody's. Quer vir? — Com certeza. — Dou um sorriso quando Julie se aproxima. — Eu ouvi alguém dizer Woody? — ela pergunta. — Talvez. Está interessada? — Ah, pode ser que sim — responde. — O Jason vai trabalhar hoje à noite, e não vou ficar lá naquela porcaria de Canvas de novo. — E, dá para ver por que você não está disposta a fazer isso — diz Michael, com um sorriso sarcástico, enquanto Julie o apunhala com o olhar. — Ouvi dizer que você teve um encontro bacana ontem à noite — Michael diz, voltando-se para mim. Olho para Julie, que tenta parecer toda inocente. — Era segredo? — ela pergunta. — O Alistair me contou — Michael diz com um sorriso. — Ele pediu para eu descobrir se você arrumou um namorado rico para sustentar todos nós. — Diz para ele que não é da conta dele — retruco e retorno aos pulôveres, secretamente deliciada. — Como quiser. Aliás, vamos estar no bar daqui a uns dez minutos. Preciso de um drinque. — Michael sai e abana com a mão. — Certo, a gente se vê daqui a pouco. Quando Julie e eu chegamos, o Market Bar já está lotado. Precisamos passar na casa dela, porque estava desesperada para trocar de roupa e daí não conseguia resolver o que vestiria. O estado do apartamento de Julie era inacreditável. Nunca vi tanta roupa atirada no chão. Tinha roupa até pendurada na parede, como quadros. No apartamento dela, tinha mais sacolas do que na seção de sacolas da Selfridges, aquela loja de departamentos enorme. E o

cheiro... perfume misturado com cigarro misturado com sexo. Uma mistura e tanto. Finalmente se decidiu por um vestido dourado brilhante que desencavou do fundo do guarda-roupa. Enquanto fechava o zíper e arrumava o cabelo louro platinado em seu formato de colméia permanente, pensei, não pela primeira vez, que é um desperdício ela trabalhar como vendedora. Quer dizer, ela realmente tem cara de atriz de cinema: toda perfumada, com o batom bem aplicado e as meias-calças com costura. O apartamento dela — ou melhor, conjugado — fica no topo de um prédio moderno em Pembridge Crescent com uma sacadinha adorável, que dá vista para Portobello. Mas nem consegui chegar até lá por causa de todas as pilhas de discos, roupas e porcarias. Na verdade, é bem legal: a coisa simplesmente grita "estou ocupada demais com minha vida fantástica para me preocupar em arrumar tudo". Mas só posso imaginar a reação da minha mãe se visse isso: colocaria as luvas de borracha no mesmo instante. Durante um segundo, sou tomada por uma enorme afeição pela minha mãe e por sua mania de limpeza. - Então, está gostando de Londres? — Julie pergunta enquanto revira a casa à procura de batom. — Ah, com certeza — digo, examinando a coleção de discos dela. — Eu sei que no começo pode ser bem difícil — ela prossegue, fazendo uma careta na frente do espelho para aplicar o delineador labial com destreza. — Vim para cá, de Sussex, quando tinha 16 anos. Na primeira semana, detestei para caramba; daí comecei a cair na balada e, para falar a verdade, nunca mais parei, se é que você me entende. Será que eu entendo? Não tenho certeza. Eu achei que tinha sido corajosa de me mudar para Londres com a idade madura de 26 anos. Será que vou ser como Julie daqui a dez anos, eu me pergunto, saindo toda noite, sempre atrás da próxima festa? Será que eu quero isso? Não tenho certeza se quero. Mas então, por que estou aqui? — Certo, estou pronta — diz Julie, interrompendo meus pensamentos bem a tempo. — Vamos! — Nossa, mas vocês duas estão lindas hoje — Alistair nos cumprimenta quando entramos no bar e coloca os braços ao redor de nós duas. — Hoje à noite, vamos beber coquetéis. Então, o que vai ser? De repente, não consigo pensar em coquetel nenhum. Tirando gim e tônica, mas esse não conta, certo? Escaneio meu cérebro em busca de pontos de referência e me lembro de Carrie, de Sex and the City, bem a tempo. — Hum, um cosmopolitan, por favor — digo, com um sorriso. — Para mim, sex on the beach — diz Julie, com uma piscadela. — Que tal um cosmopolitan sex on the beach? Como será que é o gosto? — diz Alistair, cheio de más intenções. Os braços dele envolvem minha cintura e eu me apóio levemente no ombro dele. Mas não sinto nada: nenhum arrepio de animação nem nada. Qual é o meu problema? — Comporte-se, garoto mal-educado — diz Julie, dando risada. — Simplesmente traga as nossas bebidas, pode ser? Vamos ficar ali com os outros, não vamos, Natalie? Eu me desgrudo de Alistair e sigo Lucy até um conjunto de sofás de couro em que Michael, Lucy e alguns desconhecidos estão sentados. Há uma menina de cabelo rosa-shocking e um cara magrelo com cabelo desgrenhado cor de burro quando foge. Ele parece mal-humorado e não retribui meu sorriso. - Oiê! — diz Lucy, toda alegre. — Pessoal, este aqui amigo Richard, e esta é Marie, da

faculdade. Marie sorri e, quando diz oi, ouço um forte sotaque francês. Richard parece estar fazendo de tudo para evitar todo o contato humano possível e fica olhando para o nada, a meia distância. — Perdoem o Richard — diz Lucy. — Ele só está P da vida porque deparou com um enorme empecilho em sua carreira de modelo de passarela. Lanço um olhar enviesado para Richard e paro de dar risadinhas no mesmo instante. Ele é modelo? Ai, meu Deus! Preciso me assegurar de que o fato de que eu passei uma noitada com um modelo chegue aos ouvidos de Pete. Talvez eu precise enfeitar a coisa um pouco, transformando-o em um Adonis de dois metros de altura, mas não faz mal. Ele lança um olhar mortífero para Lucy. — Não é de passarela — ele diz com o sotaque do Leste Europeu misturado com um tom londrino que forma o jeito de falar mais estranho que eu já ouvi. Como se fosse uma cruza entre Bjork e Michael Caine. — É para uma campanha. Helmut Lang. Começo a imaginar o que Simon pensaria de Richard, e começo a rir sozinha. — Alguém viu Richard na rua e quis que ele fosse a Paris para uma sessão de fotos. Mas ele não tem passaporte, então não pode ir — Lucy explica. — Tenho certeza de que dá tempo de tirar o passaporte — digo, em tom reconfortante. — Uma vez, eu só fui perceber que meu passaporte estava vencido na véspera de uma viagem, mas se você tiver paciência de ficar na fila, consegue outro em duas horas. É só ir ao... — Não, ele não tem passaporte. Tipo, não tem mesmo — diz Lucy, arqueando as sobrancelhas para mim. — Mas... — estou prestes a retrucar, mas logo entendo o que ela quer dizer. Ele não está legalizado. Não pode sair do país. — Sinto muito, é mesmo muito chato — digo, meio sem jeito, só que Richard nem ergue os olhos. Mas bom, ele é modelo. Vou perdoá-lo por sua falta de traquejo social. — Então, o que você estuda na faculdade? — volto-me para Marie. — Quoi? Qu!est-ce quejefais? Hum, eu, eu estudô cinemá — ela consegue dizer e dá um sorriso vago, mas entediado. — Parece ótimo. — Ótimo. É. — Então, quem são seus diretores preferidos? — prossigo, ciente de que a linguagem corporal de Marie não é das mais convidativas, mas prefiro arriscar com ela a tentar falar com Richard mais uma vez. — Ah, muitos — diz Marie. — Mas você nao vai conhecerrrr nenhum. Dá para ouvir a voz de Simon na minha cabeça, dizendo: "Eles que se danem", mas eu afasto a idéia com rapidez. Então, eles não são pessoas muito simpáticas, mas talvez seja a coisa da língua. Mesmo assim, fico aliviada quando Alistair reaparece. — Um cosmopolitan para nossa garota cosmopolita — ele diz, com um sorriso — e um sex on the beach para... bom... — Só me dá isso aí logo, seu adolescente — diz Julie e tira o drinque da mão de Alistair. — Sinceramente, às vezes eu não sei por que a gente deixa você sair conosco. — Por causa da minha bela aparência de garotinho, creio — Alistair responde, todo sério. — E o que vai acontecer quando você não for mais tão bonitinho assim? — Julie pergunta. — Bom, aí eu vou vender a alma ao diabo para recuperar minha beleza. Então, Natalie — Alistair diz, voltando-se para mim —, como você anda se virando? Algum

encontro interessante ultimamente? — Talvez. — Dou um leve sorriso, contente com a atenção. — Só talvez? Então, quem é o cara? Quando é que nós vamos conhecer? Ele é rico? Sorrio. — Vocês não vão conhecer. E eu não sei se ele é muito rico. — Não sabe? Minha querida, você passou uma noite inteira com ele e não sabe quanto dinheiro ele tem? Fala sério, você pode ser melhor do que isso. Ele tinha um cartão platinum? Estava com roupa feita sob medida ou prêt-à-porter? E como assim, nós não vamos conhecê-lo? Que falta de educação. Alistair finge virar para o outro lado com uma bufada. Acho que está um pouco bêbado. — Vai ver que eu quis dizer que ele não vai conhecer vocês. Sabe como é, até que ele faça por merecer — digo, dando-lhe cutucões. — Ah, percebo — ele diz e volta a me encarar. A energia e a animação de Alistair são contagiosas. Só de falar sobre Simon para ele já faz com que eu fique mais anima da com a coisa toda. Apesar de saber que jamais poderia apresentá-los: os dois vivem em mundos diferentes. E, no mundo de Simon, meu nome é Cressida. — Bom, é, dá para ver que você quer nos manter longe dos seus namorados muito especiais — Alistair diz, sorrindo. — Mas, falando sério, não há necessidade. Se ele for rico, nós o receberemos de braços abertos. — Você receberia qualquer um de braços abertos — Michael caçoa. — Lucy, reparei que você não exatamente se apressou em me defender — Alistair diz bem alto, mas Lucy finge ignorá-lo. Está conversando animadamente com Julie a respeito de alguma coisa, e só dá um sorrisinho para Alistair. — Então, que história é essa de coquetéis? — pergunto, mudando de assunto. — Ah, bom — diz Alistair. — É para uma campanha que eu vou apresentar na semana que vem. Uma cadeia nova de bares de coquetéis que é muito grande nos Estados Unidos e que vai abrir aqui. Preciso mergulhar na cultura dos coquetéis para conseguir inventar o slogan e o conceito de publicidade perfeito. O que significa que hoje é tudo por minha conta. — Você trabalha com publicidade? — pergunto, toda animada. — Era o que eu fazia. E eu criava um monte de slogans. Que tal "drinques para misturar" ou "misturinhas" ou algo assim... Mas Alistair viu alguém que conhece do outro lado do bar e se levantou de um pulo para ir cumprimentar.

Pego meu coquetel e olho em torno da mesa. Lucy e Julie continuam envolvidas na conversa e Michael também se ergueu para se juntar a Alistair. Assim sobramos eu, Marie e Richard. — Então, você faz muito trabalho de modelo? Ele tem olhos fundos e cabelo que obviamente é tingido, apesar de a razão por que alguém tingiria o cabelo de castanho burro quando foge está além da minha compreensão. — Já fiz alguns trabalhos, sim. Eu podia ser o melhor, mas como não tenho uma porra de um passaporte, não posso ir para a porra de Paris. Que bosta do caralho, cara. Não tenho muita certeza sobre o que dizer. Opto por: — Parece que você precisa de um drinque — mas isso não cai muito bem.

Não bebo álcool. Deixa a gente gordo, sabe? Não bebo, também não como. Está vendo? — Levanta a camiseta para mostrar a barriga achatada e magra. — Não sou gordo. Assinto com a cabeça, em sinal de que concordo. — Não, você não é gordo. Não sei muito bem para onde conduzir esta conversa. Com certeza não vou mostrar minha barriga para ele, se é o que ele espera. — Rich, você não está mostrando sua barriga para os outros de novo, está? — Lucy diz, a distância. — Desculpe, Natalie, ele é completamente obcecado. Simplesmente ignore. Você vai trabalhar amanhã, aliás? Sacudo a cabeça. Tenho um delicioso domingo inteiro só para mim. — Que pena. Parece que vou ficar lá sozinha. Eu e a adorável Laura. Mal posso esperar. Avanço no sofá para ocupar o lugar de Alistair ao lado de Lucy. Richard fica me olhando com desdém enquanto bebo meu coquetel e não consigo encontrar uma posição confortável para sentar. Se o fato de ser um modelo bacana significa ser assim tão esquisito e infeliz, talvez não seja assim tão bacana, no fim das contas. Ou talvez eu simplesmente seja tão antibacana que nem consigo entender. Estou começando a desejar que Simon estivesse aqui. — Então, você se divertiu na festa ontem à noite? — pergunto a Lucy. — Foi boa, acho. Não está entre as melhores festas a que eu já fui, sabe, mas serviu para passar o tempo. Tinha drogados demais para o meu gosto, e Classes A de menos. Ela vê que estou com cara de quem não entendeu nada. — Classes A. Sabe... nada de dançar — ela explica e olha para mim de um jeito curioso. Assinto, tentando não fazer cara de chocada quando percebo que ela está falando de drogas. Eu detesto quando as pessoas me pegam desarmada assim. Olho ao redor de maneira furtiva para ver se alguém está olhando para mim e pensando: "Que suburbana... ela nem sabe o que são Classes A", mas, por sorte, parece que ninguém notou. — E você? — Lucy prossegue. — Foi ao Momo, não é mesmo? Divertiu-se? Imediatamente, sinto-me mais segura ao pensar em Simon e dou um sorriso caloroso. — E, sabe como é. Foi legal. O Momo tem um clima gostoso, não tem? Foi a algum lugar depois? Por lá, tem uns lugares ótimos para dançar. Você poderia ter se encontrado com a Julie no Bar Rumba, não é mesmo, Jules? Sair para dançar? Nem passou pela minha cabeça sair para dançar depois do Momo. Felizmente, Julie intervém antes que se espere que eu diga alguma coisa. — Vou dizer uma coisa — ela fala, revirando os olhos. — Nunca mais volto lá na sextafeira. Cheio demais. Quer dizer, eu gosto de dançar juntinho com os caras, mas foi ridículo. Tinha suor pingando do teto. Fico ouvindo enquanto Julie descreve sua noite nos mínimos detalhes. Ela é tão boa para contar histórias... logo que começa, já dá vontade de rir. E ela conta todos os detalhes, tipo tudo mesmo. Agora eu sei mais a respeito de Jason do que sei de todos os homens com quem já saí. E eu não consigo pensar em nada para dizer sobre ontem à noite. Bom, isso não é exatamente verdade, mas eu não conseguiria contar como se fosse uma coisa engraçada. E não acho que Lucy entenderia se eu dissesse que não fomos para nenhum lugar depois. Que o jantar e o café e os licores e a música africana hipnótica foram suficientes, e que ir a algum lugar depois daquele beijo seria impossível. Além do mais, é claro, não sei onde fica clube nenhum e não consigo ver como Simon poderia se juntar a

Julie no Bar Rumba. Alistair reaparece, dessa vez com jarras cheias de um líquido cor-de-rosa. — E um coquetel novo — ele diz e enche os copos. — Eu fiz pessoalmente. Os barmen aqui são mesmo muito legais. — Aposto que são — diz Lucy, rindo, ao cheirar o conteúdo do copo. — Alistair, que diabos é isto? O cheiro é nojento. — É, mas o gosto é que importa. Na verdade, o gosto também é horrível, mas deixa a gente deliciosamente bêbado. Tomamos um golinho, e Alistair tem razão: é horrível, mas também é incrivelmente forte e doce. Ele insiste em que todo mundo enxugue o copo e então volta a enchê-los. Richard olha para ele com desdém e faz o que pode para ficar de costas para todos nós. Alistair retorna ao bar e reaparece alguns minutos depois com um magrelo vestindo roupas chamativas, que me apresenta como Serge. Parece que Serge está abrindo um clube novo em Hoxton e está animadíssimo com o fato. Ele se senta entre mim e Richard e logo já está me contando sobre os DJs que vai contratar, as filipetas que vai distribuir e o clima do lugar. — Vai ser maravilhoso da porra — ele diz com um sotaque de quem estudou em escola particular, mas que quer soar como um londrino qualquer. — Suave, sabe como é, mas de um jeito refinado. Mas não com muita música ambiente. E nada do trip-hop de sempre. Só uma coisa suave bem certinha, sabe como é? Assinto com a cabeça para concordar, surpresa e satisfeita com o fato de ele achar que eu posso ser o tipo de pessoa que sabe do que ele está falando. Alistair e Lucy estão rindo de alguma coisa, e eu tento escutar, mas tem barulho demais e Serge fica olhando para mim, então preciso fingir que ouço o que ele diz. De repente, percebo que está olhando para mim cheio de expectativa, como se tivesse perguntando algo e estivesse esperando a resposta. — Então, o que você acha? — ele pergunta para mim. Droga, deve ter feito uma pergunta. Mas qual? — Bom, é uma questão interessante — digo devagar, tentando ganhar algum tempo. Pense, digo a mim mesma. Você deve ter escutado a pergunta em seu subconsciente. O que foi? — E, é sim. Mas o que você acha? — O que ela acha do quê? — Michael interrompe, para meu enorme alívio. — Ruído branco e ruído rosa. São fundamentalmente diferentes ou é só a nossa percepção deles que difere? Michael parece perplexo por um instante, então responde: — É, o ruído rosa com certeza tem um som mais...fofinho. — Dou uma olhada nele e tento não dar risada. — Certo, é — Serge responde. — O ruído branco é, tipo, mais duro, não é. De repente, parece que Richard acorda. — Eu podia ser DJ no seu clube — ele se oferece, debruçando-se por cima de mim para pegar no pulso de Serge. — Sou um DJ excelente da porra. De um som ambiente breakbeat, sabe como é? Serge dá um sorriso amarelo. — Certo, preciso ir andando — sussurra ao meu ouvido e pede licença para ir ao banheiro. Viro-me com relutância para falar com Richard, mas ele já está olhando para o nada de novo. Esta noite pode ser muito longa. Já passa da meia-noite e vazamos do Market Bar. Julie vai ao Woody encontrar Jason, e Alistair, Lucy e Serge vão com ela. Michael vai para casa porque trabalha amanhã. Eu estou

dividida. Não me incomodaria de ir ao Woody, mas Serge se apegou muito a mim (principalmente, até onde eu sei, porque assim não precisa conversar com Richard) e fica falando coisas sobre as quais eu não faço a mínima idéia. Ele até ameaçou tocar para mim algumas demos de uma banda que ele empresaria. Parece que eles usam muito ruído branco na música, mas ele fica se perguntando se o ruído rosa não seria mais comercial. Eu sei que deveria estar aproveitando tudo isso. Quer dizer, eu sei que era com isso que eu sonhava há algumas semanas. Mas tem uma vozinha dentro de mim que não vai embora, e ela me diz que estou entediada. Mas que diabo essa vozinha sabe? Penso repentinamente. Estou em Notting Hill, sou solteira e deveria muito bem sair para dançar, diabos. Alistar agora está completamente bêbado e fica puxando briguinhas com desconhecidos na rua. Vem até mim e me abraça. — Então, Natalie, você vai cair na balada comigo? — Claro que sim — respondo, sorrindo. — Então, o que você achou do Serge? — ele pergunta enquanto subimos a rua. — O Serge? Ah, ele é ótimo — digo, determinada. Não vai ter jeito de eu confessar que o achei esquisitíssimo. — Então, acha que ele talvez seja o seu número? Ou você é do tipo que não gosta de matemática? — Agora Alistair está cambaleando bastante, então eu o seguro com um pouco mais de força para mantê-lo ereto. — Alistair, do que você está falando? — digo e dou risada. — Eu quero saber se você gostou dele — diz e se afasta. — E que ele gostou de você. Não é mesmo, Serge? — Alistair procura Serge, que anda atrás de nós com Lucy. — Você gostou da Natalie? — grita. — Alistair! — berro, brava. — Ele não gostou, e eu não gostei. Você está bêbado. — Na verdade, achei que Serge era gay. — Com certeza creio que poderia ser convencido a gostar — diz Serge, aproximando-se de mim por trás. — Acho que você é fantástica, porra. Não é toda mina que gosta de música que nem você sabia? — Os olhos dele assumiram um ar diferente: não de admiração, mas de embriaguez completa. Eu já vi esse olhar: tinha um cara chamado Steve que saiu completamente dos trilhos dePois de brigar com a namorada e quase virou alcoólatra. Ele bebia até cair todo fim de semana e aparecia completamente bêbado no nosso apartamento, em horários impróprios. Assim que chegava a uma quantidade específica de álcool, toda a sua personalidade mudava, começando pelos olhos. Dava para ver o momento em que mudavam: ficavam como os de Serge, levemente mortos. E, a partir daquele momento, você ficava na companhia de Steve, o Bêbado, não Steve, um Cara Totalmente Legal. Dá para ver que não adianta nada querer ter uma boa conversa. — Hum, Serge, você parece muito legal, mas... Antes que eu possa terminar minha frase, Alistair já voltou a se juntar a nós e nos abraça. — Você vai ter de disputar com o namorado rico dela — ele tenta sussurrar ao ouvido de Serge. Serge olha para mim de modo acusatório. — E o que ele tem que eu não tenho? — ele diz, afrontado. — Sinceramente, lindona, achei que você fosse melhor do que essas que só querem saber da riqueza vulgar. — O sotaque londrino falso dele sumiu completamente agora e ele soa como Rupert Everett. — Eu não tenho namorado rico — digo, brava. Não acredito que Alistair está mesmo

tentando me juntar com Serge. — Então, quem foi que mandou um montão de flores para você hoje de manhã? — Flores? — Do que Alistair está falando? — É, chegou um buquê enorme para você hoje de manhã. Você não estava em casa, então tocaram no meu apartamento. Me acordaram, caramba. — Alistair, por que você não disse antes, seu imbecil? — Lucy dá bronca nele e o puxa para que não dê de cara com um poste. — Desculpe, eu esqueci — Alistair diz com um sorriso, dançando pela rua e fingindo socar Serge. Mas eu deixei na frente da sua porta. Estão em um daqueles sacos com água. Um toque adorável. Serge me lança um olhar levemente magoado e tento entender por que sinto uma onda de alegria se espalhar por meu corpo. São flores, só isso. Então, por que de re pente estou desesperada para voltar para casa? — Olha, acho que na verdade vou para casa — digo a Julie. — Não me espanto. Acho que esta noite vai ser meio confusa, a julgar pelo estado do Alistair. Tudo bem você voltar sozinha? — Claro, tudo bem — garanto a ela e disparo por uma rua lateral antes que Alistair ou Serge notem. Assim que saio de vista, disparo com a maior rapidez possível de volta ao meu prédio. Remexo a bolsa em busca da chave e subo a escada correndo, para encontrar o maior buquê de rosas que já vi. É lindo. E, no envelope, só diz: "Para a linda fashionista, Ladbroke Grove, n° 127, Apartamento 3." De repente me dou conta de uma coisa: o que teria acontecido se Simon tivesse escrito "Cressida Langton" no envelope? Será que Alistair teria dito ao entregador que ela não morava mais aqui? Será que teria aceitado as flores e ficado com elas. Tenho um calafrio com a idéia. Então abro a porta e pego o cartão para ler. "Querida Cressida, obrigado por uma noite maravilhosa. Até terça! Simon bjs." Enquanto escovo os dentes, fico imaginando se é muito difícil trocar de nome legalmente. CAPÍTULO 8 Sou acordada por uma campainha que não para de tocar. Olho para o despertador: são apenas nove da manhã. Nove da manhã de domingo... quem diabos pode fazer tanto barulho a esta hora? Parece um alarme de incêndio, e minha reação instintiva é vestir uma roupa qualquer e descer a escada calmamente até um ponto de encontro em um lugar predeterminado de Ladbroke Grove, mas isto aqui não é a escola nem o trabalho, e acho que não há alarme de incêndio em prédios residenciais com fachada de estuque. Eu me arrasto para fora da cama, visto o penhoar e tento pensar claramente. Brrrrriiinnnnnnng! Brrrrriiiinnnnnng! Esse negócio está me dando dor de cabeça, e eu nem tomei tantos coquetéis assim ontem à noite. Abro a porta só para ver se o barulho é só dentro do meu apartamento ou se é no prédio de modo geral, mas o corredor está bem silencioso. De repente, ouço a porta de Alistair abrir e ele desce com. um colete e pijama azul-claro listrado de branco. Meus olhos se arregalam um pouco: ele está sem óculos e os braços dele parecem incrivelmente musculosos. Então, por que estou pensando "que graça" em vez de "tesão"? Ele também está com a maior cara de sono, com bolsas embaixo dos olhos e o cabelo

espetado para todos os lados. — Será que você pode atender a porra da campainha? — ele diz, cansado. — Só cheguei em casa às cinco. Não preciso desse tipo de alvorada no domingo. Então, volta para dentro do apartamento dele e me deixa parada no corredor. Claro. É a campainha da minha casa. Algo que eu nunca usei desde que me mudei para cá. Corro para a janela da sala e a levanto. Dou uma olhada na rua e distingo uma silhueta feminina. Lucy? Ah, não diga que é Laura pedindo que eu vá trabalhar de novo. Simplesmente não tenho como suportar. Desta vez, com certeza vou dizer a ela que estou doente. Com a voz falsamente rouca, grito lá para baixo: — Olá? Olá? Vejo um rosto olhar para cima. Mas em vez de um rosto esticado, retesado e com jeito de bruxa, é um rosto amado, conhecido, sorridente. Ai meu deus! É Chloe! — Chloe! Fique parada aí! — grito e desço a escada correndo; só no último instante eu me lembro de pegar a chave. Tasco um beijão na bochecha dela, agarro-a com um abração de urso e a arrasto escada acima. Já não me importo se Chloe descobrir que eu menti sobre a coisa toda do Soho House e de ter namorado: é bom demais vê-la, é maravilhoso tê-la em Londres. — Por que não me disse que viria aqui? Meu Deus, como é bom ver você! Chloe sorri. - Eu mesma não sabia que vinha. Meu pai tem um amigo que vai correr a maratona, então ele veio assistir. Só peguei uma carona. - A maratona? É hoje? — Ãh-rãm. Então, esta é a sua casa, hein? Que legal! Mostro o apartamento para ela e vou arrumando tudo pelo trajeto. — Não é muito grande nem nada, mas quase dá para ver Portobello Road. E a porta azul de Notting Hill também fica logo ali na esquina. Pelo menos, ficaria se não tivessem vendido. Mas a Travel Bookshop continua lá... Quer um chá? — Adoraria. Ah! Que flores lindas! De quem são? — Do Simon! — respondo toda animada, então lembro que tinha dito a Chloe que estava saindo com Alistair. Penso rápido e resolvo que o melhor não é confessar. Em vez disso, finjo que estou levemente triste. — O Alistair e eu meio que terminamos — digo, com pesar. — Mas eu... bom, eu já superei. — Ah, Natalie, sinto muito... parecia que você gostava muito do Alistair. O que aconteceu? — Na verdade, a coisa meio que esfriou — digo sem olhar Chloe nos olhos. — Ah, bom, estas flores são lindas. Então, que tal esse Simon? — Ele é um amor — digo com ar sonhador, então me lembro de não me deixar levar demais. Ele acha que eu sou outra pessoa. — Mas, realmente, não tenho certeza se ele é o meu tipo — prossigo. — Ele trabalha no mercado de financeiro... Espero que Chloe revire os olhos ou algo assim, mas em vez disso ela volta a olhar para as flores. — Não é o seu tipo? Que pena. Elas são demais. Meu Deus, eu bem que queria conhecer um homem que trabalha no mercado financeiro para me dar flores assim. Então, me deixe ver o cartão! Ela começa a examinar o buquê. Bosta! Não posso deixar que veja o cartão; está endereçado a Cressida. Rapidamente, arranco as flores dos braços dela.

— Não tem cartão — apresso-me em dizer. — O Simon não é do tipo que manda cartão, sabe como é? Mas bom, eu preciso colocar na água... — Não é do tipo que manda cartão? Quem manda flores sem cartão? — pergunta Chloe, perplexa. — Ah, sabe como é... — digo, tentando fazer a conversa avançar. — Então, bom — digo da maneira mais alegre possível —, aqui está o seu chá. Quanto tempo você vai ficar? Vamos para o sofá e nos sentamos. — Só até o fim da tarde, acho. Mas estava pensando em dormir aqui e ligar para o trabalho amanhã, dizendo que estou doente — Chloe diz com um sorriso. — É mesmo? — pergunto, incrédula. Pode acreditar, isto é muito incomum. Chloe nunca cabulou uma única aula na escola; ligar para o trabalho e dizer que está doente., então, nem pensar. — É, bom, acho que já está na hora de eu começar a correr alguns riscos também. Quer dizer, aqui está você neste apartamento bacana, em Londres, com flores, e eu estou lá naquela cidadezinha com o mesmo trabalho chato, e não tenho namorado... Ela abraça uma almofada bem forte e eu dou de ombros, solidária. Chloe nunca tem namorado: só tem números enormes de admiradores nos quais encontra falhas e mais falhas, até nós duas chegarmos à conclusão de que não têm futuro e então os dispensa. — Sabe o quê? — digo. —Amanhã, eu vou trabalhar. Mas sempre tem o fim de semana que vem. Por que você não volta com seu pai hoje à noite, daí vem de novo no fim de semana que vem e liga para o trabalho na segunda avisando que está doente? Assim você pode passar mais um dia aqui. Eu tiro o dia de folga e a gente pode ir ao cinema ou algo assim. — Fechado! — Chloe diz, os olhos brilhando. — Então, conta. Os londrinos assistem a programas ruins de TV no domingo de manhã ou vocês são cool demais para isso? — Não, assistimos sim. Só não confessamos para ninguém — respondo, sorrindo. Entrego o controle remoto para Chloe e ela fica trocando de canal enquanto comemos algumas torradas. - Então, o que você está a fim de fazer hoje? — pergunto. - Qualquer coisa que você sempre faz — Chloe responde, folheando a última edição da revista Heat. — Não tem um monte de celebridades que moram por aqui? - Acho que sim — digo e dou de ombros. Não quero confessar que, na verdade, nunca vi ninguém famoso por aqui. Talvez eu tenha visto Hugh Grant no bar 192 outro dia, mas não tenho bem certeza. Terminamos nosso chá com torradas, eu tomo uma chuveirada rápida e me visto. O sol brilha e eu preciso aproveitar ao máximo a presença de Chloe aqui. — Certo, vamos? — digo a Chloe quando estou pronta. Ela continua absorta pela Heat. — Certo... — responde. —Acho que sim... — Pode levar, se quiser — digo com um sorriso. — Não, isso seria a maior tristeza — diz Chloe. — Então, tem uma loja chamada Tina T por aqui? Ergo os olhos, assustada. — Tem. Tem sim, pelo menos, acho que tem... Por quê? — Bom — diz Chloe —, de acordo com a Heat, todo mundo, de Kate Moss a Elle Mac Pherson, faz compras lá. Então, acho que a gente devia dar uma olhada. Você

não acha? — Não, não faz — respondo antes que consiga me segurar. Pelo menos, essa gente nunca entrou lá desde que eu cheguei. Provavelmente foi só um jeito que Laura encontrou para alavancar os negócios. — Como é que você sabe? Hummmm, boa pergunta. Como é que eu poderia saber isso? Respiro fundo. Agora está na hora de colocar tudo a limpo, resolvo. De contar a Chloe a verdade a respeito do meu trabalho. Ela não vai ligar: ela é minha melhor amiga, pelo amor de Deus. Sem problemas. É só abrir a boca e contar. Mas eu ficaria P da vida se ela mentisse para mim. Provavelmente terminaríamos tendo a maior discussão e isso estragaria o dia todo. É muito melhor contar só quando ela estiver indo embora. Depois de passarmos um dia inteiro juntas para ela se lembrar de como somos boas amigas. - Ah, eu... hum... vou lá de vez em quando, só isso — digo, sem pensar. — Mas, bom — prossigo rapidamente, ignorando o sentimento crescente de culpa —, falam isso de todas as lojas daqui. E tem umas lojinhas bem legais ao redor de Portobello Road. Sabe como é, menos caras. — Não sei como você pode saber se a Kate faz compras lá ou não — diz Chloe, obviamente decepcionada com a rainha falta de interesse. — Você pode ir lá o tempo lodo, mas eu não, e se a loja é boa para a Kate, é boa para mim — diz, cheia de decisão. Dou um sorriso fraco. Quem sabe eu não compro uma peruca na feirinha para ninguém me reconhecer na Tina T? Ou talvez eu mostre a ela onde fica, daí digo que preciso ir ao banheiro e sumo? Suspiro. Por que, com todas as porcarias de loja que existem aqui, Chloe está tão determinada a ir à Tina T? Tento pensar em mais desculpas para não ir lá e abro a porta. Descendo a escada à minha frente está Alistair, e Michael o acompanha. — Bom dia para todas — diz Michael com um bocejo. — Oi, Michael, Alistair — digo, um pouco acanhada. — Desculpe por ter acordado vocês hoje de manhã. Esta aqui é a minha amiga Chloe. Chloe, estes são o Alistair e o Michael. — Chloe. Prazer. — Michael faz uma mesura floreada, e Alistar revira os olhos. — Tem algum plano para hoje? — ele pergunta com a voz arrastada e preguiçosa. — Não exatamente — digo, bem quando Chloe responde. — Vamos fazer compras! Nós duas nos entreolhamos e damos risada. - Bom, agora que fomos acordados de maneira tão grosseira, vamos para o Ground Floor tomar café e ler o jornal, então, se vocês ficarem entediadas, ou não tiverem mais ninguém para perturbar, é onde podem nos encontrar — diz Alistair. — Maravilha! Quem sabe a gente se vê mais tarde, então? — sorrio e Chloe e eu os seguimos escada abaixo. Assim que saímos pela porta e Alistair e Michael estão fora de alcance auditivo, Chloe puxa meu braço. — Então, qual é o Alistair? O bonito? Dou um sorriso animado. — É. O alto. O alto? Ah, eu gostei mais do outro. O que fez uma mesura. Ele era lindo! Olho para ela, desconfiada.

— Mesmo? Você não acha que ele é meio magro? Chloe só sorri em resposta. — Acho que vou querer um pouco de café logo, você não? Quer dizer, se você não se importar de ficar perto do Alistair. Pareceu que vocês se dão bem... quer dizer, que não ficou aquele climão nem nada...? — Ela ergue os olhos para mim, cheia de esperança. — Ah, não ficou clima nenhum — garanto a ela; faço qualquer coisa para me livrar de ir à Tina T. — Acho que café parece uma ótima idéia. Conduzo-a por Portobello Road, experimentamos blusas na Preen e olhamos as bolsas da feirinha. Percebo quanto senti falta de simplesmente me divertir com Chloe: ela sempre fica animadíssima com as menores coisas, e é totalmente contagiante. — Será que agora a gente pode ir à Tina T? — ela pergunta depois de uma hora batendo perna. — Pode ser... — respondo, hesitante —, mas fica meio longe. Se a gente for até lá, provavelmente não vai dar tempo de voltar ao Ground Floor Bar a tempo de tomar café. Os olhos de Chloe faíscam. — Certo. Café agora, roupas de marca e celebridades depois. Alistair e Michael estão sentados à janela com uma pilha de jornais à frente. Quando Chloe e eu éramos crianças, costumávamos assistir a filmes em que pessoas iam a cafés bacanas (geralmente, eram filmes franceses em que todo mundo era filósofo e as moças eram bonitas e silenciosas), e passávamos dias inteiros passeando pelos cafés e casas de chá de Bath em busca de homens lindos sentados por lá, lendo romances franceses e só fazendo pose. Só que nunca encontramos nenhum: Em Bath só tem gente com aparência normal e turista, mas ninguém parecido com Johnny Depp. Mas agora, olhando para Alistair e Michael com suas jaquetas de couro marrom e suas calças jeans, sentados em uma mesa de madeira surrada com o sol banhando-os de luz, bom, podemos estar um pouco velhas demais para brincar com essa fantasia, mas sei que Chloe está pensando exatamente a mesma coisa que eu. — Oi! — digo e me sento ao lado de Alistair. Ele ergue os olhos e assente com a cabeça. — Você não pode interromper a leitura dele — Michael diz com um sorriso. — Resolveu que deseja aprimorar seus conhecimentos a respeito do que está acontecendo no mundo. Vivo dizendo a ele que não devia ler a seção deEstilo se quer saber o que está acontecendo no mundo, mas ele não me escuta. Chloe dá risadinhas. — O que vão querer? — uma garçonete pergunta, e nós duas pedimos café com leite. — Então, compraram algo? — Não — Chloe responde, com ar decepcionado. — Quer dizer, tem algumas coisas legais aqui, mas são todas muito caras. — Nem me diga — diz Michael. — Se você for à Joseph e vir alguma coisa de que gosta, é só me dizer que eu consigo um desconto. - É mesmo? Você trabalha lá? — Chloe pergunta, toda animada. — A Tina T não dá desconto, dá, Natalie? — Michael pergunta. — Por que daria? — Chloe pergunta enquanto eu sacudo a cabeça. — Porque ela trabalha lá — diz Michael bem devagar, em um tom que passa idéia de que Chloe deve ser muito lerda ou algo assim. Por sorte, nossos cafés chegam antes que Chloe possa dizer qualquer coisa. — Depois eu explico — sussurro, tentando ganhar tempo quando ela me lança um olhar

enviesado e Alistair e Michael brigam por cadernos dos jornais de domingo. No fim, Chloe dá de ombros e pega uma revista solta. Dou uma olhada no nosso grupinho. Isto é que é domingo, penso, contente. Quero fazer isso toda semana. Só eu, Alistair, Chloe e Michael ao redor de uma mesa, tomando café, falando de nada específico. Fico imaginando, de leve, como Simon se encaixaria neste grupo de quatro. Talvez ele se dê bem com Alistair e Michael. Mas assim que a idéia me passa pela cabeça, vejo como é improvável. São como cão e gato. Como Bath e Notting Hill. Como Natalie e Cressida... Depois de mais alguns café e uma pilha de croissants, Lucy chega e olho para o relógio: já passam das quatro, então ela já deve estar livre do trabalho. - Oiê — ela estrila em sua voz cantada, - Oi, Luce — digo, tentando parecer feliz de vê-la. Esta é a minha amiga Chloe. - Que nome lindo — diz Lucy, sentando-se no colo de Alistair e inclinando-se para dar um beijo na bochecha de Michael. —Então, quais são as novidades, queridos? — Estou tentando ler — diz Alistair. — Correção. Você estava tentando ler. Agora eu cheguei e quero me divertir! Alistair finge estar aborrecido, mas acho que não está de verdade. Troco um olhar com Chloe. Não sei como Lucy consegue se comportar desse modo. Eu simplesmente nem ousaria tentar. Chloe começa a revirar a bolsa e tira de lá o telefone, que vibra furiosamente. — Esqueci que tinha colocado no vibratório — explica com um meio sorriso enquanto o leva ao ouvido. Ignoro a atividade de Lucy e Alistair meticulosamente, enquanto Michael ajeita as xícaras de café na mesa para que Lucy não derrube nenhuma enquanto faz coceguinhas em Alistair. — Natalie, era meu pai... acho que preciso ir andando. Ele disse que vai me pegar no metrô daqui a vinte minutos. — Está de brincadeira? Mas você acabou de chegar! — Eu sei... mas vou voltar com certeza no fim de semana que vem — Chloe diz e me dá um abraço enorme. — Posso ir com você até o metrô? — ofereço, e Chloe assente com a cabeça e sorri. — Então, Tina T — Chloe diz, assim que saímos pela porta. Droga: achei que ela podia ter esquecido. — Eu... eu faço o marketing para eles — vejo-me dizendo. — E, às vezes, as lojas oferecem descontos quando você faz as campanhas delas... Sinto-me horrível. Não faço idéia de por que simplesmente não consigo contar a verdade. Ou melhor, tenho idéia sim, e ela se chama Pete. Chloe é a melhor amiga do mundo, mas ela nunca conseguiu guardar um segredo durante mais de cinco segundos, e eu simplesmente não suporto a idéia de Pete descobrir que, afinal de contas, não tenho um emprego em publicidade. — Por que você não me disse antes? Quando eu disse que queria ir lá? — Chloe pergunta. — Bom... — digo, hesitante. — Eu não queria impedir que você fosse lá, se quisesse, quer dizer, mas para mim, sabe como é, só é trabalho... Não dá para acreditar em como eu me aprimorei em distorcer a verdade: a coisa agora já ficou natural. Caminhamos na direção de Notting Hill e, ao nos aproximarmos de Kensington Park Road, paro abruptamente. Preciso ser sincera com Chloe pelo menos a respeito de uma coisa. — Chloe, preciso contar algo. Ela olha curiosa para mim.

— Eu nunca saí com o Alistair. Eu só disse aquilo porque... — ...porque você sabia que eu iria ver o Pete na festa da Rebecca? — Chloe pergunta. Dou de ombros. — Bom, deu certo — ela disse, com um sorriso. — Quer dizer, ele ficou fazendo perguntas sobre ele, o que deixou a Rebecca P da vida de verdade. Foi bem engraçado, aliás... Faço uma pausa. — A Rebecca? — Merda, desculpe... achei que você soubesse. Sobre o Pete e a Rebecca, quer dizer... — Chloe parece preocupada, e pega minha mão. Eu sabia. Caramba, eu sabia. Sinto-me vingada, fortalecida pela verdade. E amargamente magoada. Qualquer esperança que eu tivesse de que ele viesse a Londres para me buscar finalmente foi completamente descartada. — Você fez muito bem de se livrar dele — Chloe diz, sentindo o terreno. — Sabe que eu sempre achei que você merecia mais. — Tanto mais que precisei inventar um namorado — respondo, com a voz começando a ficar trêmula. Ele estava me traindo. Durante todo o tempo. Talvez seja tudo que eu mereço. — Bom, o Alistair pode ser inventado, mas pelo menos é bonito. E estiloso, Mas bom, acho que ele é gay — Chloe diz e dá de ombros. Tenho um leve sobressalto. — Como assim? — O quê? — Você acha que o Alistair é gay? — Você não acha? Faço um minuto de pausa. Acho que nunca pensei sobre o assunto. — Fala sério, Natalie. As pernas dele estavam entrelaçadas nas do Michael. E o Michael dormiu na casa dele ontem à noite, não dormiu? E por acaso ele não estava lendo a seção de Estilo...? Ele é meio afeminado, acho. Muito bem vestido. Todo obcecado com o cabelo. E está sempre com Michael... Ai meu Deus. Ah, que vergonha. Ergo os olhos lentamente e encontro os de Chloe. — Natalie...? — ela pergunta para ver o que acontece. Mas, antes que eu possa dizer alguma coisa, meu rosto involuntariamente se contorce em uma espécie de meio sorriso. E antes que eu possa voltar à minha expressão normal, Chloe meio que já soltou uma gargalhada enorme e estrondosa, e apesar de tentar fingir que era tosse, o estrago já está feito. Começo a sacudir bem de leve com risadinhas e, antes que eu me dê conta, estamos as duas no meio da rua, dando gargalhadas histéricas. Quer dizer, a coisa toda é simplesmente ridícula. Claro que Alistair é gay, caramba. Não dá para acreditar que eu fui tão imbecil. — Chloe, eu realmente senti sua falta — digo a ela, contorcendo-me toda por dentro por ter sido tão ridícula. É isso que acontece quando sua melhor amiga mora longe demais: você sente falta das coisas óbvias da vida a que elas normalmente chamam atenção. — Meu Deus, eu também. Sinceramente, a vida é uma porcaria sem você para dar risada junto. Mas a gente se vê no fim de semana que vem, certo? E não se preocupe com o Pete. Ele e a Rebecca se merecem. Gostei do jeito desse tal de Simon... Com isso, ela me dá outro abraço. E, enquanto desaparece estação de metrô adentro, eu me desmancho em lágrimas. Volto para casa rindo e chorando ao mesmo tempo.

CAPÍTULO 9 - Cressida! Cressida! Estou esperando na frente do Langan, um restaurante em Mayfair, sem ter certeza se devo entrar ou não. Para começo de conversa, estou mais de dez minutos adiantada e, depois, não tenho certeza se jantar é uma boa idéia, em primeiro lugar. — Cressida! Meus olhos se fixam em um táxi. Tem alguém pendurado para fora dele, gritando. Parece muito com... Ai, meu Deus, é Simon... e ele está me chamando. Faz mais de um minuto. Meu coração dá uma cambalhotinha. Ele está lindo. — Desculpe, Simon, eu estava com a cabeça em outro lugar. Cheguei um pouco adiantada e quis tomar um ar. — Você está linda — ele diz, sai do táxi e se inclina para me beijar. — Que bom que você chegou cedo. Isso significa que não vou ter de passar dez minutos imaginando se você vem ou não. Ergo os olhos, surpresa. — Por que eu não viria? — Ah, sei lá. Talvez porque você é linda e bacana dedais... pode ter passado os últimos dias pensando sequer mesmo sair para jantar com um cara chato que trabalha em um banco... — Você não é chato — digo, entrelaçando meu braço no dele e imaginando se Simon se dá conta de como chegou perto da verdade a respeito de minha decisão de não vir. Estico o braço para lhe dar um abraço.- É muito bom ver você — digo para o pescoço dele. O restaurante parece ter saído da França do século XVIIl; é todo dourado e suntuoso, com quadros por todo lado e um cardápio que parece delicioso. O lugar perfeito para um casal apaixonado jantar. Só que não estamos apaixonados, lembro a mim mesma com firmeza. Simon certamente não está apaixonado por mim. Ele nem sabe meu nome verdadeiro. Não sabe que eu sou de Bath e que trabalho em uma loja de roupas. Que a única razão por que nos conhecemos é eu ter aberto uma carta de outra pessoa. Se ele descobrisse... bom,, seria o fim de tudo. Ele diz que gosta de mirn por eu ser genuína e sincera. E, para minha vergonha, parece que perdi toda a ligação com esses valores específicos. - Querem tomar um aperitivo? Olho para o garçom que paira sobre nós. -Ótima idéia —- diz Simon. — Eu quero um gim com tônica, por favor. Cressida? — Gim e tônica parece ótimo! — Consigo sentir que estou relaxando... é muito fácil estar perto de Simon. Eu só gostaria de conseguir me livrar das duvidazinhas irritantes que não saem da minha cabeça. O que me preocupa? Que Simon descubra quem eu sou? Ou estou mais preocupada que não descubra? — Saúde — Simon diz quando as bebidas chegam, erguendo o copo de encontro ao meu. Quando ele faz isso, meus dedos roçam os dele e sinto um arrepio de excitação. Antes que eu consiga afastar a mão, o dedinho dele se enrosca no meu. — Acho que eu quero fazer um brinde à Lenora — ele diz com um sorriso. — O que você acha?

— Ah, com certeza. — Sorrio, de coração. Se não fosse ela, nós nunca teríamos nos conhecido. — À Lenora. Fazemos o pedido, começamos a conversar e, antes que eu me dê conta, já comemos dois pratos e a sobremesa chegou. Simon fala sobre como é crescer em uma cidade pequena na região de Wiltshire, como ele detestava o internato, mas nunca disse aos pais porque era muito caro; como todo mundo que estudou em Oxford com ele foi trabalhar em banco, administração de fundos ou contabilidade e ele escolheu um banco porque seu melhor amigo arrumou emprego na mesma empresa mas daí saiu seis meses depois e deixou Simon sozinho; como só teve um relacionamento sério desde a faculdade, que terminou há uns seis meses. — Então, de onde você conhece Lenora? — ele lança no final. Como se fosse só um comentário inofensivo. Como se ele só estivesse curioso. Claro que ele só está curioso. Quer dizer, realmente pensa que eu sou Cressida. — Ela... hum... conhecia minha mãe — digo. — Então, Oxford era mesmo tão difícil quanto dizem? — Não, não tanto — Simon diz com um sorriso. — Então, onde foi que sua mãe conheceu Lenora? Ela também passou um tempo na Índia? Índia? Caralho, será que Lenora é indiana? Para mim, esse não parece ser um nome muito indiano. — Não foi exatamente na Índia — digo, desesperada. Não quero ter esta conversa, mas, até agora, minhas tentativas de desviar Simon do assunto foram um fracasso total. —Onde foi, então? Por que Simon quer saber tanta coisa? Que horror. — Ah, sabe, ela viajava muito. —Penso em minha mãe em Bath, ainda morando no mesmo quilômetro quadrado em que nasceu, e faço uma leve careta. — Que maravilha. Mas ela se juntou aos missionários? Missionários? — Ah, não, não se juntou, não. — Fico surpreso de ela não ter caído nas garras de Lenora! — Simon sorri. — Eu também! Simon continua a me pressionar para saber exatamente onde minha mãe conheceu Lenora, que parece meio louca, e meu coração se aperta. Quem eu quero enganar? Isto aqui nunca vai dar certo. Não posso namorar alguém que acha que minha mãe é amiga de alguma missionária indiana e que eu me chamo a porcaria de Cressida Langton. Olho para o relógio. Dez e meia da noite. Bom, foi divertido. Simon é um amor. Mas não há futuro nisso. Acho que talvez esteja na hora de ir para casa. — Olha, Simon, muito obrigada mesmo por uma noite tão maravilhosa — digo de um fôlego só, tentando ignorar a voz dentro de mim que me diz para ficar. — O negócio é que eu... hum... preciso ir agora. Estou com um projeto enorme no trabalho agora... preciso acordar cedo e tudo o mais... Simon parece decepcionado, mas sorri, educado. — Claro que sim, eu compreendo. Será que a gente vai se ver de novo, logo? — Pergunta, cheio de esperança. — Com certeza. Eu ligo para você, pode ser? Simon assente com a cabeça. Ao sair, sinto-me incrivelmente triste com o fato de que não vou ligar coisa nenhuma.

Então, Alistair é gay; isso estraga um pouco meu plano de "estou namorando Alistair". Isso também pode explicar por que, por mais que eu me esforce, simplesmente não consigo ficar a fim dele: talvez, em nível subconsciente, eu estivesse captando as vibrações de "ele nunca vai se interessar por você". Mas o fato de Alistair estar fora de questão não significa que eu deva sair com Simon. Simon, que nem sabe qual é meu nome verdadeiro. Digo estas palavras para mim mesma enquanto dobro pulôveres na Tina T, mas nem por isso é mais fácil aceitá-las. Pelo menos é quarta-feira, e isso significa que Chloe chega daqui a alguns dias. — Oi! Tem uma mulher parada na minha frente, agindo como se me conhecesse. Percebo que fiquei olhando para o nada durante uns bons cinco minutos. Observo o rosto dela e lembro imediatamente: é a namorada daquele sujeito que trabalha no mercado financeiro. — Oi! — respondo, toda alegre, feliz por ter algo em que me concentrar além do fato de só serem 16h45 e eu ter de esperar até as seis para ir embora. — Então, o vestido funcionou? — Foi uma maravilha — responde a mulher, sorrindo, obviamente muito feliz consigo mesma. — E, hoje, preciso de alguma coisa mais informal para uma viagem de fim de semana. Estava pensando em uma calça azul-marinho ou algo assim. Alguma coisa que não vai ficar horrível depois de passar algumas horas em uma mala. -— Tem umas calças azul-marinho da Dolce & Gabbana bem legais — digo, pensando em voz alta. — Mas tem umas calças adoráveis da Chloe, um pouquinho mais claras... ou que tal pastel? Daí entramos no território de Michael Kors, e são todas muito fáceis de usar... Passei pela loja pegando roupas enquanto minha cliente, cujo nome descubro ser Angela, vem atrás de mim contando quais são seus planos para o fim de semana. — Vamos ficar na casa dos pais dele, então não posso parecer muito saidinha... claro que eu os conheço há anos e eles me adoram, então não vou ter de me esforçar tanto, mas sabe como é... À medida que vou pegando as roupas, Angela me diz que também vai precisar de lingerie nova, já que ele viu todas as melhores coisas dela naquela outra noite. - E ele adora renda preta. Nunca enjoa... — ela explica. Ainda não parou de falar quando entramos no provador; não sei bem se está falando comigo ou consigo mesma. — Quer dizer, nós somos perfeitos um para o outro. Se tudo der certo, acho que no fim de semana que vem... ah, sim esta calça é realmente perfeita... Ela sai do provador com a calça Michael Kors cor de pistache e uma blusa Prada que revela um pedacinho de barriga durinha por baixo. Ela se analisa com muita atenção no espelho, jogando o cabelo dourado de um lado para o outro e mexendo o quadril. Fico imaginando como seria comprar roupas para uma viagem de fim de semana com Simon. Sentir aquela enxurrada de animação. Então afasto a idéia da mente. — Como está atrás? — ela diz, toda séria. —Você tem um espelho para eu dar uma olhada? Obediente, pego um espelho comprido e seguro para ela. — Maravilha. Certo, esta calça é perfeita. Mas deixa eu experimentar a outra. Ela volta para o provador. Olho para o relógio. Cinco e meia da tarde. — Ah, esta é linda —- ouço Angela suspirar quando sai de novo, desta vez com a calça Chloe e a blusa Clements Ribeiro. — É um pouco cara, mas e daí, né? Ela olha para mim em busca de aprovação e eu sorrio na mesma hora. — Esta compra é um investimento — ela diz, sorrindo e admirando sua silhueta lateral no

espelho. — É, com certeza vou levar tudo. Alguns minutos depois, ela volta para o provador e sai com uma pilha de roupas no braço. Para meu alívio, Julie se aproxima para ajudar a empacotar. — Ah, você fez bem de levar a Michael Kors — Julie diz, piscando para Angela. —Já estamos quase sem, e só chegaram ontem. Como previsto, Angela irradia de tanta alegria. — Bom — ela diz, quando tudo está empacotado e pago —, se esta coleçãozinha não der certo, nada mais vai dar! - Você tem um plano de sedução, é? — diz Julie, com ar de quem já entendeu tudo. — Apenas um pequeno projeto — Angela responde com um sorriso. — Um projeto de casamento, para dizer a verdade. Preciso conseguir aquela aliança, sabe do que estou falando? Julie assente com a cabeça e revira os olhos em sinal de solidariedade. — Então, Michael Kors e Chloe vão fazer com que ele se ajoelhe a seus pés? — ela pergunta e entrega a sacola a Angela. Os olhos de Angela se iluminam visivelmente. — Exatamente. Ou, pelo menos, esse é o plano. Desejem sorte para mim! Nós duas desejamos sorte a ela e a acompanhamos até a porta. Nunca quero ter um "projeto de casamento". Parece algo manipulador demais, nada romântico. Imagino se há alguma mulher atrás de Simon desse jeito, e fico surpresa com a pontada de ciúme que sinto só com a idéia. Quando volto para o caixa, Julie e eu trocamos olhares. — Então, Natalie, vai comprar mil libras em roupa para ir ao Canvas hoje à noite? — ela me pergunta sem nenhuma emoção no rosto. — Claro que sim — respondo. — Pensei em compraralguns modelitos diferentes... sabe como é, para o caso de eu mudar de idéia no meio da noite. — Boa idéia — Julie concorda. — Quer dizer, é um investimento, não é mesmo? — Exatamente — respondo, dando risadinhas. — Então, o que você compraria... se dinheiro não fosse impedimento? Olho para Julie, incerta. — O dinheiro não teria a menor influência? Ela assente. — Bom, provavelmente isto. — Pego o vestido Alberta Ferretti que experimentei antes. É o pretinho esvoaçante mais lindo do mundo, feito de um chifon levinho que cai lindamente sobre cada curva do corpo. Quase não reconheci a mim mesma com ele. — Hummmm. É legal — Julie concorda. — Mas não é tão sensual quanto o Gucci. Sacudo a cabeça. — Acho que eu não sou do tipo Gucci, na verdade. Não tenho peito para isso. — Tem razão. Eu fico com Westwood toda vez —- Julie diz. — Ficam bons na bunda, os Westwood. Volto a dobrar os pulôveres e ergo a cabeça despreocupada quando ouço o sininho da porta tocar. Tem um homem alto de terno espiando para dentro, obviarnente sem ter certeza se está no lugar certo ou não. Com um sobressalto, percebo que é Simon. Que diabo ele está fazendo aqui? Quando Laura vai até ele, agacho-me atrás de um mostruário e assobio para Julie. Talvez ele tenha descoberto quem eu sou. Talvez tenha ligado para Lenora. Meu Deus, que horror! Julie olha para mim sem entender nada. — Está tudo bem aí em baixo? — ela pergunta.

— Julie! Você tem de me ajudar. Aquele é o Simon! É o cara com quem eu saí! — Então, por que você está se escondendo? É legal da parte dele vir dar um oi no trabalho, não é? Acho que seria legal... se eu soubesse como diabos Simon conseguiu me achar. Puxo Julie para baixo, para que ela fique no meu nível. Ela parece ficar muito infeliz: as roupas dela não são muito adequadas para agachar. — Ele não sabe que eu trabalho aqui — digo, atormentada. — Não sei o que ele está fazendo aqui. Mas ele não pode saber que eu estou aqui. Certo? Julie olha para mim sem entender nada. — Tem certeza de que não quer falar com ele? Sacudo a cabeça violentamente. Uma coisa é não ligar para Simon, mas outra é ser totalmente desmascarada desta maneira. — Bom, tudo bem, se você insiste... — Natalie! Julie, você viu a Natalie? — Laura e Simon estão caminhando pela loja e vindo na minha direção. Agacho-me ainda mais e faço uma manobra para o outro lado do display, com o coração batendo forte no peito. Como foi que ele descobriu meu nome verdadeiro? — Ela deve ter saído para o intervalo — diz Julie. — Será que eu posso ajudar? — Mas ela acabou de fazer intervalo. — É, bom, ela fez outro. O que posso fazer para ajudar? —-Julie lança um enorme sorriso para Simon, e Laura | se afasta, espiando por toda a loja para ver onde eu estou. Meu coração bate tão forte que é uma surpresa ela não escutar. — Na verdade, você pode ajudar sim, se não se importar — ouço Simon dizer. — Estou procurando um presente. — Percebo — diz Julie, piscando para mim. — Que tipo de presente? — Roupas. Provavelmente umas roupas. — Bom, muito bems então veio ao lugar certo. — Julie dá um sorriso cheio de paciência. Simon parece levemente acanhado. —Desculpe — ele diz, meio envergonhado. — Eu nunca fiz isso na vida. É que a... hum... pessoa para quem estou comprando presente entende muito de moda. Sabe como é. Ela mora por aqui, na verdade. Umas colegas de trabalho me disseram que este seria o lugar certo para vir. Sabe. Parece que top models fazem compras aqui ou algo assim? A voz de Simon vai sumindo. Obviamente, ele está se sentindo totalmente pouco à vontade e deslocado. Coro de tanta culpa. Simon veio até aqui para me comprar um presente, e eu nem estava pensando em ligar para ele. — É, você veio ao lugar certo — Julie diz, entrando em seu modo-vendedora. — Então, tem alguma idéia de que tipo de coisa quer levar? Blusa, calça, saia...? Simon parece não saber. — Bom, que tamanho ela usa? Os olhos de Simon se enchem de alarme. — O tamanho normal — ele sugere. — Maior ou menor do que eu? Simon a avalia por um instante, e eu me sinto ferver de raiva por dentro. — Maior — Simon conclui. Solto um guincho de indignação. Quanto maior? — Certo. Bom, eu uso de 36 a 38. Quem sabe então 40? 42? Lanço um olhar penetrante para Julie da minha posição agachada desconfortável. Não uso

42 de jeito nenhum. — Não sei — diz Simon. — Ela tem belas curvas. É magra, mas não... sabe como é, não é magra demais. Julie parece um pouco desconcertada por um instante, então faz cara de pensativa. — Ela é loira? Simon parece surpreso. — É sim... como você...? — Ah, foi só um palpite — diz Julie, com um sorriso maldoso que, eu sei, é direcionado para mim. — Hummm. Bom, tem um coletinho lindo que acabou de chegar; Marc Jacobs. Muito fofo. E temos também umas saias ótimas... Ou... Não, não, acho que você não vai querer. É caro demais. — O quê? — pergunta Simon. Eu me manobro um pouco para poder enxergar melhor. O que Julie está tramando? — Ah, nada. É que temos um vestido maravilhoso que ficaria ótimo em uma loira linda e magra com curvas. Mas é um pouco demais. Não, vou mostrar os coletinhos. — Quanto? — pergunta Simon. — Bom... que tal se eu mostrar? —Julie pergunta, coquete. Meu Deus, será que ela está fazendo o que eu estou pensando? Não, ela não faria, não é mesmo? Simon segue Julie até a arara de Alberta Ferretti. Rapidamente, pega o meu vestido. Simon fica olhando para ele. — É lindo. — E não é? — Julie concorda. — Quer que eu experimente para você ver? Quase caí para trás de susto, mas consigo me segurar ao mostrador a tempo de me equilibrar. Mas Julie me dá outra piscadela enquanto Simon hesita. — Eu... acho que não vai ser necessário — gagueja, obviamente estupefato. — Ainda quer ver as blusas? — Julie pergunta. Ele continua olhando para o vestido, como se estivesse transfixado, — Não... acho que este provavelmente é o vencedor... — Ele diz, distraído. — Ele é mesmo muito lindo, não é? — Ela vai ficar maravilhosa com ele — Julie concorda, empacota a peça com rapidez e passa o cartão Amex de Simon na maquininha. — Seja lá quem ela for... Fico de joelhos, então me abaixo rapidinho, quando os olhos de Simon percorrem a loja. Ele parece um tanto surpreso ao ver a quantia que está pagando (não tenho dúvidas de que ele não esperava que Julie o convencesse a gastar oitocentas libras), mas daí dá um leve sorriso. — Obrigado — diz com educação quando Julie lhe entrega a sacola. — Ah, de nada. Volte sempre! — ela lhe diz e lança scu sorriso mais doce. Quando Simon se dirige para a porta, sinto que estou tremendo um pouco e acho que não é inteiramente pelo lato de o meu corpo estar contorcido de encontro ao chão. Ele comprou para mim o vestido Alberta Ferretti. Ele realmente o comprou para mim. O adorável e doce Simon. Como eu pude pensar em simplesmente não ligar? — Não vá deixar esse aí escapar — Julie sussurra, quando Laura encurrala Simon na porta. Quando alguém gasta mais de quinhentas libras, ela sempre faz questão de dar um sorriso apaixonado para a pessoa quando deixa a loja. Dou um gemido ao esticar as pernas para ficar em pé. — Não — digo, quando finalmente fico ereta. — Acho que você tem razão.

Fico sorrindo até chegar em casa. Isso só serve para comprovar: se eu não tivesse aberto a carta, onde estaria agora? Sozinha, eis onde. Graças a Deus eu caí na tentação, é tudo o que posso dizer. Acho que às vezes a gente precisa se arriscar. É engraçado: todo mundo sempre fala de Adão e Eva, como se ter comido aquela maçã tivesse sido a pior coisa do mundo. Mas se Eva não tivesse dado uma mordida naquela maçã, não teríamos internet, Marc Jacobs ou Shakespeare... nem sexo, não é mesmo? Não, estou feliz por ter feito aquilo. Só preciso descobrir como superar o fato de que Simon pensa que sou Cressida. Não deve ser muito difícil, será? Dobro a esquina e vejo a sacola da Tina T na porta da minha casa. Bem ali, com o papel de seda rosa aparecendo por cima. É o meu vestido! Olho ao redor cheia de incerteza: e se alguém tivesse roubado? Então, pego a sacola c tiro as chaves da bolsa. Quando minha mão se estica na direção da fechadura, meu celular toca. Irritada pela interrupção, tiro-o da bolsa e aperto OK. — Você não vai olhar dentro da sacola? É Simon. - Era exatamente o que eu ia fazer! — digo, toda animada, e então fico um pouco assustada. — Simon, como você sabe que eu achei a sacola? — Você não achou que eu ia deixar aí para alguém roubar, achou? — diz Simon. — Então, você está... — Do outro lado da rua. Olho em volta e, é claro, lá está Simon na frente da Frog and Firkin, com as mangas da camisa dobradas, totalmente lindo. Ele atravessa a rua enquanto eu abro a sacola e tiro o vestido. O meu vestido. — Achei que você iria gostar de experimentar... de levar para passear comigo em algum lugar hoje... — Simon diz com um sorriso enquanto eu olho para o vestido, transfixada. Ou quem sabe a gente deixa para lá a parte de sair digo baixinho, enquanto desligo o telefone e me viro para beijar Simon. Ele retribui o beijo cheio de vontade, apertando meu corpo contra a porta do prédio. Consigo entregar minha chave para ele e, quando abre a porta, eu quase caio com tudo através dela. Desejando não precisar compartilhar o hall de entrada com quatro outros apartamentos, subo a escada com a maior rapidez possível, com Simon logo atrás de mim. E então, finalmente entramos no apartamento e fechamos a porta atrás de nós. Nem chegamos à cama. Não imediatamente. Começa-mos logo ali na entrada, mas não é muito confortável, enfio enquanto eu tiro a camisa de Simon, de me carrega até o sofá e meu jeans começa a sair; digo começa porque Simon tenta tirá-lo sem abrir todos os botões, e isso significa que a calça entala no meio do caminho, e não e exatamente uma visão das mais belas, para ser sincera. Mas eu consigo me livrar da peça de roupa e então... bom daí Simon está me beijando em todo lugar, e isso é tão diferente de tudo, ou de qualquer pessoa que eu experimentei antes e eu realmente me sinto como a mulher mais sexv da face da terra em vez de ficar preocupada em corno minha barriga está grande ou como eu não sou criativa o suficiente. Fazemos amor. No sofá, no tapete e, finalmente na minha cama. E, se ele não tivesse dito Cressida naquele momento fundamental, a coisa teria sido bem próxima de perfeita.

CAPÍTULO 10 Sabe aquelas vezes quando você deseja que alguém pudesse vê-la? Aquelas vezes quando você pensa, é, neste momento eu ficaria feliz da vida se aparecesse no horário nobre da TV, porque ficaria orgulhosa de me assistir, orgulhosa porque outras pessoas poderiam ver o que eu estou fazendo, do jeito que eu estiver. Você já se sentiu assim? Bom, este é um desses momentos. Imagine a cena: estou sentada na minha cozinha de Ladbroke Grove com o sol entrando pela janela, usando um penhoar leve, com um pouco de maquiagem borrada em volta dos olhos, que na verdade está bem mais bonito do que o visual borrado que eu tento desesperadamente obter quando saio, mas nunca consigo. E, sentado à minha frente, tomando chá, está um homem lindo. Ele está bem aqui, comigo: não está assistindo futebol por cima do meu ombro nem pedindo para que eu pare de falar porque está de ressaca, mas falando do que tem pela frente naquele dia e perguntando o que eu tenho. Isso deve ser a coisa mais próxima do paraíso possível. Câmeras escondidas, está na hora de começar a rodar. — O negócio é o seguinte — Simon diz todo sério, enquanto passo manteiga em algumas torradas e coloco mais água para ferver. — Dinheiro faz dinheiro, mas não é exatamente algo que deixa a gente satisfeito. Quer dizer, é lucrativo, sim. Mas não sei se contribui com a sociedade de alguma maneira. — Acho que depende em que você investe — sugiro. — Em qualquer coisa que renda dinheiro — Simon diz, sem emoção. —Acho que a Lenora teve a idéia certa, sabe. De trabalhar como missionária, quer dizer, de realmente fazer diferença. Não tem muita gente que é capaz de fazer isso, não é mesmo? Assinto com a cabeça, pouco à vontade. Quantas conversas mais eu vou ter de fingir a respeito dessa tal de Lenora? Talvez eu possa dizer que nós nos desentendemos e que nunca mais quero falar com ela. Mas como é que a gente inventa uma briga com uma porcaria de uma missionária? — Sabe, é estranho, mas eu estava pensando na Lenora no dia que você ligou — Simon diz e abocanha um pedaço de torrada. — Meio que pareceu o destino quando recebi seu recado. Quer dizer, se tivesse sido em qualquer outro dia, eu provavelmente teria apagado. É incrível, não é...? — Você teria apagado? — pergunto, indignada. — Você pareceu meio esquisita — diz Simon, sorrindo. — E você realmente ligou às três da manhã. Quer dizer, agora eu sei que você é uma gatinha linda. Mas podia ser uma louca completa, não é mesmo? — Como você sabe que eu não sou? — pergunto de brincadeira. Na verdade, eu devia pedir a ele que definisse louca: por exemplo, será que abrir a correspondência de outra pessoa e se passar por ela é uma atitude de louca? - Boa pergunta — diz Simon. — Mas, falando sério. Você acha que o destino teve alguma coisa a ver com isso, não acha? Olho para ele e me sinto desconfortável. E se o "destino" na verdade estivesse tentando unilo com Cressida e eu me intrometi? Enquanto tento pensar no que dizer, o telefone toca. Penso rápido. Será que atendo e arrisco uma conversa de uma hora com minha mãe ou deixo a secretária eletrônica atender e corro o risco de Simon ouvir um recado totalmente vergonhoso dela? Ai meu Deus, e se for o Pete? Corro para atender, mas o gravador começa a funcionar antes que eu tire o fone do gancho.

— Oi, deixe seu recado! — ouço minha própria voz dizer. — Ah, é uma secretária eletrônica? Aquele foi o bipe? Ah. Alô. Este é um recado para Cressida Langton. Meu nome é Stanley Wickett. Soube que você oferece terapia de Reiki, e queria marcar um horário. Talvez possa me retornar para combinarmos. Meu telefone é 020 7354-2667. Muito obrigado. Solto um enorme suspiro de alívio. Graças a Deus, mais um telefonema de Reiki. Não dá para acreditar na minha sorte! Sorrio alegre para Simon. Tenho vontade de dizer algo do tipo: "É. Um recado para Cressida. Eu. Eu sou ela", mas, em vez disso, volto para a cozinha. — Então, Reiki, hein? Você nunca tinha comentado. Bosta. Isso não tinha me ocorrido. Mesmo assim, faria sentido: sabe como é, se minha mãe supostamente é amiga de Lenora, que é missionária e provavelmente adora todas essas coisas... — É só uma atividade paralela, na verdade — balbucio. — Para ser sincera, acho que não vou mais fazer. Foi só uma coisa que eu experimentei durante um tempo. — Não diga isso — Simon fala e larga a xícara de chá. — Acho que é fantástico você tentar curar as pessoas. Não dá para abandonar algo assim. Vamos, retorne a ligação. Ergo os olhos, chocada. — Ligar para ele? Ah, não. Não, mesmo... Eu... acho que não tenho mais nenhum, hum, poder de cura. Então, fale mais sobre o distrito financeiro — imploro, desesperada para mudar de assunto, mas Simon não quer nem saber. Ele vai até o telefone e começa a discar. — Dois, meia, meia, sete, não era? Certo. Ah, alô, é o Sr. Wickett? Esplêndido. Estou ligando da parte de Cressida Langton, a respeito de uma sessão de Reiki... é, isso mesmo. Bom, que horário seria adequado para o senhor? Percebo, aguarde só um minuto. — Ele pisca para mim e cobre o bocal. — Hoje à noite por volta das sete, tudo bem? Fico olhando para ele e sacudo a cabeça com violência. — Às sete, então. Isso, Ladbroke Grove, n° 127, apartamento 3. Maravilha. Cressida o atenderá nesse horário! Não dá para acreditar no que ele fez. Não sou terapeuta de Reiki. Mas, bom, eu também não sou Cressida. Se eu fizer muita confusão sobre o fato, pode parecer estranho. Quer dizer, Cressida não dispensaria clientes, não é mesmo? Simon volta até onde eu estou e coloca as mãos em meus ombros. — Você não se importa, não é mesmo? É que eu acho superlegal ser terapeuta de Reiki. E ele ficou tão feliz de receber o seu retorno... Bom, o meu, na verdade, mas você sabe do que eu estou falando. Retorço os lábios em um sorriso desconfortável. — Claro que não me importo — digo bem baixinho. Simon se inclina e me beija. — Olha, preciso ir para o interior neste fim de semana, mas volto no domingo. Acho que você não está livre, está? Quem sabe a gente não faz um piquenique no Hyde Park ou algo assim? — Gengibirra e torta de porco? — digo com um sorriso. — Precisamente. E morangos. Creme. Vamos fazer uma orgia de comida, vinho e... Dá um beliscão firme na minha bunda. — No parque tem policiais, sabia? — digo, séria. — Então, não tenha nenhuma idéia... — Tarde demais — Simon diz e pega o paletó. — Certo — digo, sorrindo. — Mas, olha, deixa que eu levo a comida, tá? Acho que estou

devendo... — Prefiro que você me pague em favores sexuais, mas se insiste... — Simon diz e me dá um beijo cheio de ternura nos lábios. E, com isso, sai pela porta e vai trabalhar. Eu, por outro lado, fico paralisada no mesmo lugar durante uns bons dez minutos, apoiada na parede, refletindo sobre o que aconteceu desde ontem à noite até esta manhã. De algum modo, isto aqui não se parece em nada com as outras vezes em que saí com alguém. Tudo: o visual dele, a sensação que provoca em mim, simplesmente o jeito dele. É como se eu já o conhecesse, o que é obviamente impossível. Mas acho que eu gosto dele. Acho que gosto dele de verdade. E acho que, talvez, ele realmente goste de mim. Vou contar a ele sobre o negócio do nome no domingo, e vamos dar risada disso, e tudo vai ser maravilhoso. Finalmente, com um sorrisinho, pego minha bolsa e saio para trabalhar. O homem à minha espera na frente de casa não parece alguém ligado em terapia de Reiki. Quer dizer, ele não usa roupas esquisitas, não tem cabelo comprido. Aliás, o visual dele é praticamente o oposto do que se esperaria de um paciente de Reiki, caso você tivesse preconcebido uma imagem na cabeça, coisa que você provavelmente não concebeu. Eu não tinha concebido, até ver o fulano e perceber que não tinha nada a ver. Ele tem uns setenta anos. Talvez seja até mais velho. E usa um paletó de tweed. Parece que deveria estar acomodado em um clube de cavalheiros, não parado na frente de uma casa em Ladbroke Grove. — Boa noite, Stanley Wickett — ele diz e estende a mão para me cumprimentar. — Que bom que você pôde marcar um horário para mim com tão pouca antecedên cia. Eu costumava ir ao centro de terapia ali da esquina, mas a praticante de Reiki deles largou, e me deram seu nome e telefone. Dou um sorriso amarelo. — Ah, não, não tem problema, mesmo. — Muito gentil da sua parte. E, hum, esqueci de perguntar no telefone quanto você cobra. — Quanto eu cobro? — Para o tratamento. Quanto custa a sessão? — Ah, certo. Acho que são quarenta libras. — Até parece que eu vou cobrar dele por nada. Mas eu tinha de dizer alguma coisa, não é mesmo? Que beleza. Eu estava pagando 45 no centro de terapia, então é uma ótima notícia. Assim, sobra um pouco mais de dinheiro para as boas coisas da vida — diz Stanley com animação, quando o conduzo para meu apartamento. Meu estômago só começa a se revirar quando abro a porta. O negócio é que eu passei o dia todo negando essa coisa toda de Reiki. Quer dizer, era totalmente surreal: o telefonema, Simon achando superlegal eu ser terapeuta... Tanto que eu meio que bloqueei aquilo para fora da minha mente e preferi me concentrar no problema maior, que é como explicar a Simon a respeito da leve confusão de nomes (eu me convenci de que esse é o tipo de coisas que simplesmente acontece às vezes. Tipo: "Ops, eu disse que meu nome era Cressida? Eu quis dizer Natalie..."). E agora tem um homem de carne e osso na minha casa, esperando receber um tratamento. Isso não é a mesma coisa que mentir sobre meu nome: agora eu realmente preciso fazer algo. — Então, quer um chá? — pergunto a ele com voz falsamente alegre, tentando adiar o

momento inevitável. Onde vou colocá-lo? No sofá? Na minha cama? Não, na minha cama, não. De jeito nenhum. — Adoraria, obrigado. Com leite, sem açúcar, se não for incomodar. Se não for incomodar? Meu Deus, eu passaria a noite inteira preparando chá se isso me livrasse de ter de fazer um "tratamento" nele. E este cara faz Reiki com regularidade. Quer dizer, não tem como eu fingir que estou fazendo alguma coisa. — Não incomoda nem um pouco — digo, animada. — Na verdade, para a primeira sessão, geralmente é melhor bater um bom papo. Sabe como é, para saber que problemas você tem, no que eu devo me concentrar. Assim, eu posso ter certeza de que vou, hum, canalizar a energia na direção certa. Canalizar a energia? De onde eu tirei essa? Mas parece funcionar. Stanley se recosta com um sorriso. — É, acho que você tem mesmo razão absoluta. Bom, vejamos. Acho que são as dores de cabeça, e a sensação generalizada de cansaço. Eu simplesmente não me sinto eu mesmo, se é que você me entende. Já faz um tempinho que estou assim. — Há quanto tempo, exatamente? — Entrego a Stanley seu chá e ele sorri, agradecido. Assim é bem melhor. Quer dizer, eu adoro um bom papo. Com certeza é muito melhor do que assistir à televisão sozinha. Para ser sincera, por mais que eu goste de morar sozinha, eu meio que sinto falta de ter alguém comigo no fim do dia para conversar. E Stanley parece ser um fofo. — Há quanto tempo? — Stanley pergunta. —Ah, acho que uns dois anos. — Anos? Nossa, que horror. Então, o que você acha que está causando isso? — Meu médico diz que é o estresse. — Você está estressado? Acho que não. Eu não trabalho mais. Não tenho preocupações financeiras. Não, não diria que estou estressado. Mas meu médico tem muita certeza disso. Minha última terapeuta também. Ela achava que eu precisava relaxar mais. Mexo o meu chá. É engraçado: só de fazer essas perguntas, fico me sentindo uma conselheira caridosa ou algo assim. Como se realmente soubesse do que estou falando. — Então, o que aconteceu há um ou dois anos? Sabe, o que deu início às suas dores de cabeça? — pergunto, lançando a ele meu melhor olhar de "você sabe que pode se abrir comigo". — Não teve nada específico — Stanley diz, friamente. — Foram começando gradualmente, veja bem. Creio, querida, que não haja algum acontecimento marcante que possa ser responsabilizado. Depois que minha mulher morreu, entrei em uma rotina que raramente muda de um dia para o outro. — Sinto muito pela morte de sua mulher. — Eu também senti. Ainda sinto — Stanley se corrige. — Ela era uma mulher ótima. Muito espevitada. Eu gosto de mulheres espevitadas, sabe. Não gosto daquelas criaturas dóceis que só ficam olhando para você e sorrindo. Urgh, essas eu não agüento. Não, Bess não parava quieta. Ela me apavorava. Apavorava a família toda. Mas eu a amava. Você é casada? — Não — respondo, um pouco rápido demais. Essa é outra coisa sobre a qual eu e Pete costumávamos conversar. Mais uma coisa para a qual nunca conseguíamos guardar dinheiro. Stanley sorri para mim. — Então, o rapaz do telefone não é o escolhido?

Coro levemente, — Ele é, bom, a gente acabou de se conhecer... Quer dizer... — Percebo. Bom, pode confiar: quando você encontrar o homem certo, vai fazer de tudo para que funcione, não vai? É muitíssimo importante. Fico muito feliz por ter podido passar tantos anos ao lado da minha mulher. Fomos tão felizes... Stanley pára de falar e fica olhando para o nada. Ele tem razão, é claro. Ser feliz... bom, não existe nada melhor do que issos não é mesmo? E acho que agora estou feliz. Qualquer coisa é melhor do que a insatisfação, a insegurança misturada à raiva em banho-maria que eu sentia quando estava com Pete. - Então, quando foi que sua mulher... quer dizer, Bess... morreu? - Em agosto de 2001. No dia seguinte ao aniversário de setenta anos dela. - Então isto aconteceu há o quê? Quase dois anos? - E. Meu Deus, como o tempo passa rápido, não é mesmo? Parece que foi só ontem que ela estava me dando ordens no supermercado. Ela não acreditava em lazer, sabe como é. Achava que só servia para apodrecer o cérebro e o corpo. Passou os últimos cinco anos da vida tentando obter permissão da prefeitura para transformar nossa lojinha do andar de baixo em uma loja de verdade. Em uma loja grande, onde desse para se movimentar. - Você tem uma loja no andar de baixo? - Na verdade, não. Não mais. A casa era dos pais dela. Vendiam antigüidades. Mas mal tem espaço para sacudir um gato. A Bess queria aumentar os fundos; sabe, lá não tem realmente nada, a não ser uma área útil que ninguém usa, e um estacionamento. Mas não temos carro. Não tínhamos, quer dizer. A Bess não gostava de carro. De repente, Stanley começa a rir sozinho. - Então, talvez seja por isso que você anda tendo dor de cabeça. - Por que a prefeitura não nos deu a licença? Ah, não, isso era coisa da Bess, não minha. Seria bom se ela pudesse abrir um negócio, mas eu, não. — Não é a licença de expansão — digo. — É a morte da sua mulher. — O quê? Ah, não — diz Stanley, sacudindo a cabeça. — Começaram um bom tempo depois disso. Uns bons meses. Eu me lembro, era quase Natal quando tive a primeira. — Hummmm. Certo. Bom, o que mais? O que tem nessa sua rotina que pode estar causando estresse? Stanley conta tudo a respeito de seu dia, desde a visita da faxineira pela manhã para se assegurar de que ele tem comida e lençóis limpos, até seu passeio pelo parque e a visita à biblioteca à tarde. Aí, à noite, ele costuma ler, ou ouvir ao sem fio. — O "sem fio"? Stanley, hoje as pessoas chamam de rádio! Mas e a televisão? Não assiste? — Televisão? Ah, meu Deus, não. A Bess achava que televisão também apodrecia o cérebro. Ela desprezava o aparelho: não permitia que houvesse um em casa. Ele dá uma risadinha, então olha ao redor, nervoso, como se estivesse preocupado com o fato de que Bess pudesse ouvi-lo. — Então, nunca assistiu a nenhuma novela? — Não, nunca. — Nem “Friends”? — Não, também não. — Que tal “Dad's Army”, ou “Seinfeld”, ou “A noviça rebelde”? — Sinceramente, estou em estado de choque. Como é que Stanley pode nunca ter assistido à televisão?

— Ah, eu vi “A noviça rebelde” no cinema. Um filme adorável. Gostei muito daquela personagem, Liesel... Stanley termina a última xícara de chá e olho para o relógio. Vejo que já são quase oito da noite. Os olhos de Stanley seguem os meus e ele se levanta de um salto. — Ah, sinto muito. Meu Deus, realmente é assim tão tarde? Ah, espero que não a tenha causado inconvenientes. Deixe-me pagar pela sessão, por favor. Ele começa a procurar a carteira enquanto eu tiro as xícaras. Não vai ter como eu permitir que este homem doce e solitário me pague por uma hora de conversa. Quer dizer, poderíamos estar no ponto de ônibus ou algo assim. E, aliás, eu realmente gostei do papo. — Não seja bobo, Stanley — digo com gentileza, pegando no braço dele. — Olhe, esta é por minha conta, certo? Até parece que eu fiz algum Reiki ou algo assim. — Ah, não, por favor, permita-me pagar. Deixe que eu... — Stanley achou a carteira e está tirando dela algumas notas de vinte libras. Pensando em Bess, suponho que preciso ser firme. — Stanley, não vai ter como eu deixar que pague por este papinho. E ponto final. Stanley sorri. — Bom, colocando desse jeito... Sabe, gostei muito da nossa conversa, obrigado. Hoje em dia, não é sempre que a gente consegue conversar de verdade. E ter alguém que escute. Realmente, estou muito agradecido. Olho para ele com atenção. — Stanley, vai começar a novela “EastEnders” na TV. Será que gostaria de assistir um pouco comigo? Os olhos dele se iluminam. — Ahs eu seria incapaz de me intrometer dessa maneira — diz, olhando por cima do sofá. — Claro que não estaria se intrometendo. Olha, tenho algumas lasanhas de microondas aqui, vou esquentar, pode ser? Fique à vontade. — Bom, tem certeza mesmo? — ele diz com cautela, aproximando-se do sofá. — Tenho certeza absoluta — digo com firmeza e pego o controle remoto. Enquanto vejo a tela ganhar vida, Stanley se ajeita no sofá. — Então, este é o Ricky — digo e aponto para a tela. - Ele é filho de Frank, que era casado com Pat. E Ricky era casado com Bianca, mas faz muito tempo; mas bom, ele casou com Natalie, que era casada com o outro filho de Pat, Barry. Mas Barry foi assassinado pela irmã de Ricky há algumas semanas. Só que ninguém sabe que ela fez isso por enquanto... Stanley suspira feliz e franze um pouco a testa, tentando entender o enredo. Coloco as lasanhas no microondas, então me junto a ele no sofá. Duas horas depois, acabamos com as lasanhas e um pacote de biscoito de chocolate para fazer a digestão. Além de ter sido apresentado a “East Enders”, Stanley também conheceu “Selling Houses”, “Ground Force” e “Will & Grace”. — Não tenho como agradecer — ele diz com um sorriso, ao deixar meu apartamento às dez da noite. — E eu gostaria muito de marcar outra sessão. — Com certeza — digo, sem certeza nenhuma. Quer dizer, acho que da próxima vez ele vai mesmo ficar esperando que eu faça um Reiki, não é mesmo? — Quando gostaria de vir? — Bom — Stanley responde, pensativo —, quando mesmo você disse que era o próximo episódio de “Friends”...? — Amanhã à noite — digo, com um sorriso. — E isso significa que também vai dar para

ver “The Osbournes”. Stanley parece bastante desanimado. — Sexta-feira? Ah, meu Deus. Tenho certeza de que deve ter alguma coisa marcada. E eu realmente não posso ficar achando... — Amanhã vai ser ótimo — digo com um sorrisinho. Como Simon vai passar o fim de semana fora e Chloe só chega sábado de manhã, vai ser bem legal ter a companhia de Stanley. Então, desde que eu consiga fazer com que ele só fique assistindo a sitcoms. Não vou ter de fazer Reiki nenhum. E parece que ele está precisando de companhia. Eu reconheço aquele brilho nos olhos dele: não está estressado, está solitário. — É mesmo? — diz Stanley e seus olhos se iluminam. — Tem certeza absoluta? — Perfeito. Vamos combinar às 15 para as oito, assim temos tempo de fazer um pouco de chá antes de começar. E se começar a falar de pagamento de novo, mando sair pela porta, certo? — Acho que sim — Stanley diz, todo animado, e pega o paletó. — Mas, nesse caso, você me permite que traga os biscoitos da próxima vez? Sinto vontade de dar um abração nele, mas ele não é o tipo de homem que se abraça. Pelo menos, não acho que seja. E não sei muito bem se terapeutas de Reiki fazem esse tipo de coisa, então só assinto com a cabeça e dou um sorriso ao acompanhá-lo até a porta. Eu realmente poderia entrar nessa aventura do Reiki. CAPÍTULO 11 Chloe parece perplexa. —Hum, olá! — ela diz animada, mas dá para ver que está confusa. — Ah, certo, beleza — digo, como se estar com um senhor de idade no meu apartamento assistindo a “Friends” fosse completamente normal. — Este aqui é o Stanley. Stanley, esta aqui é minha melhor amiga, Chloe. Que eu achei que só chegaria no sábado! — É, desculpe por ter avisado tão em cima da hora. — Chloe dá de ombros. — Eu consegui sair mais cedo do trabalho e pensei, que diabos... Stanley se levanta para trocar um aperto de mão com Chloe. — Muito prazer em conhecê-la. Você também é fã? Chloe olha para mim e ergue as sobrancelhas. — De “Friends” — explico, — O Stanley veio aqui assistir. — Ah, entendi! Ah, certo, bom, claro que sou. Quer dizer, eu não diria que assisto religiosamente, mas... Stanley vai para o canto do sofá para abrir lugar para ela, e ela tira o casaco e se junta a ele bem quando a música começa. Eu levo as malas dela para o quarto, então tiro do forno as pizzas que tinha comprado e coloco-as na mesinha de centro. Stanley tira uma garrafa de vinho da bolsa e faz um sinal para que eu abra. O negócio é que Chloe me ligou apenas há uma hora para dizer que estava chegando, e eu não tive coragem de dizer a Stanley para não vir. Por sorte, ela não é o tipo de pessoa que se apavora com facilidade: ela simplesmente aceita as coisas a as aproveita da melhor maneira possível. Gomo aconteceu aquela vez que eu tentei comprar ingressos para irmos ao show dos Stone Roses e eu me confundi e acabei levando entradas para o show do Guns N' Roses: ela adorou o programa e no fim acabou agarrando um motoqueiro. Então, em vez de arrumar uma desculpa para levá-la ao meu quarto e explicar o que está

acontecendo, achei que provavelmente não vai ter problema se eu não disser nada. Afinal de contas, não quero fazer com que Stanley fique pouco à vontade. Quando eu disse a ele que Chloe estava a caminho, ele imediatamente se prontificou a ir embora, e eu tive de passar um tempão convencendo-o a ficar. Sirvo o vinho e me aperto ao lado de Chloe no sofá. — Então, Stanley, diga — Chloe começa. — Do que mais você gosta além de “Friends"? - Ah, a Cressida me apresentou à novela “EastEnders” ,e eu também gostei de “Ground Force” — Stanley diz, cheio de sinceridade. — Quem é Cressida? — Chloe pergunta. Merda. Stanley fica olhando para ela, confuso. — Cressida? — ele diz, olhando para mim. — Ah... certo — Chloe responde e me lança um olhar estranho. Finjo ter derramado um pouco de vinho na blusa para criar uma confusão. Stanley se levanta e eu corro para o banheiro, tentando imaginar o que vou dizer. Por sorte, Chloe vem atrás de mim. — Natalie, está tudo bem? — ela pergunta enquanto eu finjo lavar a blusa. — Está, claro que sim — digo a ela, sentindo exatamente o oposto. Então abaixo a voz e começo a cochichar. — Olha, aquele negócio todo de Cressida... É só o nome que o Stanley me chama, certo? Não sei por quê. Acho que ele deve ter uma filha chamada Cressida ou algo assim. Fico vermelha ao mentir. Faz com que eu me sinta péssima. Mas que escolha eu tenho? — Ai, meu Deus, desculpe — Chloe solta. — Eu não fazia idéia. Olha, não vou mais tocar no assunto, certo? — Obrigada — digo, agradecida. Dez minutos depois, quando ela vai ao banheiro, Stanley se aproxima de mim. — Ela é meio lerdinha, não é? — diz, cheio de com paixão. Fico olhando para ele sem entender nada. — Como assim? — A sua amiga, Chloe. Nem se lembra do seu nome! Ah, é tão triste... e ela é tão bonita, e tão jovem também! Fico me remexendo no sofá durante alguns segundos. Isto aqui realmente está errado. Não posso deixar Stanley pensando que a minha melhor amiga é burra. Respiro fundo. - É verdade — surpreendo-me de me ver dizendo. — Mas, olha, ela é muito sensível, então não mencione o assunto, pode ser? Ela... hum... gosta de me chamar de Natalie. Certo, agora eu cheguei ao nível mais baixo possível. Eu disse a Stanley que Chloe é retardada? Meu Deus, minha vida vai ser assim daqui para a frente, vou viver apavorada com a idéia de os meus amigos se conhecerem e descobrirem a mentirosa deslavada que eu sou na realidade? Para o meu alívio, Stanley decide que ainda não está preparado para The Osbournes e vai embora depois de Friends. — Desculpe por isso, mas ele é um amor, não é? — digo quando escutamos a porta de entrada do prédio bater e os passos de Stanley rua abaixo. — É mesmo. Então, como foi que você o adotou? Eu não tinha pensado nisso. Vai ser

difícil de eu contar a verdade para Chloe, não é mesmo? — Hum, a gente meio que começou a conversar um dia. Na parada de ônibus. — Percebo — Chloe responde, pensativa. — Que coisa estranha. Ergo a cabeça de supetão. — Estranha? Não, não exatamente. Eu sempre falo com desconhecidos na rua. Aliás, Londres fica muito mais simpática quando a gente começa a conversar com as pessoas — digo rapidinho. — Com qualquer pessoa na rua? — Chloe insiste na pergunta. — Com certeza. Quanto mais aleatória for a pessoa, melhor. - Ele também disse alguma coisa a respeito de você ser terapeuta dele — ela diz, dando muita ênfase à informação. — Terapeuta dele? — Tento parecer surpresa, e em vez disso, exagero na dose e acabo parecendo culpada de verdade. — Terapeuta de Reiki dele, para ser mais exata — ela diz e toma um gole grande de vinho. — Natalie, exatamente qual é seu trabalho aqui? Eu nem sabia que você era ligada nessas coisas alternativas... quando a gente foi àquele spa em Bath, você disse que era tudo a maior bobagem. Você pode me contar, sabe como é, se passou por uma transformação de caráter. Acho isso uma coisa muito emocionante! — Emocionante? — digo fraquinho. Não me parece nada emocionante. Sinto que é ridículo para caramba. — Meu Deus, é sim. Então, você se tornou terapeuta de verdade? Será que pode fazer uma sessão comigo? Você prestou exame e tal? — Não... — respondo, tentando pensar rápido. Mais algumas mentirinhas inofensivas não podem fazer mal, podem? — Na verdade, ainda não prestei o exame. Ainda estou, sabe como é, estudando. E o Stanley... bom, ele me deixa treinar com ele. — Nossa, você é mesmo cheia de segredos — Chloe exala. Ela parece estar animada de verdade, mas pode ser só o efeito do choque. Não sou, de jeito nenhum, o tipo de pessoa que se torna terapeuta. — É que eu realmente não fazia idéia — ela prossegue. — Achei que você estava mesmo sendo um tanto evasiva em relação ao seu trabalho, mas nunca desconfiei disso. Então, quando é que você vai largar seu trabalho com publicidade e se dedicar a isso em tempo integral? Dou um sorriso fraco. — Ah, mas ainda vai demorar bastante tempo. Quer dizer, há muita coisa a estudar, montes de exames, workshops, sabe como é. Só estou esperando para ver o que vai acontecer, sabe como é? — Claro. Então, tem mais alguma coisa que você está escondendo na manga? E aquele cara com quem você está saindo? Dou um sorriso relutante. — Ele me deu de presente um vestido lindo. — Ah! Mostra para mim! — Chloe solta um gritinho. — Não, espera. Vamos abrir mais um vinho primeiro. Quero saber todos os detalhes. E não ouse deixar nada de fora: quero saber a verdade, toda a verdade, em nome de Deus. Quando tiro a garrafa de vinho da geladeira, não consigo deixar de pensar se algum dia vou poder voltar a contar toda a verdade para alguém na vida. Resolvemos não sair com Alistair e Michael sábado à noite. Principalmente porque parece

que Alistair não está em casa e Michael não diz: "Então, o que vocês acham de sair comigo e com o Alistair hoje à noite?", quando passamos na Joseph para dar um oi a ele. Mas ele encontra, sim, uma calça fantástica para Chloe, que faz as pernas dela parecerem que têm l,80m de comprimento, e dá a ela seu desconto de funcionário, então não foi uma viagem perdida. Para ser sincera, digo a Chloe, enquanto nos arrumamos, talvez seja melhor mesmo sairmos sozinhas. Sabe como é, igual aos velhos tempos. Ela concorda, toda entusiasmada. — Então, onde a gente vai? — ela pergunta, ajeitando o delineador na frente do espelho do banheiro. — Vamos dançar em algum lugar? — Parece uma ótima idéia — digo e vou até o quarto para dar uma espiada no guia da Time Out. Não quero confessar que só estive no Canvas e no Woody's: dei a entender que conheço Londres de trás para frente. Encontro um clube chamado Notting Hill Arts Club no roteiro e faço uma anotação mental do endereço. Ou então temos a Subterrânea... mas não tenho certeza se a música que toca lá é exatamente o que a gente quer. Quer dizer, som break heat está muito bem, mas não faço a menor idéia de como dançar isso... Chloe continua remexendo na nécessaire de maquiagem, de modo que eu resolvo dar uma arrumadinha geral: nos últimos dias, meu apartamento meio que se transformou em um depósito, e não de um jeito bacana como o apartamento de Julie... mais ao estilo do seriado “Men Behaving Badly”. Enquanto vou recolhendo um carregamento de papéis e folhetos da mesinha de centro, olho, hesitante, para a nova pilha de correspondência que se acumulou para Cressida. Nada de mais: só uns dois envelopes pardos. Mas eu prometi a mim mesma que não vou abrir... não desta vez. Quer dizer, abrir a correspondência de outra pessoa algumas vezes pode ser compreensível, até mesmo perdoável. Mas repetir o ato é procurar confusão. Mas elas parecem bem tediosas, para falar a verdade. Inócuas. E se eu quiser mesmo que Simon ache que eu sou Cressida, realmente devia deixar algumas cartas com esse nome espalhadas por aí, não é mesmo? Além do mais, eu certamente deveria saber o tipo de correspondência que ela recebe, para poder parecer convincente, certo? — Desculpe, Natalie, eu resolvi não usar a blusa azul, então preciso refazer a maquiagem para combinar com a rosa. Não vou demorar... Chloe realmente deveria ser maquiadora ou algo assim... nunca vi ninguém com tanta fixação em cor de sombra quanto ela. Olho para as cartas de novo. Abro ou não abro? Por um lado, eu já me enfiei mesmo na maior confusão, e não preciso piorar a situação. Por outro lado, só conheci Simon porque abri a carta de Lenora. E suponho que, como eu já me revelei uma pessoa moralmente repreensível por ter mentido para a minha melhor amiga e para o homem mais adorável que eu já conheci, é melhor entrar logo de cabeça. Depois de passar alguns minutos resmungando, abro a primeira carta com muito cuidado. É do Citibank, tentando convencer Cressida de que ela precisa de um banco que a permita ter euros e dólares além de libras. Então, ela é uma terapeuta de Reiki do jet-set, hein? Jogo na lata de lixo. Daí, bem quando estou prestes a abrir a segunda carta, Chloe entra na sala. — Então, o que você acha? Olho esquerdo ou olho direito? Rapidamente enfio o envelope embaixo de uma almofada e ergo os olhos, cheia de culpa. Chloe está batendo as pestanas para mim, cada olho enfeitado com uma combinação

diferente de sombra, delineador e coisinhas brilhantes. — Hum, o olho esquerdo — digo rapidinho e sinto meu rosto corando de leve. — E mesmo? Achei que talvez o direito funcionasse melhor... mas se você acha... — Chloe caminha até o espelho da parede para se admirar. Asseguro-me de que a carta está completamente escondida, levanto-me e vou até onde ela está. - Venha até a janela para eu ver com a luz natural — sugiro. — Nããão! — Choe diz, revirando os olhos. — Nós não vamos sair enquanto ainda estiver claro lá fora, certo? Nós vamos a boates e a bares. — Ah, claro que sim — digo, humilde. — Bom, nesse caso, talvez você tenha razão: o direito é melhor. — Achei que era — diz Chloe, sorrindo. — Então me dá mais alguns minutos e eu vou estar pronta. Assim que ela sai da sala, eu volto para o sofá, pego o segundo envelope e rasgo para abrir. Quando tiro a carta, vejo o logotipo familiar do Soho House em cima e meu coração dá pulinhos dentro do peito. Debruçada por cima da carta, para que possa escondê-la se Chloe entrar na sala de novo, absorvo seu conteúdo com rapidez. Blá blá noite de cinema. Blá blá novos funcionários trabalhando na creche. Blá blá... envio da nova carteirinha. Nesse ponto, paro de ler. Carteirinha? Do Soho House? Inclino o envelope em cima do sofá e, é claro, uma carteirinha no formato de um cartão de crédito cai lá de dentro, uma linda aparição em preto e dourado. E tem o nome de Cressida escrito. Rapidamente ponho o cartão no bolso e enfio a carta no lixo da cozinha. Então pego de novo. Tem o endereço escrito em cima: Greek Street, n° 40, Wl. Tem detalhes sobre os filmes exibidos naquela semana na sala de projeção particular dos sócios. E eu tenho um cartão para entrar. Mas, obviamente, não teria como usá-lo. Quer dizer, não existe a possibilidade de eu ter coragem de entrar com ar despreocupado no Soho House, sorrir para Jude Law, bater um papinho com Julia Roberts. Mas, por outro lado, pode ser que eu me vire bem. Tenho a carteirinha, não tenho? E não é todo dia que se tem uma chance como essa, não é mesmo? De poder entrar em um dos endereços mais exclusivos de Londres? Sinceramente, seria falta de educação não aproveitar. — Estou pronta! — Chloe estrila ao retornar à sala. Olho para ela, maravilhada. Está usando a calça da Joseph com saltos sete e meio, uma blusa rosa cintilante e o ca belo escuro caindo pelas costas. Está absolutamente incrível. — Chloe, você está fantástica — digo a ela. — Caramba, espero que sim, depois de tanto trabalho. Mesmo assim, não é todo dia que a gente sai em Londres, não é mesmo? Então, diz logo, Natalie: aonde a gente vai? Quero ficar impressionada! — Certo... — respondo, hesitante. — O Soho House é impressionante o bastante para você? Demoro um pouco para conseguir acalmar Chloe. Principalmente porque também demoro um pouco para conseguir me acalmar. A adrenalina corre pelas minhas veias e eu estou dividida entre dois pensamentos. Um: vamos ao Soho House! Dois: vamos ser expulsas do Soho House por uso de identidade falsa!

Chloe, enquanto isso, parece incapaz de segurar a animação. — Natalie, não existe ninguém mais bacana do que você. Eu estava torcendo para você me levar lá... quer dizer, quando você disse que ia lá, naquela vez que eu liguei, fiquei morrendo de inveja. E eu contei para todo mundo na festa do Pete: ele ficou bem impressionado, aliás. Ficou perguntando como estavam indo as coisas para você em Londres e tal. E... ai, meu Deus, estou falando um monte de besteira, não estou? Caralho, vamos ao Soho House! Dou um sorriso vazio, tentando suprimir o fato de eu saber que essa coisa toda pode dar completamente errado — e que provavelmente vai dar. E então um sorriso verdadeiro começa a se abrir em meu rosto. Quer dizer, na verdade, provavelmente não é assim tão difícil. Acho que demonstrei que contar algumas mentirinhas inofensivas aqui e ali, além de ser fácil de se fazer, também rende frutos. É só olhar para as provas: as coisas deram bem certo com Simon, não deram? Consegui contornar o problema de não ser terapeuta de Reiki, não foi? Para ser sincera, a honestidade não me levou assim muito longe no passado. No entanto, ao abrir a correspondência de Cressida, conheci Simon, impressionei todo mundo na minha cidade e agora tenho uma carteirinha do Soho House. Acho que nossa noite vai ser ótima. Confiro se o cartão ainda está no meu bolso, pego a bolsa e dou o braço a Chloe. — Certo, vamos lá! — digo, alegre, deixando a porta bater atrás de nós. Não vamos direto para o Soho House. Quer dizer, não dá para aplicar um golpe desses assim de cara. Para ser sincera, não sei bem o que vamos encontrar lá, o que dificulta contar coisas sobre o lugar para Chloe, e ela quer saber tudo, desde como é o bar até como são os banheiros, passando por se tem pista de dança no sábado. Então, enquanto bebericamos nossos drinques na cadeia de restaurante All Bar One do bairro do Soho, consigo convencê-la de que nunca fui ao Soho House no sábado, apesar de ter dito a ela em um sábado que iria lá. Daí descrevo o lugar com base em fotos que vi no programa: cheio de poltronas de couro molengas e pisos de madeira antigos e gastos. Fico preocupada de estar ficando boa demais em inventar coisas, mas cada vez que me mexo, sinto a carteirinha no meu bolso e lembro a mim mesma de que pode dar tudo errado, e de que pode ser bem horrível. Por sorte, quando terminamos nossos cosmopolitans, já estamos bem altinhas e Chloe parece ter esquecido a maior parte das coisas que eu disse a ela, porque fica repetindo as mesmas perguntas, em um tom de voz cada vez mais alto. Enxugo o copo e olho para o relógio. Nove e meia da noite. Achei que alguns drinques me deixariam mais segura, mais blasé. Mas, em vez disso, só fazem com que eu me sinta mais apreeensiva. Eu vou parecer uma idiota completa se não entrarmos. — Será que a gente toma mais alguma coisa? — digo toda alegre, tentando adiar o inevitável. Estou tentando convencer a mim mesma de que mais um drinque vai fa zer toda a diferença. Mas Chloe sacode a cabeça. — Não, acho que devemos ir andando. Quer dizer, as celebridades que têm filhos precisam voltar para liberar a babá às onze da noite. Se não formos logo, não vamos ver ninguém. - O quê? — digo, incrédula. — Você tem noção de corno o que você disse foi ridículo? Chloe lança um olhar enviesado para mim. — Tem All Bar One em Bath — diz, bem específica. — E com bebê ou sem bebê, acho que

devemos ir andando. A menos que você queira ficar aqui, é claro. Quer dizer, não precisamos ir ao Soho House se você não quiser. — Não — suspiro —, podemos ir agora. — Não consigo pensar em mais nenhuma desculpa, e ela tem razão: o All Bar One não é, nem de longe, o epicentro da vida noturna londrina. — Não fique assim tão entusiasmada — diz Chloe, olhando cheia de curiosidade para mim, mas evito o olhar dela. Em alguns minutos, quando não nos deixarem en trar no Soho House, vou ter de dar muitas explicações. Mas isso é para depois. Neste momento, meu desafio é, em primeiro lugar, encontrar o endereço. — Certo — digo, cheia de iniciativa, quando saímos para o ar da noite do Soho. Precisamos encontrar a Greek Street. Que fica... por ali. Memorizei o mapa do Soho que estava na parede da estação de metrô de Oxford Street antes de irmos para o bar, mas não tenho certeza se estou indo para o lado certo. Não me lembro se estamos de frente para o norte ou para o sul. Ou, aliás, para onde fica o oeste e onde é o leste. Nunca fui muito boa em me orientar, e ter tomado dois coquetéis também não ajuda em nada. Caminhamos por Old Compton Street durante cerca de dez minutos e eu examino cada placa de rua, em busca de indicações. Seria realmente vergonhoso se estivéssemos indo para o lado errado. - Ainda falta muito? — Chloe pergunta. — Meus pés estão doendo. Solto um grunhido de frustração. Eu vou me humilhar completamente e ela reclama de dor nos pés? — Não está longe — consigo dizer. — E logo ali na esquina, acho... Mas, na próxima esquina, o nome da rua é Frith Street, e continuo sem saber direito onde estamos. Dou um sorriso nada convincente e sugiro que continuemos seguindo em frente. Chloe bufa e arfa e eu mal consigo conter minha irritação. — Olha, estamos quase lá, certo? Chloe suspira, então pára, depois de alguns passos. — Chegamos! Esta é Greek Street! — ela solta um grito histérico. — Ah, graças a Deus! Desculpa por ser uma chata, mas você não faz idéia de como é andar com estes sapatos. Engulo em seco. Chegamos. Chegamos de verdade, e vamos entrar. Assim que eu encontrar a porta, é claro. Como a sorte quis, estamos na ponta certa da rua, e logo nos vemos na frente da porta do Soho House. Chloe aperta minha mão de tanta emoção. — Meu Deus, como você está suando, Natalie. Qual é o problema? — Nenhum! — estrilo, em tom alegre. — Absolutamente nenhum! — Tem certeza? Parece que você está muito nervosa. — Nervosa? — respondo, com uma risada histérica. — Por que eu estaria nervosa? Mas bem que a gente podia ir a outro lugar primeiro para um drinque rápido, quer? Tem um monte de lugares por aqui... Chloe me olha enviesado e eu paro de falar rapidinho. Ela está certa, eu estou nervosa. Na verdade, estou mais do que nervosa: estou quase tremendo de pavor. Acalme-se, digo a mim mesma. Tenho de entrar, mostrar minha carteirinha e pronto. Não é difícil. Só preciso ficar com cara de quem faz isso sempre. Pense como Cressida, digo a mim mesma. Sou fabulosa. Sou capaz de fazer isso. Respiro fundo, abro a porta e entramos.

A mulher da recepção olha cheia de incerteza para nós. — Posso ajudar? — diz, educada. — Só viemos beber um drinque — explica Chloe, os olhos brilhando de emoção. — E:ntendo. Bom, este é um clube fechado, então creio... — A Natalie é sócia, não é, Natalie? — Chloe apressa-se em dizer. Dou um sorriso sem jeito para a mulher, que me espia desconfiada. Saco. Agora ela sabe que meu nome é Natalie, e na minha carteirinha está escrito Cressida. Estamos ferradas. — E está com a carteirinha? — Claro que sim — respondo, com a maior segurança possível. — Está aqui em algum lugar... — Meio de má vontade, reviro a bolsa. Que horror. Não estou me sentindo fabulosa. Estou me sentindo quente e pouco à vontade, e tenho certeza de que já ficou bem óbvio para a recepcionista que eu não sou sócia. Chloe nunca vai me perdoar por ter feito nós duas parecermos tão ridículas, e por ter mentido a ela. Por que eu não posso simplesmente ser como as outras pessoas e simplesmente dizer a verdade a respeito das coisas? Por que eu complico tanto tudo para mim mesma? - Vamos lá — diz Chloe, impaciente, e arqueia uma das sobrancelhas para a recepcionista, como se não estivesse acreditando que ela está mesmo me obrigando a mostrar a carteirinha. Gomo se ela devesse saber quem eu sou. O que, obviamente, faz com que eu me sinta ainda pior. E então a porta se abre e um grupo de pessoas entra falando alto. Ergo os olhos e reconheço um rosto: acho que ela apareceu na revista Heat na semana passada, mas não consigo me lembrar de quem é. Um sujeito também me parece bem familiar, mas não sei de onde me lembro dele. Olha para mim de um jeito estranho, e eu desvio o olhar rapidinho. Ele deve ser famoso, e eu não quero passar mais vergonha. Mas, em vez de desviar o olhar também, ele vem na minha direção. — Tudo bem, lindona? Que legal cruzar com você aqui! Ergo os olhos chocada para estudar o rosto que se aproxima do meu e tasca um beijo na minha bochecha, e Chloe se vira toda para olhar. E daí eu me lembro. Claro, é Serge, o cara do ruído branco/ruído rosa. Sinto uma onda de alívio percorrer meu corpo. — Serge, oi! Bom, a gente só está dando uma passada. Sabe como é... Maravilha — ele diz e me abraça, a caminho da recepção. Essa é a minha chance de entrar, penso rapidamente. Sorrio para Chloe, para que saiba que deve vir atrás de nós, e ela revira os olhos para mim, tentando adivinhar o que está acontecendo... Serge se debruça por cima do balcão e dá um beijo na bochecha da mulher severa. - Você é nova, não é? – ele diz, com leveza. – Bom, provavelmente já avisaram sobre mim. Serge Waterman. Parece que eu baixo um pouco o nível. Ele sorri e entrega a carteirinha a ela. A recepcionista parece encantada, e retribui o sorriso, devolvendo a carteirinha dele. — Estas moças estão com você? — ela pergunta a ele, dando uma olhada rápida em mim e Chloe. — Agora estão! — responde Serge, com um sorrisinho malicioso. — Mas você é a primeira da minha lista, você sabe disso. A recepcionista dá risadinhas e todos entramos, e sinto um enorme peso sair de cima de meus ombros. Quase dou um beijo em Serge de gratidão, mas a mão dele já está se dirigindo para minha bunda, então acho melhor não.

Então, isto aqui é o Soho House! Finalmente estou dentro do clube fechado mais bacana do mundo! Infelizmente, não estou vendo Madonna em lugar algum, nem Jude Law, aliás, e por isso resolvo me concentrar no ambiente. É mais ou menos como estar na casa de alguém, mas alguém que é rico de verdade com gosto fantástico, montes de amigos bacanérrimos e toneladas de empregados. Não dá para imaginar nada parecido com isso abrindo em Bath. As pessoas simplesmente não saberiam como agir. E apesar de ser bacana de verdade, não achei que seria assim tão aconchegante. Tipo, dá para tomar um coquetel, mas, se quiser, pode pedir torrada com margarina (e é bem o que Serge faz). Ou um chocolate quente. E tem pessoas assistindo a DVDs como se estivessem em casa. Pessoas sentadas em poltronas simplesmente lendo o jornal, como se não fossem dez horas de um sábado à noite. A garota da Heat é atriz, fico sabendo, e está lançando um single pela gravadora de Serge. E o single vai entrar na trilha sonora de um filme que outro cara que está com eles está produzindo para a DreamWorks. Parece um mundo diferente: nomes que eu conheço das revistas temperam a conversa com as operações plásticas que supostamente fizeram ou com a pessoa com quem estão supostamente transando, e preciso me segurar para não ficar boquiaberta a cada cinco segundos. Chloe nem tenta esconder sua surpresa e fica dando gritinhos e apertando meu braço toda vez que alguma pessoa famosa é mencionada. — Então, cadê aquele seu namorado? — Serge me pergunta, disfarçadamente. Viro-me rapidamente. — Ele não é meu namorado. Quer dizer... ele é, sabe como é. Mas hoje só vim com a Chloe... Não está saindo do jeito que eu queria. — Ah, é só um casinho, é? — Serge sorri. — Muito dinheiro e nada mais? Bom, as garotas precisam se divertir, não é mesmo? — Eu não sou assim — digo, esquentada. — Eu gosto dele. — Maravilha! — diz Serge, com um sorriso maroto. — Fica mais fácil quando se gosta, não é mesmo? Olho brava para ele. Gomo é que ele se atreve a dizer que só estou com Simon por causa do dinheiro? Ele nem me conhece. Só porque ele anda com gente louca e obcecada por si mesma não quer dizer que todo mundo faça a mesma coisa. Caramba, estou falando igualzinho ao Simon. Ou, pior, igualzinho a meus pais. Certo, pense como Cressida, repito para mim mesma. Você está no Soho House, pelo amor de Deus! Volto-rme para a atriz. — Você apareceu na Heat da semana passada, não apareceu? —digo, sorrindo. Ela fica olhando fixo para mim. — E dai? — diz e então se vira para a garota sentada a seu lado- e as duas começam a rir. Olho ao redor para ver se Chloe me viu sendo completamente humilhada, mas, por sorte, está ocupada mandando uma mensagem de texto para alguém pelo celular. No final, acabo percebendo que nenhum dos "amigos" de Serge, se é que se pode chamá-los assim, vai falar conosco. E próprio Serge só tem uma coisa na cabeça: o pé dele não pára de roçar minha perna, independentemente de quantas vezes eu me remexo na cadeira. Eu não me sinto à vontade, e quero ir para casa. — Não tem muita coisa rolando aqui, não é mesmo? - digo o mais baixinho possível para Chloe. — Será que você não quer ir embora daqui a pouco? — Ir embora? Está falando sério? — Ela parece decepcionada.

- É digo, dirigindo os olhos dela na direção da mão de Serge, que agora se acomodou em cima do meu joelho. — Certo — ela concorda com um dar de ombros e pega a bolsa. — Vocês não vão embora, vão? — diz Serge enquanto eu desalojo a mão dele e me levanto. — Acho que sim — respondo, com um sorriso apologético. Os outros estão tão envolvidos em uma conversa que mil trotam quando nos retiramos. — Eu ligo para você — Serge diz, bêbado, atrás de mim, enquanto dou um sorriso hesitante para a mulher da recepção e saio para a Greek Street. — Sabe, acho que eu devia me mudar para Londres — diz Chloe, pensativa, mexendo o café. — Quer dizer, lá em Bath eu não vou chegar a lugar nenhum, não é mesmo? Não é como você... É domingo de manhã, e estamos sentadas à mesa da minha casa, tomando café-da-manhã. Estou aliviada por termos voltado relativamente cedo ontem à noite: minha cabeça continua latejando um pouco por causa de todos aqueles coquetéis, mas eu consegui dormir bastante. Olho para Chloe cheia de curiosidade: — Gomo assim? Tudo está dando supercerto para você lá. — Ha! — ela solta uma gargalhada. — Tenho um trabalho chato na Shannon's e só... quer dizer, pelo amor de Deus: estou lá desde que saí da faculdade. É patético. Você, por outro lado, está mudando de nível aqui. - Achei que você adorasse seu trabalho, não? — pergunto, incrédula. Chloe sempre foi a garota de ouro da agência Shannorn's, sempre pegou os trabalhos mais interessantes. Ah, se pelo menos ela soubesse o que eu estou fazendo realmente em Londres... Eu me sinto um engodo. E, ontem à noite, no Soho House, comecei a questionar, pela primeira vez, se deveria mesmo estar em Londres. - Eu adoro... quer dizer, também acabei de ganhar uma promoção, o que é bem legal. Estou ganhando bem e tudo o mais. Mas isto... — Chloe examina o meu aparta mento com os olhos. — Isto aqui é diferente. Você deu um salto, e realmente valeu a pena. - Promoção? Você não tinha me contado! Chloe olha para mim como se eu não estivesse entendendo absolutamente nada. — É. Sou diretora de conta de uma agenciazinha em Bath. Grande merda. Você é sócia do Soho House e sai com diretores de cinema. Respiro fundo. — Chloe, não acredito que você não me contou. Diretora de conta... que demais. Geralmente demora anos para alguém conseguir esse tipo de cargo. E, olha, ficar sócia da Soho House não muda a vida de ninguém. Então, você vê a Zoe Ball tomar um drinque. Não é assim tão maravilhoso, mesmo! — Você costumava achar que era maravilhoso — Chloe diz, bem assertiva. Ela tem razão, eu costumava mesmo. Eu me mudei para cá exatamente pelas razões que Chloe está mencionando, então, por que acho que ela parece boba de abrir mão do que tem? Depois de ter me mudado para Londres para ser bacana e andar com o povo da moda, agora estou dizendo que não é assim tudo isso? — Talvez — respondo. — Só acho que agora, com o seu emprego novo e tudo o mais... bom, provavelmente não seja o momento certo. — Você acha que iria ser uma pedra no seu sapato. Olho para Chloe, chocada.

— O que foi que você disse? — Ah, fala sério — ela diz, mal-humorada. — Você já está com tudo na mão aqui. Acha que, se eu me mudasse para cá, eu ia entregar você. Eu vi aquela olhada que você me deu na recepção do Soho House. Gomo se eu estivesse parecendo emocionada demais. Bom, eu estava emocionada: que diferença faz? Você também costumava ser assim... — Continuo sendo! — digo, surpresa. — Não, não continua. Você está muito diferente. Parece que você não quer que eu conheça seus amigos porque eu não sou bacana o bastante. Você nem queria ir ao Soho House comigo até seus amigos londrinos chegarem. Qual é o problema? Agora eu fiquei quadrada demais para você? Não sirvo mais para sair com você? Acho que foi por isso que quis ir embora cedo: achou que seu amigo Serge podia ficar com uma má impressão de você porque eu estava lá... — Chloe quase está com cara de quem pode se desmanchar em lágrimas a qualquer momento. Fico olhando para ela, completamente chocada. — Chloe, você acha tudo isso mesmo? Caramba, você já me conhece há bastante tempo, não é mesmo? Você sabe que eu não sou assim. Eu estava tentando fugir do Serge, não afastar você. Ele é um pavor. — Não pareceu que você o achava pavoroso quando entrou valsando no Soho House com ele e me deixou para trás. — Chloe retruca. — Posso não morar em Londres, Natalie, mas pelo menos não sou uma vaca pretensiosa e aproveitadora. Chloe me lança um olhar cheio de ressentimento. Não dá para acreditar nela. Como é que ela pode ser tão cruel se eu me esforcei tanto para proporcionar uma bela noite para ela em Londres? — Se é isso mesmo que você pensa, por que veio aqui ficar na minha casa? — pergunto, brava. — É o que eu fico me perguntando —- Chloe retruca. — Você se transformou em terapeuta de Reiki, pelo amor de Deus. Quer dizer, que história é essa? Parece que você Se tornou outra pessoa, Natalie. E eu não gosto muito dessa pessoa nova. E se você não se importa, acho que agora vou voltar para casa, para ver umas pessoas normais. Chloe começa a jogar as coisas dela dentro da mala. lcvanto-me em silêncio e recolho as xícaras de café e as tigelas de cereal. Uma tensão pesada enche o ar enquanto nós duas nos recusamos a dizer qualquer coisa. Dez minutos depois, ela já está à porta. — Sabe, você e o Pete têm mais coisas em comum do que eu pensava. Quando você parar de ser assim tão exibida, a gente se vê por aí — ela diz, cheia de amargor. — Não conte com isso — respondo, azeda. E antes que eu possa dizer qualquer outra coisa, ela já se foi. Vou até a janela e vejo quando ela aparece na rua lá embaixo, caminhando na direção do metrô. Ela olha para cima e me avista e, por um instante, quase abro a janela e grito para que ela não vá embora. Não quero que ela me deixe aqui sozinha. Mas não grito. Não sei bem se sou eu quem deve pedir desculpa. E nem sei o que diria se fosse pedir. CAPÍTULO 12 — Diga uma coisa — Simon pergunta, pensativo, enquanto mastiga uma coxa de frango — garotas londrinas bacanas como você às vezes vão sujar os pés de lama no interior? Olho para ele sem ter muita certeza do que está falando e tomo mais um gole de

champanhe. Está um pouco frio para fazer piquenique, para falar a verdade, mas ele foi cavalheiro e me emprestou o casaco dele. Estou usando por cima do meu lindo vestido novo Alberta Ferretti com um pulôver grande, que não está me esquentando nem um pouquinho. Não que eu me importe: assim que Simon me viu usando o vestido, fez questão de me levar de volta para casa e tirá-lo todinho, e quase nem conseguimos chegar ao parque. Mas, mesmo assim, eu coloquei de novo antes de sair. Nunca mais quero tirá-lo, para ser absolutamente sincera. E, apesar do friozinho de começo de noite, Simon parece estar determinado a aproveitar ao máximo nosso piqueniquezinho. — Depende do que você quer dizer com sujar os pés de lama — digo, tremendo um pouquinho. — Meus pais querem que eu vá visitá-los no fim de semana que vem de novo, e eu fiquei aqui pensando se você não quer ir comigo. Ergo os olhos, chocada. Achei que ele iria sugerir um fim de semana no campo, não que fosse me fazer um convite para conhecer os pais dele. Ainda não contei a Simon a coisa toda de sem querer ter fingido ser outra pessoa. Não posso conhecer os pais dele antes que saiba a verdade. — É mesmo? — digo, tentando não parecer tão assustada quanto me sinto. — Você não é obrigada a ir — Simon diz e parece um pouco decepcionado. — Não... não é isso. É só que... — É um pouco cedo demais? Não, eu sei. Má idéia. Olha, esquece, tudo bem? Simon se serve de mais um pouco de champanhe. Na verdade, é vinho frisante, mas foi a única coisa que consegui encontrar. Deixei para comprar a comida no último minuto e precisei comprar no mercadinho da esquina, porque o supermercado estava fechado. Então pegamos vinho frisante, coxas de frango e um monte de samosas, que Simon mastiga alegremente. Não estou com muita fome: a coisa toda com Chloe me deixou com um certo gosto ruim na boca. Examino o rosto de Simon. Ele está com aquela cara de "não estou nem aí". Mas dá para ver que ficou desapontado. Talvez eu deva aceitar o convite. Hoje eu já me desentendi com minha melhor amiga. Será que também posso me dar ao luxo de afastar Simon? — Eu adoraria ir — digo, pego a mão dele e prometo a mim mesma que vou contar tudo antes da viagem - É mesmo? — o rosto de Simon se ilumina. — Quer dizer, seria mesmo ótimo. Quer dizer, eles são uns amores. E... bom, eu preciso contar uma coisa a eles neste fim de semana. E seria mesmo ótimo se você estivesse lá. — O «que você vai contar? — pergunto, curiosa. Simon abre a boca para dizer alguma coisa, então pensa melhor. — É só... na verdade, não é nada de interessante. É só uma coisa que andei pensando em relação ao trabalho, nada mais. Mas eles vão ficar superfelizes de conhecer você. Principalmente porque você conhece a Lenora. Meu pai adora a Lenora. Percebo uma sensação arrepiante do pavor percorrendo o meia corpo. — Eles se conhecem superbem, é? — Ah, meu Deus, é sim. A família dele e a dela eram muito próximas quando eram criança. Não a vemos muito desde que começou a trabalhar na índia, mas ele adora falar dela. Índia. Ela está na Índia! Deus existe, afinal de contas. Acalentada pela idéia de que Lenora está a milhares de quilômetros de distância e que assim vou ter facilidade de blefar algumas conversas sobre ela, sirvo-me de uma samosa. — Pena que ela não vai poder estar lá — digo com um sorrisinho. — Então, você está mesmo curtindo este piquenique ártico ou será que a gente pode ir para casa agora?

— Sinto muito, Natalie, mas a resposta é não. Não dá para acreditar. Laura me colocou para trabalhar no sábado e no domingo, e Lucy se recusa a trocar comigo. Ela tem o fim de semana todo livre e nenhum programa especial, a não ser ir a um clube qualquer no sábado, a que poderia ir em qualquer outro dia, e mesmo assim se recusa a ajudar. — Tudo bem — respondo, mas não está nada bem. Não vai ter como eu trabalhar neste fim de semana. Vou viajar com Simon de qualquer jeito, às dez da manhã de sábado. Estou ficando cada vez mais animada com a idéia. Quer dizer, conhecer os pais dele é uma coisa bem séria, Tento Julie, mas como era de esperar, não há muito que ela possa fazer. — Desculpe, Natalie... mas eu vou trabalhar de qualquer jeito no sábado. Vocês podem remarcar, não podem? Tenho certeza de que ele vai convidar de novo em algum outro fim de semana — E, e com certeza eu vou estar trabalhando de novo — respondo, sarcástica. — Você folgou no fim de semana passado, não folgou? Desvio o olhar. Julie tem razão: eu folguei mesmo no fim de semana passado. Mas também preciso deste fim de semana de folga. E, de todo modo, o fim de semana passado foi tão péssimo que nem devia contar. Continuo totalmente abalada por causa da minha discussão com Chloe. Desde que ela se foi, tenho me sentido muito distante de casa: primeiro as mentiras, agora me desentendo com minha melhor amiga. Estou me sentindo muito sozinha. Simon é a única pessoa que consegue fazer com que eu me sinta melhor a respeito de tudo. Então, não vai ter como eu recusar a oferta dele para uma viagem de fim de semana. Julie me dá um sorriso solidário e se afasta para atender uma cliente, deixando para mim a tarefa de separar os cabides, o que significa que tenho que percorrer toda a loja checando se eles estão a um centímetro e meio de distância um do outro. Demora uma eternidade e, assim que se termina, alguém chega e bagunça tudo de novo. Mas hoje Laura marcou com algum estilista importante de vir conferir nossos displays, então tem de estar tudo perfeito. Olho para o relógio e resolvo fazer meu intervalo. Desço até o estoque e me sirvo de um enorme café com leite e açúcar, e avisto os cigarros de Julie na mesa. É disso que preciso, resolvo. De um cigarro para acalmar os nervos. Dou um berro para Julie para ver se ela se importa de eu pegar um cigarro dela e ela enfia a cabeça no vão da porta, surpresa. — Nem sabia que você fumava — diz, arqueando uma das sobrancelhas para mim. — Não fumo. Não de verdade. Mas estou precisando de um — digo, toda dramática. — Tudo bem, mas não fume aqui, certo? A Laura vai sentir o cheiro. Vá fumar fora da loja. Sentindo-me como uma adolescente rebelde (quando eu tinha essa idade, foi a última vez que fumei, principalmente porque todos os garotos bacanas da escola costumavam se reunir atrás do abrigo das bicicletas para fumar no intervalo e era a maneira mais certa de encontrá-los), saio para Ledbury Road e sento-me no meio-fio, bem na frente da loja, tomando meu café. Então, pego o isqueiro de Julie, acendo o cigarro e dou uma tragada profunda. Grande erro. Meus pulmões, desacostumados com qualquer coisa que não seja o fumo passivo, rebelam-se e, antes que eu consiga tirar o cigarro da boca, sou acometida por um enorme acesso de tosse. — Isso aí faz muito mal, sabia?

Assustada, olho para cima e vejo um homem magro, na casa dos cinqüenta, abaixando-se para se sentar ao meu lado. — Posso? — ele pergunta, e eu assinto. Ele pega o isqueiro da minha mão e acende um cigarro seu.. De um jeito bem mais bacana do que eu pensei que faria. Não tosse nem nada. — É que, na verdade, eu não fumo _ digo, atestando os fatos. Neste momento não estou a fim de uma conversa a respeito de como o cigarro faz mal com urna pessoa que fuma. — Eu também não — diz o homem, sorrindo. Arrasto os pés no chão um pouco. O sotaque dele é carregado, parece italiano. Talvez na Itália seja normal conversar com desconhecidos na rua, mas eu realmente não estou a fim. — Só estou fazendo meu intervalo do café digo olhando bem para meu copo de café. Não quero que fique sentado aqui. Quero que ele entenda a indireta e vá embora. Mas ele não mostra nenhum sinal de estar de partida. — Eu também estou no intervalo — ele diz, com um sorriso. — Mas não estou tomando café. — Pode comprar um no Tom's — sugiro. Fica logo ali na esquina. — Infelizmente, tenho uma reunião daqui a alguns minutos — ele diz. — Você trabalha aqui? Qs olhos dele vão até a placa da Tina T. — Trabalho. — Percebo. E você gosta? — Não gosto de ter de trabalhar no fim de semana quando tenho planos com meu namorado. Mas tirando isso, gosto. — Por quê? Olho para ele, curiosa. — Você faz muitas perguntas. — Sinto muito, é só o meu jeito. Eu ofendi você? O cara parece mesmo arrependido, e eu me sinto um pouco mal. Mas acho que ele só está sendo simpático. E não é culpa dele se Lucy não quer trocar comigo. — Desculpe. É que hoje eu estou meio de mau humor — respondo, rapidinho. — Ah — ele diz. — Mau humor. Compreendo. Sinto muito... vou deixar você em paz. — Não estou tão de mau humor assim — digo, sorrindo para ele. — Então, bom, você pode responder a minha pergunta, não pode? — Sua pergunta? — não lembro o que ele me perguntou. Por favor, tomara que não seja nada relativo a ruído branco e rosa, imploro em silêncio. — A loja. Por que você gosta de trabalhar aí? — Ah, certo — digo, feliz por ser uma pergunta que posso responder com sinceridade. — Bom, eu gosto das pessoas. Menos da minha chefe que é... ela é uma vaca total. E é claro que as roupas são lindas, apesar de sere um pouco caras demais para o meu orçamento. E depois, estamos em Notting Hill, o que é fantástico... Ele ergue as sobrancelhas, como se não acreditasse em mim. — Você não acha? — pergunto, incrédula. — Meu Deus, você tinha de ver Bath. Foi onde eu me criei. Lá perto, de todo modo. Só saí de lá há uns meses, e vim para cá. Não acredito que você não goste daqui. — Ah, eu gosto sim, é só que não parece muito movimentado. — Hummm — digo, concordando. — Mas é só esta loja. Para dizer a verdade, se a loja fosse minha, eu colocaria na outra esquina. Tem um monte de cafés e outras coisas ali, há muito mais gente passando na frente. — Em Westbourne Grove mesmo? — diz o italiano, aparentemente interessado. Meu Deus,

ele deve mesmo estar precisando de alguém para conversar. Talvez eu deva apresentá-lo a Stanley. — Talvez — digo para agradá-lo. — Ou uma rua por ali. Tenho um amigo que trabalha na Joseph, e lá sempre está cheio. As pessoas gastam muito, também. — Mas, tirando isso, a loja é legal? — Ah, é, sabe como é — digo, sem muito entusiasmo. — Quer dizer, as vitrines podiam ser melhores... mas minha chefe insiste em arrumar pessoalmente, e o gosto dela é... bom, é meio antiquado. E não temos permissão de usar as roupas, o que é uma loucura... quer dizer, seria uma boa propaganda, se a gente usasse, não é? — Então, você gosta das roupas? — Ele sorri. — Meu Deus, eu adoro. Só que não tenho dinheiro para comprar... — Você não ganha desconto de funcionária? — Não, não ganho. O que eu acho uma falta de visão. Principalmente porque não estamos ganhando um mon tão de dinheiro neste momento. — Os negócios não vão bem? - Muita gente está de férias — digo com um sorriso desanimado. — Então, diga, o que você faz — arrisco. Na verdade, o cara é legal. E conversar com ele é muito melhor do que ficar com Laura baforando no meu pescoço. De repente me lembro de como Chloe não acreditou em mim quando disse que conheci Stanley na rua e sorrio. Talvez não tenha sido uma idéia assim tão descabida, no fim das contas. — Eu também trabalho com moda — ele diz. — Do lado do estilo. — É mesmo? — exclamo, animada, então olho para mim mesma. Não é assim tão emocionante... não em Notting Hill, pelo menos. Parece que todo mundo por aqui ou é estilista ou diretor de cinema ou alguma coisa superlegal. — Você trabalha por aqui? — pergunto e então percebo como a questão é idiota. — Ah, não, não deve trabalhar, se não, já conheceria a região... Ele dá um sorriso maroto para mim. — Pode ser que trabalhe, em breve. Bom, não eu... minhas roupas. Vim encontrar com uma pessoa para falar sobre vender minhas peças na sua loja! Ergo os olhos, chocada. — Ai, meu Deus, você é o estilista que tem reunião com a Laura? Merda, não conta para ela o que eu disse, pode ser? — imploro. É só disto que eu preciso: Laura descobrir que eu fiquei me queixando do preço das roupas para um estilista. Ah, e de contar para ele que ela é uma vaca. — Claro, fica entre nós — o tal estilista diz e sorri. Olho para o rosto dele com atenção. Está bronzeado e castigado pelo sol, como se ele tivesse passado meses no Caribe. — Você é algum estilista superfamoso? — pergunto, então imediatamente desejo não ter perguntado. Quer dizer, que pergunta mais burra é esta? Eu devia saber quem ele é. - Na verdade, eu não desenho as peças — ele diz, com um sorriso. — Meu nome é Giovanni. Eu trabalho com estilistas. Administro a empresa. Quem sabe já ou viu falar da Stallioni? - Claro que ouvi — digo, toda animada, quase sem fôlego. — Eu costumava trabalhar na sua conta. Na agência de marketing Shannon's. —A agência ganhou a conta deles há anos, e eu agarrei a oportunidade de trabalhar com ela. Mas nunca ganhei nada, o que foi uma

pena, porque foi por isso que eu quis a conta. Giovanni olha para mim, curioso. — Você trabalhava na equipe da Shannon's? — Trabalhava! — exclamo. — Eu adorava a sua conta. Meu Deus, suas bolsas são as mais lindas do mundo! — É verdade: mas tinham de ser mesmo, porque cada bolsa custa oitocentas libras nas lojas. Aliás, fui eu quem idealizou a campanha deles do último inverno: "Uma bolsa Stallioni não é só para o Natal, é para a vida toda." Depois disso, a saída das bolsas foi ótima. — E sapatos, em breve. — Ele pisca. — Estamos expandindo. — Que maravilha! Sempre me perguntei por que vocês não faziam calçados. Eu costumava dizer ao... como é mesmo o nome dele? O cara do marketing? — Steve Bidwell? — Giovanni interrompe. — Isso, ele mesmo. Bom, mas eu costumava dizer a ele o tempo todo que vocês deviam fazer calçados. Simplesmente faz todo o sentido: os laços e os botões das bolsas têm toda a cara de sapatos... — E agora você trabalha aqui, com marketing? — Giovanni pergunta, interessado. - Não... — faço uma pausa, pensando em inventar alguma coisa, mas logo mudo de idéia. — Eu trabalho como vendedora — respondo. Ele olha para mim, curioso. — O negócio é o seguinte — prossigo. — Quero ter minha própria loja algum dia. — Dizer isso dá uma sensação muito boa. Como se fosse uma possibilidade verdadeira. — Ah, percebo — diz Giovanni, e seu rosto se abre em um sorriso. De repente, penso em uma coisa. Quer dizer, não é todo dia que a gente encontra o administrador da sua marca de bolsas preferida, não é mesmo: — Hum, Giovanni — pergunto, sentindo o terreno. — Será que vocês já pensaram em lançar uma linha mais acessível? Sabe como é, que os meros mortais possam comprar? Ele dá risada. — Não estou bem certo de que nossos modelos possam ser recriados para o mercado de massa. — Por que não? — insisto. — O Marc Jacobs já fez. A Dolce & Gabbana já fez. Não é nada demais. É só usar botões diferentes. E talvez em menor número. Eu compraria uma das suas bolsas com um quarto dos botões se custasse um quarto do preço. Na verdade, continua sendo um pouco demais para mim, mas você sabe do que eu estou falando. Mas, antes que Giovanni possa responder, sinto uma sombra se avultando por sobre mim. É Laura, parada a alguns passos de distância. — Natalie, você se importa de voltar para dentro, por favor? — ela diz, gélida. Ergo os olhos, irritada: há quanto tempo ela está ali? Com relutância, levanto e abano a mão para Giovanni. Quando passo por Laura, ela fica olhando para Giovanni, desconfiada, então tem um pequeno sobressalto quando se dá conta de quem ele é. — Sr. Tivoli, é o senhor? — ela pergunta, com uma risada pouco à vontade. — Por favor, entre. Posso oferecer um café? Giovanni se levanta lentamente. — Estou aqui aproveitando seu solzinho inglês. —Ele sorri, gracioso. — E, sim, eu adoraria um café. Claro que eu acabo sendo obrigada a fazer o café. E assim sou enviada para dentro do

estoque, como se Laura estivesse com medo de eu a envergonhar ou algo assim. Antes de ir embora, no entanto, Giovanni enfia a cabeça para dentro do estoque. — Gostei de conhecê-la, senhoríta... — Raglan — respondo. — Natalie Raglan. — Obrigado pelo conselho. Conselho? Do que ele está falando? Mas, antes que possa perguntar, ele já se foi. Quem sabe, vai ver que ele vai lançar uma linha mais acessível, no fim das contas, penso com meus botões enquanto etiqueto saias Miu Miu. Quem sabe ele me manda uma bolsa em sinal de agradecimento. — Claro que você pode ligar e dizer que está doente. Fico olhando para Stanley com ar de desaprovação, de brincadeira. É sexta à noite e estamos no rneu sofá, tentando decidir como preencher a meia hora entre “EastEnders” e “Friends”. Nesta semana, ele passou aqui praticamente toda noite, e nossa relação passou a ser meio a de velhos amigos. — Falando sério, Stanley, não achei que você fosse assim — digo a ele. — De todo modo, e se a Laura ligar e eu não estiver em casa? — Você pode dizer que foi ao médico. Ah, essa é uma idéia. — Stanley, você é um gênio — digo, sorrindo. — Ela não vai poder discutir isso, não é mesmo? Então, como é que você é tão bom para inventar desculpas? Stanley dá um sorriso conspiratório e volta a atenção para a TV. Nenhum dos canais principais tem muito a oferecer, então ficamos mudando entre o Paramount, no qual está passando “Married... with Children”, e outro canal que apresenta um programa de perguntas surpreendentemente cativante, em que uma família joga apostando até onde os parentes vão para ganhar o grande prêmio e colocam armadilhas pelo caminho. Mas eu não estou me concentrando muito porque Simon vai passar amanhã de manhã para me pegar, e Laura acha que eu vou estar na Tina T às nove. Agora que Stanley veio me salvar, no entanto, estou pronta para me dedicar totalmente ao programa de perguntas. — Então, o que você faria para ganhar cinco mil libras? — pergunto a Stanley. Depois de um irmão revelar uma confidência que fez à irmã para ver se ela vai revelar à equipe de filmagem o segredo dele, para ganhar o prêmio. Só que ele está mentindo, e se ela abrir o bico, vai perder. - Para ser sincero, não sei se faria muita coisa — Stanley diz, pensativo. — Quando você chega à minha idade e tem dinheiro suficiente para ter conforto, não precisa de muito mais. Agora, se alguém me oferecesse o elixir da juventude eterna, eu entregaria qualquer um... E você? O que faria por cinco mil libras? Mentiria? Trapacearia? — Ele ri e me oferece um biscoito Hobnob de chocolate. Eu me ajeito na cadeira, pouco à vontade. Nas últimas semanas, a mentira se tornou minha segunda natureza. E nem foi por dinheiro. Estou prestes a ir passar um fim de semana romântico com um homem que pensa que eu sou outra pessoa, depois de mentir para minha chefe que vou estar doente. E daí há Stanley, que veio aqui em busca de Reiki, e eu o fico enrolando com novelas e seriados. Mas pelo menos assim ele está economizando o dinheiro das consultas. — Dinheiro? — digo com um sorriso desajeitado. — Dinheiro não é assim tão importante. — Você tem toda razão — Stanley diz, caloroso. — Amizade. Pessoas em quem se pode

confiar. É só isso que importa. Tento me reconfortar com isso, mas a mera menção da palavra amizade me faz pensar em Chloe e sinto as lágrimas fazendo meus olhos arderem. Ela é minha melhor amiga absoluta, e agora ela me odeia. Sou uma mentirosa e uma trapaceira e nem vou ganhar cinco mil libras por ter tido tanto trabalho. Piscando furiosamente para segurar as lágrimas, tento empurrar Chloe e minha teia de mentiras para longe da mente. — Conta quando os únicos amigos que você tem estão na televisão? — pergunto a Stanley da maneira mais animada que consigo, mudando de canal bem na hora certa para pegar o comecinho da música de “Friends”. CAPÍTULO 13 Certo, eu consigo. Tudo o que eu tenho a fazer é o seguinte: 1. Ligar para Laura, dizer que estou passando supermal e que preciso ir ao médico. Apesar de que ontem eu estava ótima. 2. Fazer a mala para o fim de semana. Isso não é tão fácil quanto parece. Não sei como vai estar o clima (hoje é um daqueles dias que pode ficar quentíssimo, mas também pode nublar. Amanhã, pode ser que fique um gelo). E se formos dar uma caminhada? Coloco sapatinhos fofos e fico sensual ou levo sapatos de caminhada práticos e confortáveis? Não que eu tenha algum sapato de caminhada, mas você sabe qual é o meu dilema. E, de todo modo, eu não tenho lá muitas roupas bacanas. Só o jeans e a blusa da West Village, que já usei duas vezes. E meu vestido Alberta Ferretti, que preciso mandar para a lavanderia: está com manchas de grama por causa do piquenique. E, de todo modo, não sei bem se é a roupa mais adequada para um fim de semana no campo. 3. Treinar a voz de doente para parecer convincente quando ligar para Laura. 4.Encontrar algo para enfiar minhas coisas dentro. Só tenho uma mala enorme e um monte de sacolas de mão. Ai meu Deus, por que eu não pedi uma malinha de fim de semana bacana para minha mãe de presente de aniversário no mês passado, em vez de uma torradeira? Na verdade, eu uso a torradeira o tempo todo, mas realmente preciso de uma mala. Será que eu consigo transformar uma das minhas cortinas em bolsa a tempo... 5. Pensar em muitas coisas interessantes sobre as quais conversar com os pais de Simon. Sei que a lista não é assim tão longa, mas é o conteúdo que importa. E falando de conteúdo... preciso me concentrar na questão da mala. Não é assim tão difícil. O problema é que eu nem consigo pensar em fazer a mala enquanto continuo preocupada em ligar para Laura. Vou ter de fazer isso primeiro. Mas e se a Julie atender? Claro que eu preferiria dizer a ela que estou doente, mas acho que não vou conseguir mentir de maneira convincente. Ou melhor, ela já vai saber de cara que eu estava mentindo porque sabe como eu estava fazendo de tudo para Lucy ficar com meu turno. Eu queria ter o número do celular de Laura: daí, poderia mandar uma mensagem de texto. Sabe como é, dizendo que eu estava tão péssima que nem conseguia falar. Passo um tempo andando de um lado para o outro no apartamento, calculando as palavras exatas que vou usar, treinando com voz rouca. Daí, começo a questionar se voz rouca é a melhor escolha: ela pode ficar achando que eu só estou com um resfriado leve, e preciso

dar a entender que estou muito doente mesmo, de não trabalhar o fim de semana todo. Talvez um problema de estômago seja melhor. Dores sem explicação... preciso ir correndo ao atendimento de emergência... não, complicado demais. Enxaqueca? Não, não, não. Certo, então vai ser mesmo a voz rouca. Suspeita de amigdalite. Muitos pontos brancos por toda a minha garganta. E na verdade eu já tive amigdalite, então sei do que estou falando. Dor de ouvido de matar. Essa sempre é boa: sugere tudo quanto é tipo de complicação. Certo. Pegue o telefone, tecle o número... Ou eu poderia fazer a mala primeiro. Sabe como é, para tirar da frente, assim faço a ligação depois. Não pode ser? Limpo as mãos no penhoar. Estou tão quente e aborrecida que posso mesmo estar doente. Ai, meu Deus, são nove e meia. Merda. Preciso fazer a mala, tomar banho, ligar e ficar linda em uma hora. Pego o telefone de novo e aperto o botão de rediscagem. — Alô, Tina T. É Laura. Bom, pelo menos já é alguma coisa. — Laura, é a Natalie. — Eu estava mesmo imaginando onde você estava. — É, bom, acho que estou doente. Estou me sentindo péssima, então não vou trabalhar — digo rapidinho. — Sabe, estou com dor de garganta, dor de ouvido. — Sentir-se péssima é um termo técnico, será? — Laura pergunta, com sarcasmo. — Não — respondo, pensando rápido —, mas amigdalite é. — Como assim, no ouvido? Eu sabia que não devia ter mencionado dor de ouvido. Foi só para arrumar problemas. — Não, é a garganta. Quer dizer, meus ouvidos também estão doendo. Mas estou com umas manchas brancas... e uma dor lancinante. Dor lancinante: com isso ela não pode discutir, pode? — Sei. Então, você vai ao médico, é isso? — Vou. Quer dizer, estou saindo agora. — Então, você ainda não sabe se é amigdalite? Bom, tudo bem, ligue de novo mais tarde. Para dizer qual foi o diagnóstico verdadeiro, e se você vem trabalhar mais tarde. — Mais tarde? — Depois do médico. — Certo. A gente se fala mais tarde. — Espero que sim. Sinto que fiquei branca. O que Laura está pensando? Sugeriu que eu vá trabalhar depois do médico? Está louca? Até parece que eu iria trabalhar com amigdalite. A menos que ela não tenha acreditado em mim... Ah, com o diabo, agora vou ter que ligar de novo e inventar um diagnóstico completo. Sento no sofá e fico lá largada durante alguns minutos. Desgraçada da Laura. Como é que ela ficaria se eu estivesse doente de verdade? Fui internada no hospital com alguma doença muito rara. Aí ela ia ver só uma coisa. Não dá para acreditar que ela acha que eu vou trabalhar quando estou assim tão doente. Só que eu não estou doente de verdade, estou? E ainda nem comecei a fazer a mala. Resolvo que o banho deve ser minha próxima prioridade: e vou poder resolver o que levar no chuveiro. Quando eu tiver lavado o cabelo e feito uma esfoliação completa, vou começar a me sentir um pouco melhor a respeito de tudo. Posso ligar para Laura quando chegarmos à casa dos pais de Simon. Vou dizer que meus pais estão indo me buscar. Que o médico mandou descansar dois dias pelo menos. Ou posso dizer que foram três dias e folgar na

segunda também... Vai dar tudo certo. Não sei por que estava tão preocupada. E daí, bem quando começo a passar creme no corpo, a campainha toca. Enrolo uma toalha no corpo e me debruço na janela. Não dá para acreditar: Simon está vinte minutos adiantado. O que ele está pensando? Será que ele achou mesmo que eu estaria pronta? Abro a janela. — Simon! Ele olha para cima, apertando os olhos por causa do sol, e vejo a boca dele se abrir em um sorriso quando me avista. — Cress! Está pronta para sair? — Me dá uns minutos, pode ser? — Grito para ele. Será que não está vendo que o meu cabelo está molhado e que estou com uma toalha em volta do corpo? — Certo, mas não achei lugar para estacionar, então estou em uma vaga de residente. Não posso esperar muito, ou vou levar multa. Multa? Ele quer que eu me preocupe com multa quando nem sei o que vou vestir? — Sem problema. Não vou demorar. Onde está seu carro? Na esquina? — É... em Cornwall Crescent. A gente se vê daqui a pouquinho! E daí ele me dá um aceno e sai caminhando pela rua. Lentamente fecho a janela, olho para o creme hidratante que está pingando no chão e entro em pânico. Certo. Secar o cabelo. Merda, cadê minha escova? Consigo encontrar um pente e desesperadamente o enfio nos fios enquanto seguro o secador à esquerda, mas não funciona muito bem, e logo meu cabelo está todo frisado e nem de longe com o visual liso e macio que era minha intenção. Visto meu jeans e fico olhando para meu guarda-roupa, na esperança de que alguma blusa linda de repente apareça do nada. Não aparece, então eu recorro à minha blusa preta sem manga que é usada pelo menos cinco vezes por semana. Agora só preciso de sapatos: desencavo a linda plataforma de amarrar que comprei nas últimas férias de verão, e parece que está tudo bem. Tirando o fato de que eu continuo sem ter mala. De repente, tenho uma idéia. Pego meu saco de roupa suja e despejo tudo em cima da cama. Isso podia ser uma mala de fim de semana, não podia? Quer dizer, não tem escrito "Saco de Roupa Suja" nem nada. Meus olhos pousam em uma pequena etiqueta no fundo, com a palavra "Roupa Suja" discretamente bordada. Mas, mesmo assim, é floridinho, é uma bolsa e, sinceramente, minhas opções estão chegando ao fim. Que diabo, vou simplesmente dizer que é vintage: Simon não sabe nada sobre moda. Rapidamente, pego uma tesoura e corto fora a etiqueta. Infelizmente, eu me apresso tanto que acabo cortando o próprio saco, mas não tenho tempo para me preocupar com detalhes assim. Ignoro o cheiro levemente azedo que emana do interior, jogo lá dentro meu outro jeans, minha blusa bacana, um suéter, tênis, um sutiã, minha nécessaire de banho e então pego minha bolsa. Estou pronta. Em tempo recorde. — Que mala interessante — Simon diz, sorrindo. Preciso admitir que se parece um pouco com um saco de lixo florido. Dou um sorriso acanhado quando Simon se inclina para me dar um beijo. Imediatamente começo a me sentir muito melhor em relação a tudo. — Que carro interessante — digo com um sorriso, quando ele abre a porta para mim. — Ah, é, o carro — diz Simon, esfregando a nuca. Não é tão interessante quanto é improvável. É um modelo esportivo vermelho: um Porsche. Quer dizer, eu não duvidei de

que Simon teria um carro absolutamente caro, mas isto aqui parece algo que um corredor compraria. — Na verdade, não é o meu carro — Simon prossegue. — Eu tive de pegar emprestado de um colega que, hum, precisava do meu carro para um encontro. — O dono deste carro não achou que estava bom para um encontro? Mas que diabos de carro você tem? — pergunto, descrente. — Um Volvo. Arqueio as sobrancelhas. — Então, não era um encontro muito interessante? - Na verdade, é um pouco complicado. Ele está meio que tentando desmotivar a namorada. Parece que ela está desesperada para se casar com ele, e ele não está, sabe como é, pronto para se amarrar, por enquanto. E, aparentemente, ele acha que se a levar para sair com um Volvo, ela vai se acalmar. Sabe, assim ela vai ver que ele é muito chato e vai atrás de outra pessoa. Dou risada. — Simon, você acha mesmo que uma mulher desesperada para casar vai ficar desmotivada por causa de um Volvo? Mas que idiotice. Se ele estiver de Volvo, ela vai imediatamente pensar que ele quer se amarrar, ter filhos e ir comprar móveis na Ikea no domingo de manhã. — Percebo. — Agora é Simon que está arqueando as sobrancelhas. — Eu não estava falando de você... — digo rapidinho. — Quer dizer, Volvos são carros ótimos. Quer dizer... Paro de falar quando percebo que Simon está sorrindo. — Só para você saber, eu odeio a Ikea — ele diz, dá uma piscadela e me deixa imaginando se está tentando me dizer alguma coisa a respeito da questão de se amarrar. Bom, este carro pode não ser de Simon, mas com certeza é rápido. E legal, para quem gosta desse tipo de coisa. Não sei bem se eu gosto, mas é como lençóis de seda: você pode não comprar, mas é gostoso experimentar. Disparamos pela estrada e, a cada quilômetro percorrido, eu me sinto mais segura, mais distante de meus problemas. Laura parece insignificante; o fato de eu mentir sobre meu nome, um mero detalhe administrativo. Só quando entramos na garagem dos pais de Simon eu me lembro de que não retornei a ligação de Laura. E o que é pior, esqueci meu celular na mesinha de centro. — Querido, como é bom ver você! Há uma mulher bonita de meia-idade vindo na nossa direção, com vários cachorros, duas criancinhas e um homem um pouco mais velho e mais cheinho. Simon aperta meu joelho. — Está pronta para conhecer meus pais? — Com certeza! — respondo alegre, imaginando quando vou ter oportunidade de pegar o telefone de Simon emprestado e ligar para Laura. Por que não fiz isso no caminho? Podia fingir que estava no carro dos meus pais. Teria sido perfeito. Sabe como é, desde que Simon não ouvisse o que eu estava dizendo. Ele acha que eu trabalho com marketing. E executivas de marketing em ascensão não têm de ligar para a chefe no sábado, fingindo estar doentes. Sorrio e tento manter o equilíbrio já que, quando saio do carro, os cachorros começam a pular em cima de mim e a mãe de Simon (ou melhor, sua madrasta, mas acho que ela não sabe que eu sei disso) me agarra para tascar um beijo na minha bochecha logo de cara. O pai dele é um pouco mais reservado, estende a mão para me cumprimentar, mas, quando eu o cumprimento, ele me puxa e me dá um abraço de urso. Quando me solta, eu me ajoelho e

acaricio um cocker spaniel que tenta lamber meu rosto. O lugar é cheio de vida, com muito barulho e confusão, e vejo o rosto de Simon relaxar visivelmente enquanto ele observa a cena. — Que coisa esplêndida conhecê-la, querida. Que bom ter vindo até aqui nos conhecer. Fizeram boa viagem? Simon, que monstruosidade é essa que você está dirigindo? Então, vocês podem esperar pelo menos uma hora para almoçar? A Kitty está de férias e a moça nova não faz a menor idéia de onde ficam as coisas. Está deixando sua mãe louca. O pai de Simon direciona seus comentários e perguntas para ninguém especificamente, e eu sigo Simon e ele até a porta de entrada, que está escancarada. A casa é enorme. Não enorme como as mansões que havia perto da minha cidade, mas enorme como as casas dos filmes de Agatha Christie, em que umas 15 pessoas se hospedam, todas com um motivo para cometer assassinato. Quer dizer, o terreno ao redor é imenso. E tem uma entrada comprida, E, só na parte da frente, há umas cinqüenta janelas, o que sugere a existência de um bom número de quartos. Olho para minha mala morrendo de vergonha: está pendurada no ombro de Simon. A família dele provavelmente viaja com malas de couro de avestruz ou algo assim, não com um saco de roupa suja que não foi lavado. Mas, quando entro, vejo que não é uma casa tão grandiosa quanto eu estava pensando. Quer dizer, é imponente: tipo, o pé-direito é bem alto, e há uma lareira tão gigantesca que caberia um sofá dentro, logo ali no hall de entrada. Mas não é formal. Não é preciso andar na ponta dos pés para não esbarrar em um vaso Ming nem nada. O hall de entrada tem uma escada enorme e portas duplas para todos os quartos, que estão todas escancaradas, então é quase um plano aberto completo, e o lugar realmente parece bem usado. Há toneladas de mobília antiga, pilha de livros antigos e dois cestos de cachorro bem no meio da sala, E tem um autorama enorme montado em cima do que presumo ser a mesa de jantar. Os cachorros latem de alegria e eu fico morrendo de vontade de sair correndo pelo jardim lindíssimo que enxergo através das portas envidraçadas da saía, para onde os dois menininhos saíram correndo para brincar. Em vez disso, só olho ao meu redor, maravilhada com a casa. — Perdoe-nos pela bagunça — diz a mãe de Simon, recolhendo algumas folhas de jornal aleatórias do chão. — Os sobrinhos do Simon vão ficar aqui por mais meia hora, e parece que deixam destroços por todos os lugares que passam. Aliás, eu sou Tilly, e este aqui é meu marido, Archie. Então, Simon, o que você acha de preparar um chá para nós todos? — Chá? — Archie diz, com desdém. — Está quase na hora do almoço, Tilly. Está na hora de alguma coisa mais forte do que chá, você não acha? Tilly revira os olhos. — Archie, duas taças de vinho por dia, o médico recomendou. Acho que ele não ficaria muito contente de saber que você completou a dose com gim e tônica antes do almoço. Ela se vira com rapidez e lança um olhar de "não sei o que fazer com ele". — Desculpe, Cressida, querida, quer uma bebida? — ela me pergunta. — Archie está proibido de exagerar, mas isso não deve atrapalhar os outros. — Para mim, chá está ótimo — consigo dizer antes que os dois menininhos que vi antes irrompam casa adentro, quase me derrubando de novo, — Oscar, Jacob, façam o favor de parar de correr — Tilly prossegue, em tom exasperado, — Se quiserem brincar, fiquem no jardim, entenderam? Agora, cumprimen tem a Cressida.

— Oi, Cressida — os meninos dizem, obedientes, antes de correr na direção de Simon e o desafiarem a uma luta de kung fu. — Ah, então você vai ficar do lado dela, é? — Archie me pergunta, em tom de acusação. — Que coisa ridícula. Não se pode nem tomar um drinque hoje em dia sem alguém para dizer que está proibido... Simon se desvencilha das crianças e me abraça. — Vamos até a cozinha — ele sugere. — Vamos fazer o chá e deixar minha mãe e meu pai discutindo aí. Quanto mais eu olho ao meu redor, quanto mais eu ouço Archie acusando Tilly de esconder a chave do armário de bebidas, mais segura eu me sinto. Não é para menos que Simon acha Londres exagerada. Até a cozinha é perfeita. É grande, como o restante da casa, mas incrivelmente aconchegante, com jarros e potes por todos os lados, arranjados em uma desordem confusa, e aromas maravilhosos emanam do fogão. É o tipo de cozinha em que seria possível ficar o dia inteiro, com uma mesa grande e surrada e uma despensa que corresponde a mais ou menos a metade do meu apartamento em Londres. Sinto uma enorme pontada de culpa ao me dar conta de que estou nesta casa maravilhosa sob falsas pretensões. Que eles acham que eu sou outra pessoa. Preciso resolver a questão. Oscar entra correndo na cozinha e colide com Simon. — A gente foi no mundo de aventura de Tessington. — ele nos conta, sem fôlego. — Fomos na montanha-russa. O Jacob ficou com medo, mas eu não. Nem na descida. Descer dá mais medo do que subir. E era super-rápido. — Parece divertido — digo a ele. — Vocês também foram ao zoológico? Oscar parece pensativo. — Não é um zoológico de verdade — diz, depois de alguns segundos. — É um zoológico de bebê. E eu não sou mais bebê. Sou menino. — Com certeza que é — diz Simon e o pega no colo, pendura de ponta-cabeça e o coloca em cima dos ombros enquanto Oscar solta gritinhos de alegria. — É o Oscar que está aí? — Tilly grita da sala. — Simon, você pode dizer para ele ir para o jardim? O Jacob está lá sozinho. Obediente, Simon abre a porta lateral e deposita Oscar do lado de fora. — Agora — ele diz, aproximando-se do enorme bal cão comprido que percorre toda a extensão da cozinha e remexe em um dos armários por cima dele. — Earl Grey, English Breakfast, Assam ou Darjeeling? Acho que é isso. Ah, não, retiro... também tem Lapsang Souchong. — Simon — digo, conduzindo meu corpo para baixo do braço dele de modo que fico apoiada no balcão e no peito de Simon. — Obrigada por ter me trazido aqui. Eu... eu adorei de verdade. — Adorou? Que bom — Simon responde com ternura, inclinando-se para me beijar. — Cress, você sabe que eu estou completamente apaixonado por você, não sabe? Ele me beija de novo, e eu aperto os braços ao redor do pescoço dele. Não dá para acreditar que as coisas estão assim tão maravilhosas. Passo os dedos pelo cabelo macio e espesso de Simon, então me afasto um pouco para olhar seu rosto lindo e forte. Completamente apaixonado por mim. Posso viver com isso. E agora, com certeza chegou a hora de contar a verdade. Eu não quero mais que ele fique me chamando de Cressida. Quero ouvi-lo me chamar de "Natalie". — Simon... — começo, mas ele continua falando. — Tem uma coisa sobre a qual eu preciso conversar com você — ele diz baixinho. — Eu

tomei uma decisão. Eu estava querendo contar para minha mãe e meu pai neste fim de semana, mas queria contar primeiro para você. Logo. Eu queria ter falado antes, mas parecia que nunca era a hora certa... — Certo... — digo, hesitante. Que tipo de decisão? Mas, antes que Simon consiga abrir a boca de novo, o pai dele aparece à porta. — Achei que você estaria fazendo chá — ele diz, jovial. — Tilly, você acredita que o Simon ainda nem colocou o bule no fogo? E você diz que eu não tenho permissão para tomar uma bebida de verdade. Será que preciso ser diagnosticado com desidratação aguda antes que alguém faça qualquer tipo de líquido passar por meus lábios? Tilly irrompe na cozinha. — Archie, querido, você pode se servir de um copo de água, sabe como é. Então, Simon, será que você e Cressida podem pôr a mesa? E assegurem-se de que os meninos vão ficar no jardim nos próximos vinte minutos. E os cachorros também, aliás. Archie, você está encarregado do espinafre. Todos os outros, por favor, saiam da cozinha, ou não vai ter almoço. — Então, diga — começo a perguntar quando saímos da cozinha, mas, em vez de falar, Simon me agarra e me tasca um beijo apaixonado. Sinto quando ele fica duro e olho ao redor nervosa, para conferir se ninguém está olhando. Tento me afastar, preocupada de alguém nos ver, mas ele me segura com força. — Você disse que gostava de enfiar o pé na lama, está lembrada? — Simon está sorrindo. — Não, foi você quem disse isso — observo. — Certo, mas você não disse que não... Sorrio e movimento as mãos para apertar a bunda dele, mas Archie sai da cozinha e nós nos afastamos com rapidez. Alguns minutos depois, ele volta para a cozinha. — Acho que a gente devia estar arrumando a mesa — Simon diz, todo sério. — Absolutamente — respondo. Minhas bochechas estão levemente coradas. — Sabe que, se os velhos não estivessem aqui, eu já estaria comendo você em cima da mesa neste momento, não sabe? — Simon sussurra ao meu ouvido enquanto guardo os brinquedos. Dou uma risadinha, e Tilly aparece de novo à porta. — Andem logo, vocês dois — ela dá bronca, então retorna à cozinha. Começamos a arrumar a mesa quase em silêncio, esbarrando um no outro o tempo todo, apesar de ter muito espaço, e permitindo que nossas mãos se toquem de leve enquanto ajeitamos facas, garfos, guardanapos e copos. Em intervalos de poucos minutos, Archie ou Tilly aparecem, e nós trocamos piscadelas e olhares, desafiando o outro a fazer o mesmo e se arriscar a ser pego. Cada centímetro do meu corpo quer ser consumido por Simon. E eu nunca soube que arrumar a mesa podia ser tão divertido. Quando coloco algumas taças de vinho na mesa, Simon me agarra por trás e então se afasta quando Tilly sai da cozinha mais uma vez. -— Aqui está — diz e deposita uma travessa cheia de batatas assadas na mesa. — Simon, querido, você pode ajudar seu pai a trazer o restante da comida? Então, Cressida, você pode abrir o vinho para mim? Ela me entrega uma garrafa e um saca-rolha, e consigo abrir sem muita dificuldade. — É muita gentileza de vocês me convidarem para vir aqui — digo quando começo a servir. — Sua casa é muito linda.

— Ah, você é muito gentil — Tilly diz, carinhosa. — Nós adoramos este lugar. Custa uma fortuna para manter, é claro, mas não seria a mesma coisa em nenhum outro lugar. O Archie foi criado aqui, sabe... — O lugar deve ser um sonho para as crianças — digo, tentando não me deixar levar demais por minhas fantasias de morar aqui. É que a casa é simplesmente perfeita. — Ah, com toda a certeza — Tilly se deleita. — Deve ser por isso que o Oscar e o Jacob estão sempre aqui. São filhos do Peter. É o irmão do Simon... tenho certeza de que vai conhecê-lo mais tarde. Com tanto espaço, dá muita liberdade. Então, e você? Também mora em Londres? Assinto com a cabeça, tentando me lembrar de todas as ótimas razões que eu tinha para me mudar para Londres. De algum modo, meu apartamento de Ladbroke Grove perdeu um pouco do charme. — Meu apartamento é bem pequeno — digo a ela. — Mas, sabe como é, é bom estar perto dos luminosos e tudo o mais... Minha voz vai definhando, eu não consigo parecer convincente. — Bom, tenho certeza de que é adorável. Eu costumava morar em um apartamento em Kensington, sabe? Daí, conheci o Archie! Ela parece pensativa por um instante, então abaixa a voz. — O Simon nunca trouxe uma namorada aqui antes. Conhecemos algumas delas, é claro, mas normalmente em Londres. Em festas, esse tipo de coisa. — É mesmo? — pergunto, descrente. —Achei que ele trazia todas logo de cara. Quer dizer, realmente é uma surpresa... — Ele... não faz as coisas de modo despreocupado.Simon sempre foi muito sincero. Ele se magoa com facilidade. Tilly olha para mim nervosa, como se estivesse preocupada de ter falado demais. — Não que você fosse magoá-lo, tenho certeza de que não. É só que, bom, é importante que você saiba... quer dizer, que você não vai... — ela pára a frase no meio, parece confusa. —Tilly, é claro que eu nunca o magoaria — respondo com um sorriso. — Eu realmente... gosto muito dele. Bom, fale sério, não vai ter jeito de eu dizer para ela que estou apaixonada, não é mesmo? Apesar de cada centímetro do meu corpo formigar de paixão. — Ah... Ah, fico muito contente — ela responde, e seu rosto se abre em um enorme sorriso. Dá para entender por que Simon a considera sua mãe verdadeira. Eu adoraria se ela fosse minha mãe também. Tilly dá uma fungadinha e parece que vai me dar outro abraço, mas muda de idéia. — Você realmente não é o que nós estávamos esperando — ela diz, rapidinho. — A Lenora realmente não fez uma descrição condizente! Engulo em seco. Lenora? Ela andou falando com Lenora? — O quê... o que a Lenora disse? — pergunto, o pânico me corroendo por dentro. — Ah, nada demais. Quer dizer, eu só comentei...nmas... Tilly olha ao redor, como se estivesse tentando decidir se vai ou não dizer mais. Obviamente, resolve ficar quieta. — Bom — termina por dizer. — É melhor ir pegar as couves-de-bruxelas. Quando ela sai da sala, eu me sento e meu coração começa a bater forte no peito. Minha cabeça está a mil. Eu amo Simon. Estou completa e totalmente apaixonada por ele. Ele é atencioso, sexy, inteligente e adorável, e eu não me importo nem um pouco com o fato de que ele pareceria totalmente deslocado no Market Bar ou no Canvas. Mas eu me

importo sim com o fato de ele achar que eu sou Cressida Langton. Aliás, me importo bastante com isso. E também me importo com o fato de Tilly ter falado com Lenora. E se ela descobrir antes que eu possa contar a Simon? Vou ter de contar, e vai ter de ser hoje, antes que seja tarde demais. Antes que possa pensar em qualquer coisa, Tilly começa a arrebanhar todos os humanos para dentro da sala de jantar e todos os animais para fora, e finalmente nos sentamos para comer. Talvez a comida acalme meus nervos em frangalhos. Não consigo olhar para Tilly sem ficar imaginando o que Lenora disse. Quando ela tira a tampa das travessas, percebo que estou faminta e que o cheiro é divino: batata assada com alho, frango assado com coentro e vagem com funcho. Inspiro os perfumes e gradualmente vou esquecendo o nervosismo. Apesar da coisa toda do nome errado, é incrível como eu me sinto em casa aqui: normalmente, eu não me sinto bem na casa dos outros. Tilly me passa um prato abarrotado de frango, e eu me sirvo dos legumes com avidez. Enquanto comemos, Archie fala sobre sua última partida de golfe ("Porcaria de vento. Acabou com meu jogo") e Tilly fala sobre o festival do vilarejo que será realizado amanhã ("Não é nada de mais, mas todo mundo adoraria ver vocês dois. Se tiverem tempo"). — Ah, a Cress é bacana demais para o festival do vilarejo, mãe. Ela mora em Notting Hill, sabe? — Simon diz com um sorriso. — Não! Não sou nada — respondo rápido e lanço um olhar para ele. Quero ir ao festival. Quero ser apresentada a pessoas que conheceram Simon quando era criança. Fico imaginando, superficialmente, o que Julie e Alistair diriam, então percebo que não estou nem aí. — Eu adoraria ir ao festival — digo a Tilly. — Que nome interessante, Cressida — Archie diz repentinamente. Ergo os olhos rápido. — É, é sim — consigo dizer. Dá para sentir que fiquei vermelha. Não, não agora, imploro. Não permita que tudo dê errado agora. Não quando está tudo tão perfeito. E vou contar para Simon hoje à tarde. Sem dúvida. — É de Shakespeare, não é mesmo? Assinto com a cabeça, em silêncio. Shakespeare? Achei que era só um nome. Tenho certeza de que Archie está olhando para mim de maneira curiosa. Será que ele sabe? Será que percebeu que eu sou um embuste? Antes que ele possa me fazer qualquer outra pergunta, Simon se vira para Oscar, que está puxando a manga da camisa dele. — Pois não? — diz ao sobrinho, com carinho. — Você gosta de mandar ver, Simon? — Oscar pergunta aos berros. Todo mundo contempla a questão em um silêncio longo e chocado. Tão feliz por termos deixado de lado a conversa sobre Cressida, quase começo a dar risada, mas consigo me deter a tempo. Simon engasga um pouco com o frango assado e olha ao redor nervoso, sem saber o que dizer. Archie limpa a garganta com muito barulho e todo mundo evita se olhar nos olhos. E então eu me lembro do que Oscar estava nos contando na cozinha. — Brinquedos de parquinho — consigo dizer, segurando a risada. — Ele está perguntando se você gosta de mandar ver na montanha-russa! Ouve-se um suspiro de alívio coletivo e Simon abre um sorriso. — Gosto sim, Oscar — diz num tom cara-de-pau. — Gosto de mandar ver, mas não em brinquedos muito assustadores. Acho que vou deixar esses para você e o Jacob. — Quando ele diz "mandar ver", sinto o pé dele roçar no meu. Archie olha para mim e eu fico um

pouco vermelha. Depois do almoço, o irmão mais novo de Simon, Peter, aparece para buscar Oscar e Jacob. Ele é mais alto do que Simon e com a aparência mais rude. Dá um sorriso de flerte para mim e faz piada com Simon por causa do carro. — Vocês, os desgraçados que trabalham no mercado financeiro, são todos iguais. Simon, talvez você realmente não seja muito bem dotado, mas para que comprar um carro desses e dar ênfase ao fato? Simon fica vermelho como um pimentão. — Pete, já foi apresentado à minha namorada, Cres-sida? Aquela que com certeza vai embora daqui a pouco, se você não calar a boca? Pete pisca para mim. — Então, Si, você finalmente conseguiu achar alguém para sair com você? Que surpresa. Cressida, se tiver algum problema, é só falar comigo, certo? Acho que todos os talentos e a beleza da família vieram para mim, mas o Simon é bom com... — Faz uma pausa — Simon, desculpa, o que mesmo você sabe fazer bem? Simon pega um livro e joga na direção de Peter. — Você não tem umas crianças para recolher? — diz, em tom de acusação. — Ai, meu Deus, preciso mesmo levar? A Sarah ainda está fazendo compras. Mãe. Mãe! — ele chama alto, e Tilly aparece à porta. — Querido, os meninos estão prontos para ir. — O Jacob só está procurando o sapato. — Ah, bom, parece que eles sobraram para mim... — Peter diz de modo lacônico, quando Oscar corre para seus braços. — Papai, papai, eu fiz três gols no jardim. E o Jacob só fez um — Oscar conta a ele, sem fôlego de tanta animação. — Pense bem, Simon — Peter diz com um sorriso maldoso. — Um dia, você vai ter tudo isto só para você. Gols no jardim, brinquedos para todos os lados, nenhum momento de paz e sossego. Você não faz idéia de como estava bom hoje de manhã: Sarah fora, as crianças fora, só de poder me sentar e ler o jornal sem interrupção... Ah, que tempo feliz. Ainda assim, é uma ótima maneira de seduzir mulheres. E só sair de casa com as crianças e as mulheres pulam em cima de mim. Por que as coisas são assim, Cressida? Peter e Simon se viram para mim, cheios de expectativa. E eu me pego corando furiosamente. — Ah, tenho certeza de que é só pena – respondo, sorrindo, — Então, você não sofre dessa afecção do instinto maternal que se abate sobre o restante das representantes do sexo feminino? — Peter prossegue, olhando para mim sem desgrudar os olhos. Fico ainda mais vermelha. Não quero que Simon fique achando que estou desesperada para casar e ter filho. Mas também não quero que pense que eu não desejo nada disso algum dia. Sabe como é, mais tarde. Talvez. Para falar a verdade, Provavelmente com certeza. — Acho que não há muita gente que é imune - responde. — Mas tudo tem de ser na hora certa. Viro-me para Simon, hesitante, e ele sorri para mim. — O Peter é um idiota — diz, alegre. —Apenas ignore. Ele só está em busca de aplausos. — Sorrio para ele e vejo, aliviada, que Jacob apareceu e está tentando escalar as costas de Peter. — O Oscar não me deixou pegar a bola — ele reclama quando Peter o pega no colo. — Ficou fazendo gol e nem me deixou chutar.

— É porque você era o goleiro — Oscar explica. — Mas eu não queria ser goleiro. Oscar dá de ombros, então dá um empurrão bem calculado em Jacob quando Peter não está olhando. Como era de esperar, Jacob começa a chorar. — Certo, está na hora de levar vocês dois para falar com a mamãe — Peter diz a eles, então grita para Archie que não está à vista: — Pai, nossa partida de golfe de amanhã está marcada? - Golfe? — ouço um grito abafado do andar de cima. Alguns minutos depois, Archie aparece no topo da escada. — Às três horas, certo? — Peter diz ao se dirigir para a porta de saída. — É melhor marcar para as quatro — diz Archie. — Venha tomar um chá antes. Simon, você vai ficar para o chá, não vai? Simon olha o relógio. — Vou, acho que sim. Cress, se a gente sair daqui lá pelas quatro, vamos fugir do trânsito pior para entrar em Londres. O que você acha? Assinto com a cabeça, alheia. Amanhã parece estar a séculos de distância: realmente não me importo se formos embora agora mesmo. — Maravilha — ele diz com um sorriso e dá um tapa nas costas de Peter. — A gente se vê amanhã, então. A Sarah vai trazer os meninos? — Acho que sim — diz Peter, já na entrada. Simon me abraça e se inclina para sussurrar no meu ouvido. — Quer conhecer a cidade? Acho que você não passou muito tempo em vilarejos ingleses tradicionais, certo? Consigo dar um sorrisinho. — Não muito — digo, completando, em silêncio: "Isso se você não contar a minha vida inteira, tirando os três anos de faculdade e os dois últimos meses." Mas bom, é a oportunidade perfeita para contar a verdade a Simon. — Tem um pub adorável à margem do rio — ele prossegue. — Foi lá que bebi legalmente pela primeira vez. E,claro que, antes disso, já tinha tomado várias doses ilegalmente lá também. Daí, podemos dar um passeio... — Enquanto ele fala, Tilly sai da cozinha e Simon apruma o corpo. — Mãe, a gente vai sair para dar um passeio — ele diz, cheio de segurança. Sinto a mão de Simon apertando minha bunda de modo que sugere algo bem diferente de um passeio. — Mas que boa idéia — diz Tilly. —Nós todos podíamos. .. — mas a voz dela vai sumindo ao captar o olhar de Simon — ...nos encontrar aqui de novo mais tarde — ela conclui depois de uma breve pausa. — Simon, querido, se passar na frente do mercado, pode, por favor, trazer leite? E, um pouco corada, ela volta para a cozinha. CAPÍTULO 14 O pub é o tipo de lugar que não dá para imaginar que algum dia não existiu. Fica bem no meio do vilarejo, com o campo gramado de um lado e o rio do outro. Há dois times jogando críquete no gramado, e pegamos nossas cervejas para sentar do lado de fora e observá-los. As pessoas sorriem para nós e cumprimentam Simon. É ainda mais inglês do que Castle Coombe, e isso realmente é algo a ser mencionado.

—Parece que não estamos nos dando muito bem —Simon diz e faz um sinal com a cabeça na direção do placar. Dou um sorriso de apoio. Para ser sincera, nunca consegui entender críquete. Não me leve a mal, eu adoro esse jogo, mas são as roupas e o sol e a coisa de ficar sentada ao ar livre bebendo que me agradam de verdade. Eu nunca consegui compreender totalmente as regras. Mas, de algum modo, sentada aqui com Simon, eu gostaria de entender. —Este lugar é lindo — digo, contente. Simon sorri. - Você gostou? Achei que ia odiar. Quer dizer, tem nada a ver com Notting Hill, não é mesmo? Achei que você ia desprezar, achando que não é nada cool. Sorrio. Ele tem razão, de certo modo. Esta ê a mesma paisagem em que eu cresci. Eu a conheço, eu a compreendo. E talvez isso faça mais parte de mim do que eu me dou conta. Daí há a maravilhosa sensação de comunidade. Esse é o problema de Londres. Quer dizer, lá é tudo animado e divertido, mas a gente não tem essa sensação de pertencer à cidade. Sorrio para mim mesma e me lembro de como isso costumava me dar claustrofobia. De algum modo, é diferente estar aqui com Simon. —Não tem nada de não ser cool — digo, bem certa do que estou dizendo. — É adorável. E, de todo modo, só porque eu moro em Londres, não quer dizer que não sei apreciar o interior. — Acho que você tem razão — diz Simon. — Então isso quer dizer que você pode vir a considerar a idéia de deixar a metrópole algum dia? — Ele sorri, mas seus olhos estão sérios. — Não sei dizer — respondo, pensativa. —Achei que eu nunca voltaria para o interior, mas agora não sei mais. — Voltar para o interior? — Simon diz, surpreso. - Mas achei que você tinha nascido em Londres. Saco. Esqueci que disse a Simon que tinha nascido em Londres. Simplesmente parecia se encaixar no perfil de Cressida. — Nós costumávamos... passar férias... no interior - digo, cheia de hesitação. — Não muito longe daqui, aliás. Perto de Bath. - É um lugar lindo — Simon concorda, olhando para o nada. — Mas eu sei do que você está falando quando diz que já não tem tanta certeza — ele diz. — Eu também achei que sabia exatamente o que eu queria... Então, ele se vira para mim: — Você já quis fazer uma coisa completamente diferente... sabe como é, mudar a sua vida de verdade? Como assim, tipo pegando outro nome e adotando a vida de outra pessoa? Penso comigo mesma. — Acho que sim — respondo devagar. — Mas não tenho certeza se a gente muda de verdade. Só na superfície... — aperto os punhos. Está na hora de contar a verdade a Simon. Sobre ser Natalie. Se eu conseguir encontrar as palavras certas, talvez ele entenda. Mas, antes que eu possa abrir a boca, Simon olha para o outro lado. — É, acho que você deve ter razão — ele diz, todo sério. Está com uma expressão muito pensativa. Talvez este não seja o melhor momento para contar, afinal de contas. Quero contar quando ele estiver mais bem humorado: quem sabe assim vai ver o lado engraçado da coisa. Claro que eu também poderia esquecer a idéia toda de "contar para ele". Faço uma careta ao considerar minhas opções. 1. Mudar meu nome para Cressida Langton.

Prós: Não preciso contar a Simon e sua família adorável que sou uma fraude. Contras: Meus pais vão ficar um pouco aborrecidos. E pode ficar um tanto esquisito no trabalho. 2. Cortar o contato com qualquer pessoa que me conheça como Natalie e simplesmente continuar com a farsa. Prós: Abordagem direita, simples de cumprir. Contras: Nunca mais ver minha mãe e meu pai? Talvez seja um tanto draconiano demais. 3. Convencer Simon de que eu quero mudar de nome, para Natalie Raglan. Prós: Ah-ha! Que idéia fantástica! Problema resolvido. Contras: Só que não vai funcionar. Assim que ele conhecer minha família, vai saber que eu sempre me chamei Natalie Raglan. 4. Largar Simon e nunca mais voltar a vê-lo. Prós: Nenhum. Essa idéia é ridícula. Aliás, essa idéia toda é ridícula. Vou simplesmente contar a verdade. Só preciso que ele esteja com o estado de espírito certo. — Então — digo, tentando deixar o clima mais leve. — Você está pensando em mudar de profissão ou algo assim? É que tem um cartaz no pub... estão precisando de um ajudante de bar! Dou risada, mas Simon continua sério. — Estou sim. De certo modo. Pelo menos, acho que sim... Quero fazer alguma coisa que valha a pena. Algo que realmente possa ser importante para alguém — ele diz, bem sério. — Você é importante para mim — digo baixinho e me inclino para beijá-lo. O rosto dele se enruga todo em um sorriso. — Importante? Eu sou importante para você? — É, bom, você não sabe o tamanho da importância, sabe? — digo, em tom de brincadeira. — Mas bom, acho que você deve escolher a carreira que bem entender. Desde que possa me dar sempre vestidos Alberta Ferretti, quer dizer... Simon fica olhando para mim durante alguns segundos, então se levanta. — Quer dar uma caminhada? — ele pergunta. Caminhamos ao longo do rio e acabamos nos sentando sob uma árvore, com finos raios de sol chegando até nós através da folhas. É um lugar lindo. O lugar perfeito para contar a Simon o desastre todo de Natalie/Cressida. Quer dizer, até pode ser que ele ache engraçado. Sabe como é, talvez... — Simon — eu digo, antes que tenha oportunidade de mudar de idéia. — Tem uma coisa que eu preciso contar. Uma coisa a respeito da qual eu... bom, eu não fui sincera com você. Ele ergue o rosto com brusquidão, então sorri. — Então ande logo, conte o que é. Pensando melhor, não, não conte. Deixa que eu adivinho. Você é... metade alienígena? Não, não é isso. Você tem sessenta anos e um cirurgião plástico ótimo? Não, isso também não é. Hm... ah, já sei, você não é Cressida Langton, mas uma impostora maligna que amarrou a Cressida de verdade e a trancou em um armário por aí... Fico vermelha como um pimentão enquanto Simon dá risada bem alto. — Ela está no meu calabouço, para falar a verdade — digo com um sorriso nada convincente. — Então, vamos lá. O que você queria contar? — Simon fica olhando para mim, cheio de

expectativa. — Hum... — respondo, hesitante. Gomo é que eu vou poder contar agora? Ele vai achar que é piada. Ou que eu sou uma criminosa insana. De todo modo, não tem como eu contar para ele que nossa relação toda foi construída em cima de mentiras. De todo modo, acho que o que eu estou fazendo pode ser ilegal. Simon continua olhando para mim. Merda, se eu não contar a história toda de Cressida para ele, preciso pensar em outra coisa para contar. — Realmente não acho que meu futuro esteja na publicidade de moda — termino por dizer. Bom, pelo menos isso não é mentira. Quer dizer, não trabalho mais com publicidade de moda, então é improvável que eu tenha futuro nisso. Simon olha para mim, contente. — Que bom — ele diz, sorrindo. — Você agora vai se concentrar no Reiki, certo? Isso é tão bom... estava falando disso com minha mãe antes... — Você contou para a sua mãe que eu faço Reiki? Merda. Saco. E se ela quiser que eu faça Reiki nela? Não vai ter como ela entrar na de assistir a “EastEnders” no lugar da sessão. — Disse... e ela acha ótimo! Cress, acho que você está fazendo a coisa certa. Deveria estar muito orgulhosa... Fico olhando para ele. Ai, meu Deus. Isto aqui está indo de mal a pior. Estou com vontade de gritar, de berrar que não estou nem aí para a porra do Reiki. Quero que ele saiba quem eu sou de verdade. Quero que ele me diga que vai ficar tudo bem. Não quero mais mentiras. Mas agora parece que Simon está apaixonado pela mentira. Este relacionamento todo é construído sobre o nada: ele acha que eu sou uma pessoa completamente diferente. Quer dizer, como é que ele pode estar apaixonado por mim? Ele nem sabe quem eu sou! O negócio é que eu achei que conseguiria dar conta do recado. Achei que tudo se encaixaria. Mas talvez eu tenha ficado com o olho maior do que a barriga. Será que é isso? Será que isso é algum tipo de castigo por ceder à tentação? — Você tem de fazer isso — Simon prossegue e pega minha mão. — De verdade, você precisa fazer isso, Cress. A vida é curta demais para se ficar presa à porcaria do marketing se você quer fazer algo que realmente é importante. Olho para ele com pesar, tentando segurar as lágrimas. — Você acha mesmo que o Reiki é importante? — pergunto. — Claro que sim. Qualquer coisa que você desejar é importante — Simon responde, com os olhos brilhando. — Só é necessária uma estratégia de ação. Dou um sorriso fraco. — Estratégia de ação? — Sabe, um plano. — Ele parece tão entusiasmado... Como se achasse que eu posso vir a ser de verdade uma terapeuta de Reiki de muito sucesso. Eu o amo por acreditar tanto assim em mim, por mais deslocado que esteja. Mas esse é o ponto principal, não é? Que todos os sentimentos dele estão deslocados. — Simon, não tem estratégia de ação nenhuma — digo, depois de um tempo. — Não vou ser terapeuta de Reiki em tempo integral. Não seja ridículo. Sacudo a cabeça para dar ênfase, e Simon parece murchar. — Você deve ter razão — ele diz com tristeza, levanta para irmos embora e estende a mão para mim. — De volta ao massacre do mercado de trabalho, hein?

Caminhamos em silêncio boa parte do caminho até a casa dos pais dele. Durante todo o trajeto, fico conversando com ele em minha cabeça. Digo a ele que não sou Cressida, Digo a ele que não sou porcaria nenhuma de terapeuta de Reiki, e minha família não tem nenhuma amiga que faz trabalho missionário na Índia. Sou de Bath, digo com suavidade. Fui completamente idiota, e estou absolutamente arrependida. Por favor, me perdoe. Mas as palavras não chegam aos meus lábios, e Simon continua caminhando alegremente, sem saber de nada. O jogo de críquete ainda está a mil quando passamos pelo campo gramado do vilarejo e alguns minutos depois chegamos em casa. Coloco um dos braços ao redor da cintura de Simon quando nos aproximamos. Tem alguma coisa naquela casa, nos pais de Simon, que está corroendo minhas emoções. Talvez seja o fato de eu ainda não ter contado a verdade a Simon, mas eu sinto vontade de rir, ou de chorar, ou talvez dos dois. É só que, depois de Londres, o lugar parece tão acolhedor... como um lar de verdade, em que as pessoas discutem e fazem as pazes e conversam e brincam e... bom, vivem. E eu gosto daqui. Tilly está à porta, toda animada. — Vocês não vão acreditar quem está aqui! — ela diz? correndo ao nosso encontro na entrada da casa. — O Papai Noel? — pergunta Simon, com a voz cheia de frieza. Ele estava quieto desde nossa conversa à margem do rio. — Não seja bobo. Não, é a Lenora! Ela está de volta à Inglaterra para ficar alguns meses, e outro dia eu disse a ela que vocês viriam aqui. Ela ligou logo depois que vocês saíram para dizer que faria uma visita. Cressida, você não nos disse que ela é sua madrinha! O meu coração quase pára de bater, e minhas mãos ficam encharcadas de suor. — A Le... Lenora? Ela está aqui? — Pior ainda: ela é madrinha de Cressida. Ah, que merda. Por que eu não vi logo que isso iria acontecer? Como é que eu achava que simplesmente poderia passar o fim de semana na casa dos pais de Simon sem que algo assim acontecesse? — É! Ela está tão ansiosa para ver você. E você também, Simon. Então, o passeio foi bom? — Nosso passeio foi ótimo, não foi, Cress? ...Cress? — O quê? Ah, sim, o passeio foi ótimo... Acho que vou desmaiar. Ou vomitar. Ou talvez os dois. Não consigo sentir as pernas. Não consigo enxergar direito. É isso que chamam de ataque de pânico? Cress... Cress, está tudo bem? Simon olha para mim cheio de preocupação no rosto. — Simon — tento dizer, mas tenho dificuldade em formar palavras. A última coisa de que me lembro é a sensação do cascalho batendo contra meu rosto com muita força. Mexo meu rosto bem devagar de um lado para o outro. É macio, fresquinho. Um travesseiro! É um travesseiro! Devo ter sonhado a coisa toda. Ah, graças a Deus. Estou em casa e nada daquilo aconteceu. Simon provavelmente vai chegar logo para me pegar para nossa viagem de fim de semana... Só que este travesseiro não é meu. É muito melhor do que meu travesseiro. E este quarto também não é o meu. Tem papel de parede cor-de-rosa e enormes janelas cobertas com cortinas esvoaçantes, não aquelas coisas vagabundas da Ikea que eu tenho penduradas no meu quarto. Sento-me na cama abruptamente e olho ao meu redor. Está escuro lá fora, mas

há luz suficiente das estrelas atravessando as cortinas para que eu pegue minhas roupas em uma cadeira ao lado da cama. E para ver que estou sozinha. Devo ter desmaiado. Meu Deus, que vergonha. Acho que eu nunca tinha desmaiado antes. Meu coração se aperta quando me lembro de Lenora. Mas ela já deve ter ido embora a esta altura. Mas será que ela me viu? Será que ela contou para todo mundo que eu não era Cressida? Mordo os lábios de nervosismo, então saio da cama com muito cuidado, fazendo o mínimo barulho possível. Lentamente, muito lentamente, visto minhas roupas. Dá para ouvir vozes vindo do quarto ao lado, e cadeiras sendo arrastadas pelo assoalho: devo estar no anexo ao lado da cozinha. Dá para ouvir a voz de Simon, e a de Tilly, daí a de Archie, e depois a de outra pessoa. Uma mulher. Ai, meu Deus, deve ser Lenora. Ela continua aqui. Por que não volta para a Índia e me deixa em paz? Certo, é hora de encarar a realidade. Preciso ir até lá e contar toda a verdade. Vai ser um pavor, mas também vai ser um alívio enorme: como largar uma mala pesadíssima que ando carregando de um lado para o outro. Detesto mentir para Simon, detesto ter de evitar certas questões. E se ele ficar bravo, tudo bem: eu agüento a raiva. Simplesmente vou continuar explicando até ele achar que está tudo bem. Vou provar para ele que só tinha boas intenções quando fiz tudo isso. Que nunca pretendi mentir para ele. Ai, meu Deus, e se no fim ele me odiar? E se ele me expulsar daqui? Eu me pego pensando que Simon nunca me mandaria para a rua a esta hora da noite, seja lá que horas forem, e que esse fato pode me ser favorável: vou ter mais tempo para remediar a situação. Mas daí eu fico brava comigo mesma por estar tramando mais planos. Que Cressida, que nada: parece que estou me transformando em Becky Sharp. Respiro fundo. Vamos conseguir superar isso: Simon me ama e a família dele é gente boa; eles vão me escutar; vão pensar que eu sou um tanto ridícula, mas vão ver o lado engraçado e vamos falar disso durante anos e anos. Mas e se nada disso acontecer? E se eles não me perdoarem nunca mais? Rôo as unhas, nervosa. Eu adoro este lugar: quer dizer, estou apaixonada por Simon, mas também adoro a família dele, esta casa, a maneira como eles vivem. Apesar de todas as minhas reclamações de que o interior é absolutamente tedioso, eu amo este lugar e quero fazer parte dele. E não suporto a idéia de que quando Simon souber como eu sou de verdade (quem eu sou na realidade), não vai querer mais falar comigo. Que eles vão me colocar de escanteio, e eu não vou mais poder voltar. Mesmo assim, só há uma coisa a fazer. Sair daqui e encarar. Com muita cautela, vou até a porta e, com muita coragem, abro com tudo, pronta para enfrentar meu destino. Mas, em vez da cozinha, a porta se abre para um corredor que leva para a cozinha. Sinto que minha coragem titubeia um pouco, mas vou na ponta dos pés na direção da cozinha, tentando escutar um pouco melhor o que estão dizendo. Para ver se estão mesmo bravos ou se estão falando de algo totalmente diferente: sabe como é, que a coisa toda não é assim tão grave. — Mas, Simon — ouço Archie dizer. — ...não sei... certa para você... tão diferente... Do que será que eles estão falando? — ...acho que sua paixão está deslocada. Paixão deslocada? Isso parece interessante. Paixão por o quê? — E que isso veio tão do nada... me parece um pouco temerário — acho que ouço Tilly dizer. Talvez Simon esteja comprando um carro novo?

Seja lá o que for, Simon está estranhamente quieto a respeito do assunto. Alguns segundos depois, Archie recomeça a falar. Não dá para ouvir tudo o que ele diz pela porta grossa da cozinha, mas dá para distinguir várias palavras. — ...preocupado com você... — ele diz. — ...queria mais para você... em longo prazo não vai funcionar... De repente, sinto uma coisa horrível no estômago. Não pode ser... ele não está falando de mim, está? Aproximo-me mais. — Tudo bem seguir o seu coração — Archie prossegue —, mas você tem de pensar no aspecto prático. Assegurar-se de que a sua escolha é apropriada. Meu coração começa a bater muito forte no peito, e eu me afasto com rapidez, para ninguém escutar. Antes, Archie tinha dito alguma coisa a respeito de a paixão de Simon estar deslocada. Será que é isso que ele pensa? Será que eles acham que eu não estou à altura dele? Bom, só me resta uma coisa a fazer. Vou ter de ir até lá e provar a eles que sou certa para Simon, que ele não está sendo temerário. Que tudo não passou de um grande mal-entendido e que normalmente eu não sou assim... Mas o que eu estou pensando? Eu normalmente sou assim, sim. Pelo menos, tenho sido assim desde que me mudei para Londres. No que eu me transformei? Nem sei mais quem eu sou. Talvez eles tenham razão. Talvez Simon fique melhor sem mim. Ele é um homem tão maravilhoso, e eu passei o tempo todo escondendo a verdade dele. Fico parada ao lado da porta por mais alguns minutos, tentando decidir o que fazer. Não posso ficar aqui, mas também não posso ir embora... pelo menos até pedir desculpa. De repente, meus pensamentos são interrompidos por uma voz alta e elegante. De algum modo, sei que pertence a Lenora. — Simon, eu simplesmente não sei como você vai poder baixar seu padrão de vida a esse nível — ouço-a dizer em tom alto e indignado. — Você já chegou tão longe... está mesmo disposto a começar tudo de novo? Franzo a testa um pouco. Baixar o padrão de vida? Será que ela está mesmo dando a entender que sair comigo significa baixar o padrão de vida dele? Mas que audácia! Fico escutando com atenção, esperando que Simon saia em minha defesa, que diga a ela que está errada. Mas não ouço nada. Então me dou conta. Ele deve concordar com ela. Ele deve ter concordado com todos eles. Se não concordasse, teria dito: antes, ficou discutindo até não poder mais com os pais a respeito de reformar o banheiro ou não, então não pode ser um arroubo repentino de timidez. — Diga alguma coisa — assobio por entre os dentes, desesperada para ouvir uma palavra, apenas uma palavra que sugeriria que Simon continua do meu lado. Mas, em vez disso, só escuto quando ele suspira e diz: — Bom, talvez vocês tenham razão. Acho que vou pensar melhor. Ele vai pensar melhor? Ele vai pensar melhor se eu sou boa ou não para ele? Ai, meu Deus. É esse o apoio que eu tenho do homem por quem estou apaixonada? Que eu achei que estava apaixonado por mim? Volto pé ante pé, sem fazer barulho, para o quarto onde estava dormindo, furiosamente tentando expulsar as lágrimas que fazem meus olhos arderem. Quase dá vontade de rir; quer dizer, da ironia de tudo isso. Lá estava eu pensando que meus amigos de Londres são superficiais e obcecados com a imagem, quando na verdade são pessoas bem legais. E a família de Simon, as pessoas que eu considerava as mais maravilhosas e verdadeiras do

mundo... bom, eles não são nada disso, não é mesmo? Posso ter dito a Simon que meu nome era Cressida, mas com certeza não mereço isto... ser difamada pelas costas por não ser boa o suficiente para ele. Sento-me na cama para organizar meus pensamentos. Não quero ver mais nenhum deles, nunca mais... não vou suportar a humilhação. Mas estou na casa deles, então não tenho exatamente como evitar. Posso esperar até que todo mundo vá dormir para me esgueirar para fora, mas e se eu escolher o momento errado e ainda estiverem acordados? E se Simon vier aqui ver se eu acordei? Meus olhos repousam na janela à minha frente. Não teria como... será que teria? Levanto e me aproximo para examinar melhor. Estou no andar térreo, então o salto não é assim tão grande, e assim eu não teria de ver ninguém. Examino o quarto. Minha bolsa está no bolso da minha jaqueta, que está pendurada bem direitinho nas costas de uma cadeira, meu saco de roupa suja não está à vista, mas posso viver sem meu jeans e sem a minha escova de dente. Vou demorar um pouco mais para me acostumar a viver sem Simon, mas depois do que acabei de ouvir, acho que consigo dar um jeito. Pisco até secar as lágrimas e saio para a noite fresca. Faço uma pausa para dar uma olhada na janela ao lado, para a cozinha quente e aconchegante, e então me enrijeço. E uma miragem, lembro a mim mesma. Eles não são pessoas calorosas e hospitaleiras na verdade: é só fachada. E eu quase caí que nem um patinho. Então eu me viro e corro para a estação de trem do vilarejo o mais rápido que posso. CAPÍTULO 15 Fico olhando para a luzinha da secretária eletrônica que pisca furiosa para mim. Na hora que chego em casa, estou com frio e me sentindo péssima (descobri que os trens não circulam com muita freqüência no sábado à noite quando se está no meio do nada). E, ao passo que não tenho bem certeza se quero encarar meus recados agora, preciso fazer isso em algum momento. Então, para que prolongar a agonia? Talvez Simon tenha deixado um recado que vai fazer com que tudo volte a ficar bem. Eu sei que é improvável, mas é possível, não é mesmo? Pelo menos, não vai ter como ele fazer com que eu me sinta pior. Eu me encho de coragem e aperto o botão. "Bip! Natalie, é a Laura. Olha, não sei se você já foi ao médico, mas eu me lembro de você ter dito que ligaria mais tarde. Agora são duas da tarde, então espero que você me ligue até as três." Eu tinha dito que não ia ter como eu me sentir pior? Bom, então gostaria de retirar, se possível. Eu não liguei para a Laura. Ótimo! Realmente, é uma porra de uma maravilha. Alguém mais se habilita? Vamos lá, deve ter mais alguma coisa que pode dar errado, com certeza? Eu me encolho toda ao lado do telefone, esperando o próximo recado. "Bip! Natalie. Aqui é a Lucy. Olha, só para avisar: a Laura está louca da vida. Está aborrecidíssima por você não ter ligado de volta. Então, se você estiver aí, vê se dá uma ligada, certo? Tchauzinho." Deixo a cabeça afundar entre os ombros e abraço as pernas bem apertado. Por enquanto, não estou me sentindo nem um pouco melhor. "Bip! Alô, aqui é o Stanley. Não me lembro se a gente tinha combinado ou não de eu ir aí

no domingo. Vou dar uma passada lá pelas sete, se você não estiver em casa, não se preocupe. Vai ser bom sair de casa, de qualquer jeito. Vou à biblioteca antes. Ah, talvez a biblioteca esteja fechada no domingo. Eu nunca me lembro. Bom, não se preocupe. Talvez a gente se veja às sete. Se não, então na segunda. É. Certo... — Ele parece um tanto confuso ao desligar o telefone, e eu sinto uma pontada de preocupação." "Bip! Querida, é a mamãe. Só queria saber como você está. Eu encontrei a Chloe outro dia, e ela pareceu muito evasiva quando perguntei se ela tinha notícias suas. Você não está com problemas, está? Então, se tiver alguma coisa a ver com drogas, é só contar para o papai e para mim, e a gente vai aí buscar você. Nós vivemos os anos sessenta, então sabemos tudo a respeito do assunto../' — Ouço meu pai no fundo dizendo que ela não sabe se o problema é drogas. — "Eu sei, Phillip, mas pode ser. Então, Natalie. Seja lá o que for, ligue para nóss certo? E seu pai está mandando lembranças.” Quando o recado termina, sinto meus olhos se encherem de lágrimas de novo. Ah, se eles soubessem o tipo de problema que eu tenho... E Chloe tinha sido evasiva... bom, isso não é de surpreender. Meu Deus, não tenho nem mais minha melhor amiga para conversar. "Bip! Cress... hum, este é seu nome? É o Simon. É..." Não! Não, minha secretária eletrônica não pode parar agora. Simplesmente não pode... mas, alguns segundos depois, ouço a fita começando a voltar. Droga, droga de secretária eletrônica velha, barata e vagabunda. Paro a fita e coloco para tocar de novo, avançando até escutar a voz de Simon, daí ouço vezes e mais vezes, tentando adivinhar o que ele iria dizer na seqüência. Depois de muito tempo, consigo dormir, mas o despertador dispara depois de o que aparenta ser apenas alguns minutos. Está regulado para as oito e meia, o horário que acordei às pressas ontem para me preparar para meu fim de semana fora. Agora, nem consigo me mexer. Meus olhos estão inchados, minha cabeça dói, e eu me encolho toda cada vez que me lembro de ontem. Penso no meu pai citando Winston Churchill, "KBO, keep buggering on" [algo como não se deixe abater], e consigo mexer as pernas para alcançar o chão, então arrasto meu corpo para fora da cama; no processo derrubo uma pilha inteira de roupa para lavar. Fico olhando para aquilo, tentando me lembrar de por que está ali, então percebo que não faz a menor diferença. Nada importa. Estou cansada, porém é mais do que isso: eu me sinto entorpecida. Caminho até a cozinha e vejo a secretária eletrônica no chão, ao lado do lugar em que eu me sentei ontem à noite. Com calma, coloco-a perto do telefone e me concentro em preparar uma xícara de chá. Preciso enfrentar Laura hoje, o que não vai ser nada divertido. Mas, sinceramente, prefiro enfrentá-la a Simon neste momento. Realmente não me importo com o que ela acha de mim. De todo modo, foi só um dia. As pessoas fazem isso o tempo todo. Lucy faz, pelo menos. Mas, e Simon? O que eu vou fazer? Estou com tanta vontade de ligar para ele, de dizer que sinto muito por ser tão idiota, que sinto muito por ter mentido. Na verdade, o que realmente quero ouvir é ele me dizer que tudo bem. Mas vai ser bem difícil de ele fazer isso, não é mesmo? Não depois de tudo o que a família dele disse sobre mim. Achei que Lenora era missionária ou algo assim. Achei que ela deveria ser uma pessoa caridosa. Lentamente, eu me arrumo para o dia à minha frente. Pelo menos é domingo. Só preciso entrar às dez e meia. Não preciso me apressar. Coloco pão na torradeira por força de hábito, apesar de realmente não estar com fome. Consigo dar uma ou duas mordidas e deixo o resto. Eu me sinto sem vida e cansada, como

se uma pequena parte de mim tivesse morrido. Como se nada nunca mais fosse ficar bem. Como se eu tivesse saído do Jardim do Éden e não conseguisse mais voltar. Mas acho que essa é a questão, não é? Não há como voltar atrás. Porque não existe jardim, para começo de conversa. Faço uma careta ao me lembrar de Tilly, Archie e aquela vaca da Lenora dizendo ao Simon que ele estava sendo precipitado e que não deveria baixar seu padrão de vida ficando comigo. Apesar de eu provavelmente ter merecido. Se eu não tivesse fingido ser Cressida, eles nunca teriam tido a oportunidade de me desprezar. Pulo para dentro do chuveiro e, sem entusiasmo nenhum, lavo o cabelo. Também faço esfoliação: isso não é uma coisa com que eu me preocupe normalmente, mas a esfregação faz com que eu me sinta bem, é uma eliminação ritualística de pele morta. Saio dali, esfolada porém limpa, e procuro alguma coisa para vestir. Mas é claro que minha calça jeans ficou em Wiltshire. Juntamente com minha blusa nova, dois pares de sapatos e meu saco de roupa suja. Suspiro, mas então dou de ombros. Acho que realmente não faz diferença. Quer dizer, quem se importa com minha aparência? Eu é que não, com toda a certeza. Não hoje. Quando visto uma calça, vejo que estou olhando para meu vestido Alberta Ferretti. Pego e dou uma cheirada, tentando trazer de volta aquela sensação maravilhosa de quando Simon ficou tão excitado com o vestido que precisamos ir para casa no mesmo instante. Então, com tristeza, coloco na bolsa para levar embora. Precisa ser lavado a seco, digo a mim mesma, apesar de meu instinto ser deixá-lo como está: é a única prova que tenho de Simon e eu. Gradualmente, vou arrumando o apartamento, empilhando a roupa suja em um canto e, às dez, estou pronta para sair. Ainda bem que não estou preocupada com minha aparência, porque, de acordo com o espelho da sala, eu estou pavorosa. Julie apóia minha avaliação quando chego à loja. — Ai, meu Deus, Natalie, você está péssima! Laura, olha só para ela! Laura sai de trás da caixa registradora. — Natalie, eu pedi que você me ligasse mais tardo ontem — ela diz, em tom de acusação. — Eu sei — respondo, humilde. — É que... eu fui ao médico e depois fui dormir. E não acordei a tempo de ligar. Sinto muito. Nem reparo que continuo mentido. Parece que isso se tornou tanto parte de mim que contar a verdade é mais difícil do que inventar alguma coisa. — Sei. Com isso, Laura se afasta, e eu fico lá trocando olhares com Julie. — Não ligue para ela; só está P da vida porque acha que não vai conseguir as bolsas Stallioni. Parece que ainda não resolveram se este é o ambiente certo para a base de clientes deles. — É mesmo? Que pena. O Giovanni parecia legal. — É, bom, essa é a outra razão por que a Laura está passada. Parece que seu amigo Giovanni fez algumas perguntas sobre você. Ela acha que você deve ter falado mal da loja quando conversou com ele. — Ah, que maravilha. Parece que eu não consigo fazer nada certo. Julie olha para mim sem entender nada. — Tudo bem com você? — arrisca. — Não exatamente. Ontem foi um dia meio horrível — digo com um dar de ombros,

desesperada para que Julie não pergunte o que aconteceu. Estou conseguindo manter minhas emoções presas, e se Julie fizer algo como barulhos de comiseração, é provável que eu me desmanche em lágrimas. — Parece que sim -— Julie diz e assente com a cabeça. — Que engraçado, achei que você estava fingindo estar doente, depois de ter tentado convencer a Lucy a trocar de horário com você. Mas você está com cara de quem ainda deveria estar em casa hoje. Que bom que a Lucy não trocou, hein? Se não, você passaria sua folga de fim de semana deste jeito. Dou um sorriso fraco. — Pelo menos vou fazer as clientes se sentirem bem consigo mesmas — digo e dou de ombros. — Acho que é mais provável que você as espante. Quer que eu faça uma mágica com maquiagem? Sou muito boa com a cobertura, sabe como é. Olho para Julie, cheia de dúvidas. O negócio é que eu estou gostando do fato de estar péssima. É assim que eu nie sinto por dentro, e é um tanto reconfortante saber que eu estou tão ruim quanto me sinto. Mas talvez esteja deixando passar algo aqui. Talvez se eu disfarçar os olhos inchados e vermelhos e a pele manchada, assim também vou poder esconder Simon, esconder o dia de ontem. — Você realmente acha que maquiagem vai dar jeito nisto? — Ah, faça-me o favor. Você algum dia já me viu com pele de ressaca? Sacudo a cabeça. A pele de Julie é sempre uma porcelana imaculada. — Bom, então, vamos lá embaixo rapidinho — ela olha para trás e diz para Laura: — Vamos lá para o estoque um pouco. Dê um grito se precisar de algo. Obediente, sigo Julie escada abaixo e me sento enquanto ela pega a bolsa e começa a remexer lá dentro. Então ela puxa meu rosto, passa um lencinho umedecido por toda a pele e começa a trabalhar. — Pronto — diz, em tom satisfeito, cerca de dez minutos depois. Viro-me para olhar no espelho estreito e comprido que Julie e Lucy costumam usar para ver como ficam com as roupas de marca que "pegam emprestadas" para sair e sorrio. Minha pele está clara de novo; meus olhos parecem olhos, e não pontinhos. Minhas bochechas parecem quase esculpidas, e parece que eu nunca tive uma única noite maldormida na vida. — Está vendo? — Julie prossegue, obviamente feliz consigo mesma. — Nada que um pouco de pancake não possa resolver. — Julie, você é fantástica. Eu realmente estou me sentindo melhor. — E quase me sinto mesmo. Olhando para mim mesma, toda bonita e renovada, faz com que eu sinta que as coisas não podem estar assim tão ruins, afinal de contas. Mas, antes que eu tenha oportunidade de ficar muito feliz, ouço Laura abrir a porta do estoque. Viro-me e encontro os olhos dela. — Não sei por que você está tão contente consigo mesma. Olho para Julie, que revira os olhos para mim. — Laura — ela diz, com paciência. — Só estou me assegurando de que a Natalie não vai espantar as clientes. Você não acha que ela ficou bonita? Laura fica olhando fixamente para Julie com frieza. — Tenho certeza de que ela ficou bonita — diz, em tom gélido. — E tenho certeza de que também fica bonita com este vestido. Eu quero saber o que este vestido está fazendo na bolsa dela. Laura está segurando meu vestido Alberta Ferretti. — Este vestido é meu! — digo, indignada, e vou até ela para arrancar o vestido de suas

garras. Mas ela o afasta de mim e aperta os olhos. — Seu vestido? — pergunta, com a voz suave. — E como foi que você conseguiu um vestido de oitocentas libras? — O meu namorado... o meu... o Simon. O Simon comprou para mim — digo, brava. — Devolve aqui. Laura recua. — Sei. E agora ele está amassado dentro da sua bolsa, com marcas de grama. Que interessante. — Eu ia levar à lavanderia, apesar de isso não ser da sua conta — digo, mal-humorada. — Ah, mas é da minha conta, sim — diz Laura, em tom gélido. — Veja bem, este vestido é exclusivo da Tina T no Reino Unido. Então, estou muito interessada em saber como foi que seu namorado comprou para você. — Ele comprou aqui! — digo, desesperada. — Na semana passada. Não comprou, Julie? Julie assente com a cabeça. — É verdade, Laura. Lembra o cara de terno? — Claro que lembro dele — diz Laura, com um brilho no olho. — E ele de fato mencionou uma namorada. Eu lembro, porque era um nome lindo. Cressida. Julie parece confusa e ergue a sobrancelha para mim. Estou tremendo: de raiva de Laura por me acusar; de medo que eu não pegue meu vestido de volta; e de ódio de mim mesma por permitir que isso aconteça. Por permitir que Laura jogue essa história de Cressida na minha cara desse jeito. — Eu não roubei este vestido — digo lentamente, conseguindo manter a voz baixa e calma. — O vestido é meu, e eu quero de volta. Laura olha para mim com um sorriso de desdém. — Muito bem — ela diz e me entrega o vestido. Não serve mesmo para a loja, no estado que está. Mas acho que talvez seja melhor você juntar suas coisas, Natalie. Não acha? Provavelmente é melhor que você se despeça da Tina T agora mesmo. Demora um instante para eu absorver as palavras. — Você está me mandando embora? — Acho que essa é a frase correta sim. — Beleza. Está tudo uma beleza. Bom, e você que se dane, aliás. Arranco meu vestido das mãos de Laura, subo a escada às pressas e saio da loja correndo, parando apenas para pegar minha bolsa. Eu odeio Laura. Eu odeio Notting Hill. Eu odeio... Para falar a verdade, mais do que tudo, eu odeio a mim mesma. Não vou direto para casa. Em vez disso, vou para o Hyde Park. É uma tarde quente de agosto, e o parque está cheio de famílias, gente patinando, cachorros e pessoas fazendo exercícios com seus personal trainers. O lugar está cheio de vida e paz ao mesmo tempo, e eu caminho até chegar perto do lago dos patos para me sentar. Foi a apenas cinco minutos daqui que fiz meu pique-nique de fim de tarde com Simon. Parece que foi há semanas, mas foi só no fim de semana passado. Não dá para acreditar como fui ingênua. Achando que tudo ia simplesmente dar certo. Que eu podia simplesmente passar o restante da vida fingindo que era outra pessoa. E agora eu coloquei tudo a perder.

Sento apoiada nos cotovelos, observando a cena. Grupos de patos rodeiam as criancinhas que lhes jogam pão, com pais nervosos atrás, assegurando-se de que nenhum pato vai pegar um pedaço da mão de seus queridinhos sem querer. Eu gostaria de ainda ser criança. Gostaria de não ter absolutamente responsabilidade alguma. Mas talvez esse seja o meu problema. Talvez eu simplesmente precise crescer e dar um jeito em minha vida. Quer dizer, quem eu estava querendo enganar achando que simplesmente me mudaria para Ladbroke Grove e encontraria um emprego ótimo, novos amigos e uma vida completamente diferente? Chloe tinha razão: eu realmente virei a maior bundona. Nunca vou ser Natalie de Ladbroke Grove ou a porcaria da Cressida Langton. Eu nunca seria capaz de viver na cidade grande. Veja só o que aconteceu quando eu tentei: acabei criando uma rede enorme de mentiras que explodiu na minha cara. E afastei minha melhor amiga. Isso nunca teria acontecido se eu tivesse ficado onde estava. Se eu não tivesse tido a grande idéia de me mudar para Londres. O negócio é que eu sou Natalie de Bath. É isso que eu sempre fui, e é isso que eu sempre serei. Quanto mais cedo eu aceitar e retomar para a minha velha vida, melhor será para todo mundo. Dou uma última olhada no parque, então volto caminhando rápido para meu apartamento e coloco na mala as poucas roupas que sobraram. Posso pegar o restante das minhas coisas depois, raciocino. Tenho um contrato de aluguel do apartamento por mais três meses mesmo, e se voltar para a casa dos meus pais, vou poder pagar. A sensação de ter tomado uma grande decisão com tanta rapidez, sem deliberação, é ótima. Acho que e assim que a gente se sente quando toma uma decisão que é absolutamente a coisa certa a fazer. Meu Deus, é tão fácil! Deixo um bilhete curto para Stanley e escondo uma cha ve embaixo do vaso. Só porque vou voltar para Bath não quer dizer que Stanley precisa perder “EastEnders”. CAPÍTULO 16 — Então, você foi mesmo ao Soho House? Assinto. — E estava morando em Ladbroke Grove? — Estava. Tento parecer entusiasmada, para convencer a mim mesma de que sou dona do mundo. Estou no Rummers, o melhor pub de Bath, com Pete, meu namorado. É, isso mesmo: nós voltamos. E ele largou aquela vagabunda da Rebecca Williams. O negócio é o seguinte: eu percebi que é preciso aceitar seu lugar na vida. Eu não sou o tipo de pessoa que se adapta à vida agitada de Londres. E também não sou o tipo de pessoa que combina com Simon Rutherford: a família dele deixou isso bem claro. O Pete é legal, mesmo: tem boa intenção. E vamos começar a economizar para comprar um apartamento. A partir de segunda-feira, vou até ter meu emprego de volta; bom, mais ou menos. Não há nenhuma vaga para gerente de conta no momento, mas meu chefe disse que eu podia voltar ganhando um pouco menos para ver o que acontecia. São só duas mil libras por ano a menos do que eu ganhava antes, então não é tanto assim. E vou fazei basicamente o mesmo tipo de coisa, só que com menos responsabilidade. Roger deu ênfase a essa palavra ao telefone, como se estivesse sugerindo que eu preciso me esforçar um pouco nesse quesito. Mas tudo bem. Simplesmente me sinto agradecida por ter meu emprego de volta. — Você acha que poderia me levar lá? Sabe como é, se fôssemos passar um fim de semana em Londres?

Fico olhando para Pete sem entender nada. — Onde? — A Soho House, é claro! — Ele parece exasperado. — O James levou a namorada dele ao Babington House no mês passado. Eu preciso me dar melhor do que ele! — Talvez — digo, depois de uma pausa. Não quero voltar a Londres nunca mais, se puder, mas não preciso dizer isso a Pete. Meu Deus, faz mesmo só algumas semanas que eu estive lá? Parece que não se passou tempo algum... e, ao mesmo tempo, parece que foi há uma eternidade. Como se Londres na verdade só fosse um sonho. Quando cheguei em casa, passei os primeiros dias quase só dormindo. Parecia que eu estava dentro do meu próprio inferno particular (sem Simon, banida da Tina T) e dormir parecia infinitamente preferível a enfrentar a realidade. Arrastei-me para dentro do meu antigo quarto e meus pais me levaram xícaras de chá, sem fazer nenhuma pergunta. Foram realmente maravilhosos. Mas, depois de um tempo, comecei a sair para dar caminhadas pelo vilarejo. E logo comecei a me aventurar por Bath. Li meu livro em Queen Square, esticada na grama e aproveitando o solzinho de fim de tarde. Passei horas na abadia, pensando sobre tudo e sobre nada. Então esbarrei com Pete em uma loja, e saímos para tomar um café. Disse a ele que eu tinha voltado e ele nem fez piada por as coisas não terem dado certo. Só disse que estava com saudade de mim e perguntou se a gente podia voltar. E eu disse que sim. Sem mais nem menos. Nada de rodeios, nada de indecisão. Tudo faz parte da nova eu. Ou melhor, da velha eu. A verdadeira eu. De volta ao lugar a que pertenço. — Está preocupada que eu apareça na frente dos seus amigos de Londres? — Pete sorri, olhando por cima do meu ombro. Viro-me e vejo Rebecca Williams entrando no pub. Ela me vê e rapidamente olha para o outro lado. — Não vá ficar com ciúme agora — Pete diz e dá uma piscadela quando eu me viro de novo para ele. — Ela já era. Eu sempre preferi você mesmo. Terminamos nossos drinques e saímos do pub. Caminho até Pulteney Bridge e olho para o rio, na direção de Bristol. Eu e Chloe costumávamos tentar caminhar até lá; são só trinta quilômetros. Mas nunca chegamos muito longe. Acho que nós não queríamos ir a Bristol de verdade; só gostávamos da idéia de caminhar ao longo do rio e chegar a um lugar completamente diferente. Talvez minha mudança para Londres tenha se dado por causa disso. Respiro fundo. O clima está agradável e o rio é lindo. Quanta paz... — Acho que vou voltar para casa caminhando — digo a Pete. — A noite está linda. — Não seja louca — ele diz, coloca um dos braços ao meu redor e me leva para longe do rio. — Estou com o Saab do meu pai. Com relutância, permito que ele me guie até o carro, e voltamos em silêncio até o vilarejo. — Então, a gente se vê no fim de semana — Pete diz com um sorriso e se inclina para me dar um beijo de boa noite. — Claro — digo toda animada e movimento meus lábios ao encontro dos dele. Não sinto nada, mas não é surpresa nenhuma. Não sinto nada desde que voltei para casa. Nem chorar eu chorei. Só fiquei levemente entorpecida. E sabe o quê? Assim as coisas ficam muito mais fáceis. Caminho lentamente até a porta de entrada e olho para a casa com tristeza. Este é o lugar onde eu cresci, onde passei anos sonhando com um futuro reluzente e cheio de glamour,

oportunidades incríveis e grandes conquistas. E agora eu voltei, depois de ser demitida de um emprego em uma loja de roupa. Como foi que isso aconteceu? Será que foi minha culpa, por querer coisa demais? Será que eu simplesmente devia ter ficado aqui, agradecida com o que eu tinha? Ergo a chave para abrir a porta, mas a porta abre antes de eu chegar até ela e meu pai aparece ali. — A noite foi boa? — ele pergunta e me dá um abraço. - É, não foi má — digo e dou um beijo nele. Acho que nunca me senti assim tão agradecida aos meus pais como nos últimos dias. Eles não me pressionaram nenhuma vez para dizer por que voltei para a casa deles pela primeira vez em mais de oito anos; nem mesmo minha mãe, que obviamente estava louca para saber tudo o que aconteceu. Em vez de perguntas, me ofereceram muita comida caseira e espaço para eu fazer o que quisesse, o que se concentrou basicamente em assistir a programas anódinos na TV e levar o cachorro para passear. Muitas vezes. — Você... hum, tem visita — ele diz, em tom grave. — Então, por favor, não faça barulho, porque sua mãe está na cama, com dor de cabeça. Meu coração pára. Visita? Quem viria me visitar a esta hora, em uma noite de quinta-feira? Sinto uma onda cie animação e pavor percorrer meu corpo enquanto imagine-se Simon poderia ter me achado e vindo até aqui pedir uma explicação, para oferecer seu perdão, para fazer as coisas ficarem bem de novo. Mas, obviamente, isso é impossível. Ele nem sabe qual é meu verdadeiro nome. Em vez disso, quando entro na sala, encolhida em cima do sofá que meus pais compraram no ano em que eu nasci, está Chloe. — Eu, hum, soube que você tinha voltado — ela dizs pouco à vontade, quando meu pai fecha a porta atrás de si e nos deixa para conversar em particular. — É — consigo dizer. — Você... quer conversar sobre o assunto? Fico olhando para ela, cheia de incerteza. Será que ela está sendo sincera? Ou será que só veio aqui para me espezinhar, para descobrir quanto eu estraguei tudo? — Simplesmente achei que estava na hora de voltar — digo, de maneira nada convincente. Não tenho certeza se já estou pronta para falar sobre o assunto. — Certo — diz Chloe; então ela se levanta e começa a caminhar na minha direção. — Desculpe, Natalie. Sinto muito mesmo por aquele fim de semana. Eu estava... Ah, sei lá. Acho que estava com inveja. Ou algo assim. Eu, só me senti estranha por você ter outra vida, sabe? — Você se sentiu estranha? — pergunto, incrédula — Como você acha que eu me senti? Fiz de tudo para deixar você toda impressionada e ver como eu era sofisticada c... ah, você não faz idéia. Estamos bem pertinho uma da outra agora, olhando bem nos olhos uma da outra. — Acho que eu não fazia idéia mesmo. Pelo menos, estou certa de que não entendo o que você está fazendo de volta a este lugar. Achei que você tinha tudo o que sempre quis. — Eu tinha — digo e, ao falar, sinto uma lágrima surgir no meu olho. — Mas também não tinha. Foi só um monte de mentiras. Eu não sabia mais quem eu era. A lágrima se transforma em lágrimas, e logo já estou soluçando. Chloe estica a mão para me dar um abraço e me acompanha até o sofá, onde nós duas sentamos sem que ela me largue. — Sinto muito mesmo — digo a ela entre soluços, com os ombros arqueados ao finalmente

enfrentar a enormidade de como tudo aquilo tinha acabado mal de verdade, como sinto saudade desesperada de Simon. — Sou uma péssima amiga. — Não, eu é que sou uma péssima amiga. Deveria ter dado todo o meu apoio a você — diz Chloe, apertando meu ombro com uma das mãos. — Então, olha, conta para mim o que aconteceu. Que porcaria fez você voltar? — Chloe, lembra que você achou que eu tinha virado terapeuta de Reiki? Ela assente. — Bom, na verdade eu não virei. O Stan pensava que eu era terapeuta de Reiki, mas eu não sou. E não tenho a menor intenção de vir a ser. Chloe olha para mim bem de perto, então sorri, aliviada. — Porra, graças a Deus por isso — ela diz e suspira. — Caramba, Natalie, achei que você tinha se transformado em uma pessoa completamente diferente. Quer dizer, você nunca foi ligada nessas coisas. Mas por que o Stanley achava que você era isso? — Então, o que aconteceu com seus comentários de: "Ah, acho que terapia de Reiki é ótima"? — pergunto em tom de acusação, por entre as lágrimas. — Bom, eu não ia dizer para você que achava que tinha ficado completamente louca, ia? — Chloe sorri. — É, bom, eu quase fiquei completamente louca — digo com um dar de ombros. — Olha, se eu contar o que eu fiz, você promete não ficar achando que eu sou uma fracassada completa? Chloe assente, solene. Vou até o armário de bebidas e sirvo uma tacinha de vinho do Porto para cada uma de nós, para ganhar um pouco de coragem. Então, volto para o sofá e conto tudo a ela: começando com a carta e terminando com Lenora e Laura me mandando embora. Quando termino, Chloe está olhando para mim, completamente chocada. — Você simplesmente fugiu? — Bom, eu é que não ia implorar para ter meu emprego de volta. Quer dizer, ela tinha deixado bem claro que... — Do Simon, quer dizer — Chloe interrompe. — Você simplesmente largou ele e a família dele lá sentados na cozinha? As sinto. - Eu não consegui suportar a idéia de ficar – digo bem baixinho - Eles achavam que eu estava abaixo dele E eu não tinha como olhar para a cara do Simon depois de ter mentido a respeito de tudo para ele... Mas acho que foi melhor assim. Na verdade, ele não me amava mesmo: ele amava a Cressida. Ele amava aquela garota londrina que fazia Reiki, não a Natalie Raglan, a sem graça. - Você acha mesmo? - Chloe pergunta, incrédula. Dou de ombros. - E, de todo modo, o Pete terminou com a Rebecca. Acho que as coisas podem ficar bem entre nós Os olhos de Chloe se apertam. - Agora eu tenho certeza de que você está em estado de negação. Dou de ombros. - Talvez ele seja tudo o que eu mereço. Chloe pousa o copo. - Natalie, olha, o que eu vou dizer não é maldade: vê se da um jeito na sua vida, porra!

- Não sei do que você está falando - digo, brava O que eu estou dizendo é que você era a fim do Pete quando a gente tinha 14 anos, e eu concordo ele era bacana naquela época. Mas você o ultrapassou. Você o ultrapassou antes mesmo de vocês ficarem juntos mas você simplesmente não enxergava. Você ficou tão embasbacada por esse cara ter reparado em você que deu o trabalho de olhar de novo para ver que ele não tinha nada de especial, que ele é um cara que não vale na da. Não venha me falar sobre não merecer nada melhor, porque você merece: você merece muito mais. Mas caramba, voltar e cair direto nos braços dele... é uma porra de uma loucura. Fico olhando fixamente para Chloe. Por que todo mundo resolveu me atacar agora? — Eu só quero que minha vida volte ao normal — digo, um pouco na defensiva. — Ao normal? Com o Pete? Olha, o Pete é ótimo para ir ao pub e conversar sobre futebol, mas essa é a soma das capacidades dele. Você largou o Simon sem nenhuma pista de como encontrar você, e fugiu de todo mundo de Londres, e agora vem me dizer que está feliz de sair com um cara cuja única qualidade que o define é uma jaqueta de couro que, como especialista em moda, você devia perceber que está fora de moda há dez anos, além do fato de que a porra da Rebecca Williams é a fim dele. Sabe, às vezes eu realmente queria que você parasse de se preocupar tanto com o que as outras pessoas pensam... Chloe está toda nervosa e rosada, e os olhos dela faíscam. — Estou trabalhando com propaganda de novo... — digo com a voz fraca. — Você nunca quis trabalhar com propaganda, aliás! — Chloe diz, triunfante. Olho para meus pés. — Chloe, você já leu “Feira das vaidades”? Ela olha para mim, perplexa. — Já, mas o que isso tem a ver com qualquer coisa? — Bom, eu finalmente consegui terminar de ler quando voltei para cá — digo devagar. — E a Becky... bom, ela é manipuladora e vive fazendo tramóias, não é? E ela também leva o troco dela, não leva? Chloe assente, sem muita certeza. — Você não percebe? — pergunto, impaciente. — Eu sou a Becky. Eu menti para todo mundo, e agora estou recebendo o meu troco. Não mereço nada melhor do que o Pete. Para falar a verdade, nós somos perfeitos um para o outro. Ele mente para mim, e eu... bom, parece que eu minto para todo mundo... Minha voz vai sumindo quando começo a chorar. - Estou com medo, Chloe — consigo dizer depois de um ou dois minutos. — Não sei mais o que fazer. Minha garganta se aperta e Chloe me abraça forte. — Nat, você não é a Becky Sharp. Você não fica fazendo tramóia, de jeito nenhum. Certo, você mentiu. Mas só fez isso porque não queria que a gente se preocupasse. E você me levou ao Soho House só porque eu queria ir lá. É só que... às vezes você precisa parar de ficar tentando agradar a todo mundo. E você não pode simplesmente se esconder aqui pelo resto da vida. — Por que não? — digo, chorando, colocando para fora um mês de dor e raiva. — Ai, meu Deus, Chloe, eu estava apaixonada de verdade pelo Simon. Eu estou apaixonada de verdade por ele. E agora, nunca mais vou vê-lo. Simplesmente não posso agüentar. f — Acho que precisamos de mais uma bebida — diz Chloe, depois de um tempinho, e vai até o armário de bebidas. Quando chega lá, serve-se de mais uma taça de vinho do Porto, guarda a garrafa, pensa melhor e a traz consigo até o sofá.

— E como você acha que o Simon está se sentindo? — ela prossegue. — Agora? Acho que ele provavelmente me odeia — digo, baixinho. — Odeia ou só acha que você é completamente louca? — Provavelmente os dois. Ficamos lá sentadas em silêncio durante alguns minutos, as duas contemplando a situação terrível em que eu me meti. — Você não acha que devia entrar em contato com ele? — Chloe diz, afinal. — Quer dizer, nem que seja apenas para explicar por que você... bom, fingiu que era a Cressida? Sacudo a cabeça. — Agora não. Talvez daqui a um tempo, quando não for mais tão importante. Mas se eu tentasse falar com ele agora, eu simplesmente... bom, eu não ia conseguir. Acho que não tenho força suficiente para enfrentar a rejeição. Chloe assente com a cabeça. — Muito justo. Bom, é melhor eu ir para casa. Mas dê uma pensada, por favor. Fique aqui se quiser mesmo, de verdade. Mas não desista de tudo simplesmente. Não por enquanto, — Não estou desistindo — digo e dou um abraço apertado nela. — Eu finalmente tomei uma decisão e vou me ater a ela, só isso. Vou ficar aqui, onde é o meu lugar, e pronto. Mas olha, muito obrigada mesmo... por vir aqui, por escutar. Eu realmente estava precisando. Ela me dá um abraço rápido. — É, bom, da próxima vez que você tiver feito alguma tramóia maluca, você me conta antes, certo. E, Nat? Ergo os olhos. — O quê? — Eu sempre gostei mais da Becky do que da Amélia em “Feira das vaidade”... Consigo dar um sorriso de apreciação e observo enquanto Chloe se afasta da casa. É uma noite quente de verão, e ainda não estou com vontade de ir para apesar de já ser tarde. Em vez disso, deixo a porta aberta e me sento no degrau da frente para ficar olhando o jardim e absorver a paisagem da rua. Para todos os lados que olho, há casas espaçosas com carros salpicados de lama na frente. Dá para sentir o cheiro delicioso do alho silvestre e ouvir a canção da população local de gaivotas voando na direção do rio Avon. Sempre me senti tão desesperada para deixar tudo isto para trás e me mudar para a cidade grande, mas acho que não era um lugar tão ruim assim para crescer. As pessoas eram simpáticas e eu tinha permissão para andar de bicicleta pelas ruas sem que meus pais se preocupassem com a possibilidade de eu ser atropelada por um carro. Minha infância aqui foi ótima Ouço um barulho atrás de mim e me viro para ver meu pai parado ao corredor. — Quer sentar? — pergunto, afastando-me um pouco para o lado e abrindo espaço para ele no degrau. Ele sorri e se junta a mim. Ficamos ali em silêncio alguns minutos e então ele se recosta. — Nós íamos nos mudar para Londres, sua mãe e eu. Mais ou menos um ano antes de você nascer — ele diz pensativo. — É mesmo? — pergunto, chocada. — Mas você detesta Londres, não detesta? Ele dá risadinhas. — Agora eu detesto, mas era a fim quando era rnais novo... sabe como é, estava disposto a experimentar. — E por que não foram? - Bom, eu recebi uma proposta de emprego, que nos daria dinheiro suficiente para viver de maneira bem confortável. E sua mãe estava mesmo muito disposta... você sabe o que ela

acha de Londres. Mas daí ela começou a pensar melhor. Queria ter filhos. Nós dois queríamos. E ela achou que se sentiria solitária em Londres, com todas as amigas aqui. Eu não estava assim tão ansioso para sair daqui, então conversamos sobre a questão e resolvemos ficar aqui. — Mas eu achei que a mamãe estava desesperada para se mudar para Londres, não? Meu pai faz uma pausa. — Acho que sua mãe não teria gostado realmente de Londres. Ela gosta da segurança do lar, sabe como é. Uma coisa é ler livros emocionantes e sonhar com uma vida repleta de animação, mas viver essa vida é algo bem diferente. — Mas... — Você e sua mãe não são muito diferentes, sabe? Vocês duas passam tanto tempo falando de Londres e de como seria emocionante. Não adiantaria nada dizer o contrário para você, porque não teria ouvido. — Então, você acha que eu errei de ir? — Claro que não. Acho que você tomou a decisão certa... Só espero que tenha tomado a decisão certa em voltar, só isso. Nenhum lugar é perfeito. Nenhuma vida é perfeita... há sempre altos e baixos. — Eu não queria decepcionar vocês — digo baixinho. — Você nunca nos decepcionaria — meu pai diz, bem sério. — Olha, eu sei que as coisas às vezes foram difíceis. Depois do James... depois que seu irmão morreu, foi muito doloroso ver você tentando compensar a ausência dele, tentando ser tudo para todo mundo para preencher o vazio. Você foi tão forte, Nat, foi uma soldadinho e tanto. Fez tudo o que a gente pediu e muito mais... até aprendeu a andar de bicicleta sozinha porque eu tinha acabado de ensinar ao James quando ele... ficou doente. A sua cabecinha sábia lhe disse que eu poderia ficar chateado de ter de ensinar a você; que aquilo poderia me trazer lembranças dolorosas. E, sabe, acho que você estava certa. Mas agora não precisa mais fazer isso. Nós amamos você tanto... tanto que você nem faz idéia. E queremos o que é melhor para você. E para ninguém mais. Pego a mão do meu pai. — Eu também, pai. Só que eu não sei mais o que é. — O segredo da vida é descobrir quais são as coisas importantes, Nat. Algumas coisas não valem a pena o comprometimento nem o sacrifício... por outras coisas, vale a pena abrir mão de tudo. Penso a respeito disso por um instante. Mas, antes que eu possa dizer qualquer coisa, meu pai se levanta e volta para dentro de casa. — Está na minha hora de dormir — ele diz, então faz uma pausa. — Natalie, não sei por que você voltou, e não preciso saber. Mas tenha certeza de que o sacrifício valeu a pena, certo? Tenha certeza de que é por uma boa razão. Então ele dá um beijo no topo da minha cabeça e sobe a escada para ir dormir. Fico sentada ali à porta de casa durante séculos. James era o meu super-herói antes de morrer. Dezoito meses mais velho do que eu, ele era loiro, bonito, falante e brilhante. Todo mundo o adorava: eu mais do que qualquer pessoa. E daí ele teve leucemia, e nada mais foi igual. Imagino como ele seria agora. Continuaria sendo meu herói, disso eu não tenho dúvida. Talvez pudesse me dizer o que fazer agora. Ou talvez ele me dissesse que eu preciso pensar um pouco por mim mesma. Talvez ele me diga que não adianta nada fugir de tudo (primeiro para Londres, depois de volta a Bath, inventando histórias quando as coisas não andaram do jeito previsto em vez de encarar meus medos). E talvez meu pai tenha razão. Talvez eu tenha passado a vida toda tentando compensar

James no meu subconsciente. Talvez agora esteja na hora de colocar minha vida de novo nos trilhos. Mas onde? Será que eu fico aqui ou volto para Londres? Londres é um lugar ótimo, eu sei disso. Suponho que o Éden vem em formas e tamanhos diferentes, em momentos diferentes. E talvez eu ainda não esteja bem pronta para a paz do interior mais uma vez. Mas encarando a coisa de maneira realista, o que há na cidade grande para que eu volte para lá? O que meu pai estava falando sobre comprometimento e sacrifício? Bom, acho que ficar aqui vale a pena. Nunca mais ter de encarar Simon é uma boa razão. Perder meu emprego também é uma razão bastante decente. Não, não há dúvida, eu tomei a decisão certa. Pelo menos, acho que tomei. Talvez. — Natalie, querida, tem uma ligação. Para você. Minha mãe está andando de um lado para o outro em meu quarto quando abro os olhos lentamente. Sinto-me exausta, como se não tivesse dormido, e no entanto dormi: estava sonhando com a escola e com minha professora mais assustadora, a Srta. Adams, fazendo perguntas, e eu não sei as respostas... Sempre sonho com isso quando estou preocupada com alguma coisa ou quando tenho uma entrevista de emprego ou algo assim. Então, não sei por que sonhei com isso ontem à noite. — Será que você pode pedir para quem for retornar a ligação? — Peço a ela e volto a enterrar a cabeça embaixo do edredon. — Eu já tentei, mas a mulher na linha foi muito insistente — minha mãe diz, aborrecida. — Quase sem educação, para falar a verdade, mas acho que os bons modos já não são mais importantes... Sigo-a às cegas para fora do meu velho quarto e pego o telefone. Enquanto desce a escada, ela pergunta: — Quer um chá? E eu assinto, agradecida. — Alô? Minha voz está desesperadamente rouca, então limpo a garganta e tento de novo. — Desculpe. Alô? — Natalie? Puta que o pariu, ainda bem que é você. Caramba, garota, você é difícil de achar! É Julie. — Julie! Como você está? Hum... como foi que arrumou meu telefone? — Não foi fácil, isso eu vou dizer — ela diz, mal-humorada. — Mas que porra você está fazendo em Bath? Caramba, você nem sabe o estresse que foi achar você. O Alistair e eu ficamos batendo na sua porta, e um velho abriu... sinceramente, Natalie, você tinha de ter visto nós dois. Ficamos lá, olhando para ele. E ele nos disse que você se mudou para Bath! — É, bom, acho que é melhor assim. Não sei ao certo se ter ido para Londres foi uma boa decisão. Mas bom, eu perdi o emprego, lembra? — É, mas essa é a questão — diz Julie. — Você não perdeu mais o emprego. E precisa voltar, só para eu ouvir a Laura implorando. — O quê? Julie, você sabe tão bem quanto eu que a Laura não vai querer me ver de novo na loja.

— Pode ser que a Laura não queira, mas bom, pode ser que a Laura não tenha muita escolha. — Como assim? — Isso é coisa demais para o meu cérebro sonolento absorver. De que diabos a Julie está falando? — Lembra o seu amigo Giovanni? — Aquele italiano? Ele não é exatamente meu amigo, Julie, e não é culpa minha se ele não quer vender as coisas dele na Tina T. — É, bom, mas o negócio é que ele quer, sabe? Ele vai deixar a Laura revender as bolsas e os sapatos dele. Uma nova linha. Exclusiva. Só tem uma condição: ele quer que você seja responsável pelos produtos dele, a vitrine e tudo. E a Laura está cuspindo sangue. — Eu? — Quase derrubo o telefone. — Mas eu estou em Bath! Julie solta um suspiro bem alto. — Meu Deus, garota, é o ar daí que deixou você assim ou sempre foi burra desse jeito? Ela começa a falar bem devagar. — Deixa eu explicar em palavras simples. Você tem de voltar de Bath. A Laura não disse para o Giovanni que você saiu da loja. Ele quer que você seja o contato dele. E a Laura está enrolando o cara porque não consegue falar com você e não sabe o que fazer. — Não! — engulo em seco. — Sim! — Julie diz, toda animada. — Olha, ela está precisando de você. E agora, graças a Deus, eu sei onde você está. Certo, vou dar seus telefones para ela, pode ser? E você pode dar uma de difícil. Fazer ela dar um aumento ou algo assim. Faço uma pausa. Tem uma vozinha dentro de mim urrando de alegria. Que deseja que eu vá fazer as malas e volte para Londres o mais rápido possível, para ver Laura implorando para que eu volte ao trabalho. Mas é claro que eu não posso fazer isso de verdade. Estou de volta a Bath, onde é o meu lugar, e vou ficar aqui, — Julie, olha, essa é mesmo uma boa notícia digo tentando convencer a mim mesma de que estou fazendo a coisa certa. — Mas acho que não vou poder retomar meu antigo trabalho. É só que... bom, eu preciso começar de novo, só isso. — Começar de novo? De que porra você está falando? Natalie, você só passou alguns meses em Londres e agora deixou a Laura na mira... E, aliás, você tinha dito que detestava a porra de Bath. — É, bom, as coisas mudam — digo, na defensiva — Vou dizer uma coisa, querida, você mudou é isso Olha, você é que sabe. Quer que eu dê seu telefone para a Laura ou não? — Não — respondo baixinho. — Obrigada, Julie, mas eu sei o que estou fazendo. — Espero que sim — Julie diz e desliga o telefone. Vou para a cozinha me arrastando. — Tem algum plano? — minha mãe pergunta ao colocar uma xícara de chá à minha frente. Sirvo-me de um pouco de flocos de milho e reflito sobre a pergunta dela. Eu tenho algum plano? Quer dizer de verdade, tenho? — Eu estava pensando em ir fazer umas compras Se você quiser ir comigo. Sua tia Liz vai dar uma festa na semana que vem e eu preciso de algo para vestir... Natalie, querida, está tudo bem? Tento assentir com a cabeça e abrir um sorriso, mas não adianta. Não estou bem. Estou o mais longe de bem que já estive na vida. Sinto-me como se fosse um vácuo, e que todas as

opções que se abrem à minha frente não são nada atraentes, e a culpa é toda minha, então nem posso culpar ninguém, e minha vida está praticamente acabada, até onde sei. Ergo os olhos desolada, enquanto lágrimas escorrem para dentro de minha tigela de cereal. — Não tenho plano algum — digo, toda triste. — Não posso voltar para Londres, e eu não amo o Pete, e provavelmente nunca mais vou ter nenhum plano... mas, sim, acho que fazer compras vai ser legal. — Por que você não pode voltar para Londres, querida? — minha mãe pergunta, puxa uma cadeira, senta-se ao meu lado e me dá um abraço. — Parecia que você estava tão bem lá... O que aconteceu, querida? — Eu simplesmente estraguei tudo — digo, cheia de pesar. Acho que minha mãe não precisa saber dos detalhes. — Estragou como? Vamos lá, eu sou sua mãe. Você pode me contar, sabe disso. Não vou ficar chocada. Mas não foi problema com drogas, foi? Você sabe que seu pai e eu sempre fomos compreensivos, mas drogas... bom, aí eu coloco meu limite... — Não foi problema com drogas — garanto a ela. - Bom, então não pode ser assim tão ruim, não é mesmo? — ela diz toda alegre, fazendo um carinho em minhas costas, como fazia quando eu era menininha. Olha, querida — ela prossegue. — Você se lembra do que o vovô costumava dizer quando estava vivo? Se não mata, engorda. Então, você tem saúde, tem um emprego ótimo na Shannon's, e sempre tem o seu pai e eu com quem contar. O que pode ser assim tão ruim? Ela tem certa razão. Quer dizer, não é assim tão ruim. Não quando se compara o meu problema com pessoas morrendo de fome e tal. Olhando para a coisa de maneira geral, acho que minha vida é bem boa. — Querem que eu volte para Londres — digo, fungando alto. — Para o meu trabalho, quer dizer. Mas não posso voltar. Quer dizer, não tem nada lá para mim... — Você tem o seu emprego de volta? Ah, graças a Deus — minha mãe diz e se levanta rápido. — Phillip! Phillip! A Natalie vai voltar para Londres! A minha mãe sai à procura do meu pai, e eu vou atrás dela. — Não foi o que eu disse — digo, bem assertiva. — Eu disse que não podia ir. Mãe, pára com isso, pode ser? Não posso voltar para Londres. Aliás, achei que você queria que eu ficasse aqui. — Ficar aqui? — Minha mãe olha para mim como se eu fosse louca. — Natalie, não seja boba. Se você quiser voltar para cá daqui a alguns anos, quando estiver casada e com filhos, então seu pai e eu adoraríamos. Mas voltar deste jeito, com este ar de resignação no rosto... ah, querida. Seu pai fica arrasado, sabe... Então, cadê ele? Phillip? Ela sobe a escada e meu pai aparece lá em cima. — Eu ouvi sua mãe dizer que você vai voltar para Londres, Natalie? Olho lá para cima irritada. — Não! Quer dizer, não sei... Quer dizer, talvez... — consigo dizer, fungando alto. Mas, em vez de me dar um abraço, como acho que vai dar, ele bate palmas, todo contente. — Que notícia maravilhosa! Eu posso levar você para lá, se quiser. Sabe como é, depois que você fizer as malas. Ele olha para mim cheio de expectativa, obviamente esperando que eu vá fazer as malas. Confusa, volto para a cozinha, tentando entender como uma conversa a respeito da merda que minha vida é terminou em uma conversa sobre eu voltando para Londres. Não posso voltar, posso? Tento me imaginar de volta à Tina T, saindo com Julie, assistindo a “EastEnders” com Stan,

e sinto uma pontada repentina. Talvez eu queira voltar para Londres. Mas e Simon? Será que serei capaz de enterrar meus pensamentos sobre ele com facilidade quando voltar? A menos que... a menos que enterrar meus pensamentos na verdade não seja a melhor opção. Sento enquanto minha cabeça funciona a mil, tentando decidir se realmente posso fazer o que estou pensando em fazer. Será que estou mesmo pensando em ligar para ele? Para explicar tudo? Parece brilhante de tão simples, absolutamente direto. Mas o que vai acontecer quando eu ouvir a voz dele? E se ele realmente estivesse apaixonado por Cressida Langton? O que eu, Natalie Raglan, tenho que Simon pode vir a querer? Mas, pelo menos, se eu ligasse, iria descobrir a resposta. Só preciso colocar um ponto final nisso, para que possa seguir com a minha vida. As palmas das minhas mãos suam intensamente, mas eu sei que preciso ir até o fim, agora mesmo, enquanto tenho coragem. Enquanto meus pais correm de um lado para o outro lá em cima, fazendo as malas, fecho a porta da cozinha sem fazer barulho e pego o telefone. Eu sei o telefone direto de Simon de cor, e disco antes que tenha chance de mudar de idéia. — Alô, aqui é Helen Adams. — Ah! Ah, desculpa, acho que liguei errado — balbucio e desligo o telefone. Saco. Devo ter discado um dos dígitos errado. Com cuidado, disco novamente. — Alô, aqui é Helen Adams. Em que posso ajudar? — Ah! Eu queria falar com o Simon — digo, indignada. Por que essa tal de Helen está atendendo o telefone dele? Quem é ela? — Simon Rutherford? Creio que tenha deixado a empresa. Posso ajudar? — Não! Quer dizer, por quê? E onde? Para onde ele foi? — Não sei, para dizer a verdade — Helen responde. — Ele saiu faz mais ou menos um mês. — Foi alguma decisão repentina? É que... eu sou só amiga dele — digo, tentando me explicar rapidamente. Estou com uma sensação ruim no estômago. Será que ele largou o emprego por causa de mim? Porque eu o magoei? — Repentina? Não, acho que não. Ele voltou a estudar. .. acho que quer ser professor, ou algo assim... -— Certo! — digo no tom mais alegre possível. — Maravilha. Bom, desculpe o incômodo. — Desligo e sinto uma espécie de tontura. Simon estudando para ser professor? Isso é ridículo. Ela deve tê-lo confundido com outra pessoa. Rapidamente, disco o número da casa dele. O telefone toca algumas vezes e então a secretária eletrônica atende. — Oi, aqui são Jezza e Caroline. Deixe o seu recado. Jezza e Caroline? Quem é essa gente? Largo o telefone e fico olhando para o aparelho. — Então, o que você está achando de voltar para Londres? — diz meu pai ao entrar na cozinha. — O quê? Ah, sabe como é. Quer dizer, ótimo. Ótimo de verdade — ouço a mim mesma dizer. — Certo, você está pronta? — meu pai pergunta, bem quando minha mãe entra, toda esbaforida. — Você está bastante ansioso para me ver ir embora, não está? — pergunto a ele. — Estou bastante ansioso para ver você feliz — meu pai diz, todo sério, e então me dá um beijo na bochecha.

Faço uma pausa. — Será que a gente pode ir por Wiltshire? — pergunto, com hesitação. — Não vejo por que não — meu pai responde. — Por quê? — Preciso falar com umas pessoas — respondo baixinho. — Para resolver uma questão pendente. CAPÍTULO 17 Ligo para Julie do carro. — Eu sabia que no fim você iria recobrar o juízo, porra — ela suspira. — Sinceramente, você é uma porra de uma perua dramática, sabe? Vou dar o seu celular para a Laura. Mas demore pelo menos um dia para retornar. Adoro vê-la sem saber o que fazer. Meu pai e eu não falamos muito durante o trajeto. Ele liga o rádio e, de vez em quando, cantamos juntos uma música do ABBA ou algo assim, mas, fora isso, ficamos praticamente em silêncio. Meu pai é muito bom nessa coisa de dar um apoio forte e silencioso. E, neste momento, eu não sei o que dizer. Só quando paramos na frente da casa dos pais de Simon é que resolvo que estou com vontade de falar; mas é só uma tática para evitar o que está por vir, e meu pai sabe disso. Provavelmente foi uma idéia idiota simplesmente aparecer aqui. E o coitado do meu pai... foi legal da parte dele se oferecer para me levar a Londres; desviar o caminho em um monte de quilômetros para passar em Wiltshire também. — Fale mais a respeito de quando você e a mamãe iam se mudar para Londres... — pergunto repentinamente. Mas meu pai se recusa a me dar trela. —Você vai entrar? — ele pergunta educadamente e desliga o motor. Respiro fundo e abro a porta. Até onde eu sei, pode ser que não haja ninguém em casa. Quer dizer, foi uma idéia ridícula aparecer aqui deste jeito. E, mesmo que estejam em casa, vai ser difícil quererem falar comigo, não é? Lentamente, aproximo-me da porta de entrada. Lembro-me da última vez que eu estive aqui... como tudo estava ensolarado e feliz. Todos aqueles cachorros e crianças. E agora sou só eu. Mas, antes que eu possa tocar a campainha, a porta se abre e o pai de Simon está na minha frente. — A Tilly achou que era você — ele diz, com um meio sorriso. — Então, desta vez você vai nos contar seu nome verdadeiro? Archie faz com que eu entre logo e nos sentamos no escritório dele. É muito mais formal do que os outros aposentos em que eu estive, e quase parece que estou sendo isolada do calor humano do restante da casa de propósito. Gomo se eu não merecesse entrar lá. Tilly me oferece uma xícara de chá e sai da sala. Volta alguns momentos depois com meu saco de roupa suja. — Hum, o Simon deixou isto aqui com a gente. Só por precaução. Sabe como é... — ela diz, a voz sumindo no final, obviamente sem saber muito bem o que dizer. Pego o saco, agradecida, e Tilly se senta, pouco à vontade. Tenho certeza de que olha para mim com reprovação, mas toda vez que olho nos olhos dela, ela meio que me lança um sorriso que me faz sentir pior do que se ela só ficasse ali olhando com ódio para mim. Isto é

quase pior do que encontrar o próprio Simon. Limpo a garganta. — Meu nome é Natalie — digo, sentindo-me como se estivesse falando a um grupo dos Alcoólicos Anônimos. — Eu quero explicar e pedir desculpas — prossigo, com a voz vacilando um pouco. Ergo os olhos e não obtenho reação nenhuma, então simplesmente prossigo. — Eu nunca tive a intenção de mentir para o Simon. Sobre meu nome, quer dizer. Eu só... Olha, eu estava morando no apartamento em que a Cressida morou. E recebi uma carta. Ela recebeu, quer dizer. E eu abri, porque estava solitária e entediada e... bom, mas ela recebeu uma carta para um encontro às escuras, da Lenora, sugerindo que ela entrasse em contato com um tal de Simon. Dizia que ele trabalhava no mercado financeiro e tal, e eu sei que não era eu que ela queria apresentar para o Simon, mas eu... estava um pouco solitária. Eu sei que não devia ter aberto, mas... bom, eu abri. — Uma carta para um encontro às escuras? É isso que você acha que aquilo era? — Archie pergunta, parecendo surpreso. — Bom, não sei... quer dizer, no começo eu achei que a Lenora poderia ser de uma agência de encontros refinada ou alguma coisa assim, mas era tão pessoal que eu achei que era uma amiga ou algo assim... e eu sei que ela estava tentando juntar o Simon com a Cressida, mas achei que a Cressida não receberia mesmo a carta, então não seria tão ruim se eu entrasse em contato com ele em vez dela... — Você entrou em contato com ele porque achou que a Lenora estava promovendo um encontro às escuras? - Archie diz, severo. —É. Não! Quer dizer, isso meio que aconteceu por acaso. Eu só... bom, convidei o Simon para sair — digo, nervosa. — Quando eu estava bêbada. Não... não que eu me embebede muito nem nada — enfatizo. Não quero que eles fiquem achando que eu sou uma bêbada, não é mesmo? — Mas, bom, eu simplesmente resolvi ligar para ele, e quando ele retornou, fiquei com medo demais de contar para ele quem eu era de verdade. Quer dizer, eu não achei que ele ia querer sair com uma desconhecida completa qualquer. - Mas não menti a respeito de nada mais. Tirando o negócio de ser terapeuta de Reiki, quer dizer. Mas isso não foi culpa minha. Foi do Stanley. Ele é meu paciente. Mas eu não faço Reiki nele nem nada, é só televisão... Archie e Tilly olham para mim, completamente embasbacados. Certo, Natalie, não se desvie do assunto, digo a mim mesma. — Sinceramente — prossigo. — Todo o restante era verdade... e eu queria contar para ele... só que não sabia se ele iria continuar gostando de mim se eu fosse Natalie e não tivesse uma amiga da família que era missionária... — A Lenora? — Archie pergunta, com um sorriso. — Eu não a chamaria exatamente de missionária. Mas ela gerencia um projeto de missionários. De Wiltshire. Vai para lá uma ou duas vezes por ano para ver como as coisas estão indo. — Ah, certo — digo, desconsolada. Archie olha para mim muito sério e, então, pouco a pouco, seu rosto começa a se abrir em um sorriso. — Você não estava atrás de respaldo financeiro, então? — O quê? — pergunto, sem entender. Do que Archie está falando? — A carta, Cre... desculpe, Natalie, não era, como você disse, para marcar um encontro às escuras. A Lenora na verdade escreveu para a afilhada para sugerir que ela me abordasse para que eu investisse na idéia de negócio dela. Um centro de cura por Reiki, ou qualquer coisa do tipo. E, antes que ela se dê conta, Cressida aparece dizendo que está apaixonada

pelo meu filho... — Estou apaixonada por ele — digo, cheia de certeza. E então, faço uma pausa. Alguma coisa que Archie disse simplesmente não encaixava. — Você? — pergunto, incrédula. — Por que então a Lenora deu o nome do Simon? — Não deu. — Mas... mas dizia "Simon". A carta dizia "Simon", e falava que ele trabalhava na Henderson... — Que é a firma para a qual continuo sendo uma espécie de consultor — Archie diz, agora com um sorriso aberto. — Diretor sênior, para ser mais específico. E eu me chamo Simon. Só que nunca combinou comigo, então meus amigos me chamam de Archie. E o meu segundo nome, sabe como é. Mas bom, eu sou o que se pode chamar de anjo dos negócios: sempre estou atrás de projetos novos para investir. Gosto de me manter ocupado, sabe? Sinto meu rosto ficar vermelho. — Então, não era uma carta para um encontro às escuras? — Não, mas parece que funcionou em vários sentidos — ele diz e dá um sorriso malicioso. — E você achou que eu tinha mentido para o Simon para conseguir o seu dinheiro? — A Lenora obviamente ficou preocupada quando descobriu que a Cressida estava hospedada em nossa casa. Principalmente porque a Cressida se mudou para Los Angeles há alguns meses — diz Archie, os olhos brilhando levemente. Engulo em seco. — Ela sabia? Quer dizer... vocês sabiam que eu não era a Cressida desde o começo? Os olhos de Archie brilham. — Nós não sabíamos, não. Não até comentar com a Lenora que você estava aqui. Ela veio na mesma hora. Achei um pouco estranho... mas foi só depois do seu... ah... do seu malestar que ela nos contou. Deixo a cabeça cair de vergonha. — Aposto que ela quis chamar a polícia — digo, cheia de tristeza. — Ela pensou mesmo no pior — concorda Archie, afável. — Mas nós não acreditamos nela. E o Simon com certeza não acreditou. É mesmo uma pena você não ter podido ficar para se explicar. — Eu queria me explicar — digo baixinho. — Mas aí ouvi vocês conversando sobre mim. Sobre o Simon baixar o padrão dele e tal. Simplesmente não pude enfrentar... não consegui sair... Examino Archie com atenção, em busca de uma reação, mas em vez de parecer culpado, ele parece absolutamente surpreso. — Do que é que você está falando? Nós não dissemos nada desse tipo! — Tilly diz, indignada. — Disseram sim, eu ouvi — digo, com muita segurança. — Vocês disseram que era uma decisão precipitada. E que ele estava baixando o padrão. — E achou que estávamos falando de você? —Archie diz, com um enorme sorriso. — Claro que sim — respondo, brava, incapaz de compreender o que é tão engraçado. — O que tudo bem, se é isso que vocês pensam... — Minha querida — diz Archie. — Dê um pouco de crédito para nós, pode ser? Estávamos falando a respeito da idéia do Simon de mudar de carreira, se quer mesmo saber. O Simon enfiou na cabeça que quer ser professor. Parece que ele passou vários meses querendo nos contar, e finalmente resolveu nos dizer na semana anterior ao início do curso preparatório. No fim de semana que você esteve aqui.

— Então, vocês estavam falando... — digo lentamente, minha cabeça anuviando-se com a idéia de que eu julguei tudo isso mal, muito mal... — ...da mudança de padrão de vida dele — Tilly diz, terminando minha frase para mim. — Pagar o financiamento do apartamento, esse tipo de coisa. — Estão falando sério? — Eu quero tanto acreditar neles... Dane-se: olhe só para eles. Claro que eu acredito. São as pessoas mais legais do mundo. — É, Natalie — diz Tilly, mal-humorada. — Não acredito que você achou que nós falaríamos de você desse jeito. Ela parece realmente aborrecida. — Sinto muitíssimo. — Levo as mãos à cabeça. Que beleza, Natalie. Você mente para o homem que ama você e depois insulta a família dele inteira. — Acho que nós podemos perdoar você, não podemos, Tilly? — diz Archie, cheio de generosidade. — Afinal de contas, você ficou fazendo malabarismo com dois nomes e um pouco de terapia de Reiki. Qualquer pessoa teria se encrencado. Os olhos dele estão brilhando, e eu sorrio agradecida. — E essa nova carreira do Simon — pergunto a ele. — Ele vai mesmo virar professor? Liguei para o trabalho dele c uma moça disse que ele tinha voltado a estudar ou algo assim. — É — diz Archie. — Até que estou começando a gostar da idéia agora. No início foi um pouco chocante, é claro. Mas aquele menino nunca se sentiu à vontade no distrito financeiro, sabe como é. — Eu me sinto a maior idiota — digo, humilde. — "Idiota" é um pouco severo demais, acredito. "Boba" deve ser uma descrição melhor — diz Archie, alegre. — De todo modo, da próxima vez você vai pensar melhor, não vai? Vai haver uma próxima vezs não vai? Olho para ele, nervosa. — O negócio é que... — digo, para sentir o terreno. — Eu não sei onde o Simon está... tem um cara chamado Jezza morando no apartamento dele. — Ah, Jezza, é mesmo? —Archie diz, distraído. — É, bom, ele alugou o apartamento por um tempo. Ele... ah, como é que se diz mesmo hoje em dia? Está fazendo um downsizing. É, é isso. Só enquanto estuda, sabe como é. Está em algum lugar de Shepherd's Bush, acredito, perto da faculdade. Então, não tenho certeza se tenho o endereço novo dele, mas eu sei o nome da faculdade... pronto, aqui está. Ele me entrega um cartãozinho em que está rabiscado "Newham College, Uxbridge Road, n° 255, Londres W12". — Sabe — diz Archie, quando eu me levanto para ir embora. — Acho que Natalie é um nome lindo. Combina com você. E tenho certeza de que o Simon vai achar a mesma coisa também. Ele me acompanha até a porta e me dá beijos nas bochechas. — Tem certeza de que não quer abrir uma clínica de terapias alternativas? Sacudo a cabeça. — Tenho certeza. — Que pena — ele diz despreocupado quando me acompanha até a porta, eu segurando com força meu saco de roupa suja. — Avise se mudar de idéia, certo? Volto para o carro em silêncio. Meu pai coloca uma das mãos no meu ombro. — Tudo bem com você? — pergunta para sentir o clima.

— Tudo bem. Estou ótima — digo, firme. —Acho que estou pronta para ir para casa agora. — Para casa? — diz meu pai, com preocupação na voz. — Achei que estávamos indo para Londres. — Foi o que eu quis dizer — digo com um meio sorriso. — Para Londres. Para a minha casa. Meu pai se estica e me dá um abraço. — Para casa então, Natalie. Para casa. Percorremos o interior inglês na direção de Londres, e fico olhando a paisagem e me lembrando de conversas com Simon. Lembro-me de ele dizendo que trabalhar no mercado financeiro não valia a pena. Imaginando se haveria coisas mais importantes. E agora ele encontrou algo mais importante. Estou muito orgulhosa dele. E desesperada para falar com ele, para me explicar. Ah, se pelo menos eu tivesse ligado antes... Se pelo menos eu não tivesse sido tão ridícula e não tivesse voltado correndo para casa... Chegamos a Ladbroke Grove e eu desço do carro. — Quer subir? — pergunto ao meu pai, mas ele balança a cabeça. —A sua mãe e eu viremos fazer uma visita daqui a uma ou duas semanas, quando você estiver instalada. Agora é melhor eu voltar. — Obrigada, pai. De verdade. Ele assente com a cabeça e sorri para mim. — Lembre-se do que Winston Churchill costumava dizer. —- “Keep buggering on”? — digo, com um sorriso. — É isso aí. Sua mãe e eu estamos muito orgulhosos de você, Natalie. Dou um último abraço nele, então pego minha mala e caminho na direção do apartamento. Ao subir a escada, ouço o som conhecido da TV vespertina saindo do meu apartamento. Sem surpresa nenhuma, quando abro a porta, vejo Stanley sentado no sofá, olhando para a tela, com uma xícara de chá na mão. — Cressida! — ele diz, levantando-se de um pulo... ou com o movimento mais próximo de um pulo que uma pessoa da idade dele pode fazer. — Natalie — corrijo. Stanley parece confuso. — Cressida, é muito bom tê-la de volta. Mas eu achei... achei que tinha ido para não voltar. — Eu sei — digo, largando minhas coisas. — Stanley, olha, tem muita coisa que eu preciso contar. Uma rede complicadíssima de mentiras e... — Uma rede complicadíssima de mentiras? Bom, acho que isso exige uma xícara de chá, você não acha? — Stanley interrompe. — Você me conta sua história e eu a informo sobre os últimos acontecimentos de “EastEnders”. Você não vai acreditar no que a Janine andou aprontando. Sorrio, agradecida. Enquanto Stanley prepara o chá, conto a ele toda a história deplorável, desde a carta de Lenora até ela ter aparecido na casa de Archie e Tilly, meu retorno a Bath e minha conversa com Archie e Tilly. Espero que ele fique chocado, ou aborrecido, mas ele só dá risada. — Você não entende, Stanley — digo a ele, perturbada pela reação. — Não sou nem terapeuta de Reiki. Eu menti para você... Com isso, Stanley dá ainda mais risada. — Querida, você acha que eu não sabia? Eu vi que você não era terapeuta de Reiki no

minuto em que entrei em seu apartamento. Coisa demais amontoada, nada de mesa de massagem, nada de nada. Mas você fez mais por mim do que qualquer terapeuta alternativa. Você me proporcionou o que eu realmente queria: companhia. E parece que você deu a Simon o que ele realmente queria também. Todo esse negócio de nome não importa, sabe? O que importa é a pessoa. Olho para ele, cheia de dúvidas. — Então, você acha que o Simon vai me perdoar? — Perdoar? Claro que vai. Minha cara, a vida é curta demais para não aproveitar cada oportunidade que aparece. O Simon sabe disso: é por isso que encarou uma carreira nova. Parece que você precisa conversar com ele. Se ele for um camarada sensato, vai compreender. As pessoas fazem coisas curiosas pelo coração. É isso que significa ser humano, sabe? Esfrego a nuca, ciente da tensão que vem se acumulando em meus ombros o dia inteiro. É fácil para Stanley dizer que Simon vai compreender... mas o que é que ele sabe na realidade? — Sabe, a Bess morreu hoje. Hoje faz dois anos Stanley prossegue. — E sabe o que eu recebi pelo correio hoje? Ele faz um gesto na direção da mesinha de centro, onde um envelope aberto repousa. Com hesitação, pego e olho o conteúdo. É uma carta da prefeitura. — Permissão do plano-diretor — diz Stanley, meio riu do, meio à beira das lágrimas. — Permissão do plano-diretor para a loja. A Bess passou dez anos tentando conseguir isto, e dois anos depois que ela morre, chega. Parece que houve uma mudança de regulamentação ou algo assim... Olho para Stanley, chocada. De repente, sinto-me imensamente egoísta de ter me preocupado tanto com a possibilidade de Simon não me receber de volta com braços abertos... Stanley não tem esse luxo com o amor de sua vida. — Sinto muito — consigo dizer, no final. — Ah, não sinta. Esta é a lei do dane-se — Stanley diz, pesaroso. — A Bess deve estar olhando para mim agora, ficando brava porque eu não vou realizar o sonho dela. Mas não dá. A gente não pode viver o sonho de outra pessoa, não é mesmo? Ele olha para mim como se eu fosse capaz de responder. Como se eu pudesse saber mais do que ele. — Não — respondo, com cuidado. — Acho que cada um tem de fazer o que o deixa feliz. — E você? O que a deixaria feliz? — Stanley pergunta. — Ficar com o Simon de novo? — É — digo, com muita ênfase. — Mas acho que tem uma outra coisa. — Ah — diz Stanley. — Isso parece interessante. Mas não é outra viagem a Bath, certo? - Não — digo, sorrindo. — Não é Bath. É só que o Simon me provou que é possível mudar as coisas. Ele foi atrás do sonho dele, sabe? E isso me fez perceber que é preciso fazer as coisas acontecerem, não ficar esperando que aconteçam com você. Não quero mais fazer o que outras pessoas acham que eu deveria fazer... nem o que outras pessoas podem achar que eu deveria fazer. __ É verdade — diz Stanley. — Então... __ Então vou estabelecer um plano de ação. __ Um plano de ação — Stanley diz, assentindo com a cabeça muito sério. Um plano de ação para ter minha própria loja — explico. — Se o cara da marca Stallioni está tão a fim de que eu me envolva com os produtos dele, talvez esteja interessado em eu gerenciar uma concessão dele durante alguns anos. Preciso estabelecer alguns objetivos

para mim mesma, e trabalhar para alcançá-los, sabe? Stanley sorri para mostrar que sabe, sim. - Eu podia até entrar na fila de espera para uma barraquinha na feira de Portobello — prossigo. — Sabe como é, para dar o primeiro passo. Foi assim que o cara da Monsoon começou, sabe? Um dia, uma barraquinha, no outro dia... __ Uma lojinha? — diz Stanley, com os olhos brilhando. __ Exatamente! — repondo, feliz. - Ou você podia pular a parte da barraquinha e ir direto para a idéia da loja — Stanley sugere. Olho para Stanley, cheia de incerteza. __ Não é exatamente grande — diz Stanley. — Mas tem permissão do plano-diretor. E fica em uma parte muito boa de Notting Hill, bem na esquina de Westbourne Grove. Tem algumas coisas ruins... tipo o velho chato que mora no andar de cima, mas ele até que não é mau depois que você conhece... A voz de Stanley vai sumindo e os olhos dele brilham quando entendo o que ele está dizendo. A loja dele. A loja de antigüidades que ele tinha com Bess. Aquela para a qual ele acabou de obter permissão do plano-diretor. — Você não pode estar falando sério — digo em tom de cochicho. — Não tinha como estar falando mais sério - Stanley diz. — Mas eu não poderia... quer dizer, eu não saberia por onde começar com uma loja de verdade... — Claro que saberia. E eu posso ajudar se você quiser... eu costumava fazer a contabilidade e o planejamento do antiquário. Na verdade, eu bem que gostaria de ter alguma coisa útil para fazer. Fico lá, parece que estou presa ao sofá, com pensamentos disparando dentro da minha cabeça. Claro que eu não posso fazer isso. Será que posso? Consigo ouvir a voz de Archie em minha cabeça, dizendo para eu entrar contato se precisar de financiamento, afinal de contas. A voz de Julie falando que Giovanni quer que eu seja responsável pela linha de sapatos dele. E se eu conseguisse fazer Julie e Lucy virem comigo... Sinto um enorme sorriso se fixar em meu rosto, e para Stanley, cujos olhos reluzem. — Com certeza é algo em que pensar, hein? — ele diz, sorrindo, feliz. — A Bess ficaria feliz. — Vou pensar sobre o assunto — digo, séria, tentando segurar a animação. — Você sabe que é uma péssima influência para mim, não sabe? — Na minha idade — Stanley diz, de sacanagem — eu considero isso um enorme elogio. CAPÍTULO 18 Uma semana e meia de árdua labuta depois, ligo para Laura. Julie, que se revelou uma gerente de negócios fantástica, além de uma ótima demonstradora de roupas, tem vindo ao meu apartamento toda noite para discutirmos detalhe por detalhe, e agora estamos prontas para começar. Obviamente, escolhemos um dia para ligar em que Julie não foi trabalhar. Assim, ela pode ficar sentada ao meu lado enquanto eu falo, para ouvir cada palavra. — Oi, Laura! — tento parecer nervosa, não cheia de satisfação e malícia. Passei a manhã toda me preparando para este telefonema. Se eu parecer convencida demais, vou entregar o jogo muito rápido. E isso estragaria toda a diversão. — Natalie, ah, que bom que você voltou. Ouvi dizer que esteve viajando?

Nunca ouvir Laura soar tão agradável. Parece que ela se transformou em outra pessoa. Alguém de quem quase dá para gostar. Mas só quase. —É — digo, em tom despreocupado. — Eu quis sair de Londres um tempo. — Julie me lança um olhar e eu quase caio na risada, mas consigo me segurar. — Que boa idéia! — Laura diz, toda alegre. Eu gostaria que ela parasse com essa camaradagem falsa: está começando a me deixar mal. — Então, bom — ela prossegue. — Eu estava aqui pensando se você pode dar uma passada na loja. Para conversar sobre seu futuro na Tina T. Quase faço uma observação ácida a respeito de como eu não tinha futuro nenhum na Tina T da última vez que nos falamos, mas mordo a língua. Este não é o momento para retrucar. — Bom, neste momento eu estou um pouco ocupada, mas quem sabe posso dar uma passada no começo da semana que vem? — digo, da maneira mais despreocupada possível. — Que tal na terça? — Mas é daqui a mais de uma semana — Laura diz, ríspida. — Qual é o problema de amanhã? Ah, agora sim. Esta é a Laura que eu conheço. — Sinto muito, Laura, mas tenho algumas coisas para fazer. O primeiro dia livre que eu tenho é terça-feira. Julie revira os olhos e sorri, então faz uma ótima imitação de Laura perdendo a paciência. — Ótimo — ouço Laura dizer. — Que tal na hora do almoço? — Para mim, no almoço está bom. Nós nos vemos na terça. Desligo o telefone e ouço meu coração batendo alto. — Você conseguiu! — diz Julie, animada. — Certo, agora eu vou falar com o Stanley. Peguei algumas informações sobre o projeto que preciso passar para ele. Quando ela sai, tiro Laura da minha lista. Ainda preciso passar nosso plano de negócios para Archie, mas isso pode esperar: ele já tem montes de informação no momento. Nesse ínterim, tem uma outra pessoa para quem preciso ligar. Pego o telefone de novo e ligo para o número que Julie concordou em arrumar para mim, rabiscado em uma nota da Tina T. — Hum, alô... é o Giovanni? É? Ah, que bom. Olha, aqui é a Natalie Raglan. Pode ser que você não se lembre de mim... ah, lembra? Ah, que ótimo. Bom, eu estava pensando se posso passar aí amanhã para falar com você. Tenho uma proposta de negócio a fazer... Na tarde da terça-feira seguinte, Stanley insiste em me acompanhar até a Tina T. Ele prometeu que vai ficar esperando do lado de fora, mas diz que se sente tão envolvido na trama que quer ver o que vai acontecer em primeira mão desta vez. Aperto a mão de Stanley para ter sorte antes de deixá-lo bem à porta e entrar. Tanto Julie quanto Lucy estão na loja quando eu chego, e piscam para mim quando Laura me cumprimenta. — Natalie, como é bom vê-la. Você parece bem! Dou um sorriso doce para ela. Ela olha para mim cheia de incerteza, então me leva até o provador que usa para clientes particulares. — Café? Chá? Quem sabe uma taça de vinho? — Não precisa, obrigada — digo em tom agradável. — Ótimo. Bom, olha, como eu disse ao telefone, quero falar com você sobre seu futuro na Tina T. — Achei que eu não tinha futuro algum — digo, sem parar de sorrir.

Laura lança um olhar para mim. — É, bom, todo mundo diz coisas que não tem intenção de dizer às vezes. Só acho que talvez possamos reavaliar a situação. Faço uma pausa e fico olhando para ela. O rosto dela parece rígido, como sempre, e as roupas estão praticamente penduradas nos ossos. - Reavaliar a situação? — termino por dizer. — Achei que você tinha deixado bem claro que não queria mais olhar para a minha cara. Ouço um arroubo de gargalhada. Julie e Lucy obviamente estão à porta do provador, ouvindo cada palavra com atenção. — Natalie, veja bem — Laura diz com um tom falso de irmã mais velha. — Eu gostaria de resolver a situação, se você for razoável. Posso oferecer seu antigo emprego de volta se você quiser começar na segunda-feira. E pode mos então discutir a questão das roupas. — A questão das roupas? — O empréstimo de roupas. Obviamente, vou ter de fazer buscas nos objetos pessoais para acabar com a prática. — Certo... — digo. — Mas e a questão da ofensa? Os olhos de Laura se apertam. — Como assim? Acho que não ouvi muito bem — ela diz com a voz estrangulada. -— As ofensas que você faz às funcionárias. Acusando-as de coisas que elas não fizeram, e nem se dando o trabalho de conferir primeiro. Fico aqui imaginando se vai tomar alguma providência sobre isso também? O rosto de Laura se fecha. — Sua pirralha — diz, brava. — Como ousa falar comigo assim? — E que tal tomar uma providência sobre o fato de ser uma vaca total? — pergunta Julie, aparecendo no meio da cortina. — Como ousa! — diz Laura, em tom gélido, com os olhos falseando. — Se você acha que vou admitir esse tipo de linguagem em minha loja, está muito enganada. E pode esquecer o emprego, Natalie. Eu mudei de idéia. Já você, Julie, vai ter de pensar com muito cuidado sobre o seu futuro. — Para mim, está ótimo —Julie diz, com muita calma. — Eu também — diz Lucy. — Você? — Laura estrila. — Lucy, fique onde está. — Mas eu também acho que você é uma vaca — Lucy diz, com os olhos arregalados. — Muito bem, pode juntar seu seguro-desemprego ao destas outras duas — Laura grita. — Natalie, saia daqui. Julie, Lucy, é melhor pensarem em uma boa desculpa para esse comportamento. — Então, nossa conversinha terminou? — pergunto a Laura, enquanto Julie e Lucy se dirigem para a porta. Ela fica olhando para mim, obviamente confusa. — Vocês não podem simplesmente ir embora! — ela grita. — Podem ir pedindo desculpa agora mesmo. Ah, mas veja bem, isso não vai ser o correto, certo? — digo, toda doce. — O negócio é que a gente pode sair sim. E estamos de saída. — Também, já estava na hora — Julie diz, para garantir. - Mas... Julie — Laura implora. — Eu preciso de você para cuidar da loja. Vamos conversar sobre isso. Sinto muito por ter me excedido. Vamos conversar sobre suas perspectivas... — Eu adoraria, mas estou um pouco ocupada no momento — diz Julie, toda alegre. — Emprego novo, horizontes novos. Sabe de uma coisa? Quem sabe você me convida para

tomar um drinque um dia desses, e aí a gente conversa sobre minhas perspectivas? — Como assim, "emprego novo"? — Laura assobia por entre os dentes. — O seu emprego é aqui. — Ah, mas veja bem, não é, não. Porque você acabo de me demitir. Não foi? — diz Julie, indo direto ao ponto — Demitiu mesmo, ela tem razão — diz Stanley acabou de entrar. — Eu ouvi tudo através cia cortina ele explica. — E quem é este? — Laura pergunta, olhando para Stanley como se ele fosse a criatura mais reles do planeta. — É o meu sócio — digo, com um sorriso aberto Um deles, na verdade. Acho que você conhece o outro? O Giovanni Tivoli? O rosto de Laura parece uma tempestade. — Isto não vai ficar assim — ela cospe. Pode escrever: Isto não vai ficar assim. — Para falar a verdade, Laura — diz Julie, enquanto todos saímos da loja. — Acho que as coisas não vão ficar assim mesmo, para você. E imagino que você nem vai querer saber o que vai acontecer. Descemos Ledbury Road em silêncio, dobramos à direita em Westbourne Grove, depois de novo à esquerda. O meu coração bate forte dentro do peito. É isso. Este é o momento com que eu sonhei a vida toda. Eu em minha própria lojinha. É só que Archie e Giovanni ainda não a viram. Pareceu tão fácil: falar com Stanley, falar com Giovanni. Julie e Lucy disseram sim de cara. E agora vai mesmo acontecer... respiro fundo e tento escutar os outros conversando e dando risada. Vai dar tudo certo, fico repetindo para mim mesma como se fosse um mantra. A lojinha é adorável. Só espero que os outros também achem... E se acharem pequena demais? Ou fofa demais? E se Stanley mudar de idéia? E se Giovanni odiar? Depois de alguns minutos, Stanley pára. — Bom, aqui está. Todo mundo pára e olha para a casinha à nossa frente. Quando vejo a pedra pintada de branco e a plaquinha dizendo "Antigüidades Finas", solto um suspiro de alívio. Cada vez que eu a vejo, parece melhor. Continua sendo a casinha/lojinha mais linda que eu já vi. E parece que Julie e Lucy também pensam a mesma coisa. Stanley pega a chave e nós todas entramos. Dou um abraço rápido em Stanley. — Você tem certeza mesmo? — pergunto pela milionésima vez. Ele revira os olhos. — Eu gostaria que você parasse de me fazer essa pergunta — responde, impaciente. Faço um chá, então, nervosa, olho para o relógio. Giovanni deve chegar a qualquer minuto; Archie também. Os dois ficaram animadíssimos com a perspectiva de abrir uma loja na casa de Stanley para vender a nova linha de roupas e bolsas da Stallioni, com preços mais acessíveis, além da nova coleção de calçados; mas será que vão enxergar o potencial que eu enxerguei no ex-depósito de Stanley? Potencial bastante para financiar a empreitada e pagar o preço da reforma? Minhas mãos estão suando um pouco quando ouço a porta se abrir com um rangido e me viro para ver Giovanni entrando na lojinha apertada. O rosto dele está muito sério. — Acabei de passar na Tina T — ele diz. — Parece que você aborreceu a gerente, não? Trocamos olhares acanhados.

— Bom, eu nunca gostei dela mesmo — ele diz, com um sorriso. Alguns momentos depois, Archie chega. — Esta é a loja? — ele diz, parecendo surpreso. Assinto, e meu coração se aperta. Ele está decepcionado: obviamente, esperava muito mais do que uma loja de antigüidades minúscula, e vai dizer não. — Vai precisar de muito trabalho — Archie diz, bem sério. — Claro que sim —Julie responde, sem fazer rodeios. — Mas nós fizemos três orçamentos, e os empreiteiros acham que fica pronta em seis semanas. — Ela espia Archie enquanto ele absorve as vigas de madeira e o assoalho desgastado. — E imagine só quando ficar pronta! — digo, cheia de animação. — As araras de roupas ali; os sapatos ali; a caixa e uma vitrine aqui onde eu estou, o estoque e o escritório no fundo... é perfeito, simplesmente perfeito! Giovanni está andando pela loja toda, batendo em paredes e parando na frente das janelas. Stanley pisca para mim e coloca o braço ao redor dos ombros de Archie. — Você viu as propostas de extensão, não viu? — ele pergunta. — Lá no fundo, temos mais o dobro do espaço desta sala. — Então Sorri, cheio de confiança. — Desculpe... permita que eu me apresente. Eu sou Stanley Wickett. E vocês devem ser Archie e Giovanni — ele prossegue. — Permitam-me lhe mostrar o projeto. Archie e Giovanni assentem, e fico observando, nervosa, enquanto Stanley lhes mostra o projeto que Bess fez há tantos anos. — Achei que a área das instalações poderia ser o provador — digo, hesitante, seguindo os três homens que vão até os fundos, assentindo com muita seriedade e ou vindo Stanley. — Provadores, entendo — diz Archie, pensativo, enquanto troco olhares nervosos com Julie e Lucy. Por favor, não permita que tudo isso tenha sido por nada, imploro em silêncio. Por favor, permita que tudo dê certo. Archie e Giovanni dão prosseguimento a seu passeio lá fora e mais cinco minutos se passam antes que eles voltem para dentro. — Bom — diz Archie, finalmente —, imagino que você tenha suas projeções de lucro e perda e de fluxo de caixa prontas? Olho para Julie, que se esforçou muitíssimo na última semana para delinear o projeto financeiro. Ou melhor, esforçou-se muitíssimo para fazer Jason delinear nosso projeto financeiro. De olhar para ele, a gente nunca pensaria, mas o cara é contador experiente. Simplesmente resolveu que não gostava de números e foi trabalhar em um bar. O que Julie não sabia até recentemente é que Jason é dono do Canvass o que foi muito prático quando nós precisamos de experiência financeira e finesse empresarial. — Tudo está aqui, revisado — ela diz e entrega alguns papéis para Archie. — Três anos. É necessário um certo investimento, mas como pode ver, as margens de lucro nos anos quatro e cinco devem ser muito boas. Olho para ela, maravilhada. De algum modo, este projeto transformou tanto Julie quanto Stanley em empresários cheios de confiança. Parece que passaram a vida toda apresentando idéias e preparando projeções financeiras. Archie estuda as folhas de papel durante alguns minutos. — E sua linha de produtos com preços mais acessíveis... seria exclusiva para esta loja? — Archie pergunta a Giovanni, e ele assente. — E o nome da loja? Todo mundo olha para mim.

— Bom, eu meio que estava pensando em Bess &Stanley — digo, hesitante. — Sabe como é, igual a Graham& Green, ou Farrow and Ball... Stanley parece um tanto embevecido. Archie assente de novo, então abre um enorme sorriso. — Bem-vinda ao mundo dos negócios, Natalie. Fico muito feliz de participar. Então, quando é que os pedreiros podem começar a trabalhar? — Não, não, não — diz Giovanni, com um sorriso de orelha a orelha. — Primeiro, vamos tomar um champanhe, certo? — Tira da pasta uma garrafa e algumas tacinhas de plástico. — Com certeza — digo, toda alegre, e então dou um beijinho na bochecha de Giovanni. — A Laura estava muito mal-humorada? — pergunto a ele. — Ela é completamente louca — responde Giovanni, sorrindo. — Dá medo de tão louca. Examino o espaço da lojinha enquanto minha cabeça fica tonta por causa do champanhe. Todo mundo aqui... bom, eles meio que são minha família, na verdade. Londres é tão bonita e acolhedora quanto o interior. Só que de um jeito diferente. E apesar de eu ter achado que tinha vindo para Londres para fugir dessa coisa de comunidade, percebi que a vida fica bem sem sentido se isso não existir. Acho que as coisas não são preto no branco, afinal de contas. Achei que Londres era bacana e maravilhosa; Simon achou que era cheia de gente só fazendo pose. Então, quando as coisas deram errado, achei que Bath era segura e Londres, assustadora. Mas isso não é verdade, de jeito nenhum. A cidade grande tem muitas comunidades pequenas, com pessoas ótimas: só é necessário encontrá-las. E no que diz respeito a Bath... bom, o Pete era tão pretensioso quanto Serge, a seu modo. Nem o certo e o errado são tão exatos assim. Quer dizer, abrir aquela carta: foi certo ou errado? Se não tivesse aberto, nunca teria conhecido Simon. Nem Stanley. Nenhum de nós estaria aqui. Talvez Chloe tenha razão: não mereço um final deplorável, como Becky Sharp, por ter aberto aquelas cartas, no fim das contas. Mas por não contar a verdade a Simon... bom, essa é uma outra questão. Depois de terminar o champanhe, nós nos amontoamos em um café para conversar sobre os planos e a decoração. Archie nos explica a estrutura de propriedade (vamos todos ser sócios, com participações diferentes) e como o negócio vai ser gerenciado. Stan vai supervisionar os pedreiros; eu sou responsável por compras e promoção; Julie e Lucy vão cuidar da loja e fazer os registros; e Giovanni tem uma equipe que vai acompanhar o projeto de decoração. Julie imediatamente começa a trabalhar, determinando uma cota de roupas para cada uma de nós. — Para podermos promover as roupas junto aos clientes — ela explica, com um sorriso. Finalmente, Archie anuncia que precisa voltar a Wiltshire, e todos nos levantamos para ir embora. Quando Archie se inclina para me dar um beijo de despedida, sussurra: — E o Simon? — É aonde eu vou hoje à tarde — sussurro de Ele parece surpreso, e pego a mão dele rápido. — Eu queria provar a ele que sou capaz de perseguir rneus sonhos também — digo, tentando explicar por que ainda não liguei para Simon. Penso em completar com: "Estou morrendo de medo de que ele tenha arrumado alguma outra namorada e que simplesmente vá me rejeitar de cara", mas resolvo guardar esse sentimento para mim mesma. Archie assente, com muita seriedade. — Não espere muito tempo — diz com um sorrisinho e aperta minha mão. Quando todo mundo vai embora, tomo um chá rápido com Stanley, que se oferece para me acompanhar até em casa, mas digo a ele que vou ficar bem sozinha; então volto, como que

entorpecida. Não dá para acreditar que aconteceu. Tenho uma loja. Subo lentamente as escadas na direção do meu apartamento, perdida em meus próprios pensamentos. Tão perdida que dou um encontrão em Alistair, que desce a escada apressado. — Então, como foi? — ele pergunta, todo animado. Não me surpreende ele já saber de tudo: de acordo com Julie, eles não falam de outra coisa desde que eu sugeri a idéia a ela há algumas semanas. Sorrio. — Bom, a Laura ficou bem P da vida. — Que emocionante — ele diz, dando um abraço em mim e um beijo na minha bochecha. — E, assim que precisarem de algumas idéias criativas para fazer propaganda, já sabem quem procurar! — Alistair, você já está no primeiro lugar da nossa lista. Mas nós não vamos ter muito dinheiro para gastar, sabe? — Pague em sapatos — ele diz, sério. — Sabe, ou em cintos, se o dinheiro estiver mesmo apertado. Então, olha, quer ir ao Canvas? Estou a fim de comemorar. Sorrio para mim mesma. Não há muito tempo, meu único desejo era que Alistair me convidasse para a balada. Não acredito quanto as coisas mudaram. — Eu adoraria, Alistair, mas preciso ir a Shepherd's Bush. — Coitadinha — Alistair faz cara de arrasado. — Bom, não fique muito tempo lá, pode ser? Não queremos que você invente outra viagem para Bath, certo? — Não vou inventar, prometo — respondo, sorrindo. — Bom, tudo bem, então — Alistair concorda, fingindo estar desconsolado, mas com um brilho nos olhos. — Mas, assim que você voltar, junte-se imediatamente a nós, certo? E, com isso, ele acena em despedida e saltita escada abaixo na direção da porta. CAPÍTULO 19 Parada na frente dos portões da escola, fico surpresa com as lembranças que me voltam do meu tempo de estudante. De ficar vadiando com Chloe no abrigo das bicicletas, de sair correndo pelos corredores por estar atrasada para a aula de matemática. E aqui estou eu, na frente de outra escola, sem querer entrar, na verdade. Nada muda, penso, tristonha. Minha esperança era ter encontrado Simon na faculdade preparatória de professores: a moça da recepção me disse que ele estava "em campo". Só quando eu me recusei a sair se ela não me dissesse exatamente onde eu poderia encontrá-lo foi que ela concordou e me deu o endereço da St. Luke's, a escola onde Simon está trabalhando durante algumas semanas para adquirir experiência prática. Se fosse mais longe, eu provavelmente teria convencido a mim mesma para voltar outro dia. Mas era logo ali na esquina. Uma caminhada de cinco minutos. Mas uma hora já se passou e eu não estou mais próxima de entrar. Em algum lugar deste prédio, penso com meus botões, está Simon., dando aula para um monte de garotos barulhentos de 16 ou 17 anos. Gomo é que ele agüenta? Fico imaginando. Será que ele está no controle ou está todo mundo tirando sarro da cara dele? De repente, sinto-me incrivelmente protetora. Simon é tão corajoso por enfrentar algo completamente novo, abrindo-se ao ridículo. Eu nunca ousaria fazer algo assim. Enfio as mãos bem no fundo dos bolsos da jaqueta (depois de desabotoá-la para que Simon veja que eu estou usando o vestido Alberta Ferretti) e começo a me deslocar lentamente na

direção da entrada da escola. É um lugar enorme, muito maior do que a escola em que eu estudei em Bath. Deve haver mais de mil alunos aqui. Abro a porta e me aproximo de uma menina que não pode ter mais de 14 anos à toa no corredor. — Eu... hum... estou procurando o Simon Rutherford — digo, esperançosa. —Acho que ele dá aula de economia. Ela olha para mim com o olhar vazio, então aponta para um lance de escada. — O horário está afixado ali — diz e se afasta. Nervosa, subo a escada. Gomo informado, ali em cima há um quadro de avisos com um horário plastificado, de acordo com o qual o segundo ano do ensino médio estava tendo aula de economia na sala B16. Desço a escada e caminho pelo corredor, examinando as plaquinhas na porta das classes. A12, A14... Cadê o B? Percorro o corredor de novo e subo a escada. Claro que a primeira sala com que deparo é B1. Isso significa que Simon pode estar a apenas 15 salas de distância. Dá para sentir que minhas mãos estão suadas. Eu gostaria de encontrar um banheiro antes para ver como eu estou. Ele já me amou uma vez, digo a mim mesma enquanto caminho na direção da sala B16. Archie disse que ele ficaria felicíssimo por me ver. Não tenho nada com que me preocupar. De repente, dou uma freada brusca. Ouvi a voz dele. Com certeza é Simon. Diminuo o passo e me dirijo para a voz na ponta dos pés; depois, aproximo-me hesitante da porta da sala B16. Ele está na frente, com um paletó de veludo cotelê. Meu Deus, ele até está com cara de professor. Há cerca de vinte alunos na sala. E todos estão escutando. Ninguém está rindo nem trocando bilhetinhos nem nada. Olho para o relógio. Faltam dez minutos para o fim da aula. Vou ficar aqui esperando, ele sai logo. Mas assim que me viro para olhar para o corredor, vejo uma professora subindo a escada. E se ela perguntar o que eu estou fazendo aqui? E se me fizer ir embora? Antes que ela repare em mim, faço uma rápida avaliação da situação e viro a maçaneta da porta da sala B16. Simon ergue os olhos, assustado. Vários alunos viram a cabeça e ficam olhando para mim. — Hum, continue -— digo, tentando parecer autoritária, e me sento na carteira mais próxima da porta. Os alunos perdem o interesse e olham para Simon, cheios de expectativa. — É, certo, bom — ele diz, obviamente confuso e perdendo o fio da meada. Ele encontra meu olhar, eu assinto com a cabeça e sorrio, dando o maior incentivo possível. — Então — ele prossegue. — Realmente, é uma questão de segurança. Os mercados reagem não à informação, mas à interpretação da informação. Keynes argumentou que valeu a pena pagar um homem para fazer um buraco e outro para tapá-lo, apenas porque a circulação do dinheiro fez a economia andar. Pois não, Patrick? Um garoto na fileira da frente está com a mão levantada. Ele a abaixa e empurra a cadeira para trás um pouco. — Então, é tipo, se você tiver mesmo segurança, só, as minas caem em cima de você. Tipo, sabe como é, mesmo que você não tenha grana nem nada. Simon assente, sério.

— Muito bom exemplo — ele diz, e Patrick tenta esconder sua satisfação. De repente, penso em uma coisa e levanto a mão. Simon olha para mim sem entender muito. — Pois não? — pergunta. — Eu estava aqui imaginando — digo com hesitação, tentando decidir o que vou falar. — Você está dizendo que os fatos podem ser menos importantes do que as aparências? — Depende — responde Simon, parecendo um pouco chocado e desconfortável. — Às vezes, criam-se bolhas econômicas em que, assim como a primeira bolha da internet, não há nada mais do que ar quente. De maneira geral, a vaca vai mesmo para o brejo se não tiver nenhum chão firme em que se apoiar em um boom. Ele parece tão seguro de si, tão sério... penso, orgulhosa. Está realmente fazendo estes garotos se interessarem por economia. Se eu tivesse tido um professor como ele, talvez tivesse de fato aprendido alguma coisa a respeito das forças de mercado. Mas, neste momento, sou eu que preciso despertar o interesse dele. — Pegue como exemplo o mercado imobiliário — insisto. — Uma casa vale tanto quanto alguém está disposto a pagar por ela, certo? — Certo... — diz Simon, olhando para mim com curiosidade. - E os anúncios classificados que as imobiliárias colocam no jornal... bom, nem sempre é tudo exatamente verdade, certo? Sabe como é, quando descrevem um armário como um Bijou pied-à-terre ou algo assim... Ouço uma risada de desdém de alguns garotos. Simon, parecendo se esforçar para manter a compostura, assente. - E o que você quer dizer mesmo? - ele pergunta com delicadeza. — O que eu quero dizer... – falo com a maior segurança que consigo. Fale sério, digo a mim mesma. Você é capaz de exprimir o que quer dizer... não é? _ Eu quero dizer que às vezes é necessário fazer as coisas parecerem melhores do que são. Sabe como é, até chegar a contar mentiras inofensivas, só para fazer com que as pessoas entrem para ver. Daí, se odiarem o lugar não vão comprar, certo? Mas se comprarem... bem, aí vai ter sido bom você ter feito parecer melhor do que era no começo, se não a pessoa nem teria ido ver... — O que isso tem a ver com economia, professor? - uma menina sentada perto do fundo pergunta a Simon. Hmm. Ela está tramando alguma. Lanço um olhar en viesado para ela. — Não tem muito a ver com economia... — começo a dizer, mas antes que possa terminar, o sinal toca e de repente a sala se enche com o som de cadeiras arrastando no chão e a conversa dos adolescentes que se levantam para sair. Alguns me olham de um jeito estranho quando passam por mim, mas eu retribuo o olhar, com ar de desafio, e eles logo perdem o interesse. — Leiam o capítulo dez do livro para a próxima aula — Simon consegue avisar antes que todos desapareçam e nos deixem a sós. — Na verdade, não tinha nada a ver com economia — digo, levemente na defensiva. — Acho que eu percebi — Simon diz. — Eu só queria explicar. Eu sei que menti para você, e realmente me odeio por isso. Mas eu só fiz isso porque não sabia mais o que fazer. Quer dizer, se eu não tivesse mentido, nunca teria conhecido você. E eu vivia tentando contar, mas sempre parecia que tinha alguma coisa para atrapalhar. Mas eu nunca menti sobre nada sério. Só... sabe como é... o meu nome.

— Foi o que o meu pai disse — diz Simon, obviamente confuso. — Ele me disse que eu devia escutar o que você tem a dizer. Eu... hum... ouvi dizer que seu nome é Natalie...? Assinto, encabulada. — Natalie Raglan. — Nome bonito. Combina com você. — Simon — apresso-me em dizer. Preciso colocar isso para fora antes de mais nada. — Você... está saindo com alguém? Quer dizer, se estiver, é só dizer que eu vou embora... — Não estou saindo com ninguém — ele diz baixinho e então meio que faz uma careta. — Mas isso não significa que você deva ficar com alguma idéia na cabeça. Você não tem noção do que me fez passar. Você simplesmente desapareceu. Ninguém sabia o que pensar. Eu não sabia o que pensar... Deixo a cabeça cair. — Nenhuma dessas está entre as minhas melhores decisões — confesso. — Mas na hora eu não sabia mais o que fazer. Achei que vocês todos me odiavam. — Que a gente odiava você? — Simon pergunta, incrédulo. — Eu nunca odiei você. Mas, caramba, faz semanas que não tenho notícias suas! — Eu sei. — Fico lá parada, desconfortável, por um instante. Ele parece tão magoado, e a culpa é minha. Mas eu só posso explicar. Explicar e esperar que, de alguma maneira, ele possa me perdoar. E se não perdoar, bom, pelo rmenos eu tentei. Respiro fundo. — A Cressida morava em meu apartamento antes de mim — explico. — E ela recebeu uma carta interessantíssima da Lenora, falando de você. Só que, na verdade, não era... parece que era sobre o seu pai. Mas eu não sabia disso... e eu sei que não devia ter aberto a carta dela, já que não estava endereçada a mim. Mas eu abri. E daí, eu não devia ter ligado para você... — Mas você ligou — Simon termina a frase para mim. — O rneu pai meio que me contou essa parte. Olha, eu não me importo se você se chama Cressida, ou Natalie, ou... — Mas o negócio é este: você tem de se importar — interrompo. — Eu me importo. Eu detestava quando você me chamava de Cressida. Eu achei que gostava... achei que ser Cressida era melhor do que ser Natalie Raglan. Parecia muito emocionante e tal. Mas eu não sou Cressida. E não quero que você goste dela. Quero que você me ame. Simon sorri com ternura para mim. — Certo — ele diz com suavidade. — Então, nunca mais vou chamar você de Cressida. Mas por que você fugiu daquele jeito? Por que não me disse? Ele parece tão magoado... — Eu achei... eu achei que tinha ouvido vocês falando sobre mim. Achei que seus pais não me consideravam boa o bastante para você. Agora tudo parece a maior idiotice. — Não era boa o bastante? Mas de onde você tirou essa idéia...? Na verdade, eles adoraram você... — Eu sei. Simon, eu fui realmente uma idiota. E fiquei com medo. E escolhi a saída mais fácil. Mas eu não conseguia parar de pensar em você e... andei pensando... que talvez você possa me perdoar. Simon olha para os pés. — Achei que nunca mais ia ver você. Achei... achei que você tinha fugido de mim. E por causa de experiências passadas, fiquei com a impressão de que nunca mais veria você. Ai, meu Deus. A mãe dele. De repente percebo como Simon deve ter ficado magoado. Eu

fui embora do mesmo jeito que ela. Sem dizer palavra alguma. Olho dentro dos olhos de Simon e, pela primeira vez, sinto que realmente sou capaz de enxergá-lo direito. Como se tê-lo visto magoado e confuso tivesse me feito compreendê-lo. E tivesse feito com que eu percebesse que não me importo se morarmos em Notting Hill, Wiltshire ou na Mongólia Exterior, desde que estejamos juntos. — Por favor, me aceite de volta — sussurro. — Eu fui idiota e egoísta e nunca deveria ter ido embora. Nunca mais vou fazer nada parecido com isso, prometo. E vou recompensar você... de alguma maneira... Simon faz uma careta e passa a mão no cabelo. Ficamos lá parados, em silêncio, por um minuto, enquanto eu rezo para que as coisas dêem certo e ele me perdoe. — Então, já que estamos conversando mesmo, tem mais alguma coisa que você quer me contar? — ele termina por perguntar. — Quer dizer, se antes você era homem, acho que eu mereço saber, não mereço? Sorrio, nervosa. Ele continua parecendo sério, mas acho que dá para ver um pequeno brilho nos olhos dele. Um bem pequenininho. — Tudo mais é verdade — digo, hesitante, porque não quero que o brilho desapareça, e então faço uma pausa. — Tudo menos a coisa da terapia de Reiki — digo depois de alguns segundos. — Na verdade, não sou terapeuta de Reiki. Simon parece levemente atordoado. — Mas o Stanley Wickett... ele sabe que você não é qualificada? Natalie, isso é extremamente antiético. Fico vermelha. Ai, meu Deus, o brilho se foi. Agora ele voltou a parecer confuso e levemente magoado. É uma combinação que mexe com meu coração e me dá vontade de abraçá-lo e fazer um cafuné na cabeça dele. Mas não posso fazer isso. E se eu continuar a contar a ele as coisas que fiz de errado, pode ser que eu não consiga nunca mais fazer nada disso. — Ele sabe... — digo, com precaução. — O negócio é que eu nunca cheguei a fazer uma sessão de Reiki com o Stanley. A gente... bom, se você quer mesmo saber, eu o apresentei à novela “EastEnders”. Ergo os olhos para Simon, para avaliar sua reação. Ele parece inteiramente estupefato. — Agora ele passa na minha casa quase toda noite — prossigo, com um dar de ombros. — Sabe como é. E... — respiro fundo. É melhor já dizer tudo agora. — ...foi ele que me convenceu de que eu devia abrir uma loja. — Uma loja — Simon diz, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Assinto com a cabeça. — Minha própria loja — digo, com um pouquinho de orgulho evidente na voz. — O seu pai é um dos investidores, e vamos vender as bolsas mais lindas que já se viu... Simon arqueia as sobrancelhas para mim e fica com cara de quem vai fazer uma pergunta, mas pensa melhor. — Achei que eu nunca mais ia ver você — ele diz, com toda a seriedade — Achei que você nunca mais ia querer me ver. — Gomo é que você pode pensar isso? — pergunta Simon, com suavidade, chegando mais perto de mim. — Acho que você é a mulher mais louca, mais irritante e mais imprevisível que eu já conheci. Mas você faz com que eu me sinta vivo. — Mas eu menti para você a respeito de tanta coisa... — gaguejo. — E eu nem sabia que você queria ser professor... — Bom, então parece que nós dois somos péssimos na comunicação, acho, porque pensei

que você queria abrir mão de tudo para se tornar terapeuta de Reiki. Agora Simon está rindo, e eu me aproximo mais dele, até quase encostar. Quero esticar a mão e pegar a dele, mas ainda me sinto meio sem jeito. Como se eu ainda não estivesse merecendo. — Meu pai também me disse que você achou aquela coisa toda de trabalhar no mercado financeiro meio desanimadora — ele diz, severo. Coro levemente. — Só falando de maneira relativa — explico. — Mas ser professor, por outro lado... é bem sexy. — Você gosta do visual de cotoveleiras de couro, então? — Claro que sim. É bem Paul Smith — digo, toda séria. — Vou ganhar muito menos dinheiro — diz Simon. — Mas vai ter mais tempo para fazer piquenique no parque — observo. -— Então, chega de mentiras? — Chega de mentiras — prometo. Simon sorri. — Diga uma coisa — ele diz, agora com o brilho firme no olho. — A Natalie Raglan beija tão bem quanto a Cressida Langton beijava? Uma onda de alívio toma conta de mim. Está tudo bem entre nós, penso, alegre. Vai ficar tudo bem entre nós. — Bom, não tenho certeza — digo, pensativa. — Suponho que o teste final seria... — Experimentar? — Simon interrompe e se inclina para me beijar. — Beijar, na verdade — sussurro quando os lábios dele encontram os meus. — Eeeeeecaaaaaa! — Erguemos os olhos rapidamente e vemos um grupo de garotos de 14 anos entrando pela porta. — Professor, que coisa nojenta! — um menino diz bem alto, e os outros morrem de rir. Simon se afasta com destreza e olha para mim como se fosse médico ou algo do tipo. — Acho que assim está bom. — Professor, o senhor estava beijando aquela moça — uma criança berra, com voz estridente. - Não, não estava — diz Simon, com firmeza. — Ela só estava com uma coisa no olho, e eu estava vendo se está tudo bem. Agora, meninos e meninas, sentem-se em silêncio e esperem até o professor chegar. — Vamos sair daqui — ele sussurra e pisca para mim. — Achei que tínhamos combinado que não ia haver mais mentiras e decepções? — digo com um sorriso e cutuco as costelas dele quando saímos da sala. — Obviamente, andei passando tempo demais com você — Simon diz com um sorriso. — Você deve ser má influência. — Não sou totalmente má... — retruco. — Você diz isso porque tinha boa intenção? — Simon sugere. — Exatamente... eu sempre tive a melhor das intenções — respondo e pego a mão dele quando chegamos aos portões da escola. — Mas às vezes vale a pena ceder à tentação... EPÍLOGO — Tem certeza de que eu estou bem? — pergunto a Simon, nervosa, olhando meu reflexo no espelho de todos os ângulos possíveis. Estou usando meu vestido preferido: o Alberta

Ferretti, aquele que ele comprou para mim. E apesar de eu saber que está perfeito, não consigo parar de me preocupar. — Você está linda — Simon sorri, passando segurança. — A loja também está. A festa vai ser ótima. Caminho até a unidade de display recém-instalada sobre a qual Simon está apoiado e jogo meus braços em volta do pescoço dele. — Você acha mesmo? — É só olhar ao redor — ele diz, sorrindo. — Está fantástico! Dou uma volta e deixo meus olhos passearem pela loja, absorvendo o assoalho envernizado, as araras imaculadas cheias de roupas lindas, a caixa registradora que toca uma campainha antiquada quando a gaveta abre (disfarçando um pacote de software de gerenciamento de estoque caríssimo que Julie e Giovanni insistiram em instalar). Até a placa lá fora é perfeita: latão antiquado em verde musgo e letras rosa-shocking. A partir de amanhã, a loja vai estar aberta ao público. — A que hora seus pais disseram que vão chegar? — pergunto, ansiosa. — Às oito. Na mesma hora que todo mundo. E, sim, tem vinho suficiente. E, não, não vai faltar comida. Enquanto fala, Simon aperta minha mão, e eu me encosto nele. Não sei o que eu teria feito sem ele nos últimos meses: sempre me escutava enquanto eu passava horas falando sobre bolsas, cores de parede e tipos de cortina de provador. Achei que a reforma da loja seria o que daria mais trabalho, mas foi só o começo. Apenas o número de decisões que Julie e eu precisamos tomar (desde o tamanho das araras até a propaganda, passando pelo nível do estoque) é de apavorar. Mas agora está tudo pronto. Agora está pronta para abrir. E, daqui a alguns minutos, a festa de inauguração vai começar. — Olhe só para vocês dois... parecem dois apaixonados! — ergo os olhos e vejo Julie entrar pela porta, parecendo Madonna na época de "Justify My Love" e "Vogue". Lucy vem logo atrás dela, com um vestido amarelo-limão justinho e salto verde luminoso, incrivelmente linda. — Fica mais bonita cada vez que eu olho — ela diz, toda contente, passeando pela loja e servindo-se de uma taça de vinho das mais ou menos cinqüenta que estão arranjadas em uma mesa na parte da frente. — Quer uma? Assinto. Ela traz quatro taças em uma bandeja e as coloca à nossa frente. Julie pega uma e vira de uma vez só. — Nunca estive tão nervosa assim na vida, caramba — ela explica com um sorriso desconsolado. — Não sei qual é o meu problema, sinceramente. — Gosto da maneira como você pensa — diz Lucy, e vira o vinho dela também. Meus olhos cheios de incerteza encontram os de Simon e ele pisca. — Concordo. Estamos precisando de um pouco de coragem proporcionada pelo álcool aqui. Então... vamos lá. Os olhos dele brilham quando vira a taça de vinho; então ele sorri para mim, e Julie e Lucy fecham o cerco. — Vira, vira, vira... Vira, vira, vira... — ficam entoando até que eu finalmente me entrego e tomo a taça toda de uma vez só. Em um minuto, minhas bochechas estão rosadas e eu me sinto levemente tonta. — O Giovanni ficaria horrorizado — digo, com um sorriso. — É vinho italiano, vocês sabem.

— Horrorizado com o quê? O que você está fazendo com o maravilhoso vinho italiano? Nós nos viramos rapidamente e vemos Giovanni, que acabou de chegar com Archie e Tilly. Julie se apressa para recebê-lo e, alguns minutos depois, o irmão de Simon chega com a mulher, Sarah. Em poucos minutos, a loja está cheia de gente se cumprimentando, beijinhos no ar e exclamações de "oh" e "ah" na medida em que mais e mais gente vai chegando e olhando a loja. Sinto Simon apertar minha cintura antes de desaparecer no meio da multidão, deixando-me sozinha para receber e cumprimentar à porta. — Meu Deus, isto aqui é fabuloso! — Porra, é mais fabuloso do que a Joseph! Sinceramente, estou com inveja! Alistair e Michael chegaram, e vão direto para o vinho, voltando logo para me dar beijos escandalosos nas bochechas. — Então, cadê a Julie? Ouvi dizer que ela veio de dominatrix e fiquei excitadíssimo — Alistair diz para ninguém especificamente enquanto examina o local. Aponto a direção certa para ele e me viro bem a tempo de ver meus pais chegando. Logo atrás deles vêm Richard, o aspirante a modelo, e Marie, a amiga de Lucy que estuda cinema. — Mãe! Pai! Aqui! — grito, abanando os braços toda animada e ignorando o olhar de desdém de Richard. Meu pai parece nervoso: está usando um paletó refinado com gravata, e olha para Julie, assustado. Acho que ele não costuma ver gente com coleira e meia arrastão com muita freqüência. Minha mãe, por outro lado, está estonteante. Arrumou o cabelo em um coque e usa um tubinho preto lindo, com um lenço dourado solto em volta do pescoço. Olha para a loja toda animada, e eu corro para dar um abraço nela. — Você está maravilhosa — digo, e ela abre um sorrisão. — Bom, não é todo dia que a gente vem a uma inauguração de loja em Notting Hill, não é mesmo? — ela diz atestando os fatos, tentando esconder sua animação. — Então, aquele estilista italiano sobre quem você falou já chegou? B quero que você também me apresente aos pais do Simon. Mas primeiro o estilista. E onde estão as bebidas? Só tem vinho ou também vão servir coquetéis...? Meu pai dá um sorrisinho. — Não se preocupe com sua mãe — sussurra. — Faz semanas que ela está ansiosa por causa desta festa. Acho que ela quer fazer caber toda a vida de Londres em uma noite. De verdade, disse que quer sair para dançar quando a festa acabar. — Sério? — pergunto, incrédula, mas meu pai só dá de ombros. - Ela está orgulhosa demais, sabe? — diz, com suavidade. — Nós dois estamos. Não poderíamos estar mais felizes por você. E esta loja é... bom, ela é... — Ele olha ao redor, desesperado para encontrar as palavras certas: moda não é algo de que ele realmente entende, e as roupas estranhas e maravilhosas em exposição obviamente são um pouco demais para ele. — Ótima -— escolhe, no fim. — Absolutamente ótima. Dou um sorriso e outro abraço nele. Minha mãe já se afastou e conversa toda animada com Alistair, que elogia o vestido dela. Meu pai revira os olhos e pisca para mim. — Ah, aqui está você. Viro-me e vejo Stanley parado ao meu lado. — Stanley! Estava mesmo imaginando onde você estava. Pegue uma bebida, rápido! — digo, toda alegre. — Você não conhece o meu pai, conhece? Meu pai parece incrivelmente aliviado por ser apresentado a alguém que não está usando

um boá de penas ou roupas de couro, e aperta a mão de Stanley com firmeza. — E uma honra enorme conhecê-lo — ele diz. — A Natalie falou muito de você. O que está fazendo aqui é maravilhosos sabe? Os olhos de Stanley brilham. — Ah, eu não fiz quase nada — ele diz, sorrindo, cheio de orgulho. — Mas tem razão, está mesmo maravilhoso. Só gostaria que minha esposa estivesse aqui para ver. — Eu também — digo baixinho, e pego no braço de Stanley. Ele sorri para mim, então se sacode um pouco e volta-se para meu pai. — É melhor deixar a Natalie fazer o que tem de fazer, não acha? Então, você mora em Bath — ele diz com ar jovial, pegando o braço dele e o conduzindo até o vinho. — Aquele lugar é adorável... Examino a loja em busca de Simon e o vejo conversando com Giovanni. Mas acho que seria mais justo dizer que Giovanni está "falando para ele". Giovanni joga as mãos para todos os lados, e Simon assente, sério. Ele vê que estou olhando e me dá um sorrisinho, como se dissesse: "Não faço a menor idéia do que este cara está dizendo", e eu dou uma risadinha. Adoro o fato de Simon não entender absolutamente nada de moda, de ser a antítese do bacana. E parece que todo mundo também adora isso. Quando ele e Alistair se conheceram, logo se deram superbem... quase fiquei com vergonha de ter achado que eles não teriam nada sobre o que conversar. — Olá, estranha! — Eu me sobressalto quando Chloe joga os braços em volta de mim e interrompe meus devaneios. — Chloe! Você está aqui! — dou um abraço de urso nela e pego sua mão, toda animada. — O que você achou? Diga a verdade, por favor! Gostou? Chloe olha ao redor, maravilhada. — Nat, isto aqui é simplesmente inacreditável. A sua própria loja. Você realmente conseguiu. E é claro que eu gostei. Meu Deus, está demais! Ela pega o meu braço e caminha pela lojinha, apertando-se por entre as pessoas para enxergar melhor o display. — Ai, meu Deus, que bolsas! — ela suspira. — Você tem razão... elas são mesmo lindas. -— E não são? — Michael diz, juntando-se a nós e dando um beijo em Chloe. — Espere até ver os sapatos. Alistair, olha quem chegou! — Estamos combinados para mais tarde? — pergunto rapidinho, antes que ela seja levada para longe, e ela assente. — Está perguntando se macaco quer banana? Claro que sim! — Ela me lança um sorriso exultante rápido enquanto Michael a conduz para a parte dos sapatos. Vou direto para onde está Giovanni, porque ainda não tive a oportunidade de cumprimentálo adequadamente, mas me distraio com uma voz que reconheço, mas não consigo localizar. Parece... mas não, não pode ser... pode? — Falando sério — ouço alguém dizer com um sotaque bem forte da região oeste do país. — Achei que você era modelo, não vendedora. — É mesmo. É Pete. E ele está tentando passar uma cantada em Lucy, que está com uma expressão no rosto de quem não está entendendo nada. — Certo — ela diz, sem muita certeza. — Bom, então, acho que é melhor... mim... circular. — O que você está fazendo aqui? — pergunto, incrédula, enquanto Lucy me dá um sorjisinho e corre na direção de Alistair, Michael e Chloe. — Também é bom ver você — ele diz, um pouco P da vida, então dá de ombros. — Eu não tinha nada para fazer e a Chloe disse que me dava carona se eu quisesse.

Olho ao redor e encontro Chloe. Ela olha para mim, olha para Pete e me lança um sorriso acanhado. — Mas, bom, você me deu o pé na bunda pelo telefone — Pete prossegue. — Achei que só homens fizessem esse tipo de coisa. —- Desculpe, Pete. Eu não queria magoar você — digo, séria. — Simplesmente percebi que minha vida era em Londres. — Não se preocupe com isso — ele diz, bem à vontade. — Dei uma boa catada de compaixão na Rebecca e também em uma amiga dela, a Sally, então no fim deu tudo certo. Mas sei bem o que você quer dizer a respeito de Londres. Nunca vi tanta mulher gostosa na vida. Acho que vou me mudar para cá. Olho para ele, com ar duvidoso. — É mesmo? — Não sei por que não. Não deve ser muito difícil, se você conseguiu, hein? — Com isso, o rosto de Pete se contorce em um sorriso e ele começa a rir. Dou um sorriso amarelo. - Caramba, aquela ali não é nada má, né? — ele diz depois que acaba de gargalhar. Sigo o olhar dele até a porta e fico paralisada. Ali, não exatamente dentro da loja, está Laura. Laura, a bruxa má de Notting Hill. Está vestida de preto, como sempre, com batom vermelho-sangue, e parece mais cansada do que o normal. Julie também a viu e está indo na direção dela. — Podemos ajudar? — diz bem assertiva. — Gostaria de falar com a Natalie — Laura diz, em tom gélido. — Bom, eu estou aqui — digo rapidamente, avançando. — Veio tentar estragar a festa, é? Porque você não vai conseguir. Laura olha para mim com cuidado. — Não vim estragar a sua festa, não. Vim aqui dizer uma coisa a você. — Bom, então diga — Julie fala, impaciente. Laura lança um olhar enviesado para ela e então se volta para mim. — O vestido — ela diz, depois de um tempo, sendo que cada palavra parece ser dolorosa de proferir. — Eu examinei o estoque, e parece que o vestido... parece que eu estava... que você não... — Que eu não o quê? — Que... o vestido era seu, afinal de contas. Meus olhos se apertam. Será que Laura está mesmo tentando, apesar de horrivelmente, pedir desculpas, reconhecer que estava errada? — Sim, era meu — respondo, simplesmente. — Bom, é só isso. Desculpe, Natalie. Desculpe por você e eu... por as coisas terem sido tão difíceis. Faço uma pausa. Isso é inesperado, e não sei bem como reagir. Laura está agindo de maneira quase humana, e isso é um tanto desconcertante. — Acho que agora são águas passadas — digo, sem ter muita certeza. — Ah, Giovanni — Laura diz com um sorriso de lábios apertados quando ele aparece ao meu lado. — Achei que estaria aqui. Bom, boa sorte para todos. Ela dá meia-volta para ir embora, mas eu me vejo com vontade de convidá-la a voltar. Certo, ela foi uma vaca completa, mas pelo menos me deu um emprego. E nós todas a abandonamos — Michael nos contou que, durante duas semanas depois que fomos embora,

ela ficou trabalhando sozinha todo santo dia. Faz pouco tempo que conseguiu contratar funcionárias novas. Talvez já tenha sido castigo suficiente. — Laura... — digo, com hesitação. — Você podia ficar para um vinho. Se quiser. Julie olha para mim de um jeito estranho, então dá de ombros para Laura. — Por que não? Nós bebemos um monte de vinho seu durante todos aqueles anos. Laura hesita; então sua boca. forma o que eu acho que ia ser um sorriso, mas não tenho certeza absoluta. — Quem sabe só uma taça — ela diz, com suavidade. Depois completa, de maneira quase inaudíveí: — Obrigada. — De nada — digo em voz alta, com um sorriso, e a direciono para o vinho. — Isso foi muito... hum... nobre, certo? Acho que sim — diz Giovanni, alegre. — É melhor estar sempre em bons termos com os outros, sabe? — Eu sei — respondo. — Mas não quero ser simpática demais, muito obrigada. Então, está se divertindo? Giovanni sorri. — Nunca me diverti tanto. Conheci muitas pessoas legais. E a sua mãe. Oouf! Uma senhora e tanto! Ele revira os olhos para mim, e eu dou risada. — Não deixe o meu pai escutar — digo com um sorriso. — Mas, por favor, sinta-se à vontade para flertar com ela até não poder mais. Ela vai adorar, absolutamente. Giovanni dá uma piscadela e desaparece. Examino o ambiente: Chloe está rindo com. Michael; Lucy brinca de brigar com Alistair; Stanley e meu pai conversam compenetrados sobre algum assunto qualquer; Simon conversa com Jason, que conseguiu tirar a noite de folga do Canvas; Julie e Archie conversam algo muito sério; minha mãe joga a cabeça para trás e ri de alguma coisa que Giovanni acaba de dizer; e Pete dá em cima de Laura. — Você já assistiu a “A primeira noite de um homem”? — ouço quando ele pergunta. — É que eu sempre imaginei como seria. Sabe como é, pegar uma mulher mais velha... — Está se divertindo? — Simon sussurra no meu pescoço. — Ãh-ram — respondo com um sorriso. — Sabe, é uma pena que a Cressida não pôde vir. Eu meio que queria agradecer a ela. — Por que agradecer à Cressida? — ele pergunta, curioso. — Ela não tem nada a ver com isto aqui. — Claro que tem — apresso-me em responder. — A carta dela me levou a você, e se eu não tivesse conhecido você, não teria conhecido o Stanley, nem o seu pai. — Então você devia agradecer à Lenora por escrever a carta, não à Cressida — diz Simon, em tom despreocupado. Mas logo assume semblante sério. — Nat, na verdade, você não precisa agradecer a nenhuma delas. O que elas fizeram ou não fizeram foi mero acaso. Foi você quem reuniu todas estas pessoas. Você ficou amiga do Stanley, conquistou o meu pai, inspirou o Giovanni. E, é claro, fez com que eu me apaixonasse perdidamente por você. Dou um beijinho rápido em Simon. — Eu amo você de verdade — digo com suavidade. — Obrigada por... Bom, apenas obrigada. Julie se aproxima. — Já está na hora? A Chloe vai ficar bêbada demais para andar com aqueles saltos se a gente não começar logo. Dou uma olhada em Chloe, que de fato parece meio instável, e concordo rapidinho. — Volto daqui a um segundo — digo a Simon e faço um sinal para Alistair, que vai até o som enquanto Julie pega Chloe e Lucy.

— Cinco minutos — ela diz para mim por entre os dentes. Dou um sorriso rápido para ela, então sinto meus nervos à flor da pele. — Se você der uma de Gwyneth e chorar, sabe que eu nunca mais vou falar com você, não sabe? — Alistair diz, amável, e eu consigo dar um sorriso. — Vou fazer o melhor possível — prometo. Então Julie sai de trás da cortina do provador e faz um sinal com a cabeça. Bato um copo contra o outro, e gradualmente o zumbido da conversa se transforma em silêncio. Respiro fundo. — Obrigada por estarem aqui nesta noite, e bem-vindos à Bess and Stanley, o novo ponto dos fashionistas em Notting Hill — digo com a voz embargada, então limpo a garganta com um ruído alto. Falar em público nunca foi o meu forte. — Não vou falar muito... só algumas palavras de agradecimento — prossigo. — A Stanley, meu amigo e sócio, em cuja loja vocês estão neste exato momento; a Archie, por acreditar em mim mesmo quando eu não acreditei nele; a Giovanni, por me permitir vender as bolsas e os sapatos mais lindos que já existiram; a Julie por me mostrar como se faz e por manter os negócios na linha; aos meus pais por me darem tanto amor e apoio... e, é claro, por terem me expulsado de Bath e me mandado de volta para Londres; e finalmente a Simon, por... bom, por ser ele. Alistair olha para mim e eu dou uma piscadela. — Mas agora eu gostaria que vocês abrissem um espaço para poder assistir à apresentação de outras duas grandes amigas: a Lucy, parte universitária e parte Mulher-Maravilha, que fez milagres com nosso merchandising, e Chloe, minha melhor amiga, marqueteira extraordinária e... como vocês vão ver, quase top model... Alistair aperta um botão no som e, quando White Stripes toca alto nas caixas, Lucy e Chloe saem do provador usando sapatos de salto Stallioni, jeans de cintura baixa, parte de cima de biquíni e o maior número de bolsas Stallioni que conseguiram pendurar em si mesmas. Desfilam pela loja durante vários minutos, dando voltinhas enquanto Michael as fotografa. As duas estão lindíssimas, mas Chloe com toda a certeza está reluzente: parece que nasceu para fazer isso. E de pensar que ela achou que eu estava de piada quando fiz a sugestão, lembrando-a de que essa era uma ambição que ela ainda não tinha realizado. Enquanto desfilam as coisas, reparo em Richard parado ao lado de minha mãe, e tenho certeza de que o ouço dizer: — Eu é que devia estar na porra da passarela. Sou modelo, sabe? Sorrio ao vê-la examiná-lo de cima abaixo, obviamente tão surpresa com a afirmação de Richard quanto eu fiquei. Então dou risada quando o vejo começar a levantar a camiseta. Quando as "modelos" retornam para o provador, Chloe faz um sinal para Alistair desligar o som e me dá um abraço. — Acho que a gente não pode ir embora hoje sem fazer um brinde à Nat, não é mesmo? — ela pergunta. Fico terrivelmente vermelha quando percebo que está todo mundo olhando para mim (todo mundo menos Richard, quer dizer; ele continua olhando para a própria barriga, vidrado). Todo mundo parece tão orgulhoso, tão feliz por mim que começo a me preocupar de "dar uma de Gwyneth", afinal das contas. — A Nat — Chloe prossegue. — Por mostrar que os sonhos podem se realizar. — E a Cressida — eu digo baixinho para mim mesma. — Por ter me ajudado com a burocracia.

FIM

Créditos: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=34725232
Gemma Townley Mentirinhas Inocentes

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164 Pages • 94,046 Words • PDF • 863.7 KB